Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
648/12.0PIVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO
Nº do Documento: RP20140910648/12.0PIVNG.P1
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e mesmo após cessar essa relação.
II - Não exigindo o tipo legal uma reiteração de acções, um único acto ofensivo só consubstanciará “maus tratos” se se revelar de tal modo intenso que ao nível do desvalor (quer da acção quer do resultado) seja apto a lesar em grau elevado o bem jurídico pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 648/12.0PIVNG.P1
4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
No 4º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, no processo comum singular nº 648/12.0PIVNG, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
CONDENO B…, como autor imediato, sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do C.P., cujo último acto ocorreu em 09-07-2013, na pena de 2 (DOIS) ANOS E 8 (OITO) MESES DE PRISÃO, cuja EXECUÇÃO SE SUSPENDE por um período de 2 (DOIS) ANOS E 8 (OITO) MESES, acompanhada de REGIME DE PROVA assente num plano de reinserção social, a definir e a executar com vigilância e apoio pelos serviços de reinserção social, de forma a alcançar os seguintes objectivos:
a) Prevenir o cometimento no futuro de factos de idêntica natureza;
b) Permitir o confronto do arguido com as suas acções e tomada de consciência das suas condicionantes e consequências;
c) Promover a consciência e assumpção da responsabilidade do comportamento violento e a utilização de estratégias alternativas ao mesmo, objectivando a diminuição da reincidência;
d) Alcançar o conhecimento de alternativas de comportamentos mais integrados e a tomada de consciência das vantagens de adopção de tais comportamentos, ficando desde já condicionada:
a) Proibição de contacto, por qualquer forma, com a demandante, nomeadamente na residência e no local de trabalho desta, devendo o cumprimento de tal condição ser fiscalizado, caso se verifiquem os legais pressupostos, por meios técnicos de controlo à distância, mediante a motorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados;
b) Responder a convocatórias do magistrado e do técnico de reinserção social responsável pela execução;
c) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos dos seus meios de subsistência, se tal for determinado;
d) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
e) À frequência do programa para agressores de violência doméstica (PAVD).
CONDENO ainda o arguido no pagamento das CUSTAS do processo, fixando em 2 UC o valor da taxa de justiça devida e nos demais encargos a que a sua actividade deu causa (cfr. arts. 3.º, n.º 1, 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III do mesmo, 513.º, n.º 1 e n.º 2 e 514.º, n.º 1, do C.P.P.).
APÓS TRÂNSITO, REMETA boletim (cfr. art.º 5.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 57/98, de 18 de Agosto).
JULGO, ainda, PARCIALMENTE PROCEDENTE o pedido de indemnização civil formulado por C… e, em consequência CONDENO o demandado B… a pagar àquela a quantia de € 2.000 (dois mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal decorrente do art.º 559.º, n.º 1, do C.C., que tem sido de 4 %, desde 26-03-2014 e até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado.
CONDENO a demandante e o demandado no pagamento das custas do pedido de indemnização civil, na proporção do decaimento, que será de 74 % para aquela e de 26 % para este (cfr. arts. 527.º, n.º 1 e n.º 2, e n.º 2, 529.º, 607.º, n.º 6, do C.P.C., 523.º, do C.P.P., 3.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, al. n), à contrário, 11.º, 13.º, n.º 1, do R.C.P. e Tabela I a ele anexa).
COMUNIQUE a presente decisão aos serviços de reinserção social competentes que deverão proceder à reelaboração do plano de reinserção social, ouvido o condenado, no prazo de 30 (TRINTA) DIAS, e submetê-lo à homologação do tribunal (cfr. art.º 494.º, nºs 2 e 3, do C.P.P.).
COMUNIQUE ao organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, bem como à Direcção-Geral da Administração Interna, para efeitos de registo e tratamento de dados, nos termos do art.º 37.º, n.º 1, do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro, tendo presente a Divulgação n.º 29/2012, do CSM e o ofício circular n.º 32 da DGAJ/DSAJ.
SOLICITE, DESDE JÁ, aos serviços de reinserção social competentes pelos meios técnicos de controlo à distância.
DÊ CONHECIMENTO aos órgãos de polícia criminal competentes.
Ao abrigo do disposto no art.º 214.º, n.º 1, al. e), do C.P.P., na redacção dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, as medidas de coacção aplicadas ao arguido EXTINGUEM-SE com o trânsito em julgado da presente sentença, sendo que as obrigações decorrentes do TIR apenas se extinguirão com a extinção da pena (cfr. art.º 5.º do C.P.P.).
O arguido à ordem destes autos e até este momento não sofreu qualquer período de privação de liberdade (cfr. art.º 80.º, n.º 1, do C.P.).
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Inconformado com a decisão condenatória, o arguido B… veio interpor recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
A. O presente recurso é interposto de decisão proferida na douta sentença que condenou o arguido, como autor material de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo nº 152º nº 1 b), agravado na sua moldura penal abstracta pelo nº 2 do mesmo artigo;
B. Dos factos dados como provados e com relevância para condenação temos que arguido e a ofendida mantiveram uma relação de namoro durante três anos;
C. Que durante esse três anos de namoro existiram várias discussões e que, não se determinando qual o dia, hora ou local, apenas que foi no interior de uma viatura, o arguido desferiu um estalo à ofendida;
D. Que numa dessas discussões o arguido afirmou “puta, vais para os corredores técnicos do centro comercial com outros homens, não queres ter relações sexuais comigo por as teres com outros homens”;
E. Posteriormente ao término do namoro, Janeiro de 2012, foi dado como provado uma outra situação de violência física, pela qual o arguido terá desferido um estalo na face da ofendida e pontapés nas pernas, não se determinando quais as concretas circunstâncias de facto que envolvem a dita agressão física;
F. Após isso foi dado como provado outros acontecimentos de injúrias derivados de discussões;
G. Os factos descritos e dados como provados pelo Tribunal a quo são genéricos e inconclusivos, nomeadamente quando afirma “Desde que romperam a relação que os unia, por diversas vezes, o arguido disse à demandante, em tom sério e intimidatório, “puta, andaste às minhas custas, és uma vaca”;
H. Não circunstanciando minimamente essas discussões e injúrias;
I. Igualmente quando se afirma na sentença que “A partir de Agosto de 2012 o arguido passou a telefonar à demandante várias vezes ao dia, bem como a segui-la em todos os seus percursos”, não se explica para que telefone fazia os arguidos o telefonema, o que dizia concretamente, quantas vezes, aproximadamente, é que o arguido ligava, até quando teve este comportamento;
J. Não pode o tribunal a quo fundar uma sentença, em que condena um arguido a pena de prisão de 2 anos e 8 meses, em factos tão fracamente circunscritos, vagos e genéricos;
K. Quanto à questão da medida de coacção de proibição de aproximação da ofendida e da afirmação de que o arguido continuou a surgir em lugares frequentados pela ofendida cumpre afirmar que nos autos inexiste qualquer indicação de incumprimento da medida de coacção, e que arguido e ofendida são ambos residentes em Vila Nova de Gaia, habitando a poucos quilómetros um do outro e na mesma freguesia, …;
L. Sendo assim natural que frequentem os mesmos locais e que neles e se cruzem;
M. Mas inexiste qualquer prova que o arguido terá entrado em contacto com a ofendida, e, assim, tal facto não pode ser tido em conta para efeitos de condenação;
N. Ora, conforme supra indicado suficientemente circunstanciado para poder fundamentar uma sentença temos provado que no espaço que correu entre Janeiro de 2009 e Julho de 2013 ocorreram dois momentos de agressão física, de baixa gravidade e 3 a 4 momentos de injúria;
O. O que será manifestamente insuficiente para qualificar o crime como violência doméstica, e absolutamente impossível agravá-lo nos termos do nº 2 do artigo 152º do C.P.;
P. A punição das condutas descritas no artigo 152º do C.P., visa salvaguardar a pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade e pretende prevenir consequências gravosas que possam surgir para a saúde física e psíquica e para o desenvolvimento normal e correto da personalidade do indivíduo;
Q. Os actos praticados terão necessariamente de ser capazes de atingir precisamente a saúde física e psíquica do indivíduo de forma a afectar e marcar de forma irreparável o desenvolvimento harmonioso do sujeito ofendido, pelo que terão de se revestir de reiteração e gravidade suficientes para o efeito;
R. Sendo ainda que a autonomização do crime de violência doméstica de outros menos graves exige, ainda, ou uma reiteração de condutas ofensivas ou, no mínimo, um acto que seja de tal forma grave que por si só, e sem mais, seja susceptível de produzir o dano descrito;
S. É necessário que o comportamento o agressor demonstre uma especial crueldade, insensibilidade, uma atitude de vingança desnecessária e desmesurada ou ainda uma vontade de subjugar a vítima aos seus desejos e torna-la dependente de si;
T. O que no caso concreto não se verifica e não se encontra nem provado nem dado como provado, pelo que não poderão os factos dados como provados integrar o ilícito de violência doméstica;
U. Não poderá também ser o ilícito agravado uma vez que apenas um dos factos descritos aconteceu nos termos do artigo 152º nº 2, mais especificamente em frente a menor;
V. Ao aplicar o mesmo artigo o tribunal faz uma incorrecta apreciação da norma, isto porque se entende que uma agravação a um tipo legal de ilícito implica a prática dos factos em circunstâncias excepcionais que sejam demonstrativas de uma especial perversidade e consequentemente têm um maior desvalor;
W. No entanto não parece possível que o legislador ao criar a agravação pretenda que a mesma tenha um efeito automático;
X. Deverá averiguar-se se no caso concreto existe essa especial perversidade nas circunstâncias da prática dos factos que importem uma maior desvalorização;
Y. Ora que no caso concreto tal não se verifica, uma vez que apenas um dos factos foi praticado na presença de menor, e esse não reveste cariz de gravidade suficiente para por si só ser capaz de integrar o ilícito de violência doméstica;
Z. Pelo que não poderá, por maioria de razão, ser suficiente, por si só, para agravar o crime na sua moldura penal abstracta;
AA. Como tal verifica-se da existência de erro na qualificação e subsunção jurídico-penal dos factos e uma interpretação errada das normas pelo tribunal a quo;
BB. Estamos perante não um crime de violência doméstica, mas sim ofensa à integridade física simples e injúrias;
CC. E ainda que se considere estarem preenchidos os requisitos do ilícito de violência doméstica, nunca se poderá considerar que se verifica da agravação do nº 2 do artigo 152º do C.P.;
DD. Relativamente à prova a única que foi produzida e com relevância para a demonstração dos factos careados pela acusação são as declarações da ofendida;
EE. Não existem relatórios médicos documentais ou exames periciais do Instituto de Medicina Legal que demonstrem as agressões físicas;
FF. Não existe qualquer prova testemunhal das injúrias e ameaças dadas como provadas;
GG. Apenas as declarações da ofendida, parte interessada na acção, e que se demonstraram vagas, genéricas e pouco concretas;
HH. Não circunstanciando em termos de tempo, modo e lugar a prática dos factos por forma a permitir que o Tribunal fosse capaz de fazer o mesmo;
II. E as declarações da ofendida não são suportadas, nem sequer indiciariamente, por mais qualquer prova;
JJ. Assim, a prova é claramente insuficiente para que haja condenação do arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável;
KK. E como tal, na ausência do juízo de certeza deverá valer o princípio de presunção de inocência do arguido, conforme o artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, de que é corolário o princípio in dubio pro reo;
LL. E consequentemente ser o arguido absolvido da prática de qualquer crime;
MM. O tribunal condena ainda o recorrente a proceder ao pagamento à ofendida da quantia de € 2.000,00, acrescido de juros de mora legais desde a data de trânsito em julgado até ao pagamento integral;
NN. Tal condenação baseia-se no instituto da Responsabilidade Extracontratual por Factos Ilícitos, a qual, para que se gere a obrigação de indemnizar, exige o preenchimento de cinco requisitos;
OO. Um dos quais é o dano;
PP. Esse dano foi tenuemente alegado em sede de Pedido de Indemnização Cível, deduzido pela ofendida;
QQ. A mesma limita-se a afirmar de forma genérica e inconclusiva que se tornou uma mulher fatigada e fragilizada, que lhe foi causado constrangimento, medo e inquietação e por fim que sentiu enorme vergonha, desgosto, desalento e mágoa;
RR. Não expondo em que momentos teve tais sentimentos, porque fundamentos, qual a actuação do arguido que causou os diferentes danos, e quais foram, concretamente, esses danos e a sua repercussão na sua vida diária e comum;
SS. Ou seja, sem em momento algum concretizar correctamente o dano sofrido;
TT. E não foi oferecida ou produzida qualquer prova do mesmo em sede de audiência de julgamento;
UU. Ainda assim o Tribunal a quo dá como provado que “...a demandante sentiu-se com medo, inquieta, envergonhada, magoada, desalentada, vexada e humilhada.”;
VV. Sem ter qualquer prova para o fundamentar, e sem, igualmente, concretizar o dano e a sua repercussão na vida da ofendida;
WW. Como tal deverá o arguido ser absolvido também do pagamento à ofendida da quantia de € 2000,00, por inexistência de alegação de dano e por falta de prova do mesmo, requisito essencial para que se aplique o instituto da Responsabilidade Civil Extracontratual por Factos Ilícitos e se gere a obrigação de Indemnizar;
Nestes termos e nos melhores de direito requer a V. exa. digne dar como procedente o presente Recurso e consequentemente substituir a sentença recorrida por uma que absolva o Recorrente da prática do Crime de Violência Doméstica e ainda absolver o Recorrente da condenação parcial no pedido de indemnização civil, nos termos e fundamentos supra expendidos.
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O recurso foi admitido (cfr. despacho de fls. 569).
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Em resposta ao recurso o Ministério Público pugnou pela sua improcedência e manutenção, na íntegra, da decisão recorrida.
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Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, sendo que relativamente à parcela do mesmo em que o recorrente invoca a inexistência de prova da prática da infracção pugna que o recorrente seja convidado a apresentar as conclusões em forma e substância.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal singular.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida.
Segue-se a enumeração dos factos provados, não provados e respectiva motivação, constantes da sentença recorrida (transcrição):
FUNDAMENTAÇÃO:
FACTOS PROVADOS:
C…, aqui demandante, e B…, aqui arguido, conheceram-se em 2008, tendo iniciado em 2009 uma relação de namoro que se manteve até 2012, tendo vivido cerca de três meses em 2010, em condições análogas às dos cônjuges, em ….
A demandante reside na Rua …, em Vila Nova de Gaia, e com ela habitam dois dos seus três filhos, D…, nascido a 30-07-1997, e E…, nascida a 28-01-1995.
Com o decorrer do tempo, o arguido demonstrou possuir um comportamento possessivo e ciumento, dando origem a várias discussões com a demandante, no decurso das quais lhe dirigia expressões como "puta, vais para os corredores técnicos do centro comercial com outros homens, não queres ter relações sexuais comigo para as teres com os outros".
Em data não concretamente apurada, situada no início de 2012, quando circulavam no interior do veículo automóvel do arguido e por ele conduzido, este, no decurso de mais uma discussão a que deu origem, desferiu uma bofetada na face da demandante, causando-lhe dores.
Incapaz de suportar por mais tempo o comportamento do arguido, a demandante revelou-lhe que pretendia colocar um ponto final na relação que mantinham, facto que o arguido não aceitou.
Em data não concretamente apurada, situada no início do mês de Fevereiro de 2012, na Rua …, em Vila Nova de Gaia, a demandante foi abordada pelo arguido, que lhe apontou uma faca, ao mesmo tempo que afirmava que a ia matar, desferiu-lhe um estalo na face e pontapés nas pernas, causando-lhe dores e ferimentos nas zonas do corpo atingidas, partindo-lhe um dente.
Desde que romperam a relação que os unia, por diversas vezes, o arguido disse à demandante, em tom sério e intimidatório, "puta, andaste às minhas custas, és uma vaca".
No dia 28 de Junho de 2012, cerca das 13 horas, quando a demandante circulava a pé na companhia do seu filho D…, na …, no Porto, foi abordada pelo arguido que a agarrou pelos braços, exigindo falar com ela, ao mesmo tempo que a chamava de "cabra e puta".
No mesmo dia, junto ao Hospital …, em Vila Nova de Gaia, a demandante deparou-se com o arguido que lhe disse, em tom sério e grave, "não precisas de chamar ninguém pois leva tudo e todos, se chamares levas tu e leva quem estiver contigo".
No dia 5 de Julho de 2012, o arguido telefonou para o telefone da habitação da demandante, com o n.º ……… e dirigiu-lhe as seguintes expressões: "filha da puta, podes mudar de telefone sempre que quiseres que eu vou-te foder a vida, eu tenho o teu número de contribuinte e bilhete de identidade, vou-te endividar, tudo o que puder fazer para te prejudicar vou fazer".
A partir de Agosto de 2012, o arguido passou a telefonar à demandante várias vezes ao dia, bem como a segui-la nos seus percursos.
Nos telefonemas que efectuava, o arguido tanto pedia desculpa à demandante pelo seu comportamento e implorava uma reconciliação, como a insultava, dizendo-lhe "puta, vaca, chula, vives às minhas custas, só queres o meu dinheiro, vou-te atormentar a vida inteira".
No dia 08-07-2013, quando a demandante se encontrava à porta da sua residência, a conversar com uma vizinha, foi abordada pelo arguido, que proferiu as seguintes palavras "estou há três horas à tua espera, estás a fazer de mim parvo, chula, vives às minhas custas, és uma puta, isto não vai ficar assim".
Nesse mesmo dia, pelas 19 horas, quando saiu de casa para se deslocar ao mercado …, o arguido encontrava-se no local, tendo convidado a demandante a entrar no seu veículo automóvel.
A fim de evitar discussões, a demandante virou costas e começou a fazer o caminho de regresso a casa, sendo seguida pelo arguido que, em tom de voz alto e sério, lhe disse: "tu andas comigo em tribunal mas andas a pinar comigo".
No dia 08-08-2013, por decisão do Tribunal de Instrução Criminal do Porto foram aplicadas ao arguido as medidas de coacção de proibição de se aproximar da residência da demandante e de contactar com a mesma em qualquer lugar e por qualquer meio, físico ou verbal.
Não obstante, o arguido continuou a permanecer em locais frequentados pela demandante.
O arguido agiu sabendo e querendo maltratar o corpo e a saúde física e psíquica da demandante, com quem manteve a dita relação de namoro, manifestando total desinteresse pelo seu bem-estar.
Agiu de forma livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
A demandante apresenta historial de emprego relativamente estável até há cerca de 3 (três) anos, encontrando-se desempregada desde então, frequentando presentemente formação profissional de massagista/esteticista.
Vive numa casa de familiares.
Estabelece relações interpessoais ajustadas, pautadas pela discrição.
Em consequência da conduta do arguido, a demandante sentiu-se com medo, inquieta, envergonhada, magoada, desalentada, vexada e humilhada.
O arguido nasceu em Lisboa, onde viveu até aos 13 anos de idade.
O seu processo de desenvolvimento infanto-juvenil decorreu no seio de uma família monoparental (mãe), na sequência da separação conjugal dos pais quando tinha cinco anos de idade.
Desde os 10 anos de idade que não tem qualquer contacto com o pai, sendo que a relação com a mãe nem sempre foi pacífica e revelou-se pouco gratificante em termos afectivos, constituindo-se a avó e uma tia paternas como as figuras de referência a este nível.
Frequentou o sistema de ensino até completar 9.º ano de escolaridade, com aproveitamento escolar e capacidade de adaptação ao contexto escolar, com excepção para o 8.º ano de escolaridade, que coincidiu com a vinda para Vila Nova de Gaia e a inserção num estabelecimento de ensino sito em …, zona residencial problemática.
Tendo em conta o mau ambiente familiar e relação conturbada com a mãe, o arguido autonomizou-se cedo, tendo-se inserido ainda com apenas 15 ou 16 anos de idade no mercado de trabalho.
Apresenta um percurso profissional marcado por mudanças de emprego, predominando os períodos de actividade laboral.
O arguido esteve desempregado, tendo obtido entretanto ocupação laboral na área da restauração, perspectivando auferir rendimento mensal não concretamente apurado mas não inferior a € 1.000 (mil euros).
Vive num quarto arrendado, no que despende mensalmente quantia não concretamente apurada mas não superior a € 250 (duzentos e cinquenta euros).
Não possui suporte familiar consistente em Vila Nova de Gaia, dado que os únicos familiares que lhe proporcionam apoio a vários níveis, a avó e a tia paternas, residem em Lisboa.
Não mantém relações de convivência e de amizade com significado, pautando-se por algum isolamento social e familiar.
Não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
Embora o arguido reconheça em abstracto a ilicitude de factos de idêntica natureza e a presença de danos e vítimas, revela algumas dificuldades ao nível da interiorização do desvalor da sua conduta, imputando à demandante um aproveitamento desta relação patrimoniais e pessoais (reaver os descentes), perspectivando-se como vítima dessa relação, pelo alegado aproveitamento financeiro e pessoal da demandante, percepcionando-se reactividade negativa e violenta à situação processual a que foi sujeito.
Existe o risco moderado/elevado de repetição de comportamento violento.
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FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição dos factos assentes, nomeadamente, que a demandante e o arguido tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges na residência sita na Rua …, em Vila Nova de Gaia.
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MOTIVOS DE FACTO, INDICAÇÃO E EXAME CRÍTICO DAS PROVAS:
Foi relevante a certidão do registo do assento de nascimento do filho da demandante junto a fls. 73, sendo que a relação vivenciada entre aquela e o arguido foi descrita pela dita C… que referiu, em pormenor, a sua duração e vicissitudes, bem como os comportamentos que foram sendo assumidos pelo aqui arguido e as repercussões que os mesmos tiveram na sua maneira de ser e de estar.
O seu depoimento foi caracterizado por um discurso lógico e coerente, visivelmente emocionada, que mereceu credibilidade até porque não foi contrariado por qualquer outra prova produzida.
No mais, foi relevante o teor dos relatórios sociais juntos, sendo que o aí relatado está até em consonância com as declarações da demandante e, na parte referente às condições pessoais do arguido, pelas suas declarações, limitadas que foram a este aspecto.
Por outro lado, e quanto à avaliação do risco aí efectuada, na medida em que se baseia num juízo técnico, baseado num instrumento de suporte à avaliação do risco de reincidência de violência doméstica (SARA - Spousal Assault Risk Assesment Guide), impõe-se, sobretudo tendo em conta que não foi apresentado qualquer juízo material e científico com a susceptibilidade de o abalar ou infirmar (cfr. art.º 163.º do C.P.P.).
Por fim, quanto aos antecedentes criminais do arguido foi relevante o CRC constante dos autos.
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Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada;
- Violação do princípio do in dubio pro reo;
- Subsunção jurídica da conduta do arguido recorrente;
- Verificação dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil extracontratual.
Passamos a analisar a primeira questão supra elencada.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Sobre o requerimento do recurso impendem – quer na impugnação da matéria de facto, quer na de Direito – exigências de cariz técnico-jurídico, nomeadamente na correcta utilização dos conceitos jurídico-processuais próprios do nosso Ordenamento Jurídico, e na formulação de uma motivação e conclusões (de que deverão ser a síntese) onde as questões surjam devidamente separadas, com uma arrumação lógica, por forma a ser indicadas com clareza e precisão as razoes de facto e de Direito por que se pede o provimento do recurso.
Assim, na motivação deverão ser enunciados os fundamentos do recurso, isto é, as razões ou motivos em que se baseia a discordância do recorrente quanto à Decisão (cfr. artigo 412º, nº 1, 1ª parte do Código de Processo Penal), cabendo ao mesmo elaborá-la com todo o cuidado, preservando o princípio da lealdade processual, mas formulando argumentos válidos e devidamente fundamentados que convençam o Tribunal de recurso da sua bondade e consistência (cfr. Simas Santos, Leal Henriques, Noções de Direito Penal, Rei dos Livros, pag. 506).
Neste tipo de recursos, cujo objecto é a reapreciação da prova, impõe a lei o cumprimento dos requisitos de forma prescritos no artigo 412º nº 3, als. a), b) e c) e nº 4 do Código de Processo Penal, que estabelecem que o recorrente:
a) Indique concretamente os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, por referência à indicação individualizada dos factos que constam da decisão;
b) Indique as provas que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação (o que implica a identificação do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, qual a decisão que se impõe desse meio de prova e porque é que tal decisão se impõe).
Por último, cumpre ainda ao recorrente que:
c) Indique, se for caso disso, as provas que pretende que sejam renovadas, com a menção concreta das passagens da gravação em que baseia a impugnação.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do Código de Processo Penal).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal).
No Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, proferido em 08.03.2012, embora se admita que a referenciação das provas que impunham decisão diversa possa ser efectuada de forma genérica, continua a considerar-se que a sua transcrição é indispensável: “basta para os efeitos do disposto no artigo 412º, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termos das declarações”.
Tais imposições legais fundam-se na necessidade da delimitação objetiva do recurso da matéria de facto, na medida em que o recurso deste tipo não se destina a um novo julgamento com reapreciação de toda a prova, como se o julgamento efetuado na primeira instância não tivesse existido, sendo antes o recurso da matéria de facto concebido pela lei como remédio jurídico (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª edição, actualizada e aumentada, 2008, pág. 105).
Neste sentido decidiu também já o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.09.2009, (disponível em www.dgsi.pt) onde se pode ler que «os nºs 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal limitam o julgamento da matéria de facto àqueles pontos que referem, mas não permitem o julgamento da globalidade dessa matéria de facto.».
De tudo decorrendo a conclusão que as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apesar de serem de forma, não têm natureza meramente formal ou secundária, antes estando directamente relacionadas com a inteligibilidade da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, já que só a sua observância permite que o tribunal de recurso se pronuncie sobre o objecto que foi verdadeiramente escolhido pelo recorrente.
Como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006, Proc. nº 06P120, (disponível em www.dgsi.pt) com as especificações consagradas nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal “visou-se, manifestamente, evitar que o recorrente se limitasse a indicar vagamente a sua discordância no plano factual e a estribar-se probatoriamente em referências não situadas, porquanto, de outro modo, os recursos sobre a matéria de facto constituiriam um encargo tremendo sobre o tribunal de recurso, que teria praticamente em todos os casos de proceder a novo julgamento na sua totalidade. Impõe-se, por isso uma exigência rigorosa na aplicação destes preceitos”.
Debruçando-nos agora directamente sobre o caso sub judice, constatamos que o recurso do arguido não observou o regime prescrito nos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, pois, não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não identificou tais factos, nem identificou as concretas provas que impõem decisão diversa, limitando-se a alegar que “…inexiste qualquer prova que o arguido terá entrado em contacto com a ofendida, e, assim, tal facto não pode ser tido em conta para efeitos de condenação”; “Relativamente à prova a única que foi produzida e com relevância para a demonstração dos factos careados pela acusação são as declarações da ofendida; Não existem relatórios médicos documentais ou exames periciais do Instituto de Medicina Legal que demonstrem as agressões físicas; Não existe qualquer prova testemunhal das injúrias e ameaças dadas como provadas; Apenas as declarações da ofendida, parte interessada na acção, e que se demonstraram vagas, genéricas e pouco concretas; Não circunstanciando em termos de tempo, modo e lugar a prática dos factos por forma a permitir que o Tribunal fosse capaz de fazer o mesmo; E as declarações da ofendida não são suportadas, nem sequer indiciariamente, por mais qualquer prova; Assim, a prova é claramente insuficiente para que haja condenação do arguido com base num juízo de certeza que se encontre para lá da dúvida razoável”.
E continuou alegando que “Tal condenação baseia-se no instituto da Responsabilidade Extracontratual por Factos Ilícitos, a qual, para que se gere a obrigação de indemnizar, exige o preenchimento de cinco requisitos; Um dos quais é o dano; Esse dano foi tenuemente alegado em sede de Pedido de Indemnização Cível, deduzido pela ofendida; A mesma limita-se a afirmar de forma genérica e inconclusiva que se tornou uma mulher fatigada e fragilizada, que lhe foi causado constrangimento, medo e inquietação e por fim que sentiu enorme vergonha, desgosto, desalento e mágoa; Não expondo em que momentos teve tais sentimentos, porque fundamentos, qual a actuação do arguido que causou os diferentes danos, e quais foram, concretamente, esses danos e a sua repercussão na sua vida diária e comum; Ou seja, sem em momento algum concretizar correctamente o dano sofrido; E não foi oferecida ou produzida qualquer prova do mesmo em sede de audiência de julgamento”.
Por outro lado e, não obstante as provas terem sido gravadas, o recorrente não indicou concretamente as passagens em que se funda a impugnação, com referência ao consignado na acta.
Efectivamente, embora da motivação e das conclusões resulte que o recorrente impugna a matéria de facto, o certo é que, em momento algum do recurso (motivações ou conclusões) indica os pontos de facto que considera incorrectamente julgados ou identifica concretamente os meios de prova que pretende que este Tribunal da Relação reaprecie, para além de não indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, com referência ao consignado na acta.
A mera omissão dessas indicações nas conclusões do recurso conduziria à formulação de convite para as completar, nos termos do nº 3 do art. 417º do Código de Processo Penal, se tais indicações constassem da motivação. Não constando da motivação, nem sequer é admissível o convite para correcção (conforme pretende o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto), visto o aperfeiçoamento previsto naquela última norma não permitir a modificação do âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (nº 4 do mesmo artigo).
Assim, perante tal omissão, a questão atinente à impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada suscitada no recurso não será conhecida por este tribunal de recurso.
Passemos à análise da segunda questão e que se refere ao princípio do in dubio pro reo, cuja violação o recorrente invoca.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova. Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Ensina o Prof. Figueiredo Dias, sobre o princípio in dúbio pro reo: «À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova — não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) — tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
Como se tem dito repetidas vezes, a violação do princípio in dubio pro reo ocorre quando, após a produção e a apreciação dos meios de prova relevantes, o julgador se defronte com a existência de uma dúvida razoável sobre a verificação dos factos e, perante ela, decide “contra” o arguido. Não se trata, pois, de uma dúvida hipotética, abstracta ou de uma mera hipótese sugerida pela apreciação da prova feita pelo recorrente, mas de uma dúvida assumida pelo próprio julgador.
Temos, pois, que a dúvida que fundamenta o apelo ao princípio in dúbio pro reo não é qualquer dúvida, devendo ser insanável, razoável e objectivável.
Em primeiro lugar, deverá ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve todo o empenho no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trate de uma dúvida racional e argumentada.
Finalmente, deverá ser objectivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjecturas e suposições.
Não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal recorrido não teve e devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dubio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Haverá violação do princípio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante essa dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece [Ac. STJ de 27.5.2010 e de 15-07-2008; e Ac. RP de 22.6.2011, 17.11.2010, 2.12.2009, 9.9.2009 e de 11.1.2006, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e resultando esse juízo do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto (Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa, www.dgsi.pt/jstj).
Ora, in casu, a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127º do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, não só de motivação objectiva segundo as regras da vida e da experiência, e sem que se vislumbre que na apreciação da prova o tribunal tenha incorrido em qualquer erro lógico, grosseiro ou ostensivo.
Parece-nos claro, em face do que o tribunal deixou extravasado na sentença, que logrou convencer-se e convencer-nos da verdade dos factos, que deu como provados “para além de toda a dúvida razoável”.
A decisão em apreço baseia-se num juízo de certeza (independentemente do sentido da mesma), não em qualquer juízo dubitativo. É o que dela resulta com clareza.
Ou seja, em momento algum a decisão impugnada revela que o tribunal recorrido tenha experimentado uma hesitação ou indecisão em relação a qualquer facto, no que concerne ao crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º do Código Penal, imputado ao recorrente e pelo qual vem condenado pelo tribunal recorrido. Ao invés, o tribunal a quo afirma convictamente a matéria dada como provada. E do conhecimento que sobre tal decisão tomámos, igualmente concluímos que a mesma é linear e objectiva, cumpre os pressupostos decorrentes do princípio da livre apreciação da prova [artigo 127.º, do Código de Processo Penal] e não acolhe espaço para dúvidas ou incertezas relevantes.
Nada há, pois, a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação da convicção do tribunal, sendo patente a inexistência de quaisquer motivos para se falar na invocada violação do princípio do in dubio pro reo e do disposto no artigo 32º da CRP.
Improcede, pois, também, este fundamento do recurso.
Aqui chegados e, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada e como não provada, cumpre enquadrar juridicamente a conduta do recorrente.
Há, pois que valorar jurídico-penal os factos provados, considerando que, segundo alega o recorrente, eles não permitem concluir pela verificação dos elementos do tipo objectivo do ilícito do artigo 152.º do Código Penal, podendo, isso sim, subsumir-se às previsões incriminadoras dos artigos 143.º (ofensa à integridade física simples) e 181º (injúria) do Código Penal.
Por outro lado, a ter-se como verificado o crime de violência doméstica, há que analisar se não ocorre a agravante do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal, conforme defende o recorrente.
A questão (do correcto enquadramento jurídico-penal dos factos) mereceu adequado tratamento na sentença recorrida e por isso é desnecessário acrescentar muito mais ao que já foi dito.
Se não vejamos.
Dispõe o artº 152.º do Código Penal (vigente à data e actual):
“1. Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.° grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
(…)
O crime em causa pressupõe uma determinada relação entre os sujeitos activo e passivo, e assim a vitima, ofendido, lesado ou sujeito passivo de tal crime, tem de revestir numa relação com o agressor/ arguido a qualidade:
- de cônjuge ou ex-cônjuge;
- pessoa com quem o arguido mantenha ou tenha mantido uma relação análoga á dos cônjuges (ainda que sem coabitação), situação que se traduz:
a) na união de facto entendida como comunhão de mesa, cama e habitação, ou
b) numa situação idêntica à de união de facto com comunhão de mesa e cama, mas sem coabitação, no fundo fazendo vida em comum (mas não habitando juntos), ou formando um casal;
E de forma mais abrangente, no acórdão da Relação de Coimbra de 27/2/2013, disponível em www.dgsi.pt/jtrc entende-se que a existência e manutenção por parte de uma pessoa casada de uma relação paralela com outra pessoa (mas sem coabitação), configura uma relação análoga à dos conjugues, situação que até a existência de um relacionamento amoroso poderia preencher desde que seja não apenas estável mas também que se aproxime da relação conjugal de cama e habitação - Ac. TRC de 24-04-2012 in www.dgsi.pt/jtrc., devendo no fundo para preencher a qualidade necessária para ser vitima do crime, conduzir-nos a uma situação em que as pessoas envolvidas criaram um projecto comum de vida e se podem relacionar quer sendo namorados, amantes ou sendo cônjuges ou ex-cônjuges.
E não podemos deixar de concordar com a ideia expressa por André Lamas Leite, da exigência de “uma proximidade existencial efectiva”. “Do mesmo passo, meros namoros passageiros, ocasionais, fortuitos, flirts, relações de amizade, não estão recobertas pelo âmbito incriminador do art.152.º, n.º1, al. b).”, ou seja “ter-se-á de provar que há uma relação de confiança entre agente e ofendido, baseada em fundamentos relacionais mais ou menos sólidos, em que cada uma deles é titular de uma «expectativa» em que o outro, por via desse laço, assuma um dever acrescido de respeito e abstenção de condutas lesivas da integridade pessoal do parceiro(a).” - in A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia, Revista Julgar, n.º12 Especial, 2010, ASJP, pág. 52 - ou seja, exista e esteja imbuído de um especial dever relacional onde seja já possível vislumbrar (embora com menor intensidade) os deveres que reciprocamente vinculam os cônjuges como sejam deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência (artºs 1672º Código Civil sem coabitação).
Ora, no presente caso, o arguido manteve com a demandante, inequivocamente, um relacionamento afectivo, não meramente sexual, com carácter de estabilidade, mantendo um projecto de vida em comum, não obstante não existir sempre coabitação, razão pela qual se verifica uma das relações previstas no tipo legal de crime em causa.
Na revisão do Código Penal operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o legislador alargou o âmbito das condutas tipicamente relevantes da violência doméstica, passando a punir mais severamente algumas dessas condutas (com relevo para os casos em que o facto é praticado contra menor ou na presença de menor) e aumentou o número de sanções acessórias.
Discutiu-se, durante largos anos, a questão de saber se os maus-tratos entre cônjuges ou pessoas com um relacionamento análogo supunham necessariamente a reiteração das condutas em causa. Discussão hoje ultrapassada, face à actual redacção do preceito, que afasta expressamente como critério distintivo a reiteração de condutas.
De facto, anteriormente, prevalecia o entendimento de que “maus tratos” tinha de ser uma realidade diversa das ofensas corporais (simples ou qualificadas). Se assim não fosse, estaríamos perante uma incompreensível duplicação de tipificações criminais.
Na verdade, a verificação do crime, não exigindo habitualidade da conduta, reclamava mais que uma acção isolada, pressupunha uma multiplicidade de factos, uma certa reiteração dos comportamentos agressivos do agente (cfr., entre outros, Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 334; na jurisprudência, por todos, o acórdão do STJ, de 30-10-2003, CJ/Acs.STJ, 2003, tomo 3, 208).
Tratava-se de um crime de conduta plúrima, frequente ou repetida num período de tempo limitado, pois como, então, ensinava Tereza Beleza (“Maus Tratos Conjugais: O art.º 153.º, n.º 3 do Código Penal”, edição A.A.F.D.L., 19), “a(s) situação(ões) social(is) típica(s) a que o art.º 153.º se refere é (são) de continuação, de reiteramento, activo ou omissivo”.
No entanto, logo após a reforma do Código Penal operada pelo Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março, surgiu uma corrente jurisprudencial propugnando que, em certos casos, um único acto de agressão seria bastante para se preencher o tipo objectivo do crime de maus tratos (acórdão do STJ, de 14.11.1997, CJ/Acs. STJ, 1997, T. 3, 235).
Continuava a exigir-se que, por regra, o crime se consumava com a prática reiterada de vários actos de agressão (física ou psíquica), desde que entre eles houvesse uma certa proximidade temporal, mas admitia-se que, em casos de especial violência, reveladora de qualidades particularmente desvaliosas (crueldade, malvadez, insensibilidade, vingança, etc.) do agente, uma só actuação agressiva, desde que suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima e evidenciasse grave desrespeito da dignidade da pessoa da vítima (humilhando-a, privando-a da liberdade, forçando-a à prática de actos sexuais, etc.), tratada como objecto do exercício de um certo domínio, seria bastante para se ter como verificados os maus tratos (assim, o acórdão do STJ, de 04.02.2004, acessível em www.dgsi.pt).
Agora, com a referida reforma, prevê-se que, para o preenchimento do tipo legal, a inflição de maus tratos pode concretizar-se de modo reiterado ou não.
Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 465-466) refere: «os “maus tratos físicos” correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os “maus tratos psíquicos” aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”, ocorrendo uma relação de especialidade entre o crime de violência doméstica e “os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, o crime de sequestro simples, o crime de coacção sexual previsto no artigo 163.º, n.º 2, o crime de violação previsto nos termos do artigo 164.º, n.º 2, dependentes previsto no artigo 172.º, n.º 2 ou 3, e os crimes contra a honra”.
No entanto, se o crime de violência doméstica é punido mais gravemente que os ilícitos de ofensas à integridade física, ameaças, coacção, sequestro, etc., e se é distinto o bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora, então, para a densificação do conceito de maus tratos não pode servir toda e qualquer ofensa.
Segundo Augusto Silva Dias (“Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física”, AAFDL, 2.ª edição, 2007, pág. 110), com o crime tipificado no art.º 152.º do Código Penal protege-se a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana em contextos de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, estreita relação de vida e relação laboral.
Taipa de Carvalho (in “Comentário….”, Loc. Cit. 332) refere que “o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, estando “na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana” a ratio do artigo 152.º do Código Penal.
Podemos, pois, dizer que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física, psíquica e mental e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.
Acolhido o entendimento de que o tipo legal (de violência doméstica) não exige reiteração de acções ofensivas, também é certo que um único acto ofensivo só consubstanciará um “mau trato” se se revelar de uma intensidade tal, ao nível do desvalor (quer da acção, quer do resultado), que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – a saúde física, psíquica ou emocional -, pondo em causa a dignidade da pessoa humana.
Conforme afirma Plácido Conde Fernandes (“Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal”, in Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305), não havendo razão para «alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral”, também se mantém válida a asserção de que “a dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa”.
É a exigência de especial gravidade da conduta maltratante que se acentua no acórdão da Relação de Lisboa, de 07.12.2010 (disponível em www.dgsi.pt), de que se transcreve o respectivo sumário:
“I - O tipo de crime de «violência doméstica» do art. 152º do C. Penal antes da reforma operada pela Lei nº 59/2007 designado como crime de «maus tratos» visa punir criminalmente os casos mais chocantes de maus tratos em cônjuges ou em pessoa em situação análoga. Pune-se um tratamento cruel, excessivo, sem respeito pela dignidade do companheiro, tudo com aproveitamento de uma autoridade do agente que lhe advém do uso e abuso da sua força física.
II – Com ele se visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo agente, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano”.
Também no acórdão desta Relação, de 19.09.2012 (acessível em www.dgsi.pt) se refere que “… admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastará para integrar o crime quando assuma uma intensa crueldade, insensibilidade, desprezo pela consideração do outro como pessoa, isto é, quando o comportamento singular só por si é claramente ofensivo da dignidade pessoal do cônjuge”.
No mesmo sentido o acórdão do STJ, de 06.04.2006 (C J/Acs. STJ, 2006, T. 2, 166), no qual se salienta não bastarem “as meras ofensas à integridade física” e que é indispensável “que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado”.
Ora, se é certo que se pode considerar que algumas (outras não) das acções levadas a cabo pelo arguido, singularmente consideradas, não assumem a especial gravidade do tipo de violência doméstica, não é menos certo que a reiteração de actos de agressão (física e psíquica), inegavelmente, consubstancia a prática desse ilícito penal.
Efectivamente, atenta a factualidade definitivamente assente, ficou demonstrado que o arguido, durante a relação de namoro que manteve com a demandante e após tal relação ter cessado, sendo que ambos viveram cerca de três meses em condições análogas às dos cônjuges, agrediu física e psicologicamente, injuriou e ameaçou a mesma.
Conforme se refere na sentença em crise “ …afigura-se que foram assumidos pelo arguido comportamentos com um carácter violento, face à fraca motivação, ao modo de execução e ao contexto em foi praticado, idóneo a reflectir-se negativamente sobre a personalidade da demandante, sobretudo quando conjugado com os demais comportamentos assumidos pelo arguido e igualmente demonstrados.
Por outro lado, estão em condições de serem qualificados como maus tratos psíquicos, os insultos, as ameaças, as críticas, os comentários destrutivos, achincalhantes ou vexatórios, a sujeição a situações de humilhação, as perseguições, os telefonemas, as comunicações e as esperas inopinadas.
Ora, no presente caso, ficou demonstrado que o arguido, quer durante quer após a cessação da relação de namoro que manteve com a demandante, nesta última situação como forma de desagrado pelo fim daquela, com o qual não se conformou, passou a injuriar, ameaçar e coagir a assistente, humilhando-a, perseguindo-a e fazendo-lhe esperas.
(…)
… todos os actos praticados pelo arguido estão intimamente ligados à relação de proximidade existencial de partilha que se estabeleceu entre ele e a demandante, tendo sido praticados por causa dela, parte deles em momento temporal em que a mesma era actual e outra parte em momento temporal em que a mesma já era anterior.
Por outro lado, todos os actos praticados pelo arguido são objectivamente idóneos a pôr em causa o desenvolvimento da personalidade da demandante, a sua integridade pessoal, a sua dignidade de pessoa humana e a sua saúde, de forma ainda mais grave, em virtude, precisamente, da relação de confiança que existiu entre o arguido e a demandante por força da vivência íntima existencial que estabeleceram”.
Com tal comportamento, agredindo fisicamente a ofendida/demandante da forma como agrediu, desprezando a sua vontade, querendo forçá-la a reatar uma relação, injuriando-a e ameaçando-a gravemente e assim maltratando o corpo e a saúde física e psíquica daquela, violando a liberdade de determinação, a tranquilidade e a segurança a que a ofendida tinha direito, o arguido/recorrente atingiu, intoleravelmente, o núcleo essencial do bem jurídico protegido pela incriminação.
Soçobra, pois, a tese do recorrente, que cometeu, efectivamente, um crime de violência doméstica.
Tal como soçobra a tese do arguido no que se refere à (não) verificação da circunstância modificativa agravante prevista no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
Como vimos, para que aqui se possa falar em conduta efectivamente maltratante exigida na descrição típica do artigo 152.º do Código Penal, terá de se fazer uma valoração conjunta dos factos, pois só com a consideração da globalidade desses factos poderemos dizer que o crime de violência se mostra perfectibilizado.
Segundo o n.º 2, do art.º 152.º do Código Penal é agravante do crime a violência exercida perante menor, no domicílio da vítima, próprio ou comum ao agressor.
São situações em que se denota uma necessidade de tutela acrescida, por imperativo ético em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional de protecção da inviolabilidade do domicílio e da vida privada, face à consciência de que é no domicílio que se multiplicam as agressões a coberto de uma certa sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e pela ausência de testemunhas, bem como de protecção de vítimas indirectas. Não se exigindo que a violência seja exercida perante menor e simultaneamente no domicílio da vítima, próprio ou comum ao agressor.
Ora, face ao exposto e atenta a matéria de facto provada, ter-se-á que concluir que um dos factos – o ocorrido no dia 28.06.2012 – foi praticado perante um filho menor da demandante, razão pela qual se verifica a aludida agravação.
Deste modo, e tratando-se de crime único, embora de execução reiterada, é objectiva e subjectivamente imputável à conduta do arguido a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do Código Penal.
Aqui chegados, importa analisar a última das questões suscitadas e verificar se estão preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
Conforme é consabido são cinco os elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual: facto voluntário do agente; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano – cfr. artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.
E, considerada a factualidade assente, não restam dúvidas de que tais pressupostos se encontram preenchidos.
De facto, considerando a matéria considerada provada dúvidas não existem de que o recorrente/demandado praticou por acção um facto voluntário já que era passível de controlo por parte do mesmo, sendo antijurídico ou contrário ao direito, porque violador de direitos individuais de outrem e, assim, ilícito.
Ora, uma vez que o demandado podia e devia ter agido de outra forma, a sua conduta é ético-juridicamente censurável e, assim, culposa, tendo actuado com dolo directo.
A demandante invocou que em consequência da conduta do demandado teve danos de ordem não patrimonial, o que ficou demonstrado.
É certo que não basta a demonstração dos danos sofridos, tornando-se necessário imputar objectivamente tais eventos danosos à conduta do lesante.
O princípio geral vigente nesta matéria é o prescrito no art. 562º do Código Civil, nos termos do qual «Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação», devendo dar-se preferência, sempre que possível, à restituição natural (art.566º, n.º 1, Código Civil). Quando «não seja possível, não reparar integralmente os danos ou seja excessivamente oneroso para o devedor», deve fixar-se uma indemnização em dinheiro.
Por outro lado, estabelece o art. 563º do Código Civil que “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.”
Tal normativo consagra a doutrina da causalidade adequada, sendo que segundo esta teoria, causa, há-de ser toda a condição que, segundo as máximas da experiência, a normalidade do acontecer e os conhecimentos especiais do agente é, em concreto e em abstracto, idónea a produzir o resultado verificado. Essencial é que o facto seja condição do dano, que o facto constitua em relação ao dano uma causa objectivamente adequada.
Determinados os danos de que o facto praticado pelo demandado foi causa adequada, sobre este impende a obrigação de os reparar, que terá como escopo essencial, nos termos do art.º 562.º do Código Civil, a reconstituição da situação que existiria, se o facto não se tivesse verificado. O art.º 566.º, n.º 1, do Código Civil estabelece como regra a reparação do dano mediante reconstituição natural.
O cálculo desta indemnização em dinheiro deve ser feito nos termos do nº2 do mesmo art. 566º, ou seja, deve achar-se «a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal (situação real), e a que teria nessa data se não existissem danos (situação hipotética)». Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, «Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados».
Por fim, também com interesse, o art. 496º do Código Civil que regula a obrigação de indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
No domínio dos danos não patrimoniais, atendendo a que a reconstituição natural não é possível, como não o é a tradução em números do volume das dores, humilhações, vergonhas, mágoas e desilusões, o montante da indemnização é fixado equitativamente, nos termos do artigo 496º, n.º 3, do Código Civil, devendo o juiz procurar um justo grau de «compensação».
Ora, no caso em apreço, tendo-se provado que o arguido actuou conforme o descrito, agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, sendo que em consequência da conduta do arguido, a demandante se sentiu com medo, inquieta, envergonhada, magoada, desalentada, vexada e humilhada, é certo que se verificam todos os elementos constitutivos da responsabilidade extracontratual, pelo que forçoso é concluir que o demandado é o único responsável pela produção dos danos em causa, constituindo-se assim na obrigação de indemnizar a lesada.
Face ao exposto bem andou o tribunal a quo ao condenar o recorrente a indemnizar tais danos não patrimoniais.
Improcede, desta forma, na totalidade, o recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, mantendo integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
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Porto, 10 de Setembro de 2014
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva