Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1743/11.9TAGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
INJÚRIA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CRIME PARTICULAR
Nº do Documento: RP201301301743/11.9TAGDM.P1
Data do Acordão: 01/30/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nada impediria, mesmo sem observância dos regimes previstos pelos art. 358° e 359° do CPP, a condenação do arguido pelos factos e qualificação jurídica já contidos, como um "minus" [injúria], nos factos e qualificação jurídica por que o arguido vinha acusado [violência doméstica].
II - Tratando-se, porém, de um crime de natureza particular e uma vez que, em momento oportuno, não foi deduzida acusação particular, impõe-se a absolvição do arguido também quanto a este crime.
III - Se o assistente tivesse acompanhado a acusação pública [art. 284º do CPP] poderia considerar-se que esse acompanhamento contida implicitamente a acusação pela prática de crimes de injúria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 1743/11.9TAGDM.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – A assistente B… veio interpor recurso da douta sentença do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar que absolveu C… da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a) e nº 2, do Código Penal e condenou este a pagar-lhe a quantia de dois mil euros a título de indemnização de danos não patrimoniais.

São as seguintes, em síntese, as conclusões da motivação do recurso:
- verifica-se manifesta contradição entre a decisão absolutória do arguido e o facto de este ter sido condenado a pagar à assistente e demandante uma indemnização;
- a factualidade provada integra a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), e nº 2, do Código Penal;
- mesmo que assim não se entenda, tendo o Tribunal de primeira instância alterado a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, considerando que estamos perante a prática de um crime (de natureza particular) de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal, deveria tal alteração ter sido comunicada ao Ministério Público, nos termos do artigo 359º do Código de Processo Penal, e deveria a assistente ter sido, depois, notificada para deduzir acusação particular, nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal (sob pena de ser cerceado o seu direito de deduzir tal acusação); e não ter sido o arguido absolvido por falta dessa acusação

Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal da primeira instância pugnou pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, onde alega que a sentença recorrida deverá ser anulada e ordenar-se o reenvio do processo com vista à reabertura da audiência para, em face da verificada alteração da qualificação jurídica dos factos provados (que constitui a alteração prevista no artigo 1º, f), do Código de Processo Penal), factos antes integradores do crime (público) de violência doméstica e agora do crime (particular) de injúria, se cumpra o artigo 359º do Código de Processo Penal. Pugna, pois, pelo provimento do recurso quanto a este aspeto.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se se verifica, ou não, contradição entre a decisão absolutória do arguido e o facto de este ter sido condenado a pagar à assistente uma indemnização;
- saber se a factualidade provada integra, ou não, a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), e nº 2, do Código Penal;
- saber se, tendo o Tribunal de primeira instância alterado a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, considerando que estamos perante a prática de um crime (de natureza particular) de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal, deveria, ou não, tal alteração ter sido comunicada ao Ministério Público, nos termos do artigo 359º do Código de Processo Penal, e deveria a assistente ter sido, depois, notificada para deduzir acusação particular, nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal, e não ter sido o arguido absolvido por falta dessa acusação

III – A fundamentação da douta sentença recorrida é do seguinte teor:

«(…)
2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados (com interesse para a decisão da causa):
Da acusação:
1. O arguido e B… foram casados um com outro entre 19 de Julho de 1997 e 19 de Julho de 2010, data em que se divorciaram.
2. Do casamento nasceram duas filhas, D… e E…, ambas menores.
3. O arguido foi condenado no Proc. 190/10.4PBGDM do 1º juízo criminal do Tribunal de Gondomar, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 4 meses, subordinada à frequência de um programa para agressores de violência doméstica, pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artº 152º, nº 1, alª a) e nº 2 do CP, praticado contra a aqui assistente, por sentença proferida em 13/7/2011 e transitada em julgado em 2/8/2011.
4. No dia 21 de Janeiro de 2011, o arguido abeirou-se da assistente quando esta se encontrava a jantar no restaurante do pavilhão de hóquei em patins de …, na companhia de uma das filhas, e dirigiu-lhe os seguintes epítetos: “vaca, puta, porca, mentirosa, esgoto, cabra” e disse-lhe “vais ser montada”.
5. Desde que se divorciaram, em 19 de Julho de 2010, o arguido enviou um número não apurado de mensagens para o telemóvel de B…, com os insultos já descritos.
6. Ao proferir as expressões acima descritas, pretendia o arguido ofender a honra e consideração da ex-mulher, objectivo que conseguiu alcançar.
7. Actuou o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento é proibido e punido por lei.
Mais se provou que:
8. Num domingo do mês de Janeiro de 2011, nas bancadas do pavilhão de hóquei em patins de …, o arguido aproximou-se da assistente e dirigiu-lhe palavras semelhantes às que constam do ponto “4”.
9. O arguido, para além da condenação referida em “3”, não tem outras condenações registadas no seu CRC.
10. Nas ocasiões referidas em “4” e “8”, a intenção do arguido ao deslocar-se ao pavilhão de … era a de ver as suas filhas e estar com elas.
11. O arguido está desempregado desde 10/11/2011, tem um subsídio de desemprego no valor de €645,00, está habilitado com o 9º ano de escolaridade.
12. O arguido observou trajectória desenvolvimental na qual se destaca a desestruturação familiar do núcleo parental e a progressiva desvinculação e afastamento afectivos destas figuras. Apresenta percurso regular e consistente a nível profissional, com investimento nesta valência (com empregos simultâneos), de forma a garantir a concretização de alguns projectos familiares. A nível conjugal, após 13 anos de coabitação e no decurso do agudizar das dimensões conflituais, acopladas à problemática etílica do arguido, concretizou-se a ruptura conjugal há dois anos. Globalmente, prevalecem alguns indicadores de risco, associados à sua dificuldade em integrar o luto das circunstâncias da separação. Não obstante, parecem resultar da avaliação efectuada alguns factores de protecção fundamentados no seu actual registo crítico evolutivo, assim como no seu processo de adesão ao acompanhamento na equipa da DGRS, designadamente nas valências de tratamento e acompanhamento psicoterapêutico para os seus hábitos etílicos, bem como na frequência do PAVD.
Do pedido de indemnização civil:
13. As palavras referidas em “4” e “8” foram ouvidas por várias pessoas, em número seguramente não inferior a 10.
14. Com tais factos, a assistente, que é bancária, sentiu-se enxovalhada e envergonhada, tendo os mesmos sido motivo de conversa por parte de terceiros.
15. A assistente é reputada como pessoa idónea e responsável.

Factos não provados:
1. Em meados de Dezembro de 2010, no …, no Porto, o arguido encontrou-se com B… e chamou-lhe “vaca, puta, porca, mentirosa, esgoto, cabra”.
2. No dia 3 de Fevereiro de 2011, o arguido abeirou-se da assistente quando esta se encontrava a jantar no restaurante do pavilhão de hóquei em patins de …, na companhia de uma das filhas, e dirigiu-lhe os seguintes epítetos: “vaca, puta, porca, mentirosa, esgoto, cabra” e disse-lhe “vais ser montada”.

3. MOTIVAÇÃO
Para a formação da sua convicção o tribunal considerou as declarações do arguido e da assistente, os depoimentos das testemunhas, os documentos juntos aos autos, nomeadamente,
- assento de nascimento de fls. 35;
- fotocópias de cartão de cidadão de fls. 36 e 37;
- acta de conferência de acção de divórcio, de fls. 39 a 40;
- certidões de fls. 54 a 64 e 187 a 202;
- CRC de fls. 143 e 144;
- relatório social de fls. 267 a 272;
- declarações médicas de fls. 274 e 275;
Tudo caldeado pelas regras da experiência.
*
Em primeiro lugar cabe deixar o reparo que, não obstante o crime de violência doméstica ser de execução continuada, pluri-ocasional ou exaurido, não dispensa a densificação da factualidade que lhe dê causa. Ou seja, não pode, em jeito de pesca de arrasto, fixar-se uma baliza temporal e, dentro dela, lançar-se uma série de generalidades, esperando que o julgamento traga factos concretos à rede.
Por isso, e embora se perceba que, pela sua natureza, este tipo de crime envolva uma maior dificuldade de localização temporal das condutas e do relacionamento de cada uma delas com determinada data específica, não pode, por clara violação do disposto no artº 283º, nº 3, alª b) do CPP e, de uma forma mais geral, por contender com o próprio direito de defesa do arguido, referir-se, como se tratasse de factos concretos e de um pedaço de vida determinado, que «desde Novembro de 2010, sempre que o arguido se encontra com B… apelida-a de “vaca, puta, porca, mentirosa, esgoto, cabra” e diz-lhe “vais ser montada”. Aproveitando os encontros com a denunciante, que necessariamente acontecem por causa das filhas, o arguido não se coíbe de chamá-la pelos nomes descritos».
Por isso, o objecto do processo terá de circunscrever-se aos factos relatados que tenham o mínimo apego a uma data, local ou outro qualquer elemento que, concretamente, permita determiná-los, ou seja, aos ocorridos em meados de Dezembro de 2010, no …, no Porto, nos dias 21/1/2011 e 3/2/2011, no pavilhão de hóquei em patins …, as mensagens escritas enviadas desde 19/7/2010 e aquele que foi comunicado à defesa antes do início da leitura da presente sentença.
*
F…, no …, Porto, em meados de Dezembro de 2010:
O arguido confirmou uma discussão, mas não nos moldes que se encontram relatados na acusação, nomeadamente, quanto ao proferimento daquelas injúrias, o que negou assertivamente, censurando-a apenas pelo facto de não a deixar ver as filhas.
A assistente, dizendo que o arguido lhe fez “uma cena indelicada” (sic), descreveu, depois, os epítetos que, durante a mesma, aquele lhe dirigiu: “puta, vaca, era montada e esgoto”. Disse ainda que os psicólogos assistiram ao que se passou.
Porém, estes- G… e H…-, ouvidos em audiência, referiram, de facto, ter assistido a uma discussão, mas não confirmaram, antes até o desmentiram, que tenha havido aquele tipo de linguajar.
Assim, atento o facto do arguido e da assistente, por terem interesse directo no sentido da decisão a proferir, poderem ser menos objectivos ou independentes nas suas declarações, o tribunal valorou preferencialmente os depoimentos daquelas duas testemunhas, porque absolutamente estranhos ao desfecho do processo e não emocionalmente vinculados a qualquer dos interessados.
Por isso, considerou-se não provada esta factualidade.

Episódio ocorrido no dia 21/1/2011, no restaurante-bar do pavilhão de …:
- O próprio arguido reconheceu que, no dia em questão, se dirigiu ao pavilhão de … para cumprimentar as filhas e, pretendendo beijar a filha que se encontrava no restaurante-bar daquele complexo desportivo, foi impedido pelo actual companheiro da assistente de ali entrar, tendo-se exaltado e, nessa sequência, dirigiu-lhe os impropérios que constam dos factos provados.
A assistente, contextualizando o sucedido, relatou o episódio tal qual consta da acusação.
Havendo já uma sintonia assinalável entre o arguido e a assistente, as testemunhas I…, J…, K…, L…, M…, amigos da assistente que se encontravam naquele estabelecimento por os seus filhos também terem treino de hóquei em patins, corroboraram, de forma genericamente coincidente entre si e com unidade de sentido com o que havia dito a assistente, os factos constantes da acusação.

Episódio ocorrido no dia 3/2/2011, no restaurante-bar do pavilhão de …:
Este episódio ficou absolutamente por provar.
Desde logo, por, o dia 3/2/2011 ser uma terça-feira e todas as testemunhas acima referidas terem dito que os treinos são à sexta-feira e os jogos ao domingo. Ou seja, às quintas-feiras não havia motivo para que a assistente e as filhas estivessem naquele local. Pese embora tenha sido aventada a possibilidade de uma mudança pontual do dia do treino, em virtude de uma mudança de escalão da filha do arguido e assistente, o certo é que nunca foi concretizado se, de facto, houve algum episódio numa quinta-feira.
Ademais, as testemunhas acima enunciadas referiram-se apenas a um episódio ocorrido numa sexta-feira (que se concluiu ser o do dia 21/1/2011), não havendo, por isso, sufrágio para este concreto episódio.
Isto porque, por um lado, o arguido referiu de forma peremptória- convincente, até-, que depois do dia 21/1/2011 não se passou mais nada de anormal, ao passo que a arguida não soube concretizar se alguma situação de relevo ocorreu nessa data.

Episódio ocorrido num domingo do mês de Janeiro de 2011, nas bancadas do pavilhão de …:
Neste ponto, valoram-se as declarações da assistente que, por espontâneas e pontuadas por detalhes de relevo, convencem o tribunal da veracidade do relato efectuado. Ademais, esse episódio foi confirmado pelas testemunhas K… e N… (esta, porém, sem se recordar das palavras exactas proferidas, só sabendo que a assistente ficou incomodada).
Acresce que a testemunha O…, responsável pela equipa de hóquei em patins onde jogavam as filhas do arguido e da assistente, referiu que, em determinada ocasião, que pela descrição que fez coincide com a acima relatada, lhe vieram pedir que interviesse porque o arguido estava a maltratar a ofendida.

Mensagens telefónicas:
O arguido admitiu a troca de SMS “menos agradáveis” (sic), assentindo ter-lhe chamado “vaca”, “puta” e “esgoto”.
A assistente referiu ter recebido várias mensagens com teor injurioso, que faziam dela uma prostituta.
Ambos admitiram que a maior frequência de mensagens foi enviada antes do anterior julgamento, tendo, depois dessa data, diminuído a intensidade.
Por isso se considerou provado o envio de várias mensagens.
*
Quanto ao pedido de indemnização civil:
Neste ponto valora-se primacialmente o declarado pela própria assistente, por ser a visada com os impropérios referidos na acusação e, por isso, ser quem mais habilitada estava a descrever os seus efeitos, o que fez, aliás, de forma que reputamos de isenta.
Para além disso, todas as testemunhas I…, J…, K…, L…, M… e O…, amigos ou conhecidos da assistente, referiram o estado anímico em que ela se sentiu depois de tais factos.
Quanto ao número de pessoas que a eles possam ter assistido, não tendo a assistente sido muito precisa na sua quantificação ou estimativa, contaram-se as testemunhas que depuseram e que tinham conhecimento presencial do sucedido, somando-se outras que, não tendo sido arroladas como testemunhas, foi referido terem estado presentes.
4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
O artº 152º nº 1, alª a) do CP preceitua que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privação da liberdade ou ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
É certo que a incriminação efectuada em sede de acusação refere a alª b) da norma em questão. Contudo, e salvo o devido respeito, fá-lo incorrectamente. E isto porque a alínea em questão diz respeito a “pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges”. Ora, o arguido e a assistente foram casados, cônjuges, pelo que a sua relação não era análoga à dos cônjuges, antes a de verdadeiros cônjuges. Portanto, a conduta descrita na acusação nunca integraria o artº 152º, n1, alª b), mas sim a alª a) da norma em questão.
Será, por isso, à luz desta incriminação que a factualidade assente vai ser analisada.
*
O crime de maus tratos conjugais foi autonomizado no Código Penal de 1982, no nº3 do, então, art. 153º, que tinha por epígrafe Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou cônjuges.
Com a reforma operada pela Lei nº 59/2007 de 4 de Setembro o crime de Maus Tratos e Infracções de Regras de Segurança deixou de existir tal como o conhecíamos, passando a espraiar-se em três artigos diferentes:
- o 152º, sob a epígrafe Violência Doméstica, passou a contemplar as situações antes abrangidas pelos nºs 2 e 3;
- o artº 152º-A, sob a epígrafe Maus Tratos, passou a prevenir os casos antes previstos no nº1;
- o artº 152º-B, sob a epígrafe Violação de Regras de Segurança, passou a incidir sobre os casos antes previstos no nº4.
No que concerne especificamente aos maus tratos a cônjuge, verifica-se que a facti species do pregresso artº 152º, nº2 passou totalmente para a nóvel figura da violência doméstica, que passou a ser também aplicável a condutas que visem o ex-cônjuge. Não obstante este novo ilícito ter um âmbito de aplicação mais compreensivo, o certo é que, no seu seio, contempla todos os elementos típicos anteriormente existentes (cfr. a alª a) do actual artº 152º e o nº2 na pregressa redacção).
A criminalização dos maus tratos do cônjuge, ex-cônjuge ou de quem conviver em condições análogas às dos cônjuges “foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família (…) não mais podia(m) constituir feudo(s) sagrado(s), onde o direito penal se tinha de abster de intervir” – Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 330.
O aparecimento deste tipo de crime no Código Penal de 1982, tem como fundamentos, além das experiências estrangeiras, a consciencialização de que a violência frequente entre pessoas relacionadas, em regra dependentes e fragilizadas, é um grave problema social– vide Catarina Sá Gomes, “O Crime De Maus Tratos Físicos E Psíquicos Infligidos Ao Cônjuge Ou Ao Convivente Em Condições Análogas Às Dos Cônjuges” , AAFDL, Lisboa, 2002, p. 13.
Tal como refere Taipa de Carvalho (loc. cit. p. 332), o presente tipo de ilícito visa a protecção da pessoa individual e a sua dignidade humana, reconduzindo-se o bem jurídico protegido à saúde do visado– bem jurídico complexo que abrange tanto a saúde física, como a psíquica e mental.
O que se protege é o "eu" pessoal, ou a dignidade entendida como identidade da pessoa, sendo a família o marco conjuntural ou delimitador, propiciador do desenvolvimento de uma agressão permanente e tão intrínseca enquanto espaço de convivência onde se estabelecem umas especiais e estreitas relações. Por conseguinte, nem se respeita a pessoa enquanto tal, nem o desenvolvimento do grupo familiar, tanto global como individualmente entendidos- Maria Del Castillo Falcòn Caro, "Malos tratos habituales a la mujer", J.M. Bosch Editor, p. 151.
O preceito legal em questão abrange as mais variadas espécies de condutas, que até poderiam sobreviver como crimes autónomos se não estivessem unificadas na unidade de sentido que lhes é conferida pela figura jurídica prevista na norma de que vimos tratando. Como é dito no Acórdão da Relação do Porto de 05-11-2003, o crime de maus tratos inclui na sua descrição típica uma pluralidade de actos parciais.
«A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único». Cfr. Acórdão do STJ de 04-06-2003, processo n.º 03P1528, publicado no sítio www.dgsi.pt.
O tipo subjectivo de ilícito pressupõe a existência do dolo.
*
Atentando no elenco dos factos provados, divisamos vários episódios de molestação psicológica da arguida, traduzidos nos insultos que lhe foram repetidas vezes dirigidos, seja oralmente, seja através de mensagens escritas.
Contudo, a questão que se coloca é se tais episódios revestem a gravidade suficiente para serem taxados de violência doméstica, se possuem aquele plus em termos de perversidade ou crueldade que a sua tutela já não possa ser assegurada pelo tipo de ilícito parcelar.
Conforme se resume no Ac. RP de 28-09-2011, Proc. 170/10.0GAVLC.P1 (in www.dgsi.pt), o objectivo da lei é, neste caso, assegurar uma “tutela especial [e] reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pela sua caracterização e motivação [geralmente associada a comportamentos obsessivos e manipuladores] constituam uma situação de maus tratos, que é por si mesma indiciadora do perigo e da “ameaça de prejuízo sério frequentemente irreversível” [Nuno Brandão, pág. 18] para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima, mesmo que não se chegue a produzir um resultado lesivo [crime de perigo abstrato contra a saúde – solução também defendida em Espanha, por Garcia Martín e García Álvarez Delgado]… Não é por o agente ter atingido uma ou várias vezes o outro elemento do casal que, necessariamente, se configura uma situação de maus tratos que leve a condenação pelo crime de Violência doméstica do art. 152.º, do CP. …
Nem toda a ofensa representa maus tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável. A ocorrência deste crime pressupõe uma agressão capaz de afectar a dignidade pessoal do cônjuge enquanto tal. (…)
O que conta é saber se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como “maus tratos”. Pois se assim for, e ainda que não tenha chegado a produzir-se um dano efectivo, é de admitir a existência de um perigo para a vida e para a saúde da vítima, que o legislador, consciente do padrão de comportamento deste tipo de agressores (por regra, intensifica o caudal de violência ou de manipulação da vítima ao longo do tempo), procura protegê-la por antecipação e de forma reforçada.
Um potencial de agressão que supere [transcenda] a protecção oferecida pelos crimes de Ofensa à integridade física simples e de Injúria, previstos pelos artigos 143.º e 181.º, do CP, na medida em que não descrevem uma situação de maus tratos da qual resultem ou sejam susceptíveis de resultar sérios riscos para a integridade física e/ou psíquica da vítima.
Ou, como se esclarece no Ac. RC de 21/10/2009, Proc. 302/06.2GAFZZ.C1 (in www.dgsi.pt), não são todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do art. 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, isto é, que traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança, desnecessária, da parte do agente.
É uma relação de domínio ou de poder que está aqui em causa.
Plácido Fernandes, em interessante artigo publicado na Revista do CEJ, n.º 8, sobre as Jornadas sobre a Revisão do Código Penal (p. 308), opina, e nós com ele, que, «pese embora a supressão da distinção entre maus-tratos reiterados e intensos operada em processo legislativo, entende-se que um único acto ofensivo – sem reiteração – para poder ser considerado maus-tratos e, assim, preencher o tipo objectivo, continua, na redacção vigente, a reclamar uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana».
No caso dos autos, pareceu notório que o arguido nunca se conformou emocionalmente com o fim da relação conjugal que manteve com a assistente e que, num período de descontrolo posterior ao divórcio, perdia o sentido crítico com relativa facilidade e invectivava de forma soez a sua ex-mulher.
Acresce que, nessa época, o arguido tinha problemas com a bebida, de cujo consumo exagerava.
Finalmente, deve fazer-se notar que nos insultos que foram dirigidos presencialmente, nunca a aproximação à assistente teve esse fim pré-ordenado, antes se desenrolando no âmbito de tentativas de contacto com as suas filhas.
A questão que, mais uma vez colocamos, é a de saber se tais comportamentos revelam o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (Maria Manuela Valadão e Silveira, “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) que fundamentam a especificidade deste crime.
Se isso não acontecer, como é bom de ver, apenas há que aplicar as normas gerais (Ac RG de 17/5/2010, Proc.1379/07.9PBGMR.G1, in www.dgsi.pt).
Ora, pese embora nos pareça uma situação de fronteira, até porque, a estes factos devem juntar-se aquelas que implicaram a condenação do arguido no Proc. 190/10.4PBGDM do 1º juízo criminal do Tribunal de Gondomar, consideramos, contudo, que nos mesmos não sobrevive a particular crueldade ou perversidade capaz de fazer com que uma sucessão de injúrias (que, aliás, em concreto se provou serem apenas duas e algumas mensagens, embora esta, pela discrição que as caratceriza, sejam menos danosas) ascenda, na perspectiva da necessidade de reacção penal, a uma situação de violência doméstica.
Trata-se de um comportamento claramente reprovável. Só que o juízo de censura que a conduta do arguido suscita, nas concretas circunstâncias do caso e por não haver uma situação de domínio emocional de um em face do outro, parece-nos que se compraz com a sua punição a título de cada um dos crimes parcelares, já que lhe falta aquele desvalor ou insensibilidade que, por tão ostensivos e graves, não recebam o devido acolhimento se não no seio do crime de violência doméstica. Ou seja, não nos parece que as injúrias possam ultrapassar as margens que o artº 181º do CP lhes define e transformar-se nos maus tratos que o corpo do artº 152º do mesmo Código exige para a punição a título de violência doméstica.
Terá, por isso, o arguido de ser absolvido do crime de violência doméstica de que vinha acusado.
*
Vejamos, agora, os crimes parcelares.
De acordo com o art.º 181º, n.º1 do Código Penal, a injúria consiste na imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou o dirigir palavras ofensivas da honra ou consideração de outra pessoa.
O bem jurídico protegido por esta norma é a honra.
“A honra é vista (...) como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação e ou consideração exterior”- José Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Vol. I, p. 607.
"Por honra deverá entender-se o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja, a dignidade de cada um. Por consideração deverá entender-se o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja, a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública (Ac. RL de 6 de Fevereiro de 1996, CJ, XXI, Tomo I, p. 156).
Trata-se de uma infracção dolosa, embora não seja necessário um particular “animus injuriandi”, bastando a existência de um dolo genérico.
Para a realização deste tipo de ilícito é suficiente que o autor saiba que está a dirigir palavras cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheias conheça.
Compulsada a matéria de facto adquirida, verifica-se que o arguido se dirigiu à assistente chamando-lhe “vaca, puta, porca, mentirosa, esgoto, cabra”.
Estes vocábulos e expressões são, não cremos que possam persistir dúvidas, atentatórios da honra e bom nome da arguida ao darem a sugestão que a mesma era mulher de vários homens, dissoluta, meretriz, o que, numa sociedade de matriz judaico-cristã é necessariamente apoucador do decoro e bom nome da visada.
Justificariam, por isso, a sua punição, por se encontrarem preenchidos os pressupostos do artº 181º, nº1 do CP.
Contudo, falta um pressuposto objectivo da punição traduzido na não dedução de acusação particular pela assistente, em conformidade como o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Por isso, não poderá o arguido ser perseguido criminalmente pela prática destes crimes, o que aqui expressamente se declara.

5. PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Nos termos do disposto no art. 129º do Código Penal “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.
E nos termos do disposto no artigo 71º do CPP, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, podendo sê-lo em separado nas situações previstas no artigo 72º do mesmo código. Esta indemnização permitirá ao lesado ver-se ressarcido dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. Este artigo consagra o Princípio da Adesão da acção cível à acção penal permitindo, num mesmo processo, conhecer de ambas as responsabilidades geradas pela prática do crime, ou seja a criminal e a civil.
Com base nos factos que consubstanciam o crime de violência doméstica que vem imputado ao arguido, a assistente pediu a sua condenação no pagamento da quantia de €4.000,00 pelos danos não patrimoniais que sofreu.
O princípio geral da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, enunciado no artigo 483º, nº1 do CC, estabelece que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, sendo elementos constitutivos da responsabilidade civil: o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
São, assim, pressupostos da responsabilidade do lesante a existência de um facto ilícito, voluntário e imputável ao arguido que seja consequência directa e adequada da produção dos danos no lesado.
Importa esclarecer, que tendo resultado provados os factos no que concerne às injúrias proferidas e ainda que o arguido não possa ser condenado pela prática dos mesmos por não se poder conhecer deles por falta de acusação particular, a verdade é que nos termos do disposto no art. 377º, nº1, do Código de Processo Penal, a sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado.
Assim e quanto aos danos não patrimoniais, face à análise dos factos provados concluiu-se que a assistente logrou provar que em consequência das condutas do arguido, sentiu-se humilhada e angustiada, estabelecendo-se um nexo de causalidade entre esses danos e a conduta do arguido.
De facto, não restam hoje dúvidas acerca da ressarcibilidade do dano não patrimonial, como claramente resulta do artigo 496º do CC, necessário é que, pela sua gravidade, medida por padrões objectivos, tal dano mereça a tutela do direito, deixando-se de fora os simples incómodos ou meras contrariedades.
As verificadas ofensas à honra, humilhação e vexame pelos insultos proferidos, constituem em si mesmo danos indemnizáveis, não se tratando de meros incómodos ou contrariedades, devendo pela sua gravidade ser compensados nos termos do art. 496º do CC.
Cabe deste modo ao tribunal fixar uma compensação em dinheiro, como postula o nº3 do artigo 496º, do Código Civil, por recurso a critérios de equidade, o que implica, e considerando a remissão aí feita para o artigo 494º, que se haja de entrar em linha de conta com a gravidade do dano, o grau de culpa do agente, a situação económica do lesante e do lesado e outras circunstâncias tidas por convenientes.
A assistente é bancária, tendo tal profissão uma exposição pública que exige um acrescido recato da vida pessoal. Os comportamentos do arguido foram levados a cabo na presença de várias outras pessoas, o que potencia o seu efeito vexatório. Foram palavras altamente ofensivas para uma mulher, bulindo com aspectos do seu “eu pessoal” mais profundo.
Face ao exposto, e tendo também em conta a situação sócio-económica do lesante descrita nos factos provados, entende-se por justa a condenação do arguido/demandado a pagar, a título de compensação à assistente pelos danos não patrimoniais que lhe foram causados com os insultos proferidos, a quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a assistente e recorrente alegar que se verifica manifesta contradição entre a decisão absolutória do arguido e o facto de este ter sido condenado a pagar-lhe uma indemnização. Estaríamos, assim, e embora a recorrente não o diga expressamente, perante o vício previsto no artigo 410º, nº 2, b), do Código de Processo Penal.
Não assiste, porém, razão à recorrente.
Estatui o artigo 377º, nº 1, do Código de Processo Penal que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado. Trata-se de uma regra inspirada em razões de economia processual e de tutela da vítima (neste caso, da própria assistente, demandante e recorrente). Foi ao abrigo desta regra que o arguido, apesar de absolvido, foi condenado no pagamento de indemnização à ora recorrente.
Assim, impõe-se negar provimento ao recurso quanto a este aspeto.

IV 2. – Vem a assistente e recorrente alegar que a factualidade provada integra a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), e nº 2, do Código Penal.
Nos termos do artigo 152º, nº 1, a), do Código Penal, comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo privações de liberdade e ofensas sexuais, ao cônjuge ou ex-cônjuge (alínea a)); a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (alínea b)); e a progenitor de descendente comum em 1º grau (alínea c)).
Haverá que traçar a fronteiro entre este tipo de crime e os de ofensa à integridade física simples (artigo 143º, nº 1, do Código Penal), ameaça (artigo 153º, nº 1, do mesmo Código) ou injúria (artigo 181º, nº 1, do mesmo Código). Não poderemos afirmar que a prática de qualquer destes crimes configura um crime de violência doméstica sempre que a vítima é alguma das pessoas com quem o agente mantém um dos relacionamentos referidos. Não configura um crime de violência doméstica qualquer ofensa à integridade física, qualquer injúria ou qualquer ameaça sempre que a vítima é cônjuge do agente. A prática de algum desses crimes na pessoa do cônjuge não configura necessariamente “maus tratos físicos ou psíquicos”.
A jurisprudência discutiu, durante largos anos, a questão de saber se os maus tratos entre cônjuges ou pessoas com um relacionamento análogo supunham necessariamente a reiteração das condutas em causa. Poderia ser esse o traço distintivo entre os crimes em questão: o carácter reiterado, ou não, das condutas. Mas essa discussão está hoje superada. A definição do tipo de crime em causa, de acordo com a versão actual do Código Penal, afasta deliberadamente esse critério e não exige o carácter reiterado das condutas.
O traço distintivo dependerá da perspectiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), Novembro de 2010, p. 49).
À luz de uma ou outra destas perspectivas, podemos afirmar que a factualidade provada na douta sentença em apreço não configura a prática de “maus tratos físicos e psíquicos” e, portanto, um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), do Código Penal.
Uma vez que estão em causa apenas crimes de injúrias, praticados em duas ocasiões, e também através de mensagens de telemóvel, não pode dizer-se que foi afetada a saúde (mesmo no sentido amplo de saúde física, psíquica, emocional e moral) da assistente ou o livre desenvolvimento da sua personalidade no âmbito da relação interpessoal e familiar que a ligou ao arguido.
Assim, a qualificação jurídica da factualidade provada pela douta sentença recorrida não é merecedora de reparo.
Impõe-se negar provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

IV 3. – Vem a assistente e recorrente alegar, por último, que tendo o Tribunal de primeira instância alterado a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, considerando que estamos perante a prática de um crime (de natureza particular) de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do Código Penal, deveria tal alteração ter sido comunicada ao Ministério Público, nos termos do artigo 359º do Código de Processo Penal, e deveria a assistente ter sido, depois, notificada para deduzir acusação particular, nos termos do artigo 285º do Código de Processo Penal (sob pena de ser cerceado o seu direito de deduzir tal acusação); e não ter sido o arguido absolvido por falta dessa acusação. O Ministério Público junto desta instância, no seu douto parecer, adere a este entendimento.
Vejamos.
O regime do artigo 359º do Código de Processo Penal, de onde decore a eventual comunicação ao Ministério Público para que este deduza a acusação por factos novos (no caso em apreço, a eventual notificação da assistente para deduzir acusação particular por esses factos novos), supõe que estejamos perante uma “alteração substancial de factos”. Nos termos do artigo 1º, f), do Código de Processo Penal, “alteração substancial de factos” é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
Ora, não podemos dizer que estejamos perante uma alteração substancial de factos, que tenha por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso. Os factos imputados ao arguido que poderão integrar a prática de um crime de injúrias estavam já contidos (como um “minus”) nos factos, por que o arguido vinha acusado, integradores da prática de um crime de violência doméstica. Como vem considerando a jurisprudência em casos semelhantes (um crime simples em relação a um crime qualificado, quando não se prova a circunstância qualificativa; um crime de furto em relação ao crime de roubo, quando não se prova o emprego de violência; por exemplo), não estamos perante uma situação a que deva aplicar-se o regime do artigo 359º do Código de Processo Penal (relativo à alteração, substancial de factos), ou mesmo o regime do artigo 358º deste Código (relativo à alteração não substancial de factos e à alteração de simples qualificação jurídica). Tal significa que nada impediria (mesmo sem observância dos regimes desses artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal), a condenação do arguido pelos factos e qualificação jurídica já contidos, como um “minus” nos factos e qualificação jurídica por que o arguido vinha acusado. No caso vertente, tratando-se, porém de um crime de natureza particular (Cfr artigos 181º e 188º do Código Penal), deparamo-nos com um obstáculo de natureza processual que impede tal condenação (foi este o entendimento seguido na douta sentença recorrida) E não será o recurso ao regime do artigo 359º do Código de Processo Penal (concebido para uma situação radicalmente diferente) a forma de contornar tal obstáculo.
De qualquer modo, outro motivo impediria o recurso (pretendido pela recorrente) ao regime do referido artigo 359º. Nos termos do nº 2 deste artigo, a comunicação dos novos factos ao Ministério Público só valerá como denúncia para que este viesse a acusar pelos factos novos (e o mesmo se dirá de uma acusação particular por esses factos novos) se estes forem autonomizáveis em relação aos factos constantes da acusação (o que significa que uma absolvição no processo inicial não impediria, por força do caso julgado, uma condenação pelos factos novos no segundo processo – precisamente porque se trata de factos autonomizáveis). Ora, no caso vertente, não podemos dizer que os factos integradores de um eventual crime de injúria sejam autonomizáveis em relação aos factos integradores do crime de violência doméstica. A absolvição pela prática de factos integradores deste crime impede, por força do caso julgado, uma futura condenação pela prática dos mesmos factos qualificados como crimes de injúria.
A possibilidade de, nestes casos, se recorrer à extinção da instância no primeiro processo (possibilidade outrora sustentada por grande parte da doutrina e da jurisprudência) está hoje vedada pela redação (decorrente da reforma de 2007) do nº 1, in fine, do referido artigo 359º. São razões de proteção da segurança e paz jurídicas do arguido que justificam este regime.
Poderá dizer-se que a opção seguida pela douta sentença recorrida se afasta, devido apenas ao obstáculo processual da natureza particular do crime de injúria, da solução mais justa, mais conforme à verdade material e aos direitos da assistente. Só que não vislumbramos outra opção compatível com o quadro normativo vigente. Este quadro não prescinde da necessidade de dedução de acusação particular pela prática de crimes de injúria. E também não admite alguma forma (que seria justificável de jure condendo) de reformulação da acusação (neste caso, a possibilidade de ser agora deduzida acusação particular) já depois de iniciada a fase de julgamento. Isto justifica-se por um propósito de tutela da segurança e paz jurídica do arguido (propósito também refletido no referido regime do nº 1, in fine, do artigo 359º do Código de Processo Penal), que, para o legislador, pode sobrepor-se à tutela da justiça e da verdade material.
Poderá também dizer-se que a assistente vê cerceado o seu direito de acusação particular pelos crimes de injúria de que terá sido vítima. Nunca deduziu acusação particular pela prática desses crimes porque os factos respetivos foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime (público) de violência doméstica. Ou seja, nunca poderia ter deduzido tal acusação particular. Mas poderia ter acompanhado a acusação pública (nos termos do artigo 284º do Código de Processo Penal) e poderia considerar-se que este acompanhamento continha implicitamente a acusação pela prática de crimes de injúria. Se assim fosse, penso que poderia estar superado o obstáculo processual que impede, no caso vertente, a condenação do arguido pela prática de crimes de injúria. Mas não se verificou esse acompanhamento, pelo que o obstáculo persiste.
Assim, a douta sentença recorrida não é merecedora de reparo
Impõe-se negar provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

A assistente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 515º, nº 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais)

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo-se a douta sentença recorrida.

Condenam a assistente em 3 UCs de taxa de justiça.

Notifique

Porto, 30/1/2013
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Maria Godinho Vaz Pato
Eduarda Maria de Pinto e Lobo