Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1859/11.1YYPRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RP201210161859/11.1YYPRT-B.P1
Data do Acordão: 10/16/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Goza de personalidade judiciária, relativamente a execução para cobrança de dívida pela comparticipação nas despesas comuns, o condomínio de parte de um prédio em propriedade horizontal, referente a espaço perfeitamente delimitado, com funcionalidade própria, fracções autónomas e partes comuns próprias, aprovado pela generalidade dos respectivos condóminos com vista à administração autónoma dessa mesma parte, sem prejuízo da coordenação da administração geral, não dependendo a sua constituição da especificação do título constitutivo da propriedade horizontal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1859/11.1YYPRT-B.P1
Proveniente do 1.º Juízo, 3.ª Secção, dos Juízos de Execução do Porto.

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:

I. Relatório

A Administração do Condomínio do Centro Comercial B…. instaurou acção executiva contra C…., SA, com base na acta n.º 24 da assembleia geral de condóminos daquele Centro, de 22/1/2011, alegando que nela foi tomada, por unanimidade dos condóminos presentes e representados, uma deliberação que considera a executada devedora das quantias de 2.437,80 € e de 2.449,53 €, a título de comparticipações nas despesas comuns do ano de 2010, referentes, respectivamente, às fracções autónomas “N” e “O”, de que é proprietária, ambas do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida ….., descrito na Conservatória do Registo Comercial da Póvoa de Varzim sob o n.º 2462, com vista a obter o pagamento dessas importâncias, ainda não pagas, acrescidas da penalização de 750,00 € por cada uma, pelo atraso no pagamento, em conformidade com o disposto no art.º 17.º, n.º 5, do respectivo Regulamento, num total de 6.387,33 €, bem como dos juros moratórios vincendos.

A executada deduziu, por apenso, oposição à execução alegando, em resumo, que a obrigação exequenda é incerta, ilíquida e inexigível, por não estar devidamente determinada na referida acta, nem ter sido objecto de deliberação, e invocando a ilegitimidade, incapacidade e falta de personalidade judiciárias da exequente, por não representar o condomínio de todo o prédio, para além de impugnar os documentos juntos com o requerimento executivo sob os n.ºs 1, 3, 4 e 5.

Recebida a oposição, a exequente apresentou contestação, por impugnação, e defendendo que a acta constitui título executivo, por preencher todos os requisitos legais, fazendo menção expressa ao montante da dívida já vencida e não paga, que a sanção pecuniária foi regularmente aprovada e que o condomínio se encontra legalmente constituído e em funcionamento desde a assembleia de 8/4/1983 e, como tal, tem sido reconhecido por todos, incluindo a executada, tendo a necessária legitimidade e personalidade judiciária. Concluiu pela improcedência da oposição.

Após junção de vários documentos e frustração de uma tentativa de conciliação, entretanto designada, foi proferido despacho saneador, onde foi verificada a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária do exequente, julgada procedente a oposição e decretada a extinção da acção executiva.

Inconformado com esta decisão, o exequente interpôs recurso de apelação para este Tribunal e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
“I. A decisão em recurso, fez inexacta interpretação e aplicação da lei e orientações jurisprudenciais.
II. Entende a Recorrente que é condomínio legalmente constituído e com personalidade jurídica e judiciária; Com efeito,
III. A escritura de constituição da propriedade horizontal integra vários prédios e pode comportar, como comporta (vide doutos Acórdãos referidos) a existência de diversos condomínios;
IV. O prédio em causa encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 2462, constituído em propriedade horizontal, sendo composto por um edifício habitacional e centro comercial, composto de cave, sub-nível, rés-do-chão e 13 andares;
V. O condomínio da exequente reporta-se a parte daquele prédio que tem entrada pela Avenida ….. – constituído por uma parte com 65 das fracções autónomas e partes comuns;
VI. O regime da propriedade horizontal pode ser aplicado, com as necessárias adaptações, a conjuntos de edifícios contíguos funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns afectas ao uso de todas ou de algumas unidades ou fracções que os compõem, como é o caso - artigo 1438.º A do Código Civil;
VII. Na situação vertente, e através de uma breve análise da escritura de constituição da propriedade horizontal, retira-se, inequivocamente, que as diversas fracções que compõem o Centro Comercial B….. são lojas para comércio, apresentando uma configuração que constituem unidades independentes com saída própria para parte comum do prédio ou para a via pública;
VIII. Estes factos foram totalmente ignorados pela decisão em recurso;
IX. Acresce, que o exequente é condomínio regularmente constituído, tem atribuído o competente número fiscal – 900 661 992, e a sua administração encontra-se legitimada pela assembleia de condóminos;
X. Como bem é referido pela nossa melhor jurisprudência, quando é muito extenso o número de fracções prediais envolvidas pode configurar-se o interesse de todos os condóminos na sua divisão para efeitos de administração, não havendo qualquer proibição legal nessa divisão;
XI. Por outro lado, em situações de propriedade horizontal de edifícios integrados por blocos, em que algum ou alguns deles é servido por partes comuns que lhe são exclusivamente próprios, ou seja, que não sirvam funcionalmente outros blocos, não há qualquer proibição legal de que todos os condóminos aprovem a administração autónoma relativa a tais blocos;
XII. Não existe qualquer norma no sentido de que a referida solução só possa ser admitida no caso de o titulo constitutivo da propriedade horizontal especificar os elementos relativos a cada um dos aludidos blocos prediais, mormente, as fracções em que se decompõem e as partes comuns que lhe estão afectas;
XIII. Nem tal se justificaria, porque as questões que se prendem com a regulamentação do uso, fruição e conservação de partes comuns não têm, em tais casos, de constar do título constitutivo da propriedade horizontal – art.º 1429º-A CC.
XIV. O Recorrente existe como condomínio desde 1983, cuja Acta n.º 1 é de 8.04.1983,
XV. E assim se vem mantendo ao longo dos anos, caracterizando-se por ser uma zona devidamente delimitada do edifício;
XVI. É facto notório, que as fracções que compõem o condomínio exequente, destinadas ao comércio, têm zonas e/ou partes e equipamentos comuns afectos à actividade comercial;
XVII. Tal não impede que as fracções que o constituem deliberem quanto à forma de imputação de despesas, cobrança das receitas e disciplina ou regras sobre as partes comerciais que lhe são inerentes.
XVIII. Mesmo que existisse falta de personalidade judiciária do condomínio em causa, nada impediria que as despesas decorrentes das fracções comerciais, fossem imputadas e distribuídas apenas por estas enquanto centro de custos a que corresponde o Centro Comercial B…..,
XIX. Quadro este que sempre foi reconhecido pelo executado, atentos os pagamentos que ao longo dos anos foi efectuando.
XX. Sem prescindir, o condomínio exequente representa um conjunto com funcionalidade própria, com fracções autónomas e partes comuns próprias, não havendo, por isso, fundamento legal para que a globalidade dos condóminos não possa deliberar a constituição de autónomos órgãos de administração.
XXI. Pelas razões de facto e direito expostas, o exequente é condomínio legalmente constituído e com personalidade jurídica e judiciária;
XXII. No que concerne aos argumentos de facto atrás descritos, com manifesta relevância para a decisão da causa e sobre a qual competiria produzir prova, não foram objecto da devida análise, como melhor resulta da decisão meramente formal proferida pelo tribunal a quo.
XXIII. Na acção em que discutia a mesma questão da personalidade judiciária e era parte o exequente, ora Recorrente, foi decidido pelo douto Ac. STJ, de 16/10/2008, Proc. 08B3011, in www.dgsi.pt que o condomínio naqueles autos era válido e que não ocorria a situação de inexistência jurídica,
XXIV. E mais recentemente, na mesma linha, pelo douto Ac. STJ de 27/10/2011 junto aos autos a 14/3/2012.
XXV. Por todo o exposto, tem o Recorrente personalidade judiciária;
XXVI. Devendo, assim, a decisão do Tribunal a quo, com o respeito que lhe é devido, ser revogada por ter aplicado incorrectamente a lei e orientações jurisprudenciais;
XXVII. Proferindo-se Acórdão que considere ter o Recorrente personalidade judiciária e, em consequência, ordene o prosseguimento dos autos.”

A apelada contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 707.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente (cfr. art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, este na redacção introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24/8, aqui aplicável, visto que a propositura da acção executiva de que depende esta oposição é posterior a 1/1/2008 – cfr. art.º 12.º do mesmo diploma), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, a única questão que importa dirimir consiste em saber se o Condomínio do Centro Comercial B…. tem personalidade judiciária.

II. Fundamentação

1. De facto

Apesar de não terem sido dados como provados quaisquer factos na decisão recorrida, importa considerar aqui, na apreciação do recurso, os factos que constam do relatório acabado de elaborar e mais os seguintes que se mostram provados em face dos documentos juntos de fls. 46 a 78, 287 a 289, 323 a 348 e 440 a 469 dos autos:
A) Na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, está descrito, sob o n.º 2462/19970303 da freguesia da Póvoa de Varzim, o prédio urbano inscrito na matriz da mesma freguesia sob o artigo 6419, situado na Avenida …., Largo das Dores, n.ºs 138, 144, 146, 150, 152 e 154 e Praceta Orfeão Poveiro com os n.ºs 102, 107, 115, 125 e 129, com a área total de 2585 m2, composto de edifício habitacional e centro comercial, com cave, sub-nível, rés-do-chão e 13 andares.
B) Esse prédio foi constituído em propriedade horizontal, por escritura pública de 27/4/1981, registada em 1/7/1981, alterada em 10/1/1997, daí resultando 164 fracções autónomas.
C) As fracções designadas pelas letras “N” e “O”, correspondentes às lojas 47 e 48, sitas no sub-nível, mostram-se inscritas, por compra de 22/1/1996, a favor da executada.
D) O Condomínio do Centro Comercial B…. existe desde, pelo menos, 8 de Abril de 1983, data em que reuniu a assembleia dos respectivos condóminos, onde esteve presente a anterior proprietária das fracções “N” e “O” e em que foi aprovada, por unanimidade de todos os condóminos presentes, a nomeação do respectivo administrador.
E) Em assembleia do mesmo condomínio de 18/1/2001, foi aprovado, por unanimidade dos condóminos presentes e representados, o regulamento interno, onde se refere que aquele é constituído por 74 fracções autónomas, destinadas a fins comerciais, correspondentes às lojas numeradas de 1 a 74, com entradas pela Avenida ….. e ….., com saídas próprias para as partes comuns do prédio e destas para a via pública.
F) E no Regulamento Interno datado de 26 de Janeiro de 2008 é referido que o Centro Comercial B…, também denominado por “edifício” e “prédio” é constituído por 65 fracções autónomas ou lojas, numeradas de 1 a 65, com entradas pela Avenida ….. e ….., com saídas próprias para as partes comuns do prédio e destas para a via pública, sendo na totalidade para comércio e serviços.

2. De direito

Dispõe o art.º 5.º, n.º 1, do CPC que “a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte”.
E acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que tem personalidade judiciária quem tiver personalidade jurídica.
Daqui resulta que a personalidade judiciária se traduz, essencialmente, na possibilidade de demandar ou ser demandado em qualquer providência de tutela jurisdicional e que, em conformidade com aquele princípio da coincidência, a lei estabelece que quem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária.
Deste modo, a regra é no sentido de que qualquer indivíduo, independentemente da sua nacionalidade, idade, capacidade ou incapacidade, tem personalidade judiciária, visto poder ser sujeito de relações jurídicas (cfr. art.ºs 14.º, n.º 1 e 67.º, ambos do Código Civil).
Esta regra é extensível às associações, às fundações e às sociedades a quem a lei reconheça personalidade jurídica, embora só possam estar em juízo através dos seus representantes indicados nos respectivos estatutos (cfr. art.ºs 157.º, 158.º do Código Civil e 5.º do Código das Sociedades Comerciais).
Excepcionalmente, a lei atribui personalidade judiciária a entidades que não têm personalidade jurídica.
Entre esses casos, conta-se “o condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador” [cfr. art.º 6.º, al. e), do CPC].
Deste modo, esta alínea “concede personalidade judiciária ao condomínio, relativamente às acções em que, por ele, pode intervir o administrador, nos termos dos arts. 1433-6 CC (como réu) e 1437 CC (como autor ou réu), o que já resultava, pelo menos, desta última disposição” (cfr. José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 2.ª edição, pág. 21).
Com efeito, o último normativo acabado de citar estabelece que:
“1. O administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia.
2. O administrador pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
3. Exceptuam-se as acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns, salvo se a assembleia atribuir para o efeito poderes especiais ao administrador”.
Este artigo, que prevê uma forma de suprimento da incapacidade judiciária do condomínio, nada tem a ver com a questão da legitimidade ad causam do administrador, a qual nem se pode colocar, visto que, enquanto órgão do condomínio, age em sua representação.
É que a parte é o condomínio e o administrador é o órgão executivo da administração, a par da assembleia dos condóminos que é o órgão deliberativo colegial, integrado por todos os condóminos e onde cada condómino tem tantos votos quantas as unidades inteiras que couberem na percentagem ou na permilagem do valor total do prédio (cfr. art.º 1430.º do Código Civil).
Enquanto órgão executivo da administração do condomínio, o administrador tem muitas e variadas funções, entre as quais constam a de exigir dos condóminos a sua quota-parte nas despesas aprovadas e de executar as deliberações da assembleia de condóminos [art.º 1436.º, proémio, e alíneas e) e h) do Código Civil].
Cabe-lhe desempenhar as funções a que se reporta o artigo acabado de mencionar, além das que lhe sejam delegadas pela assembleia de condóminos ou que resultem especificamente da lei.
A lei confere-lhe legitimidade, por um lado, para agir em juízo contra qualquer dos condóminos ou terceiros, não só no âmbito da execução das suas funções, mas também quando for autorizado pela assembleia dos condóminos, e, por outro, para ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício ou dos edifícios (cfr. art.º 1437.º, n.ºs 1 e 2, acima transcrito).
Em qualquer caso, porém, tratando-se de questões relativas à propriedade ou à posse dos bens comuns, o administrador só pode demandar ou ser demandado se autorizado pela assembleia dos condóminos (cfr. n.º 3 do mesmo artigo).
Estamos perante uma situação em que a administração do condomínio denominado Cento Comercial B…. vem exigir de um condómino, concretamente da executada, o pagamento de quantias, alegadamente em dívida, correspondentes à sua quota-parte nas despesas comuns, referentes ao ano de 2010, em conformidade com o deliberado pela assembleia de condóminos, em 22/1/2011, como consta da acta n.º 24, que constitui título executivo nos termos do art.º 46.º, n.º 1, al. d) do CPC e art.º 6.º, n.º 1, do DL n.º 268/94, de 25/10, e invocando um Regulamento que prevê uma penalização pelo atraso no seu pagamento.
Independentemente do que foi alegado como causa de pedir e da sua conformidade com o título executivo, o qual define os limites, objectivos e subjectivos, da acção executiva, cuja apreciação não está aqui em causa, não há dúvida de que o exequente é o Condomínio do Centro Comercial B…., embora representado pela sua administração que é quem tem poderes para agir em juízo em nome do conjunto dos condóminos.
Feitos estes esclarecimentos e precisões, tidos por necessários, face aos termos utilizados indiscriminadamente ao longo do processo, detenhamo-nos na verdadeira questão que constitui objecto do presente recurso e que consiste em saber se o referido Condomínio, sendo constituído apenas por parte das fracções autónomas e de partes comuns do supra aludido prédio, não dispõe de personalidade judiciária, como decidiu a 1.ª instância e defende a oponente/apelada, ou se, ao invés, tem a necessária personalidade judiciária, como sustenta o exequente, ora apelante.
Para tanto, importa começar por fazer uma referência, ainda que breve, à estrutura básica do regime da propriedade horizontal, seguindo de perto, quer nessa incursão, quer na decisão daquela questão, os ensinamentos do acórdão do STJ de 16/10/2008, relatado pelo Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa, exarado no processo n.º 08B3011, disponível em www.dgsi.pt, no qual foi discutida e reconhecida a personalidade judiciária do ora apelante.
Como é sabido, a propriedade horizontal é uma figura típica dos direitos reais que se traduz na situação em que as fracções independentes de um edifício, como estrutura unitária, pertencem a proprietários diversos, exclusivos em relação a tais fracções e comproprietários das respectivas partes comuns, em quadro de incindibilidade desses direitos (cfr. art.ºs 1414.º e 1420.º, ambos do Código Civil).
Porém, só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública (cfr. art.º 1415.º do Código Civil).
São obrigatoriamente partes comuns o solo, os alicerces, as colunas, os pilares, as paredes mestras e todas as outras partes que constituem a estrutura do prédio, o telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção, as entradas, os vestíbulos, as escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos, as instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes [cfr. alíneas a) a d) do n.º 1 do art.º 1421.º do Código Civil].
E presumem-se comuns os pátios e jardins anexos ao edifício, os ascensores, as dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro, as garagens e outros lugares de estacionamento e, em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos [cfr. alíneas a) a e) do n.º 2 do mesmo art.º 1421.º], podendo o título constitutivo afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns (n.º 3 do mesmo artigo).
Assim, no direito de propriedade horizontal, confluem poderes ou faculdades diferentes, consoante incidam sobre as fracções autónomas ou sobre as partes comuns, legalmente referenciados ao direito de propriedade singular quanto às primeiras e à compropriedade no que concerne às últimas, não obstante o seu conjunto constituir um direito incindível (art.ºs 1305.º e 1405.º, n.º 1, ambos do Código Civil).
Antes da alteração do regime da propriedade horizontal, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 1995, ao direito de propriedade horizontal derivado do título constitutivo relativo à unidade de edifício correspondia unidade de regime.
Todavia, aquele diploma inseriu no Código Civil o art.º 1438.º-A, segundo o qual o regime da propriedade horizontal “pode ser aplicado, com as necessárias adaptações, a conjuntos de edifícios contíguos funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns afectadas ao uso de todas ou algumas unidades ou fracções que os compõem”.
Esta inovação foi justificada no relatório preambular daquele diploma do seguinte modo: “decidiu-se estender o âmbito de incidência do instituto, por forma a ser possível submeter ao respectivo regime conjuntos de edifícios. Salvaguardou-se, porém, a interdependência das fracções ou edifícios e a dependência funcional das partes comuns, como características essenciais do condomínio”.
Como dali resulta, o escopo desta alteração foi a integração no regime da propriedade horizontal do conjunto de edifícios em quadro de interdependência das fracções ou edifícios e da sua dependência funcional das partes comuns, estas por envolverem as essenciais características do condomínio.
Assim, é a ligação funcional entre as fracções decorrentes da existência de partes comuns que permite que edifícios autónomos entre si se constituam em propriedade horizontal.
Deste modo, temos uma dualidade de regimes da propriedade horizontal: um relativo ao conjunto de edifícios com as referidas características e outro concernente a edifícios não integrados em conjuntos, ou seja, os ditos fraccionados.
“No primeiro caso, deve o respectivo título constitutivo especificar os edifícios integrantes do conjunto, em termos de expressão das fracções autónomas componentes de cada um deles.
No segundo, não impõe a lei, nem o impõe a natureza das coisas, por exemplo quando o edifício é composto por blocos, que o título constitutivo inclua a mencionada especificação” (citado acórdão de 16/10/2008).
Aqui chegados, debrucemo-nos, mais concretamente, sobre a questão decidenda.
Esta questão tem sido suscitada nos tribunais em situações em que é posta em causa a personalidade judiciária do condomínio na posição de autor, para obter a condenação no pagamento das despesas com as partes comuns do edifício ou para o reconhecimento judicial dessa autonomia para efeitos de determinação do direito de praticar actos de administração.
A presente situação é semelhante às do primeiro grupo, acabado de referir, visto que a acção executiva visa o pagamento de quantias de despesas com as partes comuns do edifício, constituído em propriedade horizontal, e porque a questão foi suscitada em sede de oposição àquela execução, a qual tem natureza declarativa.
Equacionada como questão de saber da legalidade da constituição de mais de um condomínio, com administração própria, para gerir as partes comuns que só servem uma zona do edifício, não obstante a constituição de uma só propriedade horizontal, tem obtido decisões de sentido diverso pela nossa jurisprudência (v.g. Acórdãos desta Relação de 24/2/2005 e de 9/2/2006, publicados na CJ, Anos XXX, Tomo I, pág. 196[1], e XXXI, Tomo I, pág. 177[2], respectivamente, e de 31/3/2008, proferido no processo n.º 0851233[3], disponível em www.dgsi.pt).
A doutrina também não tem sido uniforme sobre a solução a dar a esta questão.
Há quem admita a existência do condomínio para os edifícios divididos em zonas ou torres dispondo cada uma delas de partes comuns do edifício em que aquelas se integram, tais como entradas próprias para cada uma dessas zonas, sob condição de, no título de constituição da propriedade horizontal, se especificarem essas zonas ou torres, suas fracções autónomas e partes comuns (cfr. Rodrigues Pardal e Dias da Fonseca, “Da Propriedade Horizontal no Código Civil e Legislação Complementar”, Coimbra, 1988, páginas 123 a 126).
E há quem o defenda para a situação da propriedade horizontal relativa a conjuntos de edifícios de proximidade ligados entre si pela existência de partes comuns afectadas ao uso de todas ou de algumas unidades ou fracções que os compõem, ou seja, nas situações previstas no citado art.º 1438.º-A (cfr. Sandra Passinhas, “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, Coimbra, 2002, págs. 233 e 234 e 277 a 283; e Aragão Seia, “Propriedade Horizontal”, Coimbra, 2002, pág. 156).
Em complexas estruturas de propriedade horizontal, designadamente quando o número de fracções prediais envolvidas é muito elevado, como ocorre no presente caso, pode configurar-se o interesse de todos os condóminos na sua fragmentação para efeitos de administração.
A lei não proíbe essa fragmentação e atribui à assembleia de condóminos ou ao administrador a aprovação do regulamento do condomínio, no caso de haver mais de quatro condóminos, o qual tem a ver com a disciplina do uso, da fruição e da conservação das partes comuns, ou seja, com a administração destas mesmas partes (art.º 1429.º-A do Código Civil).
Além disso, decorre da lei que nem todas as despesas gerais com a gestão das coisas comuns interessam a todos os condóminos, nos seus vários aspectos, com consequências a nível da participação nas mesmas (art.º 1424.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil).
Nem se diga que o princípio da unidade do direito da propriedade horizontal implica a unidade absoluta de condomínio e de órgãos de administração em relação à generalidade dos edifícios de estrutura unitária, ou dos conjuntos de edifícios funcionalmente ligados por partes comuns, como é o caso da situação prevista no supra citado art.º 1438.º-A.
É que, em situações de propriedade horizontal de edifícios integrados por blocos, em que algum ou alguns deles são servidos por partes comuns que lhes são exclusivamente inerentes, ou seja, que não sirvam funcionalmente outros blocos, não se vislumbra qualquer proibição legal a impedir que os condóminos aprovem a administração autónoma relativa a tais blocos, sem prejuízo, como é natural, da coordenação pela administração geral nos pontos em que ela deva existir.
Nada existe na lei a impor que a referida solução só possa ser admitida no caso de o titulo constitutivo da propriedade horizontal especificar os elementos relativos a cada um dos aludidos blocos prediais, designadamente as fracções em que se decompõem e as partes comuns que lhe estão afectas.
Isso não se justifica, porque as questões que se prendem com a regulamentação do uso, fruição e conservação de partes comuns não têm, em tais casos, de constar do título constitutivo da propriedade horizontal (cfr. art.º 1429.º-A do Código Civil).
Daí que não tenha aqui aplicação o disposto no art.º 1419.º do Código Civil, muito menos qualquer cabimento, com o devido respeito, a crítica feita pela decisão recorrida ao acórdão do STJ de 27/10/2011, proferido no processo n.º 1753/03.0TBPVZ.P1.S1, junto por fotocópia certificada de fls. 377 a 388, que reconheceu a existência jurídica do condomínio constituído relativamente a 22 fracções autónomas que compõem o “Edifício D…..” do mesmo prédio de que também fazem parte as fracções do condomínio posto em causa nestes autos, ou seja, do prédio descrito sob o n.º 2462.
O sumário de tal acórdão mostra-se publicado na CJ – STJ -, ano XIX, tomo III, pág. 280, embora em termos não totalmente coincidentes com a conclusão nele exarada, com o seguinte teor:
“I – Existindo no título de constituição de propriedade horizontal a referência a um conjunto habitacional e centro comercial, composto de cave, sub-nível e rés do chão, constituindo o sub-nível e rés do chão o centro comercial interligados por escadas interiores e o rés do chão por três torres, é possível, ao abrigo do art. 1438-A do CC, constituir condomínios separados e autónomos correspondentes a cada uma das torres do conjunto habitacional, bastando para tal uma deliberação em assembleia de condóminos nesse sentido.
II – Havendo já uma administração de facto apenas relativamente a uma dessas torres, não se pode falar que haja inexistência jurídica de tal condomínio, quando, de facto, existem todas as condições estruturais para a legalização autónoma de tal condomínio.”
No caso destes autos, embora os factos disponíveis sejam escassos, pois não revelam a data e a causa do início da situação de fragmentação, aqui em discussão, não há dúvidas de que ela existiu e vem já desde, pelo menos, 8/4/1983, data em que reuniu a assembleia do condomínio do Centro Comercial B…..
Também inexistem dúvidas de que as fracções da executada, relativamente às quais é pedida a comparticipação nas despesas comuns, estão integradas no centro comercial, fazendo parte das 164 fracções que integram o prédio constituído em propriedade horizontal, acima identificado.
Os factos provados também revelam que dessas fracções, 65 correspondem a outras tantas lojas que compõem o centro comercial, onde estão integradas as fracções da executada, destinadas a comércio e serviços, com entradas e saídas próprias para as partes comuns do prédio e destas para a via pública.
Revelam, ainda, uma administração autónoma das partes comuns relativas a estas 65 fracções, desde 26/1/2008, e antes, referentes a 74 fracções, desde 18/1/2001, conforme consta dos regulamentos internos aprovados pelos respectivos condóminos, e desde 8/4/1983, data em que já se mostrava constituído o referido condomínio.
Trata-se de uma zona devidamente delimitada do prédio que foi objecto de constituição da propriedade horizontal, de que também faz parte o “edifício habitacional”, ao que parece, constituído por três torres e vários blocos, com entradas e partes comuns próprias de cada um deles, relativamente aos quais (ou pelos menos a alguns) já foi reconhecida a existência de condomínios próprios.
No caso vertente, é indubitável que estamos perante um espaço perfeitamente delimitado, com funcionalidade própria, com fracções autónomas e partes comuns próprias, pelo que não há fundamento legal para que a globalidade dos condóminos não possa deliberar a constituição de autónomos órgãos de administração.
Por isso, temos de concluir pela legalidade da estrutura do condomínio e da administração das partes comuns em causa, tanto mais que o título constitutivo da propriedade horizontal não exclui o funcionamento de mais de um condomínio, nomeadamente do que se mostra constituído, há muito, e respeita ao espaço do centro comercial.
Consequentemente, não ocorre a situação de inexistência jurídica ou falta de personalidade judiciária do exequente.

Sumariando nos termos do n.º 7 do art.º 713.º do CPC para concluir:
Goza de personalidade judiciária, relativamente a execução para cobrança de dívida pela comparticipação nas despesas comuns, o condomínio de parte de um prédio em propriedade horizontal, referente a espaço perfeitamente delimitado, com funcionalidade própria, fracções autónomas e partes comuns próprias, aprovado pela generalidade dos respectivos condóminos com vista à administração autónoma dessa mesma parte, sem prejuízo da coordenação da administração geral, não dependendo a sua constituição da especificação do título constitutivo da propriedade horizontal.

Procedem, por conseguinte, as conclusões relevantes da apelação, pelo que se impõe a revogação da decisão por esta via impugnada.

III. Decisão

Pelo exposto, na procedência da apelação, porque o exequente dispõe de personalidade judiciária, revoga-se o saneador recorrido e ordena-se o prosseguimento dos autos da oposição para apreciação das demais questões nela suscitadas e observância da legal tramitação, bem como da execução.
*
Custas:
- da apelação, pela apelada;
- da oposição, a fixar a final.
*
Porto, 16 de Outubro de 2012
Fernando Augusto Samões
José Manuel Cabrita Vieira e Cunha
Maria das Dores Eiró de Araújo
__________________
[1] Onde se entendeu só poder haver um condomínio relativamente a todos os blocos, integrantes de um só prédio, quando a separação não resulte com nitidez do título de constituição da propriedade horizontal.
[2] Que admitiu a constituição de um condomínio de parte do prédio, por uma assembleia restrita de condóminos, com poderes administrativos, relativamente a uma estrutura susceptível de autonomização das restantes partes, desde que no respectivo título constitutivo da propriedade horizontal estejam definidas as especificações que integram essa autonomia.
[3] Que entendeu nada obstar à organização de vários condomínios para as várias partes de um edifício, devidamente delimitadas e definidas fisicamente, apesar de ser só um o título constitutivo da propriedade horizontal.