Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
392/12.9T3OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PECULATO
TENTATIVA
PROVA INDICIÁRIA
Nº do Documento: RP20160928392/12.9T3OVR.P1
Data do Acordão: 09/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1023, FLS.151-166)
Área Temática: .
Sumário: I - A tentativa pressupõe:
- a decisão de praticar um crime, como elemento subjetivo;
- o iniciar a realização (praticar atos de execução) do tipo legal, como elemento objetivo; e,
- a não consumação do crime, como fator negativo conceptualmente necessário.
II – O agente de um crime de peculato tem de ter consciência:
- da sua qualidade de funcionário (tal como o define o art. 386º, n.º 3, do Cód. Penal);
- que o bem (dinheiro ou outra coisa móvel, pública ou particular) está na sua posse em razão das funções que exerce;
- que está a fazer seu um bem alheio, em benefício próprio ou de terceiro.
III – Quanto ao elemento volitivo, o tipo legal não exige um específico propósito apropriativo (como no furto), bastando-se com a vontade, livre e consciente, de praticar atos concludentes da apropriação do bem.
IV – Quer a prova direta quer a prova indireta (prova indiciária) são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da verdade do factum probandum.
V – Para superar a presunção de inocência, a prova indiciária deve respeitar requisitos formais ou processuais e requisitos materiais.
VI - Quanto aos primeiros: na fundamentação da sentença, os factos indiciantes devem, como tal, estar expressos e individualizados; e da fundamentação da sentença deve constar a motivação do juízo de inferência, é dizer, deve explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou – explicitação que é fundamental para avaliar a racionalidade da inferência.
VII - O que tem de particular este tipo de prova é uma maior exigência de (uma mais cuidada) fundamentação.
VII – Quanto aos requisitos materiais: desde logo a exigência de que os factos-base estejam plenamente provados (de preferência, mediante prova direta).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 392/12.9 T3OVR.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

I - Relatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 392/12.9 T3OVR, corre termos pela 2.ª Secção Criminal (J3) da Instância Central da Comarca de Aveiro, B…, devidamente identificada nos autos, foi submetida a julgamento, por tribunal colectivo, acusada pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de peculato previsto e punível pelos artigos 375.º, n.º 1, e 386.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.
A Câmara dos Solicitadores requereu e foi admitida a intervir como assistente.
C… e D…, com os sinais dos autos, deduziram pedido de indemnização civil contra a arguida.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após deliberação do Colectivo, foi proferido acórdão (fls. 418 e segs.), datado de 27.05.2015 e depositado na mesma data, com o seguinte dispositivo:
“Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo, julgar a acusação parcialmente procedente e, em consequência:
A) Absolver a arguida B… dos factos da acusação que implicam a prática de um crime de peculato na forma consumada, p. e p. pelos art.ºs 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, de que vinha acusada.
B) Condenar a arguida B… pela prática de um crime de peculato na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º, 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, al. d), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, que se decide suspender na sua execução por igual período, ou seja, por 1 (um) ano e 8 (oito) meses, sob a condição de a arguida proceder ao pagamento aos demandantes D… e C…, durante o mesmo prazo e mediante junção do respetivo comprovativo ao processo, da quantia de € 3.000 (três mil euros), fixada a título de indemnização civil.
C) Custas a cargo da arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
D) Julgar o pedido de indemnização civil parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, condenar a arguida B… a pagar aos demandantes D… e C… a quantia de € 3.000 (três mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a data da presente decisão até efetivo e integral pagamento, indo a arguida absolvida do restante pedido.
E) Custas cíveis a cargo dos demandantes e da arguida, na proporção do decaimento, sendo 27.000/30.000 para os primeiros e 3.000/30.000 para a segunda.
F) Absolver os demandantes, D… e C…, do pedido de condenação como litigantes de má-fé contra si formulado pela arguida B….
G) Custas pelo incidente, nos termos do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e art.º 7.º, n.º 4.º do Regulamento das Custas Processuais, que se fixa pelo mínimo legal.
H) Absolver a arguida B… do pedido de condenação como litigante de má-fé contra si formulado pelos demandantes D… e C….
I) Custas pelo incidente, nos termos do art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e art.º 7.º, n.º 4.º do Regulamento das Custas Processuais, que se fixa pelo mínimo legal”.

Inconformada, a arguida veio interpor recurso do acórdão condenatório para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação e, após convite para o efeito, apresentou “conclusões”, de que se transcreve aquelas que se nos afiguram relevantes:
“3 - Está aqui em causa a quantia de € 25.021,66 transferida a 9 de setembro de 2011, às 22:55 horas para a conta AE da arguida, com o NIB …………………., pelo remitente D…, como se comprova pelo doc. nº 3 junto à participação criminal a fls. 10 do processo.
4 - Tal valor decorre do exercício de uma remissão no âmbito de uma execução, perante o pedido de adjudicação do bem pelos exequentes, naquele preço, transferido após notificação da recorrente a 1 de setembro de 2011 em resposta ao pedido de remissão dos recorridos, como se comprova pelo doc. nº 2 junto à participação criminal a fls. 9 do processo.
7 - Como se pode constatar pelo extrato junto aos autos pelo banco E… e que consta da fl. 164, tal quantia apenas ficou disponível em tal conta no primeiro dia útil a seguir à transferência, ou seja, dia 12.
8 - Pergunta-se, como pode a mesma ter decidido apropriar-se da referida quantia se, antes da sua transferência e disponibilidade na conta, já se tinha ido denunciar à Câmara dos Solicitadores e sabia que as suas contas seriam de imediato bloqueadas?
10 - Se de facto fosse esse o seu intento, por exemplo, certamente que a recorrente não se iria denunciar antes dos € 25.021,66 ficarem disponibilizados na respetiva conta.
11 - A afirmação do contrário, não é verdadeira nem factualmente sustentada, nem pode dar-se como provada, porque não só não existe qualquer facto ou elemento que prove tal versão como não houve qualquer intento da recorrente em apropriar-se daquela quantia, não engendrando plano "para não tornar tal vontade tão evidente".
18 - Quem considerou que a notificação para pagamento das custas era errada, agiu conforme, judicial e processualmente previsto tendo visto a sua pretensão satisfeita. Senão,
19 - Teremos que assumir que os inúmeros erros e lapsos processuais, seja quem for o autor dos mesmos, comportam uma componente criminal, o que seria um absurdo. Sucede que,
20 - Segundo as declarações da recorrente, foram, de facto, interpelados os exequentes para que procedessem ao pagamento de tais custas tendo os mesmos referido que não o fariam porque teria havido uma remissão e, portanto, não queriam ficar minimamente prejudicados naquilo que tinham a receber do produto da venda, cabendo tal pagamento aos remitentes (atente-se ao doc. de fls. 11 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos e no depoimento da arguida que consta da gravação de 16/03/2015, com início às 11:48, minutos 00:08:26 a 00:09:10 e 00:12:10 a 00:12:45).
22 - É conclusiva, abusiva e irreal sem qualquer base documental, testemunhal ou factual que a sustente, subvertendo o princípio da inocência da arguida até prova em contrário, cujo ónus é do Tribunal. Por outro lado e consequentemente,
23 - Não se vê como é que saiu provado que os exequentes não haviam transmitido tais instruções. Ora,
24 - A notificação dos remitentes para que realizassem tal pagamento, embora se possa considerar errada, não encerra em si qualquer matéria criminal.
31 - A recorrente não pretendia apropriar-se de uma quantia que não era sua, quando acontece justamente o contrário - a quantia era-lhe devida e legalmente regulada, sendo da competência e responsabilidade da mesma solicitar o mesmo (embora por lapso) o reflexo desse pagamento, naquele processo de execução. Pelo que,
32 - Deste ponto 7 dos factos dados como provados, só a primeira parte do mesmo, em que se refere o envio do email é que está sustentada e se deve manter.
33 - No dia 9 de setembro de 2011, a recorrente dirigiu-se à Câmara dos Solicitadores para confessar o cometimento de ilícito criminal o que resultou no imediato bloqueio preventivo das suas contas e em consequente procedimento disciplinar. Mais,
34 - A 12 de setembro seguinte, a recorrente foi chamada para prestar declarações por escrito no Conselho Regional do Norte, e no dia 15 imediato as suas contas foram bloqueadas oficialmente (nas operações a débito) e determinada a sua suspensão preventiva (tudo num espaço de 6 – seis – dias).
36 - Se numa situação normal, a emissão de um título de transmissão de propriedade e respetiva regularização do processo de execução poderá demorar, em média, entre 15 a 30 dias.
37 - No caso em apreço - relembra-se que o montante da remição foi transferido a 9 de setembro, com data-valor de 12 seguinte e a recorrente foi suspensa a 15 de setembro -, como é que, em 2 (dois) dias, poderia, ou melhor, deveria a recorrente, de entre centenas de processos e com os problemas que a preocupavam, ter emitido esse título?
38 - É totalmente infundado e destituído de sentido a afirmação produzida pelo Tribunal "a quo" que a recorrente se recusou a emitir o título de transmissão, muito menos a devolver a quantia correspondente ao valor remitido aos exequentes. Ainda,
39 - Mais infundada e contraditória é a afirmação de que tal quantia "acabou por ser depositada na sua conta da Sucursal do E… sita na Av. …, nº …, em Lisboa", quando se comprovou perante os autos que a referida conta, onde os € 25.021,66 foram depositados é a de execução e foi bloqueada, preventivamente, a partir do dia 9 e, pelo menos desde tal dia, a mesma não conheceu quaisquer débitos ou transferências. Ou seja,
40 - Tal valor permaneceu e permanece na conta de execução em causa desde tal altura à responsabilidade e gestão da Câmara dos Solicitadores. Por tudo isto,
43 - A 17 de outubro o seu escritório foi fechado, sendo alvo de arresto naquele mesmo mês (…). Mais uma vez, pergunta-se,
44 - Como poderá ter-se recusado a recorrente a prestar esclarecimentos ou a responder a quaisquer notificações que lhe foram feitas se o seu escritório, já estava encerrado há pelo menos 4 meses e aquela se encontrava suspensa do exercício da sua profissão?
50 - A mera menção ou remissão para conceitos genéricos como o das regras do normal acontecer, são destituídos de qualquer sentido ou significado jurídico funcionando como cosmética de justificação. Por tudo isto,
51 - Também o facto dado como provado no ponto 9 não é verdadeiro, sendo, por isso, errada a afirmação de que "recusou-se sempre a arguida a prestar qualquer esclarecimento, ou a responder o que quer que fosse".
53 - Pela simples e mera análise do extrato junto pelo Banco E… a fls 161 a 174, não há movimentos a débito naquela conta já desde antes da transferência dos remitentes.
55 - Por tais motivos e remetendo para o exposto em sede de impugnação do facto dado como provado no ponto 6, também o ponto 10 não pode ser tido dado como provado.
57 - Quanto à afirmação na motivação da douta sentença recorrida, de que a recorrente já havia procedido nos mesmos moldes em outras ocasiões (vd. fls. 428, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos), sem tal ter sido sequer objeto de inquérito, discussão ou prova judiciais, só demonstra que, de facto, existe preconceito/pré-juízo negativo contra a recorrente, o que se revela inadmissível e violador das regras mais elementares do exercício de julgar.
58 - Relembre-se justamente que, com exceção do facto que foi, auto denunciar-se a 9 de setembro de 2011, nunca a recorrente foi condenada pela prática de qualquer outro ato idêntico, sendo um contrassenso inexplicável a afirmação do Tribunal "a quo" referida no número anterior quando, justamente o facto contrário é tomado em consideração a fls. 436, cujo conteúdo se considera integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, para justificar a escolha e determinacão da medida da pena. Se assim é,
59 - É curioso que se olvide o facto de a recorrente, naquele âmbito, se ter denunciado à Câmara dos Solicitadores, assumindo a sua culpa e enfrentando as devidas consequências. Mais,
60 - Que se fundamente "com segurança e certeza jurídica" esta incriminação - na sua forma tentada - em "regras da experiência comum e da normalidade social" que, nem sequer são aclaradas e identificadas.
61 - Considerar como atos de execução do crime de peculato, o envio do e­mail com a conta de honorários e a falta de resposta ou informação sobre o processo de execução na sequência das notificações do tribunal, tendo em conta o referido, não só é totalmente insustentável como se revela destituído de sentido perante a prova existente no processo e produzida na audiência de julgamento, como vai contra os mais elementares princípios de direito penal.
68 - Por mera precaução, a recorrente em 23 de Setembro de 2011 foi suspensa do exercício da sua profissão sendo tal factualidade incompatível com a continuação de qualquer atividade própria de agente de execução, fosse qual fosse. Ainda,
69 - Não corresponde à verdade que a execução se extinguiria por força do pagamento aos exequentes, pois que, o valor da execução era superior ao valor da remissão e a mesma não se extinguiria com a transmissão referida.
72 - A recorrente não passou o título de transmissão por razões que em nada se prendem com a idealizada pretensão de apropriação que não poderá colher provimento. Repita-se que,
73 - A recorrente foi suspensa da sua atividade 2 dias após a ordem de transferência do montante da remissão, por isso, é que não emitiu o título de transmissão de propriedade como aconteceria numa situação normal”.
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Admitido o recurso (despacho proferido a fls.525) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, apenas o Ministério Público apresentou resposta à respectiva motivação, concluindo que deve ser-lhe negado provimento.
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Ordenada a subida dos autos ao tribunal de recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que se pronuncia em sentido, diametralmente, oposto ao do Ministério Público no tribunal recorrido.
Depois de analisar as questões suscitadas pela recorrente, concluiu que lhe assiste razão, porquanto:
- há incongruência na factualidade considerada provada, que não passa despercebida à observação normal de um homem médio;
- verifica-se um conflito inultrapassável entre os factos provados, tornando todos eles inviável a decisão da condenação da arguida pela prática de crime de peculato na forma tentada.
Por isso é de parecer que o recurso merece provimento.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem resposta da recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

IIFundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, está bem de ver, sem prejuízo da apreciação de outras questões que são de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insupríveis e dos vícios da sentença, estes previstos no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal.
As conclusões de recurso devem expressar-se através de proposições sintéticas que emanam do que se expôs e considerou ao longo das alegações e nessas proposições devem estar manifestadas, de forma clara, as razões (de facto e de direito) da discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, a indicação especificada dos fundamentos do recurso.
A exigência legal significa que o recorrente deve fazer uma síntese da substância da fundamentação do recurso para que o tribunal ad quem possa, facilmente, aperceber-se e apreender o que é essencial e não se disperse na apreciação do que é acessório, supérfluo ou inútil na economia da motivação.
A recorrente, depois de uma longa exposição (repartida por 120 números) em que procurou transmitir as razões da sua discordância, formulou 117 (!) “conclusões”.
Porque as “conclusões” formuladas mais não eram que a reprodução, quase integral, do alegado no “corpo” da motivação, ainda na 1.ª instância, foi o recorrente convidado a apresentá-las no prazo de 10 dias, sob a cominação de não admissão do recurso.
Veio, então, apresentar a peça de fls. 495 e segs., com 87 “conclusões”, o que bem revela que o recorrente não respondeu satisfatoriamente ao “convite” que lhe foi dirigido, fez, apenas, um pequeníssimo esforço de síntese e as “conclusões” oferecidas continuam a ser, manifestamente, excessivas.
Temos sido condescendentes na aplicação das consequências do não cumprimento do dever imposto no artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal pois que, mais que facilitar a tarefa do tribunal de recurso, as exigências legalmente impostas para as conclusões “estão predeterminadas à finalidade de prevenir o uso injustificado do recurso, pela identificação, precisa, dos pontos de discordância e das razões da discordância, e assim delimitando o objecto do recurso e os termos da cognição do tribunal de recurso, tudo na perspectiva do uso racional e justificado do meio e não como procedimento dilatório”, visando ainda aquelas imposições “permitir a fluidez da decisão do recurso, contribuindo para a celeridade do processo penal na realização dos fins de interesse público a que está determinado” (Acórdão do STJ, de 20.09.2006, www.dgsi.pt; Relator: Cons. Henriques Gaspar).
Ora, é fácil identificar as questões, ou melhor, a única questão colocada à apreciação do tribunal de recurso: a recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto e fá-lo por uma das vias legalmente possíveis, invocando o erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência em 1.ª instância.
É no pressuposto de que será bem sucedida na sua pretensão de ver alterada essa decisão relativamente aos concretos pontos da matéria de facto que enumera que reivindica a sua absolvição, quer em matéria penal, quer em matéria cível.
Mas, como já vimos, a Ex.ma PGA é de parecer que a decisão sobre matéria de facto revela patentes incongruências e existe conflito inultrapassável entre os factos provados.
Impõe-se, então, analisar a decisão recorrida para verificar se ela padece de alguns dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código Processo Penal e é, justamente, por aí que vamos começar, pois são de conhecimento oficioso, como já se aludiu.
*
Identificadas as questões a decidir, e assim delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade provada[2] e não provada:
Factos Provados:
1.º No exercício das respetivas funções, enquanto solicitadora de execução com o número de inscrição na respetiva Ordem sob o número 2811, passou a arguida a desempenhar as atribuições inerentes a agente de execução, por força de nomeação judicial no âmbito do processo executivo 847/09.2T2OVR-B que correu termos no Juízo de execução de Ovar, Comarca do Baixo Vouga.
2.º No âmbito de tal processo executivo, em que figuravam como executados, F… e G…, foi objeto de penhora a respetiva habitação, composta por casa e quintal, a confrontar do norte com H…, nascente com via pública, poente com o exequentes e do Sul com I…, dispondo de uma área total de 400 m2.
3.º A penhora de tal imóvel culminou com a sua venda por negociação particular, aos exequentes, que apresentaram como preço para aquisição o valor de 25.021 €.
4.º Os filhos dos executados, D… e C…, nessa qualidade, tendo tido conhecimento de tal única proposta, exerceram o seu direito de remição, comunicando-o à arguida em quanto agente de execução, pelo que a mesma, em 1/09/2011 os notificou para em dez dias procederem ao depósito da quantia de 25.021,66 € na conta da AI com o NIB …………………, do E…, montante esse referente ao valor da proposta de remição apresentada.
5.º Em 9 de Fevereiro de 2011, no cumprimento das informações transmitidas pela arguida, efetuou D… uma transferência da sua conta pessoal no montante de 25.021,66 € para a conta ………………… referida por aquela, sendo que tal quantia, logo no dia subsequente, passou a estar disponível em saldo à ordem.
6.º Logo nessa altura, a arguida decidiu apoderar-se da quantia em causa, mas engendrou plano para não tornar tal vontade, do ponto de vista processual, tão evidente.
7.º Assim, em data não concretamente apurada, mas posterior a 09/09/2015, a arguida enviou aos remitentes um email a solicitar a transferência acrescida de 2.271,99 €, alegando tratar-se de honorários seus e que sem tal pagamento os exequentes não aceitariam o pedido de remição em causa, o que sabia ser falso, pois nunca os exequentes lhe haviam transmitido tais instruções, sabendo ainda a mesma que os seus honorários se encontravam garantidos pelo produto da venda, pois saíam precípuos nos termos do disposto no artigo 455.º do CPC.
8.º Subsequentemente, apercebendo-se que os visados não iriam realizar qualquer transferência acrescida, e por forma a não ter que prestar contas aos exequentes, recusou-se a emitir o respetivo título de transmissão, ou a devolver a quantia em causa que acabou por ser depositada na sua conta da Sucursal do E… sita na Av. …, nº …, em Lisboa.
9.º Após, e apesar de ter sido notificada em Fevereiro de 2012 de douto despacho judicial a ordenar a anulação da conta de custas apresentada aos remidores, e em Março do mesmo ano, de outro douto despacho a cominá-la com multa caso não informasse o estado dos autos, mormente se já tinha passado o título de transmissão e efetuado o pagamento ao exequente, e, novamente em Maio de 2012, de novo despacho a renovar a ordem antecedente, recusou-se sempre a arguida a prestar qualquer esclarecimento, ou a responder o que quer que fosse,
10.º Sabia a arguida B… que tais montantes se encontravam à ordem de um processo de natureza judicial e se lhe mostravam confiados em termos de depósito, na qualidade de solicitadora de execução, sendo que lhe não era lícito, a qualquer título, dispor em proveito pessoal, como pretendeu e só não conseguiu por razões alheias à sua vontade.
11.º Agiu sempre de forma livre e voluntária, ciente que tal atuação consubstanciava ilícito criminal.
Mais se provou que:
12.º O email a que se refere o facto provado em 7.º tinha o seguinte teor: “… Sou a informar que o exequente só aceita o pedido de remição apresentado, caso proceda ao pagamento das custas/honorários no valor total de 2.271,99 euros, por transferência para a conta …………………., conforme conta em anexo. Com os melhores cumprimentos, Agente de Execução (Sol.) – B…
13.º A arguida só não se apoderou da quantia depositada pelos lesados, no montante de € 25.021,66, porque a conta foi bloqueada e deixou de estar acessível à arguida no dia em que aquele montante foi depositado.
14.º Por decisão datada de 10 de Abril de 2013, proferida pela Secção Regional Deontológica do Norte da Câmara dos Solicitadores, já transitada em julgado, decidiu-se ordenar o cancelamento da inscrição da arguida enquanto Solicitadora (e Agente de Execução) na Câmara de Solicitadores, por falta de idoneidade moral bem como por ter sido declarada insolvente em 3/04/2012 por sentença do processo n.º 59/12.8TBOAZ, do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de S. J. Madeira.
15.º A Comissão Para a Eficácia das Execuções aplicou à arguida as medidas cautelares de suspensão preventiva e de bloqueio das contas-cliente, por deliberação de 15/09/2011, tendo as contas-cliente sido bloqueadas a 23/09/2011.
16.º Desde o dia 9/9/2011 que não existem movimentos a débito na conta titulada pela arguida com o NIB …………………, apenas existem movimentos de crédito na conta.
17.º Por Apresentação 4258 de 2009/08/04, foi registada a penhora do prédio urbano descrito na Conservatória de Registo Predial de Estarreja sob o n.º 4628/20090804, sito na Rua …, …, inscrito na matriz sob o n.º 2055, foi objeto de penhora a respetiva habitação, composta por casa de habitação, a confrontar do norte com H…, nascente com via pública, poente com o exequentes e do Sul com I…, dispondo de uma área total de 509,1 m2, em que figuram como sujeitos ativos os exequentes do processo 847/09.2T2OVR-B (a que foi apenso o processo 777/09.8T2OVR), J…, K… e L…, e como sujeitos passivos, os executados F… e mulher G…, sendo certo que aquela penhora se mantém ativa até à presente data.
18.º Por Apresentação 1869 de 09/04/2013, foi registada a Aquisição do prédio, por Compra em Execução, pelos remitentes, ora demandantes, C… e D…, por referência ao processo de execução 847/09.2T2OVR-B (a que foi apenso o processo 777/09.8T2OVR).
Do pedido de indemnização civil:
19.º Os ofendidos, C… e D…, filhos dos executados, perante a penhora da casa onde cresceram, dispuseram de uma quantia de € 25.021,66, com o propósito de preservar o património familiar, devido às ações executivas que os seus pais foram alvo.

20.º Tal quantia visava pagar aos exequentes em tal processo executivo, porém, esse pagamento nunca veio a acontecer porque a arguida reteve o dinheiro para si.

21.º Por isso, as pensões de velhice de ambos os pais continuam a ser penhoradas.

22.º Apesar de todas as notificações efetuadas pelo douto tribunal de execução à ora arguida para emitir o título de transmissão que permitiria registar a propriedade em nome dos ofendidos e dar esta dívida como integralmente paga aos exequentes, a arguida nunca se dignou a fazê-lo.

23.º Primeiramente, não faziam ideia do que se estava a passar, tendo os lesados insistido junto da arguida, que nunca chegou a responder, através da sua mandatária e, posteriormente, junto do tribunal, para muito tempo depois conseguir acreditar que a arguida havia retirado para si a quantia em causa.

24.º Os exequentes não receberam a quantia já paga, sendo que continuam a efetuar penhoras no património dos executados, que mal conseguem sobreviver, tendo de ser os ofendidos com os seus rendimentos pessoais a ajudá-los, inclusive na sua alimentação.

25.º Todos estes factos perturbaram psicologicamente bastante os lesados que, durante muito tempo consideraram ter perdido totalmente o dinheiro transferido sem ficar com qualquer propriedade.

26.º Os lesados sentiram revolta, nervosismo, ficando completamente desacreditados em relação aos profissionais forenses e a justiça, pois após seguirem todos os procedimentos que lhes cabia, ficaram bastante prejudicados psicológica e patrimonialmente.

27.º Os lesados são pessoas sensíveis e ficaram bastante preocupados e alarmados pelo sucedido.

28.º Assim, por diversas noites os lesados dormiram mal, ficaram ansiosos pelo desfecho desta situação, o que ainda não ocorreu.

29.º Gastaram o seu dinheiro próprio e da sua família, nomeadamente, dos seus filhos, para salvaguardar o seu património familiar, o que nunca se consumou, gerando bastantes discussões e conflitos familiares.

30.º A prática deste crime foi agravada ainda pelo facto de posteriormente ao lesado D… ter procedido à transferência já identificada nos autos para o NIB da conta indicada pela arguida, ainda terem sido notificados para procederem ao pagamento de honorários no valor de € 2.271,99, argumento este ardilosamente inventado pela arguida para se eximir da sua responsabilidade de proceder à entrega da quantia aos exequentes naquele processo e a emitir o respetivo título de transmissão.

31.º Atualmente, os lesados ainda se encontram em estado de ansiedade, inquietude e descrédito pelas atividades forenses.
(…)
Dos antecedentes criminais da arguida:
50.º Por sentença datada de 30/05/2012, transitada em julgado em 04/07/2012, proferida no processo sumário n.º 1971/11.7JAPRT, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, foi a arguida condenada, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, cometido em 27/10/2011, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 10, num total de € 1.000; por despacho datado de 19/09/2013 foi esta pena julgada extinta pelo pagamento, efetuado em 17/07/2013.
Do pedido de litigância de má fé formulado pela arguida:
51.º O bem remido encontra-se registado, com data de apresentação de 9 de abril de 2013.
52.º O Pedido de Indemnização Cível foi apresentado nos autos a 29 de abril 2014.
53.º A 5/06/2012 os assistentes requerem a substituição do solicitador de execução e a 12 de junho do mesmo ano apresentam a queixa-crime.
Do pedido de litigância de má fé formulado pelos lesados:
54.º Todos os prazos perante os quais foi necessária a reação dos lesados nos presentes autos foram escrupulosamente cumpridos;
55.º Os lesados não poderiam só o registo do imóvel em seu nome, mas também e principalmente o pagamento aos exequentes, pagamento esse que nunca chegou a ser feito devido ao comportamento levado a cabo pela arguida neste processo.
56.º A penhora relativa a este processo executivo continua ativa no património dos pais dos lesados.
Factos não provados:
Da acusação:
A) Que a arguida se tenha apoderado e feito sua a quantia de € 25.021,66 e, consequentemente, que a tenha gasto em proveito próprio.
Do pedido de indemnização civil:
B) Que os lesados não tenham ainda conseguido registar a propriedade em seu nome apesar de todas as diligências encetadas.

Do pedido de litigância de má-fé formulado pelos demandantes:
C) Os lesados apenas através da presente queixa criminal tiveram conhecimento do que se havia passado com a arguida.
*
Apesar da sua extensão, importa reproduzir, na íntegra, a motivação da decisão sobre matéria de facto:
“O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento, valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente:
A arguida quis prestar declarações, tendo colaborado com o tribunal apresentando a sua versão dos factos e justificando a sua atuação, sendo certo que a sua versão veio a ser infirmada nos termos em que abaixo melhor explicitaremos.
Assim, a arguida confirmou os factos 1.º a 5.º dos factos provados. Esclareceu que a conta bancária identificada em 4.º era por si movimentada e a arguida era a pessoa que estava autorizada a movimentá-la. Asseverou que essa conta foi bloqueada no dia em que os remitentes, ora demandantes, fizeram a transferência dos € 25.021,66, ou seja, no dia 9/9/2011 – esse facto foi confirmado pela análise dos extratos bancários dessa mesma conta referentes aos meses de Setembro a Dezembro de 2011, dos quais se extrai objetivamente que a partir dessa data só existem movimentos a crédito, não existindo qualquer movimento a débito.
Mais referiu que nesse dia 9/09/2011 deslocou-se à Câmara dos Solicitadores e prestou declarações verbalmente. Negou veementemente que tenha querido apropriar-se daquela quantia tendo explicado que não o poderia sequer fazer porque nesse dia lhe bloquearam o acesso à conta – este facto foi infirmado pelo email que a arguida enviou aos remitentes, em data posterior àquela, dizendo para estes efetuarem o pagamento das custas e honorários, caso contrário, não lhes seria vendido o imóvel; ora, neste email, a arguida afirma que os remitentes teriam que pagar as custas e os honorários no valor de € 2.271,99, bem sabendo por força da profissão que exercia, e que não podia por isso desconhecer, que as custas sairiam precípuas do produto da venda nos termos do art.º 455.º do CPC e que, por isso, nunca estariam a cargo dos remitentes, mas sim, dos executados; para além disto, do email ressalta que a arguida pretendia que os remitentes efetuassem essa transferência para uma outra conta bancária, que não aquela para a qual deveriam ser transferidos todos os dinheiros que recebesse por força da sua profissão. Destes factos temos que concluir quais eram as reais intenções da arguida: por um lado, a arguida sabia que os € 2.271,99 não eram devidos por força do art.º 455.º do CPC; por outro lado, quando enviou o email, a arguida sabia que não iria poder fazer o pagamento do dinheiro entregue pelos remitentes aos exequentes e, por conseguinte, sabia que não podia emitir o título aos remitentes; acresce que a arguida estava a lidar com uma situação económica frágil do marido e já tinha procedido desta forma em outras situações, conforme resulta evidenciado do teor da decisão proferida no processo disciplinar que culminou na sua expulsão da Câmara dos Solicitadores; por fim, o facto de ter fornecido um NIB diferente no email significa, à luz das regras da experiência comum, que a arguida pretendia apropriar-se dessa quantia de € 2.271,99, sendo certo que já não podia dispor dos € 25.000 referentes ao produto da venda do imóvel penhorado e, por outro lado, saliente-se que não se justificava que a arguida desse outra conta pois tinha que saber que a conta bloqueada estava a ser creditada (se assim não fosse e sendo a conta creditada diariamente, e várias vezes no mesmo dia, teria sido contactada pelos clientes e intervenientes do processo a saber por que razão não tinham conseguido transferir dinheiro). Ora, que outras razões tinha a arguida para fornecer um número de conta diferente? Assim, da conjugação destas circunstâncias podemos concluir que a arguida pretendia apropriar-se dos € 25.000 e só não o conseguiu fazer porque a sua conta foi nessa data bloqueada.
Ademais, a arguida estava efetivamente a necessitar de dinheiro e encontrava-se, juntamente com o marido e, por causa da atividade profissional deste, em descalabro financeiro pessoal. O facto de ter posteriormente sido declarada judicialmente a sua insolvência (vd. certidão da sua declaração de insolvência de fls. 318 a 331) é revelador dessa sua fragilidade económico-financeira que, alegadamente, terá impulsionado a arguida a cometer estes factos.
Este quadro, e com a conjugação crítica de todas essas circunstâncias, à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, é-nos permitido, com segurança e certeza jurídica, formar esta convicção, sendo de salientar que esta atuação da coaduna-se ainda com o padrão de comportamento que a arguida adotou anteriormente – veja-se a decisão de suspensão preventiva com a efeitos a 15/09/2011 e de bloqueio da conta da arguida, formalmente ocorrida a 23/09/2011 (sabendo-se pelos extratos bancários que a mesma ocorreu materialmente, pelo menos no que toca a movimentos a débito, em 9/09/2011), de fls. 289 a 310. A certidão da decisão da Câmara dos Solicitadores consta dos autos e dela extrai-se que os fundamentos que a determinaram (e que vieram a dar origem à decisão definitiva de expulsão) são semelhantes aos dos presentes autos.
No decurso do seu depoimento, a arguida salientou que se apercebeu do bloqueio porque todos os dias efetuava pagamentos relacionados com a sua atividade profissional de Agente de Execução e nesse dia já não conseguiu fazê-lo e que a partir desse dia nunca mais teve acesso à conta – o que revela que quando escreveu o email sabia que a conta estava bloqueada pelo menos nos movimentos a débito.
Questionada sobre as razões pelas quais não respondeu às notificações do juiz de execução do processo em que os demandantes eram remitentes, disse que não o fez porque já não estava no escritório, que este já estava encerrado – no entanto, importa realçar que este facto só por si não significa que tenha deixado de receber ou de tomar conhecimento da correspondência recebida, designadamente, de notificações dos tribunais e dos advogados dos seus processos; aliás, se não tivesse sido intenção da arguida apropriar-se daquelas quantias sempre revelaria interesse em tomar conhecimento de todas as comunicações que lhe fossem feitas, o que se conclui pelas regras do normal acontecer.
Explicou, também, que esse encerramento acarretou um arresto e que o escritório esteve aberto apenas até ao dia 13/09/2011 (data em que presumivelmente enviou o email aos remitentes, pois é essa a data que consta da conta de custas que anexou ao email). Disse também que foi nomeado um agente liquidatário para tramitar os seus processos. Foi confrontada com o email de fls. 11, a que se refere o parágrafo 6.º da acusação, admitiu que o mesmo pode ter sido enviado, mas segundo crê, terá sido escrito por uma das suas funcionárias, sendo que não se recorda em que dia foi mesmo escrito e enviado. Por fim, sobre o conteúdo do email em causa, referiu que se recorda que, na altura, não se sabia quem pagava a conta de custas referente aos seus honorários – o que, como já o dissemos, não é credível pois qualquer solicitador de execução sabe que as custas saem precípuas do produto da venda.
Salientamos que se mostra demonstrada, pelas razões acima expostas, que a intenção da arguida era apropriar-se dos € 25.021,66 e também dos € 2.271,99, o que só não conseguiu, no primeiro caso, por razões que lhe são alheias, mormente porque a sua conta foi bloqueada nesse dia (sendo que, a fazer fé nas declarações da arguida nessa parte, ela ter-se-á deslocado nesse dia 09/09/2011 à Câmara dos Solicitadores e terá verbalmente admitido estes e/ou outros factos semelhantes, o que terá determinado que materialmente a sua conta fosse de imediato bloqueada pela Câmara dos Solicitadores, reação que se admite enquanto medida cautelar adotada perante a comunicação de factos desta natureza e que só posteriormente tenha sido formalizada).
Essa intenção da arguida decorre indubitavelmente, em nosso entender, do facto de a arguida ter tomado conhecimento no próprio dia que a conta tinha sido bloqueada e do posterior envio do supra citado email, em que indica outra conta bancária e onde pede o pagamento de quantias que sabia não serem devidas pelos remitentes. Daqui decorre que tenha havido atos de execução do crime imputado mas que não foi consumado por razões alheias à vontade da arguida.
Por outro lado, cumpre realçar que a maioria dos restantes factos dados como provados referente às comunicações entre a arguida e os remitentes no processo de aquisição encontra-se cabalmente demonstrado pela prova documental junta aos autos, designadamente a proposta de remição feita pelos demandantes de fls. 8; a notificação da arguida aos remitentes para procederem ao depósito da quantia da compra, a fls. 9; o “alerta E…” da efetivação desse depósito de fls. 10; o email enviado pela arguida após a transferência feita pelos remitentes, constante de fls. 11 e 12; as várias notificações do Tribunal de Execução à arguida a impor o cancelamento da conta de custas e para passar que fosse emitido o título de transmissão, constantes de fls. 13, 14 e 15; a informação do processo 847/09.2T2OVR-B a dizer que em 14/02/2013 o título de transmissão ainda não tinha sido passado, constante de fls. 88.
A prova da data do cancelamento da inscrição da arguida na Câmara dos Solicitadores, ocorrida em 10/04/2013, resulta do teor de fls. 305 e seguintes.
Quanto aos factos provados relacionados com a tramitação do processo de execução n.º 847/09.2T2OVR-B, assentam no teor da certidão extraída daquele processo de fls. 348 e seguintes e 378 e seguintes. Desta certidão, designadamente, do registo do imóvel na Conservatória, pode extrair-se que o registo da aquisição pelos demandantes apenas ocorreu em 09/04/2013 e que a penhora se mantém ativa, na totalidade do valor da execução até à presente data e que não foi cancelada. Daqui conclui-se que os exequentes ainda não obtiveram pagamento.
Esta prova foi conjugada com os depoimentos dos demandantes, que revelaram conhecimento direto dos factos e demonstraram, pela forma como depuseram e expuseram a situação que ainda hoje se encontram abalados, apoucados e preocupados com estes factos.
Assim, no seu depoimento, D…, demandante, filho dos executados, disse que quando confrontado com a penhora da casa dos pais, fizeram uma proposta de aquisição, e, conforme indicações dadas por carta pela arguida, procederam ao depósito do montante de € 25.021,66 na conta por esta indicada (que se verificou pelos extratos bancários acima identificados e pela ficha de abertura de conta de fls. 147, tratar-se da conta autorizada da Solicitadora de Execução). Afirma que pouco tempo depois receberam outra carta da arguida para pagarem uma quantia a título de honorários, tendo os demandantes contactado a sua advogada por terem estranhado tal pedido. Disse que não pagaram esta quantia e que este valor veio a ser considerado incorreto e posteriormente anulado. Mais asseverou que houve muitas tentativas para que a arguida passasse o título de transmissão, sendo que a transmissão veio a ser feita pela mão de outra Solicitadora, tendo realçado que, ainda assim, mantém-se a penhora sobre o prédio, com o mesmo valor (de € cerca de 25.000). Mais referiu que o vencimento da mãe continua penhorado.
C…, demandante, filho dos executados, disse que falou ao telefone com a arguida e que esta lhe disse que ainda havia um montante a pagar, no valor de cerca de € 2.000, salientando que houve alguma pressão por parte daquela em que fosse efetuado o pagamento. Referiu que nessa conversa a arguida transmitiu ao demandante que se esse valor não fosse depositado não seria feita a transmissão. Esclareceu que este telefonema ocorreu depois de terem recebido o email a solicitar o pagamento das custas e honorários – estes factos são igualmente demonstrativos da ânsia da arguida em pedir dinheiro aos remitentes, que sabia não ser devido, a coberto de uma circunstância que sabia não ser legal. Mais referiu que atualmente a casa já está em nome dos demandantes, mas que ainda está penhorada. Salientou que tem sido muito penoso continuar a fazer o pagamento. Explicou que os demandantes estão a ajudar os pais no pagamento da quantia exequenda, o que lhe custou o emprego e impediu que pudesse colocar uma prótese, que necessita. Afirmou que a mãe continua a dever a quantia integral, não obstante a aquisição e pagamento por remição.
Veio também depor F…, executada e mãe dos demandantes, que confirmou na íntegra a situação em que se encontra, designadamente, que a penhora se mantém e que o seu vencimento se mantém penhorado por referência ao valor de cerca de € 25.000 da penhora do processo de execução, salientando que não compreende o valor da quantia exequenda uma vez que os demandantes já tinham pago o valor da aquisição por remição.
Estes depoimentos revelaram-se sinceros, objetivos, circunstanciados e mereceram a credibilidade do tribunal, quer quanto à situação relacionada com o processo de execução em causa, quer quanto aos danos que os demandantes alegam no pedido de indemnização civil, donde a prova dos factos supra elencados relacionados com este pedido.
Como testemunha de defesa ouvimos M…, pessoa que fazia serviços de motorista para a arguida durante cerca de 2 ou 3 anos. Confirmou que a transportou a Lisboa em data que não soube indicar com precisão, referindo-se ao dia 9/11/2011, mas sem que estivesse certo dessa data. Mais confirmou que o escritório da arguida foi encerrado, esclarecendo que efetuou serviços de transporte de processos do escritório para a Câmara dos Solicitadores, o que terá acontecido pouco tempo depois da deslocação a Lisboa (ora, se a arguida atestou que o escritório encerrou no dia 13/09/2011, então a deslocação foi antes, sendo admissível, pela conjugação dos dois depoimentos que a mesma terá acontecido no dia 09/09/2011, conforme disse a arguida).
Quanto à matéria alegada nos pedidos de litigância de má-fé o tribunal ponderou o conjunto de toda a prova documental e testemunhal produzida. É de referir nesta sede que os factos dados como provados resultam da prova produzida em audiência e que o que não consta da factualidade provada revestia matéria conclusiva ou meramente instrumental para a boa decisão da causa.
Os factos não provados resultam da circunstância de sobre os mesmos não ter sido feita melhor prova e de ter resultado assente que o crime não se consumou.
Para o apuramento das condições sócio económicas e familiares da arguida o tribunal ateve-se às suas próprias declarações que foram conciliadas com o relatório social elaborado pela DGRSP junto aos autos a fls. 276 a 280.
Os antecedentes criminais da arguida resultam da análise do último certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 286 a 288.
*
Porque o nosso ordenamento jurídico acolhe o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal), o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[3]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Mas a liberdade[4] do convencimento que conforma o modelo da livre apreciação não significa ausência de obstáculos ou limites na amplitude da actividade de investigação e valoração do juiz, que não é inteiramente livre de valorar, adquirir, admitir e escolher a prova.
Foi a percepção dos desvirtuamentos sofridos pelo princípio da livre apreciação da prova que levou a uma refundamentação do critério para evitar o subjectivismo (que acaba por ser a máscara do arbítrio).
A liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva[5].
Como salienta o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 185), do que se trada é de uma “liberdade para a objectividade” (não a objectividade científica, sistemático-conceitual e abstracto-generalizante, mas antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção[6]), o que é dizer que, “por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
A convicção do julgador é sempre e necessariamente uma convicção pessoal, mas também “uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros” (J. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 203).
Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as já mencionadas regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos.
Por isso é absolutamente fundamental que o juiz explique e fundamente a sua decisão e deve preocupar-se em ser claro, racional e objectivo na motivação dessa decisão (e não escudar-se em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação), de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objecto de controlo.
Decididamente, nada disso se pode dizer da decisão recorrida que, em pontos fundamentais, evidencia que imperou o subjectivismo.
Aliás, basta ler a decisão sobre matéria de facto e a respectiva motivação probatória para se constatar uma sucessão de equívocos, incongruências e mesmo contradições.
Tendo a arguida sido condenada pela autoria material de um crime de peculato na forma tentada, os pontos de facto fundamentais são os descritos sob os n.os 10, 11 e 13 do elenco de factos provados, ou seja, os factos subjectivos.
Por isso justifica-se uma incursão em matéria de direito.
Forma especial de aparecimento da infracção (assim a trata o Professor Figueiredo Dias, in "Sumários de Direito Penal”, 1976) ou cláusula de extensão da tipicidade das várias normas incriminadoras contidas, maxime, na Parte Especial do Cód. Penal (Prof.ª Tereza Beleza, "Direito Penal", 2.º Vol., 638, ed. AAFDL), a tentativa pode ser definida como a realização parcial de um tipo de ilícito.
Não cabe aqui aprofundar o tratamento desta figura criminal.
No entanto, afigura-se-nos pertinente referir que a tentativa pressupõe:
● como elemento subjectivo, a decisão de praticar um crime;
● o iniciar a realização (praticar actos de execução) do tipo legal, como elemento objectivo;
● a não consumação do crime como factor negativo conceptualmente necessário.

Estes elementos da tentativa só se compreendem, só fazem sentido por referência ou por conjugação com os preceitos incriminadores da Parte Especial do Cód. Penal ou com os preceitos da sua Parte Geral que alargam a incriminação. Por isso se diz que a tentativa é um "tipo dependente" (H.H. Jescheck, "Tratado de Derecho Penal", vol. 2.º, 703).
C. Roxin ("Problemas Fundamentais de Direito Penal", 297) adverte que, na prova de um caso prático, a resolução, a vontade de cometimento do crime tem de se discutir, logo de início, como primeiro elemento da tentativa. E explica que assim é porque na tentativa não pode ser averiguado o complemento para o preenchimento do tipo objectivo enquanto não se sabe a que é que o agente estava resolvido.
Recorrendo, ainda, ao ensinamento do Professor Figueiredo Dias (“Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 256), “sem uma referência ao dolo, ao menos como “dolo do tipo”, isto é, como conhecimento e vontade de realização de um tipo de ilícito objectivo determinado, não é possível fundamentar tipicamente o ilícito da tentativa, não é possível, por outras palavras, conferir-lhe a função de tipicização do ilícito”.
Em suma, na tentativa verifica-se o elemento subjectivo do tipo legal (ou, se se quiser, há um total preenchimento do tipo de ilícito subjectivo), mas o agente não logrou percorrer todo o iter criminis para ficar perfeito o tipo objectivo.
O crime de peculato é um tipo legal, necessariamente, doloso.
O dolo é conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica.
Pratica um crime doloso todo aquele que, no momento e nas circunstâncias em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como crime.
Como resulta da simples leitura do art.º 22.º do Cód. Penal, a tentativa exige que o agente actue com dolo relativamente a todos os elementos objectivos do tipo legal em causa.
Assim, o agente de um crime de peculato tem de ter consciência:
- da sua qualidade de funcionário, tal como o define o artigo 386.º, n.º 3, do Código Penal;
- que o bem (dinheiro ou outra coisa móvel, pública ou particular) está na sua posse em razão das suas funções;
- que está a fazer seu um bem alheio, em benefício próprio ou de terceiro;
No que tange ao elemento volitivo, o tipo legal não exige um específico propósito apropriativo (como no furto), basta-se com a vontade, livre e consciente, de praticar actos concludentes de apropriação do bem.
É questão de facto[7] a determinação da materialidade relativa ao tipo subjectivo do ilícito ou, mais simplesmente, é matéria de facto a intenção do agente, o saber se este agiu com dolo em qualquer das suas modalidades[8], ou com negligência.
No caso que nos ocupa, uma vez que não houve apropriação alguma[9], fundamental é saber se a arguida, voluntariamente, praticou actos ou assumiu alguma atitude no sentido da apropriação da quantia de € 25 021,66 que C… e D… transferiram para a conta de depósitos com o NIB …………………, de que ela era titular, valor esse que tinha em vista o exercício do direito de remição relativamente ao prédio (penhorado no âmbito dos autos de execução com o n.º 847/09.2 T2OVR-B) de que eram proprietários os seus pais, executados na referida execução, apesar de bem saber que esse dinheiro era colocado na sua esfera de disponibilidade (material e jurídica) em razão das suas funções, só não logrando consumar a apropriação por motivos estranhos à sua vontade.
Simplificando, a arguida quis apropriar-se da referida quantia monetária em benefício próprio e só não logrou consumar a apropriação por razões que transcenderam a sua vontade?
Como se pode constatar pela leitura da motivação supra transcrita, a arguida “negou veementemente que tenha querido apropriar-se daquela quantia” e foi uma negação motivada, é dizer, não se limitou a negar o facto, disse que não podia ter tido tal propósito até porque, no próprio dia em que foi efectuada a transferência da quantia de € 25 021,66, e antes de tal valor ficar disponível, a conta foi bloqueada na sequência da sua deslocação à Câmara dos Solicitadores, onde prestou declarações admitindo irregularidades e ilegalidades na sua conduta como agente de execução.
Dir-se-á que a negação é a atitude expectável, aquilo que acontece normalmente, a situação mais comum e se nos bastássemos com as justificações dos arguidos muitos crimes ficariam impunes.
É a prova de factos subjectivos[10] que está em causa e para ilidir a presunção de inocência não é imperioso a existência de prova directa[11].
A chamada prova indirecta tem um papel fundamental e já ninguém lhe nega virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência.
Com efeito, apesar das reservas e objecções[12] que, ainda, lhe são opostas, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta[13], também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade[14]) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo)[15] e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta[16].
Como alguém já afirmou, é precisamente nas situações em que não há prova directa, mas existe prova indiciária, que intervêm decisivamente a inteligência e a lógica do juiz. Primeiramente, a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou a uma regra científica. Depois intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos à inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
Que características ou requisitos deve reunir a prova indiciária para superar a presunção de inocência e determinar a participação no facto punível?
Há que contar com requisitos formais ou processuais e requisitos materiais.
Quanto aos primeiros, na fundamentação da sentença, os factos indiciantes devem, como tal, estar expressos e individualizados; por outro lado, da fundamentação da sentença deve constar a motivação do juízo de inferência, é dizer, deve explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou, explicitação que é fundamental para avaliar a racionalidade da inferência.
Importa sublinhar que também a prova indiciária está sujeita a livre apreciação e por isso a convicção do tribunal há-de estar motivada e objectivada.
O que tem de particular este tipo de prova é uma maior exigência de (uma mais cuidada) fundamentação.
Como requisitos materiais, desde logo, a exigência de que os factos-base estejam, plenamente, provados (desejavelmente, mediante prova directa).
Retornando ao caso concreto, vejamos se e como, no acórdão recorrido, está (devidamente) plasmado o raciocínio inferencial que levou tribunal a concluir que a arguida quis apropriar-se da referida quantia de € 25 021,66 em benefício próprio.
São os seguintes trechos da motivação da decisão que melhor espelham o raciocínio efectuado:
“Mais referiu que nesse dia 9/09/2011 deslocou-se à Câmara dos Solicitadores e prestou declarações verbalmente. Negou veementemente que tenha querido apropriar-se daquela quantia tendo explicado que não o poderia sequer fazer porque nesse dia lhe bloquearam o acesso à conta – este facto foi infirmado pelo email que a arguida enviou aos remitentes, em data posterior àquela, dizendo para estes efetuarem o pagamento das custas e honorários, caso contrário, não lhes seria vendido o imóvel; ora, neste email, a arguida afirma que os remitentes teriam que pagar as custas e os honorários no valor de € 2.271,99, bem sabendo por força da profissão que exercia, e que não podia por isso desconhecer, que as custas sairiam precípuas do produto da venda nos termos do art.º 455.º do CPC e que, por isso, nunca estariam a cargo dos remitentes, mas sim, dos executados; para além disto, do email ressalta que a arguida pretendia que os remitentes efetuassem essa transferência para uma outra conta bancária, que não aquela para a qual deveriam ser transferidos todos os dinheiros que recebesse por força da sua profissão. Destes factos temos que concluir quais eram as reais intenções da arguida: por um lado, a arguida sabia que os € 2.271,99 não eram devidos por força do art.º 455.º do CPC; por outro lado, quando enviou o email, a arguida sabia que não iria poder fazer o pagamento do dinheiro entregue pelos remitentes aos exequentes e, por conseguinte, sabia que não podia emitir o título aos remitentes; acresce que a arguida estava a lidar com uma situação económica frágil do marido e já tinha procedido desta forma em outras situações, conforme resulta evidenciado do teor da decisão proferida no processo disciplinar que culminou na sua expulsão da Câmara dos Solicitadores; por fim, o facto de ter fornecido um NIB diferente no email significa, à luz das regras da experiência comum, que a arguida pretendia apropriar-se dessa quantia de € 2.271,99, sendo certo que já não podia dispor dos € 25.000 referentes ao produto da venda do imóvel penhorado e, por outro lado, saliente-se que não se justificava que a arguida desse outra conta pois tinha que saber que a conta bloqueada estava a ser creditada (se assim não fosse e sendo a conta creditada diariamente, e várias vezes no mesmo dia, teria sido contactada pelos clientes e intervenientes do processo a saber por que razão não tinham conseguido transferir dinheiro). Ora, que outras razões tinha a arguida para fornecer um número de conta diferente? Assim, da conjugação destas circunstâncias podemos concluir que a arguida pretendia apropriar-se dos € 25.000 e só não o conseguiu fazer porque a sua conta foi nessa data bloqueada”.
Esta “argumentação probatória” está reflectida nos factos provados, concretamente, no ponto 7 que, relembre-se, é do seguinte teor:
“7.º Assim, em data não concretamente apurada, mas posterior a 09/09/2015, a arguida enviou aos remitentes um email a solicitar a transferência acrescida de 2.271,99 €, alegando tratar-se de honorários seus e que sem tal pagamento os exequentes não aceitariam o pedido de remição em causa, o que sabia ser falso, pois nunca os exequentes lhe haviam transmitido tais instruções, sabendo ainda a mesma que os seus honorários se encontravam garantidos pelo produto da venda, pois saíam precípuos nos termos do disposto no artigo 455.º do CPC”.
Tudo isto resume-se no seguinte: a arguida queria e decidiu apropriar-se da quantia de € 25.021,66 transferida por D… para aquela sua conta (pontos 5 e 6 do elenco de factos provados). Porém, a conta foi bloqueada e então a arguida enviou um mail aos remitentes dizendo-lhes que tinham de efectuar o pagamento das custas e honorários no montante de € 2.271,99, pois, de contrário, o imóvel penhorado não lhes seria vendido. A intenção de se apropriar daquela quantia de € 25.021,66 revela-se, não só no facto de ela não poder desconhecer que as custas sairiam precípuas do produto da venda do bem penhorado nos termos do art.º 455.º do CPC e que, por isso, nunca estariam a cargo dos remitentes, mas sim, dos executados, mas também na circunstância de a arguida pretender que os remitentes efectuassem a transferência para uma outra conta bancária, que não aquela para a qual deveriam ser transferidos todos os dinheiros que recebesse por força da sua profissão.
Ou seja, o tribunal convenceu-se que a arguida queria apropriar-se de um valor transferido para uma conta bancária que ela (como era do seu conhecimento) nem sequer poderia movimentar, pois foi bloqueada no mesmo dia em que foi feita a transferência desse valor. E para “camuflar” esse seu propósito “engendrou um plano” que consistiu em enviar um mail a pedir a transferência para uma sua conta de uma quantia que se destinaria ao pagamento de custas e honorários.
Absurdo? Certamente o é (com o devido respeito o dizemos), mas o paradoxo não se fica por aí.
Mais adiante, garante-se que a arguida queria apropriar-se não só da quantia de € 25.021,66 mas também de outra quantia (€ 2.271,99) que não estava na sua posse e à qual nunca teria acesso (nem material, nem juridicamente), pois que os remitentes se recusaram a satisfazer a sua pretensão:
“Salientamos que se mostra demonstrada, pelas razões acima expostas, que a intenção da arguida era apropriar-se dos € 25.021,66 e também dos € 2.271,99, o que só não conseguiu, no primeiro caso, por razões que lhe são alheias, mormente porque a sua conta foi bloqueada nesse dia (sendo que, a fazer fé nas declarações da arguida nessa parte, ela ter-se-á deslocado nesse dia 09/09/2011 à Câmara dos Solicitadores e terá verbalmente admitido estes e/ou outros factos semelhantes, o que terá determinado que materialmente a sua conta fosse de imediato bloqueada pela Câmara dos Solicitadores, reação que se admite enquanto medida cautelar adotada perante a comunicação de factos desta natureza e que só posteriormente tenha sido formalizada).
As razões dessa convicção são as já indicadas:
“Essa intenção da arguida decorre indubitavelmente, em nosso entender, do facto de a arguida ter tomado conhecimento no próprio dia que a conta tinha sido bloqueada e do posterior envio do supra citado email, em que indica outra conta bancária e onde pede o pagamento de quantias que sabia não serem devidas pelos remitentes. Daqui decorre que tenha havido atos de execução do crime imputado mas que não foi consumado por razões alheias à vontade da arguida”.
Mas o desconcerto da fundamentação também se reflecte na matéria de facto considerada provada.
No ponto 8 do elenco de factos provados considerou-se assente o seguinte:
“Subsequentemente, apercebendo-se que os visados não iriam realizar qualquer transferência acrescida, e por forma a não ter que prestar contas aos exequentes, recusou-se a emitir o respetivo título de transmissão, ou a devolver a quantia em causa que acabou por ser depositada na sua conta da Sucursal do E… sita na Av. …, nº …, em Lisboa”.
Embora o ponto seja obscuro, o que daqui resulta é que, segundo o juízo do tribunal a quo, a arguida apropriou-se da quantia de € 25.021,66, pois tê-la-ia depositado numa sua conta sediada numa sucursal de Lisboa do E… e recusou-se a devolvê-la.
Por que não foi, então, condenada pela autoria de um crime de peculato na forma consumada, mas sim na forma tentada? Não se percebe a opção do Tribunal!... Ou talvez se perceba, se tivermos em conta que no ponto 5 do mesmo conglomerado factual se deu como provado que aquela quantia foi transferida para a conta com o NIB …………………. no dia 09.09.2011[17] (ficando disponível em saldo à ordem no dia imediatamente a seguir) e não mais daí saiu, pois que essa conta, depois dessa data, por ter sido bloqueada, não regista movimentos a débito. Mas então a contradição entre factos provados é notória, é patente para qualquer pessoa minimamente atenta e perspicaz…
Mas, sobre a intenção de apropriação que teria presidido à actuação da arguida, a fundamentação da decisão recorrida revela outras contradições que o cidadão comum facilmente detecta pela sua leitura.
Concretizando, no ponto 20 deu-se como provado que:
Tal quantia (de € 25.021,66) visava pagar aos exequentes em tal processo executivo, porém, esse pagamento nunca veio a acontecer porque a arguida reteve o dinheiro para si”.
No entanto, também se deu como não provado (alínea A) do elenco de factos não provados):
Que a arguida se tenha apoderado e feito sua a quantia de € 25.021,66 e, consequentemente, que a tenha gasto em proveito próprio”.
Quer isto dizer que o tribunal a quo deu como provado um facto (a apropriação, pela arguida, da quantia de € 25.021,66) e como não provado o mesmo facto.
Insistindo na ideia de que a arguida quis apropriar-se da quantia de € 25.021,66 e só não logrou concretizar essa sua vontade “por razões que lhe são alheias, mormente porque a sua conta foi bloqueada” no dia 09.09.2011, facto de que ela tomou conhecimento nesse mesmo dia, o tribunal a quo admite, no entanto, como verdadeiras as declarações prestadas pela arguida/recorrente na audiência, segundo as quais, ainda nesse dia, por sua iniciativa, ela foi à sede da Câmara dos Solicitadores e aí admitiu irregularidades graves na sua actuação enquanto agente de execução, “o que terá determinado que materialmente a sua conta fosse de imediato bloqueada pela Câmara dos Solicitadores” (2.º e 3.º parágrafos de fls. 430, correspondente à página 13 do texto do acórdão recorrido).
Então, a arguida foi autodenunciar-se, levando a que fosse, imediatamente, bloqueada a conta para onde fora transferida, pelos remitentes, a quantia de € 25.021,66 e, ainda assim, quis apropriar-se desse valor? Onde está a lógica de uma tal conclusão?
E onde está a lógica da conclusão de que D… e C… foram prejudicados patrimonialmente (n.º 26 do elenco de factos provados), se se limitaram a depositar a quantia de € 25.021,66 para exercerem o direito de remição sobre o prédio penhorado (dos executados, seus pais) e a inscrição no Registo Predial, a seu favor, desta aquisição está efectuada desde 19.04.2013 (n.º 18 do elenco de factos provados)?
Sobre o prédio continua a incidir uma penhora? Que responsabilidade por esse facto cabe à arguida/recorrente se ela foi, quase de imediato, suspensa do exercício de funções como agente de execução? E que responsabilidade tem ela pelo facto de o valor da venda do imóvel penhorado não ser suficiente para pagar a quantia exequenda (que, como resulta do documento de fls. 372, era € 28.921,16)?
*
É sabido que uma das vias de impugnação da decisão sobre matéria de facto é a invocação dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão (o que foi chamado de revista alargada).
São vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova são vícios da sentença cuja verificação dá lugar ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, ou, sendo requerida a renovação da prova e havendo razões para crer que ela permitirá evitar o reenvio, serão supridos no tribunal de recurso (art.º 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal), que, como já se aludiu deles pode/deve conhecer oficiosamente.
Estaremos perante um erro notório na apreciação da prova quando um “juiz normal” (nas palavras de Castanheira Neves[18], um juiz com a cultura e experiência de vida e dos homens, que deve pressupor-se num juiz chamado a apreciar a actividade e os resultados de um processo probatório), perante o texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência, facilmente se dá conta que ela (decisão) se baseia em juízos ilógicos, arbitrários ou até contraditórios, ou foram desrespeitadas as regras de valoração da prova ou da legis artis de julgar.
Há erro notório “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida” (acórdão do STJ, de 04.10.2001, CJ/Ac STJ, IX, T. III, 182)[19].
Numa formulação de síntese, pode dizer-se que o «erro notório na apreciação da prova» é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.
Por seu turno, verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008, Proc. n.º 3453/08-3.ª, “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão…”.
A essência da prova indiciária reside na conexão entre o facto-base e o facto-consequência, fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência.
A força probatória de um indício será tanto maior ou menor consoante seja mais ou menos estreito o nexo lógico e prático entre ele (facto indiciante) e o facto probandum.
O juízo de inferência deve ser razoável e fundamentado.
A argumentação sobre que assente a conclusão probatória (seja qual for o sentido desta) tem de se revelar inteiramente razoável face a critérios lógicos do discernimento humano.
Não é o que se verifica neste caso, pois que, como já se evidenciou, o juízo inferencial do tribunal a quo sobre a vontade da arguida de se apropriar da quantia de € 25 021,66 não tem nada de lógico nem de fundamentado.
Não é, minimamente, razoável concluir que a arguida quis apropriar-se de um valor transferido para uma conta bancária que ela nem sequer poderia movimentar (impossibilidade que ela conhecia), pois foi bloqueada ainda antes que esse valor ficasse disponível.
O que se afigura razoável e se revela de harmonia com aquilo que podemos designar por “normalidade das coisas”, aquilo que é o normal acontecer (o id quod plerumque accidit) é que, mesmo que a arguida tivesse alguma veleidade em relação a essa quantia, se tivesse algum pensamento dirigido à sua apropriação ilegítima (e nada permite pensar que assim era), tê-lo-ia abandonado quando soube que a conta foi bloqueada e por isso deixou de lhe ser acessível.
Também por isso não faz qualquer sentido afirmar que ela engendrou um plano para esconder (ou tornar menos aparente) a sua intenção de apropriação e raia o absurdo considerar que o envio de um mail a pedir a transferência da quantia de € 2.271,99 para pagamento de custas e honorários[20] tinha essa finalidade.
É, pois, inevitável concluir que o acórdão recorrido está afectado pelo vício de erro notório na apreciação da prova.
Mas, como também já se evidenciou, existe oposição insanável entre factos provados e não provados e até na fundamentação probatória da matéria de facto, o que gera o vício da contradição insanável da fundamentação.
Reconhecida a existência de vícios decisórios, a consequência normal, típica será o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
No entanto, o reenvio processual, sobretudo quando o novo julgamento se refere à totalidade do objecto do processo, é uma solução extrema, que deve ser evitada sempre que possível.
Porque as Relações têm competência para conhecer de facto e de direito, pode a decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto ser aqui modificada, designadamente se o processo fornecer todos os elementos de prova que fundamentem a alteração (artigos 428.º e 431.º, al. a), do Cód. Proc. Penal).
Como resulta do anteriormente exposto, é o que se verifica neste caso, há condições para se proceder aqui à correcção dos vícios que afectam o acórdão em crise.
Assim, altera-se a decisão em matéria de facto nos seguintes termos:
são eliminados do elenco de factos provados os descritos sob os n.os 6, 8 e 55;
● os n.os 7, 9, 10, 11, 20, 21, 26 e 27 do elenco de factos provados passarão a ter o seguinte conteúdo:

7.º - Em data não concretamente apurada, mas posterior a 09/09/2015, a arguida enviou aos remitentes um email a solicitar a transferência de 2.271,99 €, alegando que tal quantia se destinava a pagar os seus honorários e custas e que sem tal pagamento os exequentes não aceitariam o pedido de remição em causa;
9.º - No âmbito dos identificados autos de execução, foram expedidas notificações dirigidas à arguida, em Fevereiro de 2012, de douto despacho judicial a ordenar a anulação da conta de custas apresentada aos remidores, em Março do mesmo ano, de outro douto despacho a cominá-la com multa caso não informasse o estado dos autos, mormente se já tinha passado o título de transmissão e efectuado o pagamento ao exequente, e em Maio de 2012, de novo despacho a renovar a ordem antecedente, mas a arguida nada cumpriu do que lhe foi determinado;
10.º - A arguida sabia que o montante de € 25 021,66 estava à ordem de um processo de natureza judicial e que lhe foi confiado, por depósito, na qualidade de solicitadora de execução e, bem assim, que não lhe era lícito, a qualquer título, dele dispor em proveito pessoal;
11.º - Agiu sempre de forma livre e voluntária;
20.º - Tal quantia visava pagar aos exequentes no referido processo executivo;

21.º - Sobre as pensões de velhice dos pais dos demandantes continua a incidir uma penhora;

26.º - Os demandantes civis sentiram revolta, nervosismo, ficando completamente desacreditados em relação aos profissionais forenses e a justiça, pois após seguirem todos os procedimentos que lhes cabia, ficaram bastante prejudicados psicologicamente.

27.º - Os demandantes civis são pessoas sensíveis e ficaram bastante preocupados e alarmados pelo sucedido;
● ao elenco de factos não provados são aditados os seguintes:
- subsequentemente, a arguida, apercebendo-se que os visados não iriam realizar qualquer transferência acrescida, e por forma a não ter que prestar contas aos exequentes, recusou-se a emitir o respectivo título de transmissão, ou a devolver a quantia em causa que acabou por ser depositada na sua conta da Sucursal do E… sita na Av. …, nº …, em Lisboa;
- a arguida quis fazer sua a quantia de € 25 012,66 e só não o fez por razões alheias à sua vontade;
- a arguida estava bem ciente de que a sua conduta consubstanciava ilícito criminal;
- a arguida só não se apoderou da quantia depositada pelos lesados, no montante de € 25.021,66, porque a conta foi bloqueada e deixou de estar acessível à arguida no dia em que aquele montante foi depositado;
- a referida quantia não foi paga aos exequentes no âmbito do aludido processo executivo porque a arguida reteve o dinheiro para si;
- por isso, as pensões de velhice de ambos os pais dos demandantes continuam a ser penhoradas;
- os demandantes ficaram patrimonialmente prejudicados com a conduta da arguida;
- a prática deste crime foi agravada ainda pelo facto de posteriormente ao lesado D… ter procedido à transferência já identificada nos autos para o NIB da conta indicada pela arguida, ainda terem sido notificados para procederem ao pagamento de honorários no valor de € 2.271,99, argumento este ardilosamente inventado pela arguida para se eximir da sua responsabilidade de proceder à entrega da quantia aos exequentes naquele processo e a emitir o respectivo título de transmissão;
*
Voltando à matéria de direito, importa lembrar que, para haver tentativa, é necessário que a decisão criminosa se concretize em actos materiais de execução (sem o que estaremos perante a "nuda cogitatio", não punível, ou, eventualmente, perante actos preparatórios, em princípio, também não puníveis).
Como identificar os actos de execução e distingui-los dos meros actos preparatórios?
É sabido que tem geral aceitação o chamado critério material-objectivo, segundo o qual são actos de execução os adequados a causar o resultado típico e os que precedem, segundo a experiência comum, actos desse género ou qualificados formal-objectivamente como actos de execução.
É esta ideia de adequação que está presente na definição contida na al.b) do n.º 2 do art.º 22.º do Cód. Penal segundo a qual são actos de execução os idóneos a causar o resultado típico (em sentido algo diferente se pronuncia M. Cavaleiro Ferreira, "Lições de Direito Penal", 287, para quem importa partir do plano concebido pelo agente, quanto à execução, para avaliar da idoneidade de toda a execução).
Mas são, também, actos de execução:
● os que preenchem um elemento constitutivo do tipo legal de crime (alínea a) do citado art.º 22.º do Cód. Penal), critério que tem particular aplicação aos chamados crimes de execução vinculada, o que é o caso do crime de peculato;

● os que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos idóneos a produzir um evento típico ou a preencher as condutas previstas num determinado tipo legal (alínea c) do mesmo normativo).

No entanto, a leitura da fundamentação do acórdão revela-nos que nele não se indica um único acto de execução do crime de peculato imputado à arguida.
Atente-se na seguinte passagem da fundamentação:

“Os factos provados nestes autos traduzem em rigor a prática do crime de peculato, pois provou-se que a arguida no exercício abusivo das suas funções tentou apoderar-se de quantias que os demandantes/remitentes lhe transferiram confiando que assim veriam a situação dos seus pais regularizada, sendo que estes eram executados na ação em que a arguida desemprenhava funções de agente de execução.
O elemento subjectivo do tipo legal mostra-se preenchido porquanto era do conhecimento da arguida que ao pretender apoderar-se daquela quantia, estaria a lesar quer os exequentes, pois não pretendia entregar-lhes a quantia paga no âmbito da execução, quer os executados, porque continuariam, como continuam, a ter ativada a penhora e que ao fazê-lo sabia que lesava a confiança nos agentes de execução e que só o conseguia levar a cabo por ser agente de execução (funcionária nos termos do art.º 386.º, n.º 1, al. d) do Código Penal) e, nessa qualidade, estar autorizada a receber tais quantias.
A arguida tinha a consciência dos actos que cometia e fê-lo com intenção de os praticar, agindo, por isso com dolo directo, nos termos previstos no n.º 1 do art.º 14.º do Código Penal.
Mostram-se, assim, verificados todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal.
Acontece, porém, que, por razões alheias à sua vontade, a arguida não logrou levar a cabo os seus intentos, pelo que cometeu o crime na sua forma tentada, sendo certo que levou a cabo atos de execução (de que são exemplo o email que enviou aos remitentes para pagamentos das custas e honorários), nos termos definidos no art.º 22.º, n.º 2, do Código Penal”.

Não basta afirmar que “a arguida no exercício abusivo das suas funções tentou apoderar-se de quantias que os demandantes/remitentes lhe transferiram”; era imperioso que se concretizasse que actos concludentes no sentido da apropriação foram por ela praticados.
Diz-se no acórdão recorrido que um desses actos foi o envio de um mail a solicitar a transferência de uma quantia (€ 2 271,99) para pagamento de custas e honorários, mas é de primeira evidência que tal não configura nenhum acto de execução do crime de peculato.
Por isso, mesmo sem qualquer alteração da matéria de facto, não podia concluir-se pela verificação da tentativa de peculato, pois o que teríamos seria, apenas, uma decisão criminosa não concretizada em actos materiais de execução.
Impõe-se, pois, a absolvição da arguida/recorrente, quer em matéria criminal, quer na parte cível.

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência,
A) proceder à correcção do lapso material existente no ponto 5 da matéria de facto provado e onde consta “Em 9 de Fevereiro de 2011” passará a constar “Em 9 de Setembro de 2011”;
B) Alterar a decisão sobre matéria de facto do acórdão recorrido, nos sobreditos termos;
C) Julgar improcedente a acusação e absolver a arguida B…, quer do crime de peculato, na forma consumada, de que foi acusada, quer do mesmo crime na forma tentada por que foi condenada em 1.ª instância;
D) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil, dele absolvendo a arguida/demandada.
Sem tributação.

(Texto processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 28/09/2016
Neto de Moura
Ana Bacelar
____
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Omite-se a transcrição dos factos relativos a características da personalidade da arguida, ao seu processo de socialização e condições pessoais.
[3] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[4] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
[5] A prova não pode nunca basear-se numa intuição da verdade de uma proposição.
[6] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Coimbra, 1968, pág.52
[7] Sendo o dolo (tal como a negligência) uma atitude pessoal do agente perante o dever-ser jurídico-penal, está relacionado com realidades psicológicas. Mas a intenção do agente - seja qual for a modalidade de dolo - mesmo requerendo a prova de um elemento do foro íntimo, e por isso só sendo alcançável por via indirecta, através de dados exteriores e apelando às regras da experiência comum, não deixa de constituir matéria de facto.
[8] Cfr., entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 22.04.2009 (Relator: Cons. Fernando Fróis) e os arestos nele citados.
[9] Apesar de o Ministério Público, inexplicavelmente, ter acusado a arguida da autoria de um crime de peculato consumado.
[10] Como explica Maria Clara Calheiros, “Para uma teoria da prova”, Coimbra Editora, p. 78, frequentemente, o que está em causa nos processos judiciais é o perscrutar da esfera interior do ser humano, de elementos do foro íntimo ou psíquico do agente, os chamados “factos internos” ou “factos psicológicos” (assim chamados por contraposição aos “factos físicos”). Por conseguinte, estamos perante um universo de sentidos e percepções ao qual o acesso directo é impossível, por definição. Por isso, a única forma de ultrapassar essa impossibilidade é a reconstituição dos factos através de indicadores externos cognoscíveis empiricamente.
[11] Assim, F. Pastor Alcoy, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presunción de Inocencia, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, p. 145.
[12] Sobre as razões destas reservas, veja-se o texto de Euclides Dâmaso Simões “Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)”, publicado na revista “Julgar”, n.º 02, 2007, 203 e segs.
[13] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[14] Como já se frisou, mas não é demais repisar, que não é a verdade ontológica que se busca, mas a verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos, pois que, estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos.
[15] Aliás, na tese de L. Pires de Sousa, Prova por presunção no direito civil, Almedina, 2012, p. 18, a não ser no caso da inspecção judicial, toda e qualquer prova é, em alguma medida, prova indiciária. O que distinguiria a prova dita directa da prova dita indirecta seria o número de passos inferenciais requeridos para estabelecer o factum probandum. “Toda a prova assenta numa inferência e sempre que julgamos presumimos” (p. 20).
[16] Como ensinava o Professor Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica».
[17] E não 9 de Fevereiro como, por manifesto lapso material (que já devia ter sido corrigido na 1.ª instância), se refere no ponto 5.º
[18] “Sumários de Processo Penal”, 1968, 50-51.
[19] Para uma exaustiva delimitação (negativa e positiva) do erro notório na apreciação da prova, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 1102-1103.
[20] Mesmo não cabendo aos remitentes a responsabilidade por esse encargo.