Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
393/16.8T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MADEIRA PINTO
Descritores: SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
PRÉDIO URBANO
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RP20180627393/16.8T8AVR.P1
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 139, FLS 66-78)
Área Temática: .
Sumário: I - Visto o conceito de prédio urbano que nos dá o nº 2 do art. 204ºCC, nele se incluindo os terrenos que sirvam de logradouro ao edifício incorporado no solo, concluímos ser possível constituir servidão legal de passagem sobre os terrenos adjacentes a prédios urbanos se os donos destes não usarem oportunamente do direito de aquisição do prédio alegadamente encravado. Ponto é que o prédio dito dominante, rústico ou urbano, seja encravado, caracterizado o encrave absoluto ou relativo, pois sem prédio encravado não há servidão legal.
II - Constituída uma servidão positiva – como é, decerto, a servidão de passagem, de trânsito ou de acesso – o titular pode praticar certos actos – transitar, passar – correspondendo a esse direito, no proprietário do prédio serviente, a obrigação de não se opor a essa prática, de não a embaraçar: o que este último perde pela constituição da servidão é o direito de se opor a que o titular dela pratique determinados actos, de embaraçar o exercício da servidão. Por isso, quando se pede a declaração da existência daquele direito real menor e a condenação do demandado a não embaraçar o seu exercício, a acção é nitidamente uma actio confessoria.
III - In casu, a autora não pediu a constituição de um direito real de servidão legal de passagem, a ser declarado por sentença, nos termos dos artºs 1550º a 1554º CC e que não poderia fundar-se na usucapião, face ao disposto no artº 1547º, nº2 CC, antes o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião nos termos da causa de pedir exposta na petição inicial- artºs 2º, nºs 1 e 2, 5º, al. a) e 552º, nºs 1, al. d) e e), CPC.
IV - Para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, etc. Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, sendo admissível a sua substituição ou até transformação. A apreciação dos sinais visíveis e permanentes foi tarefa realizada pelo julgador a quo plasmada na fixação da matéria de facto provada e não provada e que aqui ficou confirmada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 393/16.8T8AVR.P1
Relator: Madeira Pinto
Adjuntos: Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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Sumário:
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1-RELATÓRIO:
B... intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C... pedindo a condenação desta a:
a)- reconhecer a existência de uma servidão de passagem de pé e de carro, constituída por usucapião, nos termos descritos na petição inicial, sobre o seu prédio identificado no art. 6.º, a favor do seu prédio identificado no art. 1.º do mesmo articulado e, consequentemente,
b)- abster-se de praticar qualquer ato que impeça, limite ou dificulte o livre exercício daquele direito de passagem de pé e de carro, incluindo nesta última espécie todos os veículos motorizados, e ainda,
c)- no pagamento da indemnização que se vier a liquidar em execução da sentença.
Alegou, para tanto, em síntese, que é dona e legítima proprietária de um prédio rústico de pinhal mato e eucaliptal, sito no ..., na união das freguesias ..., no concelho de Aveiro, inscrito na matriz sob o artigo 1386 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 33/19871102; que por si e respetivos ante possuidores, durante mais de vinte, trinta, quarenta anos consecutivos, e até à presente data, fruiu e possuiu pacífica, pública e ininterruptamente o supra referido prédio, procedendo ao seu cultivo e deles colhendo os frutos e rendimentos, suportando os seus encargos e pagando os respetivos impostos; que a ré é dona e legítima proprietária de um prédio urbano, igualmente localizado no predito lugar ..., na união das freguesias ..., no concelho de Aveiro, que confina a poente com o seu prédio, inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.º 2250 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º 2684/20071221; que o seu prédio não tem qualquer contacto com a via pública, sendo, portanto, de acordo com aquilo que a lei designa no n.º 1 do art. 1550.º do Código Civil, um prédio encravado.
Mais, alegou que a comunicação do seu prédio com a via pública foi, desde tempos imemoriais, mas seguramente há mais de vinte, trinta, quarenta anos, feita através de uma faixa de terreno de cerca de cinco metros de largura, a qual, proveniente da via pública, atravessa o prédio da ré pelo seu lado norte, numa extensão de aproximadamente 35 metros; que tal faixa de terreno permitia-lhe a si e aos anteriores possuidores do imóvel que ao mesmo acedessem, atravessando e passando sobre o prédio da agora ré, fazendo também o respetivo percurso inverso quando pretendiam voltar a ingressar na via pública; que a referida faixa de terreno foi sendo sempre regularmente utilizada, à vista de todos e sem oposição de ninguém, por aqueles que para o referido terreno se dirigiam, quer a pé, quer através de carros de bois, tratores e outras viaturas motorizadas, a fim de que tal imóvel pudesse proporcionar aos seus proprietários a sua normal exploração, utilização e fruição como terreno destinado a mato, sendo que, a existência de tal passagem é, portanto, absolutamente necessária e indispensável à total fruição do seu prédio; que utilizava, ao longo dos últimos quarenta anos, a referida passagem, sempre com a plena convicção de que exercia um direito próprio, o de passagem, nos termos anteriormente consignados, isto é, sem oposição de ninguém, de forma continuada e ininterrupta, o mesmo sucedendo com os respetivos ante possuidores; que todos os anteriores proprietários do agora prédio pertencente à ré, sempre reconheceram e respeitaram a existência de tal servidão de passagem, constituída por usucapião.
Por fim, alegou que no mês de julho de 2015, a ré procedeu à colocação de umas estacas de madeira tanto no início da passagem, como no final da mesma e procedeu ao cultivo da referida passagem, tudo por forma a impedir o acesso à mesma e, consequentemente, impedindo-lhe o acesso ao seu imóvel e, por isso, impossibilitando-a de proceder à sua limpeza e de obter os respetivos frutos; que resultaram infrutíferas as persistentes e sistemáticas tentativas efetuadas junto da ré no sentido de lhe ser permitido o acesso, sem limitações, ao seu prédio sem necessidade de recurso aos tribunais; que com a prática dos factos atrás referidos, está a ré a causar-lhe inúmeros e graves prejuízos, designadamente, porque lhe destrói completamente o valor e a respetiva utilidade económica; que tais prejuízos ainda não podem ser contabilizados e liquidados, pelo que relega tal liquidação para execução da sentença.
A ré C... apresentou contestação. Defendeu, em suma, que desconhece e não tem obrigação de conhecer se a autora é, como se arroga, proprietária do prédio que descreve no art. 1º da petição inicial, não ignorando, porém que, face ao teor da descrição predial n.º 33/19871102, se presume que o direito de propriedade da autora existe e lhe pertence nos precisos termos em que tal registo o define, nos termos do art. 7.º do Código do Registo Predial; que aceita que é proprietária do prédio descrito no art. 6.º da petição inicial [composto de casa de rés-do-chão, sito em ..., extinta freguesia ..., atualmente União das Freguesias ..., do concelho de Aveiro, inscrito na respetiva matriz urbana desta congregada freguesia sob o artigo 2250.º (proveniente do anterior artigo 902.º da matriz urbana da extinta freguesia) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob a ficha número 2684/20071221. extinta freguesia) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob a ficha número 2684/20071221], porém tal prédio não confina a poente com o da autora; que é falso que o prédio da ré não tenha qualquer comunicação com a via pública, além de não reunir outros pressupostos indispensáveis para que uma tal servidão se pudesse constituir, como adiante explicitado; que não basta a falta de comunicação com a via pública para que um prédio se considere encravado, sendo exigido outro pressuposto legal: era mister que, neste caso a autora, alegasse, o que não fez, e provasse que o prédio não tem tal comunicação com a via pública nem tem condições de a estabelecer sem excessivo incómodo ou dispêndio, nos termos do invocado art.1550.º, n.º 1, do Código Civil.
Defendeu, ainda, que um prédio pode não ter comunicação com a via pública simplesmente porque o proprietário não a estabelece, por exemplo por razões de conveniência, falta de diligência, ou outras, embora o contrário não lhe acarretasse incómodo ou dispêndio excessivos, o que, se fosse o caso, também competiria à autora alegar e provar; que, pelo menos nos últimos 20 anos, possivelmente 30, a autora ou qualquer possuidor ou ante possuidor do prédio de que a autora se arroga proprietária, não se serviu de qualquer faixa de terreno que atravesse o terreno da ré, e muito menos numa extensão de 35 metros, como alega, porque o terreno da ré nem sequer tem essa extensão; que a faixa de terreno que a autora identifica socorrendo-se de tal planta topográfica, aí legendada como “servidão”, esteve, durante, pelo menos, 20 anos e até meados do ano de 2015, com silvas e vegetação que impossibilitavam qualquer passagem, motivo pelo qual não ocorreu qualquer passagem regular quer a pé quer com veículos sobre a mesma; que o prédio da autora é servido por caminho ou passagem, isto é, de uma via de comunicação, junto à sua estrema sul, que o liga à via pública aí assinalada como Rua ... ou passagem, isto é, de uma via de comunicação, junto à sua estrema sul, que o liga à via pública aí assinalada como Rua ....
Por exceção veio a ré defender que a servidão de passagem que a ré pretende ver reconhecida nesta ação jamais se pode dar por constituída, por impossibilidade jurídica, porquanto a constituição de servidões de passagem apenas pode ser exigida pelo proprietário de prédio encravado sobre prédios rústicos vizinhos e já não sobre prédios urbanos, como previsto na parte final do n.º 1 do art.1550º do Código Civil; que o seu imóvel, além de não ser confinante com o da autora, é um prédio urbano; que ainda que alguma servidão de passagem se tivesse alguma vez constituído a favor da autora, sempre tal servidão ter-se-ia extinto pelo não uso, durante vinte anos, conforme o disposto no art. 1569º, n.º 1, al. b), do Código Civil.
Terminou pugnando improcedência da ação.
A autora respondeu, alegando, em suma, que mantém e reafirma tudo quanto alegado na petição inicial; que a servidão de passagem que pretende ver reconhecida constituiu-se por usucapião, porquanto, como alegado na petição inicial, há mais de quarenta anos, que, por si e respetivos ante possuidores, efetuavam a passagem na faixa de terreno em causa nos presentes autos para aceder ao seu prédio, fazendo-o de modo público, pacífico e com a convicção de que estavam a exercer um direito próprio; que a referida passagem sempre se revelou por sinais visíveis e permanentes; que os prédios são confinantes, porquanto, por deliberação da assembleia ordinária da Junta de Freguesia ..., datada de 30 de março de 1985, a referida Junta de Freguesia vendeu a D... e à ré uma parcela de terreno, com a área de 640 m2, pela importância de 12.800$00, que corresponde, atualmente, ao prédio propriedade da ré; que a referida parcela de terreno vendida pela Junta de Freguesia ... não constituía um prédio urbano, portanto, o anterior proprietário da parcela de terreno, que hoje pertence à ré e que lhe adveio por partilha na sequência de divórcio, foi a Junta de Freguesia ...; que da análise da caderneta predial e da descrição na Conservatória do Registo Predial do seu prédio decorre que o mesmo confronta a poente com a Junta de Freguesia ..., pelo que dúvidas não restam de o prédio que confina com o seu é o da ré.
Alegou, ainda, a autora que, pelo menos, desde a data em que adquiriu a parcela de terreno à Junta de Freguesia ..., que a comunicação do seu prédio com a via pública foi feita através da referida faixa de terreno, portanto a ré sabe, não podendo ignorar, que naquele local existia uma servidão de passagem permanente, logo, de má-fé, vedou o acesso ao seu terreno, colocando artífices para impedir definitivamente a autora de poder passar; que não é verdade que o seu prédio seja servido por um caminho ou passagem junto à sua extrema sul, ligando-o à Rua ..., pois, como a ré bem sabe, que a referida passagem é de uso exclusivo de uma habitação que ali se encontra, estando totalmente vedada e murada; que cumpre referir que, para o efeito de conceder servidão legal de passagem, a lei considera encravado não só o prédio que carece de qualquer comunicação com a via pública [encrave absoluto], mas também aquele que dispõe de uma comunicação insuficiente para as suas necessidades normais e aquele que só poderia comunicar com a via pública através de obras cujo custo esteja em manifesta desproporção com os lucros prováveis da exploração do prédio ou com as vantagens que ele proporciona [encrave relativo] – cfr. Prof. Pires de Lima e A. Varela in C. Civil anotado, vol. III, pág. 637, anotação ao artigo 1550.º do Código Civil; que o ex-cônjuge da ré e esta adquiriram uma parcela de terreno com 640 m2, sendo que tal terreno encontrava-se completamente devoluto, tendo, ambos, levantado edificações sem qualquer pedido de licenciamento para o efeito, ou seja, clandestinas, uma vez que não foram devidamente licenciadas; que compulsado o levantamento topográfico junto com a petição inicial, verifica-se que a ré ocupa cerca de 850 m2 de terreno, pelo que, caso se entenda que a autora não adquiriu a servidão de passagem por usucapião, o que não se concede, mas por mera hipótese se formula, sempre se deverá concluir que a ré ocupou, a partir de julho de 2015, 210 m2 que não lhe pertencem, que corresponde à faixa de terreno em causa nos presentes autos, pelo que deverá desocupar essa faixa de terreno descrita, por não lhe pertencer, deixando-a livre e devoluta.
Terminou concluindo que não poderá aceder ao seu prédio de outra forma senão pela faixa de terreno em causa nos presentes autos, sendo que qualquer outra forma causaria mais prejuízos a terceiros e a si do que à ré, pois a passagem realiza-se na extrema norte do prédio desta afastada da sua habitação.
Foi realizada a AUDIÊNCIA PRÉVIA, nos termos que constam da ata de fls. 69/71 tendo sido, designadamente, fixado o OBJETO DO LITÍGIO e selecionados os TEMAS DA PROVA, ou seja o alegado encargo de servidão de passagem que incide sobre o prédio da ré em benefício do da autora e a alegada extinção desse direito pelo não uso.
Realizou-se a AUDIÊNCIA FINAL, com observância do pertinente formalismo legal, conforme decorre das atas de fls. 98/104, 105/107, 123/124 e 125/126, vindo a ser proferida sentença, em 18.07.2017 que julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acção e o senhor juiz a quo decidiu:
“1. - Condenar a ré a reconhecer que sobre o prédio, descrito no ponto 3. dos factos provados, foi constituída, por usucapião, uma servidão de passagem de pé e carro, em benefício do prédio da autora, descrito no ponto 1. dos factos assentes.
2.- Condenar a ré a abster-se da prática de qualquer ato que impeça, limite ou dificulte o livre exercício do direito de passagem referido em 1..
3.- Absolver a ré do demais peticionado pela autora.
Custas a cargo da autora e da ré, na proporção do respetivo decaimento, sendo de 1/6 o da primeira e de 5/6 o da segunda [sem prejuízo de benefício do apoio judiciário a esta concedido]”.
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Com relevância para a decisão a proferir, na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
1. Pela ap. 25, de 20.07.1988, mostra-se inscrita a favor da autora, B..., no estado de divorciada, na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n.º 33/19871102, a aquisição, por “partilha subsequente a divórcio” de E..., do prédio rústico aí descrito como sendo composto por terreno a pinhal e mato e eucaliptal, com a área de 4300 m2, sito em ..., da freguesia ..., concelho de Aveiro, a confrontar do norte com F..., do sul com G..., do nascente com H... e do poente com Junta de Freguesia de Requeixo, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 407.º.
2. De acordo com a caderneta predial relativa ao prédio descrito em 1. [junta a fls. 15, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido], em virtude da criação da União de freguesias ..., tal prédio passou a estar inscrito sob o art. 1386.º.
3. Pela ap. 13, de 30.03.2012, mostra-se inscrita a favor da ré, C..., no estado de divorciada, na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o n.º 2684/20071221, a aquisição, por “partilha subsequente a divórcio” de D..., do prédio urbano aí descrito como sendo composto por casa de rés-do-chão de construção antiga destinada a habitação, com a área total de 750 m2, dos quais 55 m2 correspondem a área coberta e 695 a área descoberta, sito na Rua ..., n.º .., da freguesia ..., concelho de Aveiro, inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo 902.º.
4. De acordo com a caderneta predial relativa ao prédio descrito em 3. [junta a fls. 17, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido], em virtude da criação da União de freguesias ..., tal prédio passou a estar inscrito sob o art. 2250.º.
5. A autora e os ante possuidores do prédio descrito em 1. vêm cuidando do mesmo e dele colhendo frutos, há mais de 40 anos, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e com a convicção não lesarem os interessem de ninguém e de exercerem um direito próprio.
6. O prédio descrito em 1. não possui qualquer comunicação direta com a via pública, no caso, a Rua ..., nem condições que permitam estabelecê-la de outra forma que não seja através de prédio de terceiros.
7. A comunicação do prédio descrito em 1. com a via pública tem vindo a ser efetuada, há mais de 30 anos, de modo continuado, através de uma faixa de terreno de cerca de cinco metros de largura, a qual, proveniente da via pública, atravessa o prédio da ré pelo seu lado norte, em toda a sua extensão;
8. Tal faixa de terreno era por si e pelos ante possuidores do prédio descrito em 1. utilizada à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, quer a pé quer através de carros de bois e de tratores, para aceder ao terreno sempre que era necessário proceder ao corte de mato ou ao abate de árvore;
9. A autora e os seus antecessores usavam a faixa de terreno acima descrita com a convicção de que não lesavam os direitos de terceiros e de que exerciam um direito próprio, o de passagem para o prédio descrito em 1..
10. Em meados do ano de 2015 a faixa de terreno de terreno referida em 7. a 9. encontrava-se com silvas e vegetação tendo a ré procedido à sua limpeza.
11. No mês de julho de 2015 a ré procedeu ao cultivo da faixa acima identificada e à colocação de umas estacas de madeira tanto no seu início, junto à Rua ..., como no fim, no limite entre o seu prédio e o da autora.
12. Com a conduta referida em 10., ficou a autora impedida de aceder ao prédio descrito em 1..
13. Em assembleia ordinária realizada no dia de 30 de março de 1985, a Junta de Freguesia ..., deliberou vender a D..., ex-cônjuge da ré, uma parcela de terreno, com a área de 640 m2, pela importância de 12.800$00, que corresponde ao prédio descrito em 3..
14. O prédio descrito em 1. confronta, do lado ponte, com o prédio descrito em 3..
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E foram considerados não provados os seguintes factos:
a. Por ter ficado impedida de aceder ao prédio descrito em 1., em virtude da conduta da ré, descrita em 9., tal prédio ficou destituído de valor e perdeu a respetiva utilidade económica.
b. O prédio descrito em 1. confina a poente com um prédio da União de freguesias ....
c. A faixa de terreno de terreno referida em 7. a 9. esteve, durante, pelo menos, 20 anos, com silvas e vegetação que impossibilitavam qualquer passagem.
d. O prédio descrito em 1. é servido por um outro caminho, isto é, por uma via de comunicação, que se situa junto à sua estrema sul, que o liga à Rua ....
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Desta sentença foi interposto o presente recurso pela ré que apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
I. A sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1, al. d) do CPC, uma vez que não se pronuncia quanto à excepção invocada pela recorrente na sua contestação – im)possibilidade de constituir uma servidão de passagem sobre um prédio urbano, a favor de um prédio rústico, e qual o respectivo fundamento legal.
II. Subsidiariamente, a recorrente pretende, por esta via, impugnar a decisão sobre a matéria de facto, que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e, consequentemente a decisão proferida sobre a matéria de direito aplicada.
III. Na inspecção judicial ao local é o Tribunal apenas observou o referido prédio a partir da Rua ... (lado Oeste), não tendo sido possível verificar os limites do prédio do lado Norte e Este, pelo que as fotografias juntas apenas retratam parte do prédio da autora, o que, por si só não permite concluir pela não existência de qualquer outro acesso à via pública pelo lado Norte ou Este.
IV. Da análise da descrição predial do prédio da autora conclui-se que o direito de propriedade se encontra inscrito a seu favor ap. 25 de 1988/07/20 com a causa “partilha subsequente a divórcio”, pelo que os factos relatados pelas testemunhas I... e J... foram presenciados antes desta data, quando o referido prédio ainda pertencia ao ex-sogro da autora de nome K..., portanto há mais de 29 anos.
V. A testemunha L... reconheceu que existe um caminho na estrema Sul do prédio da autora, o qual foi arranjado a expensas da Junta de Freguesia que preside, tendo concluído que não vê qualquer impedimento se o referido caminho passar a ser utilizado também pela autora para aceder ao seu prédio.
VI. A testemunha M... é amiga da autora há mais de mais de 40 das duas, e quando confrontada com a planta topográfica junta com a petição inicial não foi capaz de identificar o alegado local de passagem.
VII. A testemunha N... referiu que acedeu ao prédio da autora por um “caminho que se situava do lado esquerdo do pinhal” e “enviesado”.
VIII. O facto n.º 6 dado como provado deveria ter sido dado como não provado em consequência lógica da prova documental junta ao processo: planta topográfica junta aos autos, pela autora com a petição inicial, na qual é visível um caminho na estrema Sul do seu prédio; da acta da 16ª reunião da Assembleia de Freguesia ..., de 19 de Outubro de 1985, a qual foi junta ao processo em cumprimento do despacho proferido em 15.02.2017, na qual se lê: “decidiu também e relativamente ao lote n.º . da ... e a uma manga de terreno aí existente, vender pelo preço de vinte escudos o metro quadrado ao senhor O... e à sra. P..., ambos residentes em .... A cedência de terreno pertença do lote que irá aumentar a manga será decidida no local pela Junta de Freguesia. Esta cedência de terreno é feita de comum acordo dos comproprietários”; bem como da prova testemunhal produzida, nomeadamente do depoimento das seguintes testemunhas: J... registado na gravação áudio com início no dia 09.02.2017 às 15:05:53 e fim às 15:23:17; L..., registado na gravação áudio com início no dia 09.02.2017, às 15:24:03 e fim às 15:49:42; D... registado na gravação áudio no dia 15.02.2017, com início às 09:57:26 e fim às 10:38:45.
IX. Face aos meios de prova acima referidos deveria a douta sentença ter dado como não provado que “o prédio descrito em 1. não possui qualquer comunicação directa com a via pública, no caso, a Rua ..., nem condições que permitam estabelecê-la de outra forma que não seja através do prédio de terceiros”.
X. O facto n.º 7 dado como provado deveria ter sido dado como não provado, em consequência da prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento: I..., registado no sistema áudio no dia 09.02.2017, com início às 14:40:10 e fim às 15:05:11; J..., registado no sistema áudio em 09.02.2017, com início às 15:05:53 e fim às 15:23:17; N..., no seu depoimento registado no sistema de gravação áudio no dia 09.02.2017, com início às 16:03:49 e fim às 16:18:22; D..., registado no sistema áudio do dia 15.02.2017, com início às 09:57:26 e fim às 10:38:45; P..., registado no sistema áudio do dia 15.02.2017, com início às 10:39:29 e fim às 11:13:34;S..., registado no sistema de gravação áudio no dia 15.02.2017, com início às 11:14:28 e fim às 11:50:09.
XI. Pelo depoimento destas testemunhas é forçoso concluir que o prédio da autora teve duas vias de acesso, uma pelo pinhal do senhor T... e o caminho na estrema Sul do pinhal da autora.
XII. Face a estes meios de prova deveria ter sido dado como não provado que a comunicação do prédio descrito em 1. com a via pública tem vindo a ser efectuada, há mais de 30 anos, de modo continuado, através de uma faixa de terreno de cerca de cinco metros de largura, a qual, proveniente da via pública, atravessa o prédio da ré pelo seu lado norte, em toda a sua extensão.
XIII. Os factos n.ºs 8 e 9 dados como provados deveriam ter sido dados como não provados em decorrência lógica da alteração dos factos factos anteriores, pois o terreno em apreço nos autos sempre foi utilizado em exclusivo, pela recorrente e pelos seus ante-possuidores para aceder à parte de trás do seu prédio, tal como resulta do depoimento da testemunha D..., registado no sistema áudio do dia 15.02.2017, com início às 09:57:26 e fim às 10:38:45 e da testemunha P..., registado no sistema áudio do dia 15.02.2017, com início às 10:39:29 e fim às 11:13:34.
XIV. Face ao exposto deveria ser dado como não provado que tal faixa de terreno era por si [autora] e pelos ante possuidores do prédio descrito em 1. utilizada à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, quer a pé quer através de carros de bois e de tractores, para aceder ao terreno sempre que era necessário proceder ao corte de mato ou ao abate de árvore.
XV. Da mesma forma deve ser dado como não provado que a autora e os seus antecessores usavam a faixa de terreno acima descrita com a convicção de que não lesavam os direitos de terceiros e de que exerciam um direito próprio, o de passagem para o prédio descrito em 1.
XVI. O facto provado n.º 12 deveria ter sido dado como não provado, tal como resulta do depoimento da testemunha M..., registado no sistema de gravação áudio no dia 09.02.2017, com início às 15:50:18 e fim às 16:03:05.
XVII. Assim, deveria a sentença recorrida ter dado como não provado que com a conduta descrita em 10 dos factos provados. Ficou a autora impedida de aceder ao prédio descrito em 1.
XVIII. Devem os factos n.ºs 6, 7, 8, 9 e 12 dados como provados na douta sentença recorrida serem dados como não provados em virtude de erro notório na apreciação da prova.
XIX. O facto não provado d) deveria ter sido dado como provado, tal como resulta da planta topográfica junta pela autora com a petição inicial, da acta da 16ª reunião da Assembleia de Freguesia ..., do depoimento da testemunha L..., registado na gravação áudio com início no dia 09.02.2017, às 15:24:03 e fim às 15:49:42, do depoimento da testemunha D... registado na gravação áudio no dia 15.02.2017, com início às 09:57:26 e fim às 10:38:45], bem como do depoimento da testemunha T..., registado no sistema de gravação áudio no dia 15.02.2017, com início às 11:14:28.
XX. Assim deveria a sentença recorrida ter dado como provado que o prédio da autora é servido por um outro caminho, isto é, por uma via de comunicação, que se situa junto à sua estrema Sul, que o liga à Rua ....
XXI. O afirmado pela recorrente no seu depoimento de parte apenas espelha um acto de cortesia e de condescendência nas relações de vizinhança, pois não é por uma pessoa passar esporadicamente por um local que permite que seja constituída uma servidão de passagem.
XXII. O prédio da autora não é um prédio encravado, pois é servido por um caminho na sua estrema Sul.
XXIII. A considerar-se que é um prédio encravado, deve ser considerado como um encrave voluntário, pois apenas à sua inércia e incúria se deve, dado que nada fez que impedisse construção de um muro que ocupa parte do caminho situado na estrema Sul do seu terreno.
XXIV. Além disto, carece de fundamento legal a pretensão da autora de constituição de servidão de passagem sobre um prédio urbano a favor de um prédio rústico.
XXV. A autora não logrou provar que o trajecto escolhido é o que causa menos prejuízos ao prédio onerado – “o proprietário de prédio encravado que pretende constituir uma servidão legal de passagem por um prédio vizinho não pode limitar-se a alegar factos demonstrativos do encrave e da confinância com esse prédio por onde pode alcançar a via pública; tem ainda de alegar factos que permitam concluir que é através desse prédio e pelo local escolhido que a passagem causa menos prejuízo e se torna menos inconveniente” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.12.2013, disponível em www.dgsi.pt, no âmbito do processo n.º 719/07.5TBBCL.G1.S1.
XXVI. Da prova produzida resultou ainda que o prédio da recorrente nunca foi utilizado como local de passagem para o prédio da autora, pelo que deveria a douta sentença recorrida ter declarada extinta pelo seu não uso a suposta servidão de passagem, nos termos do artigo 1569º, n.º 1, al. b) do Código Civil.
XXVII. Não se vislumbra qual a matéria de facto dada como provada que sustente a decisão do Tribunal a quo ao reconhecer uma servidão de passagem constituída por usucapião sobre o prédio da recorrente a favor do prédio da autora, quando não consta do elenco de factos provados qualquer facto que permita concluir que estamos perante uma servidão aparente, ou seja, que revele “sinais visíveis e permanentes”, como impõe o artigo 1548º do Código Civil.
XXVIII. Ao condenar a recorrente nos termos em que o fez, o Tribunal a quo fez uma errada interpretação dos artigos 1550º, 1553º e 1548º, todos do Código Civil.
NESTES TERMOS e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência ser revogada a sentença recorrida, absolvendo-se a recorrente do pedido.
A autora apresentou contra alegações, concluindo pela manutenção do julgado.
Recebido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II-DO RECURSO:
II.1-Considerações prévias:
O recurso é balizado pelas conclusões das alegações, estando vedado ao tribunal apreciar e conhecer de matérias que naquelas não se encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido e no recurso não se apreciam razões ou argumentos, antes questões- artºs 627º, nº1, 635º e 639º, nºs 1 e 2, CPC, na redacção da Lei nº 41/2013, de 26.06.2013, aplicável ao presente processo face ao disposto no artº 8º desta Lei.
Os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.
Constituindo tais recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não meios para obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões não suscitadas ao tribunal recorrido, por regra[1].
Citando o douto Acórdão desta Relação do Porto de 15-06-2011 (ANA PAULA AMORIM):
“O recurso, como refere Professor Castro Mendes, consiste no pedido de reponderação sobre certa decisão judicial, apresentada a um órgão judiciariamente superior ou por razões especiais que a lei permite fazer valer (Direito Processual Civil – Recursos, pag. 5).
O recurso ordinário (que nos importa analisar para a situação presente) não é uma nova instância, mas uma mera fase (eventualmente) daquela em que a decisão foi proferida.
O recurso é uma mera fase do mesmo processo e reporta-se à mesma relação jurídica processual ou instância (ob. cit,, pag. 24-25 e Alberto dos Reis, Código de Processo Civil ”, vol V, pag. 382, 383).
A respeito do objecto do recurso têm surgido na doutrina duas posições:
- o objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida; e
- o objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ter sido proferida.
O Professor Castro Mendes escreve a este respeito que: “o nosso sistema de recursos inclina-se para a segunda solução – o objecto do recurso é a decisão. Dentro desta orientação tem a nossa jurisprudência repetidamente afirmado que os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
Na jurisprudência entre outros sobre esta questão, podem ler-se: os Ac. STJ 07.07.2009, Ac. STJ 20.05.2009, Ac. STJ 28.05.2009, Ac. STJ 11.11.2003 (www.dgsi.pt), merecendo-nos particular relevo o Ac. STJ 28.05.2009 onde se refere:
“E, do específico ponto de vista da instância recursiva, tem-se por certo que, como é jurisprudência uniforme, sendo os recursos meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação ou reponderação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), ou seja, visando os recursos apenas a modificação das decisões relativas a questões apreciadas pelo tribunal recorrido (confirmando-as, revogando-as ou anulando-as) e não criar decisões sobre matéria nova, salvo em sede de matéria indisponível, a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido, tem inerente a consequência de encontrar vedada a respectiva apreciação pelo Tribunal ad quem (art. 676º CPC).”
Isto posto, a apelante nas conclusões do recurso invoca as seguintes questões:
- a nulidade da sentença.
- impugna a matéria de facto provada sob os números 6, 7, 8, 9 e 12 dos factos provados da sentença, pretendendo que sejam considerados não provados, bem como o facto não provado da alínea d) que entende dever ser considerado provado.
- inadmissibilidade de constituição de servidão de passagem sobre um prédio urbano a favor de um prédio rústico;
-falta de prova de que o trajecto escolhido é o que causa menos prejuízo ao prédio da autora;
- extinção pelo não uso da suposta servidão.
- falta de prova de sinais visíveis e permanentes.
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II.2.1- Nulidade da sentença:
Invoca a apelante a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia consistente na falta de conhecimento sobre a impossibilidade legal de constituição de servidão de passagem do prédio da ré (urbano) em benefício do prédio da autora (rústico).
A norma invocada é o artº 615º, nº 1, al. b) NCPC.
As causas de nulidade da sentença ou de qualquer decisão são as que vêm taxativamente enumeradas no nº 1 do artº 615º do CPC.
Nos termos daquele preceito, é nula a sentença quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia) … São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
Contudo, as «questões» a ter em conta são as que se reportam às pretensões deduzidas, aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir; isto é, devem entender-se por questões» as concretas controvérsias centrais a dirimir, sem abarcar os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocada s pelas partes, embora haja que apreciar todas as pretensões processuais formuladas (pedidos e excepções) e todos os factos em que assentam.
Ora, a sentença conheceu das questões de que deveria conhecer (de direito), ou seja dos pedidos formulados pela autora na petição inicial e da excepção invocada pela ré na contestação -não uso- conforme resulta claro da sua leitura, começando por fixar os factos provados e os não provados com interesse para a decisão destas questões e interpretando e aplicando o direito, de acordo com o disposto no artº 607º, nºs 2, 3 e 4, NCPC.
O argumento jurídico de que in casu não era possível constituição de servidão de passagem do prédio da ré em benefício do prédio da autora não era questão a decidir de acordo com o thema decidendum, antes uma razão (argumento jurídico) invocado pela ré na contestação.
Na sentença o senhor juiz a quo fundamentou a sua decisão de facto e de direito, podendo ser incompleta ou errada, mas tal é questão que pode levar á sua revogação em sede de recurso, como a apelante pediu e dela vamos tratar de seguida, mas não gera a sua nulidade.
Entendemos, assim, que não ocorreu a arguida omissão de pronúncia do tribunal ad quo, nos termos do artº 615º, nº 1, al. d), 1ª parte, do CPC, posto que este cumpriu devidamente o preceito do artº 608º, nº 2, CPC.
Indefere-se, assim, a arguida nulidade da sentença.
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II.2.2- Inadmissibilidade de constituição de servidão de passagem sobre um prédio urbano a favor de um prédio rústico:
Na conclusão XXIV diz a recorrente que “carece de fundamento legal a pretensão da autora de constituição de servidão de passagem sobre um prédio urbano a favor de um prédio rústico”.
Ora, nos termos do artigo 1550º, n.º 1, do Código Civil “os proprietários de prédios que não tenham comunicação com a via pública, nem condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, têm a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem sobre os prédios rústicos vizinhos”, acrescentando o nº 2 que “de igual faculdade goza o proprietário que tenha comunicação insuficiente com a via pública, por terreno seu ou alheio”. Esclarece o artigo 1553º, do Código Civil, que “a passagem deve ser concedida através do prédio ou prédios que sofram menor prejuízo, e pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados”. Finalmente, permite o artº 1551º, nº 1, CC que “os proprietários de quintas muradas, quintais, jardins ou terrenos adjacentes a prédios urbanos podem subtrair-se ao encargo de ceder passagem, adquirindo o prédio encravado pelo seu justo valor”.
Perante estas disposições legais, não há dúvidas que a lei consagra situações de exercício do direito postestativo de constituição de servidão legal de passagem apenas ao proprietário e não mero possuidor de prédio totalmente encravado ou apenas relativamente encravado a onerar outro os mais prédios servientes, seja o prédio dominante (encravado) rústico ou urbano e podendo a servidão de passagem, a pé ou de carro, incidir sobre quintais ou logradouros de prédios urbanos, desde que não incida sobre a parte destes prédios servientes onde existam edifícios incorporados no solo. Visto o conceito de prédio urbano que nos dá o nº 2 do art. 204ºCC, nele se incluindo os terrenos que sirvam de logradouro ao edifício incorporado no solo, concluímos ser possível constituir servidão legal de passagem sobre os terrenos adjacentes a prédios urbanos se os donos destes não usarem oportunamente do direito de aquisição do prédio alegadamente encravado. Ponto é que o prédio dito dominante, rústico ou urbano, seja encravado, tal como acima caracterizado o encrave, absoluto ou relativo, pois sem prédio encravado não há servidão legal.
O proprietário por cujo prédio o trânsito deva ser feito pode opor-se ao traçado em projeto, alegando que o caminho, se passar por um prédio vizinho, será menos prejudicial do que pelo seu, posto que menos cómodo e um pouco mais dispendioso para o dono do traçado, ou exigir que, no seu próprio prédio, o traçado seja num sentido mais longo, porque o trajeto mais curto lhe será mas prejudicial, por atravessar culturas. Porém, trata-se de factos impeditivos do direito dos autores que a ré não demonstrou, como lhe competia, atento o preceituado pelo artigo 342º, nº 2, do CC.
Mas, in casu, os pedidos formulados pela autora sob as alíneas da petição inicial foram:
a)- reconhecer a existência de uma servidão de passagem de pé e de carro, constituída por usucapião, nos termos descritos na petição inicial, sobre o seu prédio identificado no art. 6.º, a favor do seu prédio identificado no art. 1.º do mesmo articulado e, consequentemente,
b)- abster-se de praticar qualquer ato que impeça, limite ou dificulte o livre exercício daquele direito de passagem de pé e de carro, incluindo nesta última espécie todos os veículos motorizados”.
O primeiro daqueles pedidos resolve-se, nitidamente, numa acção confessória, dado que a autora pretendeu afirmar contra a ré um direito real menor de gozo – a servidão de passagem – que esta não aceita. Esta acção – que não constitui entre nós uma acção real típica – sendo discutível se é mesmo uma acção real - resolve-se numa acção de simples apreciação positiva, que visa o reconhecimento judicial da existência do direito real menor alegado (artº 10 nºs 1, 2 e 3, a) do nCPC). À autora cabe o ónus da prova do direito real - titularidade que é a única condição de procedência da acção. Cabe-lhe provar o facto aquisitivo respectivo, reconstituindo, se necessário, a cadeia de titulares anteriores até uma aquisição originária – excepto se puder invocar, ele mesmo, um facto aquisitivo originário – como, v.g., a usucapião; neste caso, tudo se reduz à demonstração do facto aduzido como aquisitivo do direito alegado na acção. Essa prova é feita nos termos gerais: se a autora não beneficiar de qualquer presunção – a fundada no registo ou na posse – tem de desenvolver a actividade probatória tendente à demonstração daquela titularidade (artºs 7 do Código de Registo Predial, 342 nºs 1 e 2, 350 nºs 1 e 2 e 1268 do Código Civil).
Constituída uma servidão positiva – como é, decerto, a servidão de passagem, de trânsito ou de acesso – o titular pode praticar certos actos – transitar, passar – correspondendo a esse direito, no proprietário do prédio serviente, a obrigação de não se opor a essa prática, de não a embaraçar: o que este último perde pela constituição da servidão é o direito de se opor a que o titular dela pratique determinados actos, de embaraçar o exercício da servidão. Por isso, quando se pede a declaração da existência daquele direito real menor e a condenação do demandado a não embaraçar o seu exercício, a acção é nitidamente uma actio confessoria.
Assentemos, pois, que a autora não pediu a constituição de um direito real de servidão legal de passagem, a ser declarado por sentença, nos termos dos artºs 1550º a 1554º CC e que não poderia fundar-se na usucapião, face ao disposto no artº 1547º, nº2 CC, antes o reconhecimento de uma servidão de passagem constituída por usucapião nos termos da causa de pedir exposta na petição inicial- artºs 2º, nºs 1 e 2, 5º, al. a) e 552º, nºs 1, al. d) e e), CPC.
De harmonia com princípio da disponibilidade privada sobre o objecto do processo – que é um corolário irrecusável do princípio do dispositivo – é às partes que incumbe a definição daquele objecto e a demonstração dos factos correspondentes. Deste modo cabia à autora definir o pedido e descrever a respectiva causa petendi, não podendo o tribunal, como consequência daquele princípio, conhecer de pedido diverso do formulado ou de causa de pedir diferente da invocada (artº 5 nº 1 do nCPC).
Na sentença recorrida fizeram-se diversas considerações jurídicas sobre as aludidas pretensões da autora (pedidos da alíneas a) e b) da petição inicial) e sobre a excepção peremptória invocada pela ré na contestação, de não uso do caminho no troço que passa pelo prédio da ré invocado pela autora na petição inicial e, depois, em concreto considera-se que:
Logo, seria sobre a ré que passaria a impender o ónus de provar a inexistência do direito de servidão de passagem reclamado pela autora, e nessa medida, que o prazo legal para a constituição desse direito de servidão, por usucapião, ainda não havia decorrido, por, nomeadamente, se tratar de uma posse violenta e/ou oculta.
Assim, não tendo a ré ilidido tal presunção legal, sempre se tem de concluir pela existência de uma servidão de passagem constituída, por usucapião, sobre o prédio daquela a favor do prédio da autora.
Sendo assim, deverá ser reconhecida a existência e constituição, sobre o prédio da ré de uma servidão de passagem a pé e de carro, por usucapião, a favor do prédio da autora, o que implica a procedência dos pedidos deduzidos pela autora sob as als. a) e b).
Ora, tendo concluído pela existência de um direito de servidão de passagem, sobre o prédio da ré, constituída a favor do prédio da autora, será que existe qualquer fundamento para que tal servidão deva ser declarada extinta, designadamente pelo não uso como pretende a ré?
A este propósito, tendo por base as considerações supra descritas acerca da extinção, pelo não uso, cabe desde já referir que, nos termos do disposto no n.º 1, do art. 342.º, do Código Civil, compete à ré provar que a autora não usa o caminho há mais de 20 anos.
Ora, tendo resultado provada a constituição da servidão por usucapião, nos termos que supra ficaram expostos, é manifesto que não logrou a ré demonstrar, como lhe competia, para fundamentar o não uso capaz de conduzir à extinção da servidão, que o caminho de servidão não era pela autora usado há mais de 20 anos [cfr. Ponto 5. Da factualidade assente].
Resulta do exposto que a autora realizou, como lhe competia, a prova da existência da servidão, de pé e carro, constituída por usucapião, que invocou como fundamento da acção, com base no disposto no n.º 1 do art. 342.º do Código Civil, não tendo a ré efetuado a demonstração de sinal contrário, atento o estipulado no n.º 2 do art. 342.º do Código Civil, razão pela qual importa concluir, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência da excepção pela mesma invocadas.
De tudo quanto exposto fica, resulta dever ser julgados procedentes os pedidos deduzidos pela autora sob as als. a) e b)”.
Concorda-se com o assim decidido e, não sendo esta acção uma acção declarativa de condenação, em que o objecto do pedido seja a constituição de uma servidão legal de passagem a favor de prédio encravado nos termos atrás referidos, improcedam as conclusões de recurso da ré XXII a XXVI.
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II.2.3-Impugnação da matéria de facto:
Resulta das conclusões recursivas, que a apelante impugna a decisão da matéria de facto da sentença recorrida quanto aos números 6, 7, 8, 9 e 12 dos factos provados da sentença, pretendendo que sejam considerados não provados, bem como o facto não provado da alínea d) que entende dever ser considerado provado, com indicação do sentido da alteração que pretende, a indicação dos meios de prova em concreto em que assenta essa pretendida alteração, nomeadamente a indicação dos documentos e depoimentos das testemunhas e depoimento de parte da ré cujos depoimentos foram gravados e a localização das passagens do registo gravado em que fundamenta a sua impugnação da matéria de facto da sentença e transcrição dos respectivos excertos nas alegações. Foram cumpridos os ónus de impugnação da matéria de facto exigidos pelo artº 640º, nºs 1 e 2, al. a) NCPC.
É entendimento assente na jurisprudência actual do STJ que o Tribunal da Relação deve proceder à sua própria convicção face à impugnação dos factos provados e não provados no recurso, obedecendo aos princípios da prova legal e da livre convicção e de acordo com os parâmetros seguintes:
a) Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);
b) A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 607 nº 5 do nCPC).
c) A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;
d) A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional;
e) A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de argumento capaz de se impor aos outros;
f) A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis;
g) O juiz deve decidir segundo um critério de minimização do erro, i.e., segundo a ponderação de qual das decisões possíveis tem menor probabilidade de não ser a correcta.
h) O controlo pela Relação da decisão da matéria de facto não é actuado por imediação, i.e., através de numa percepção própria do material que lhe serve de base, mas através da audição de uma reprodução fonográfica ou da leitura, fria e inexpressiva, de transcrições, que torna indisponíveis todos os relevantíssimos momentos não-verbais da comunicação.
Ora, desde logo, face ao thema decidendum supra referido, porque não está em causa nos pedidos da acção a constituição por sentença de um direito real de servidão legal de passagem ao abrigo do disposto nos artºs 1550º a 1554º CC, a matéria da alínea d) dos factos não provados na sentença e que havia sido alegada no artigo 15º da contestação da ré, nenhum interesse tem para a decisão do litígio, não constituindo excepção peremptória que impeça ou modifique o direito da autora-artº 342º, nº2, CC. Daí que não foi configurada como objecto do litígio, nem constou dos temas da prova no despacho proferido na audiência prévia de 26.10.2016 e do qual as partes não reclamaram, ao abrigo do disposto no artº 596º, nºs 1 e 2, CPC.
A única matéria a apreciar como excepção peremptória invocada pela ré- artºs 571º, nºs 1 e 2, 572º, al. c) e 576º, nºs 1 e 3 CPC- era a extinção da servidão de passagem alegada pela autora, constituída por usucapião, por não uso durante mais de vinte anos, cabendo à ré o ónus da prova - artºs 342º, nº2 e 1569º, nº1, al. a), CPC.
Daí que não se conheça, porque inútil, dessa impugnação de facto.
Pela mesma razão, não se conhece, porque inútil para a decisão da causa, da impugnação do facto provado 6.
Resta, assim, conhecer da impugnação dos factos provados 7, 8, 9, e 12, estes sim com interesse para a decisão da causa.
Ora, a motivação de facto da sentença recorrida, quanto a esta matéria, é a seguinte:
(…)o Tribunal valorou, de forma conjugada, quer entre si quer com a demais prova, o teor do depoimento de parte da ré em conjugação com o teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência e o resultado da inspeção judicial ao local materializada no auto de fls. 99.
Com efeito, a diligência de inspeção judicial ao local foi, desde logo essencial para dar como assente a factualidade descrita nos pontos 6., 7. [quanto às características da faixa de terreno], 11. [no que respeita ao facto de a faixa de terreno se encontrar cultivada e quanto à colocação das estacas] e 12. [quanto à impossibilidade de, em face do referido em 10., se aceder ao prédio descrito em 1.].
O depoimento de parte da ré, em termos confessórios, foi, desde logo, relevante para prova da factualidade vertida nos pontos 6. e 14..
No que respeita à restante matéria de facto, cumpre dizer que a generalidade das testemunhas ouvidas em juízo a confirmaram, o que fizeram de forma espontânea, sequencial e circunstanciada. Ao acabado de referir acresce que o conhecimento que demonstraram possuir radica, essencialmente, em factos por si observados ou constatados/certificados, quase sempre diretamente, ao longo do tempo e, na maior parte dos casos, durante vários anos consecutivos, sendo que a maior parte das testemunhas são pessoas que vivem na localidade ou próximo do local onde se insere o espaço em causa nestes autos.
Vejamos:
A testemunha I..., residente em ..., afirmou conhecer os prédios em causa nos autos desde 1962, altura em que, tendo acedido ao prédio descrito em 1. pela faixa de terreno em causa nos presentes autos, que designou de carral e que identificou como ficando situada ao lado da casa do pai da ré [que é, efetivamente a casa que, ainda hoje, ladeia o caminho], foi lá carregar mato pela primeira vez [ainda por conta do sogro da autora], tendo regressado lá em 1965 para retirar mato, tendo entrado no pinhal, através do dito carral com carros de vacas e com tratores. Esta testemunha afirmou que no caminho eram visíveis os rodados e que o mesmo se encontrava pisado/”demarcado”, o que era demonstrativo de que era usado. Mais, afirmou ter regressado ao prédio da autora há cerca de 20 anos, uma vez mais para ir colher mato para as suas terras, tendo, de igual modo, acedido pela dita faixa de terreno, sem que alguém se tivesse oposto a tal passagem.
Por seu turno, a testemunha j..., residente em ..., disse ter passado muitas vezes, ainda no tempo do sogro da autora, pelo espaço que designou de carral, que identificou como correspondente à faixa terreno em causa nos presentes autos, sendo que a última vez que lá passou foi há mais de 20 anos quando o ex-marido da autora lhe deu uns pinheiros para lenha que se encontravam no prédio descrito em 1. – não se encontrando ainda construída a casa da ré.
A testemunha L..., presidente da Junta da União de Freguesias ..., há cerca de 8 anos, residente em ..., tendo-se identificado como primo em 2.º ou 3.º grau da ré, disse desconhecer como é que a autora acedia ao seu prédio. Porém, afirmou que sempre lá conheceu aquela “espécie de servidão”, referindo-se à faixa de terreno em causa nos presentes autos, tendo-a caracterizado como uma faixa ampla que vai da estrada camarária [a Rua ...] até ao pinhal da autora. Disse, ainda, que aquela passagem era visível da estrada, estava livre e até parecia que não pertencia à parcela da ré. No que respeita ao caminho em brita que se situa mais a sul, afirmou que o mesmo não é público, mas privativo da casa que lá se encontra [visível nas fotografias da inspeção judicial ao local juntas a fls. 94/95 e 97], tendo a brita sido lá colocada pela Junta de Freguesia para ajudar os donos da casa, que eram pessoas de modesta condição social, a melhor acederem à mesma. Por fim, esta testemunha afirmou desconhecer lá qualquer outro caminho através do qual a autora possa aceder ao seu prédio.
Já a testemunha M..., residente na ..., ..., procuradora da autora quanto a mesma esteve emigrada no Canadá, afirmou que zelava pelas propriedades desta e que, nessa medida, passou na faixa de terreno em causa nos presentes autos durante cerca de 40 anos para aceder ao prédio descrito em 1., onde ia regularmente buscar lenha, o que fez até há cerca de 10/15 anos. Disse, ainda, esta testemunha que o caminho era bem visível, encontrava-se decalcado, que nunca foi impedida de nele circular por ninguém, que passava nele com tratores e outros veículos.
Por sua vez, a testemunha N..., residente em ..., disse ter ido ao prédio uma única vez, há cerca de 6/7 anos, para ir buscar um pinheiro que a autora que deu e afirmou ter entrado por um caminho que se situava do lado esquerdo do pinhal [considerando que estava na Rua ... de frente para o mesmo], entre um muro e uma casa, o que nos faz querer parecer que entrou no prédio descrito em 1. pela faixa de terreno em causa nos autos. Não obstante, confrontado com a planta topográfica de fls. 20, não soube nela localizar o dito caminho.
A testemunha D..., ex-marido da autora, com a mesma residente, começou por afirmar que os anteriores proprietários do prédio hoje da autora nunca arranjaram problemas por causa do caminho porque passavam por outro local. Porém, admitiu existir aquilo que designou como um “carreiro” entre a casa da ré e a do seu sogro [correspondente à faixa de terreno em discussão], tendo afirmado que tal espaço [correspondente ao dito “carreiro”] foi ali deixado para aceder às traseiras da sua casa para ir buscar lenha – o que não tem qualquer lógica na medida em que ficou demonstrado que a casa está construída, no que respeita às traseiras, no limite do prédio. Depois de confrontado com tal situação esta testemunha acabou por afirmar que o “carreiro” servia para passarem a pé para os terrenos de trás, só que eles nunca o utilizavam porque se serviam por outros sítios.
Por fim, afirmou que a ré procedeu à limpeza do caminho e, tendo sido multada por ter feito uma queimada, foi pedir ajuda à autora, que era quem tinha interesse no caminho, e, não tendo esta ajudado, cavaram o terreno e colocaram paus para impedir a passagem.
Esta versão dos acontecimentos foi, de igual modo, confirmada pela ré, em depoimento de parte, materializado na assentada de fls. 98/104, que afirmou que em julho de 2015 procedeu à colocação de umas estacas de madeira, no início da faixa de terreno em causa nos autos e no seu final, tendo procedido, a partir de então, ao cultivo dessa mesma faixa de terreno. Referiu, ainda, que, na sequência de uma queimada de mato que efetuou na referida faixa de terreno, foi autuada pela G. N. R., no valor de € 140,00, e que, em tal ocasião, se dirigiu à autora, por não ter possibilidades de proceder ao pagamento da referida quantia, dizendo-lhe "se pagar metade continua a passar, se não pagar não passa mais ali, porque eu sou pobre e não tenho dinheiro para pagar aquele valor"; tendo recebido como resposta "pobre sou eu"; em face de tal resposta, não mais a deixou ali passar e, nessa sequência, colocou as estacas acima referidas, sendo que, depois de ali ter visto as estacas, a autora chegou a interpelá-la no sentido de lhe permitir o acesso ao seu pinhal.
A testemunha P..., apesar de admitir que existe um caminho ao lado da casa da ré, correspondente à faixa de terreno em discussão nos autos, afirmou ter adquirido mato ao sogro da autora e ter acedido ao prédio descrito em 1. através do pinhal do Sr. T..., porque este era sua amiga e deixa-a lá passar, sendo que a última vez que o fez foi há uns 15 anos. Disse, ainda, que o caminho em causa nos presentes autos não se encontrava limpo, tendo-o sido há pouco tempo, sendo muito pantanoso, e que o caminho de brita que se situa mais a sul é propriedade privada do seu filho, nunca tendo servido o prédio da autora.
Por fim, a testemunha S..., agricultor, residente em ..., apesar de ter afirmado que o acesso ao prédio da autora era feito pelo caminho que situa mais a sul, admitiu a existência de um caminho junto ao prédio da ré, que disse ser mais estreito do que o outro, que corresponde à faixa de terreno em discussão no processo. Não obstante, incompreensivelmente, contrariando até aquela que foi a posição assumida pela ré, afirmou que essa faixa de terreno sempre foi cultivada pela ré.
Ora, da análise conjugada dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência resultou que, ressalvadas as incongruências manifestadas designadamente pela última das testemunhas acima referidas, as mesmas demonstraram possuir um conhecimento direto e efetivo acerca da existência da faixa de terreno em causa nos presentes autos e sobre a utilização que, quer pela autora quer pelos seus antecessores quer pela ré, foi sendo feita, ao longo dos tempos, do trato de terreno que constitui o caminho aqui em discussão.
É, pois de realçar que os depoimentos das primeiras cinco testemunhas acima referidas, nos termos que supra ficaram expostos, atenta a isenção e a objetividade demonstradas, foram de molde a, em conjugação com os demais meios de prova, permitir a formulação de um juízo probatório favorável no que toca à matéria de facto dada como provada, pois que foram, no essencial, convergentes entre si quanto à veracidade da matéria de facto em discussão, não se tendo denotado dos respetivos depoimentos que pretendessem prejudicar ou beneficiar qualquer das partes, nem que tivessem, de alguma forma, procurado ampliar/alterar a realidade dos factos sobre que depuseram, tendo, antes, demonstrado, seriedade e respeito pela verdade”.
A ré-recorrente pretende que aquela factualidade seja dada como não provada por esta Relação. Para tal procede à transcrição parcial de depoimentos das testemunhas inquiridas e referidas na motivação da matéria de facto da sentença. É certo que dizendo respeito aqueles factos em crise à aquisição por usucapião do direito de servidão de passagem cujo reconhecimento a autora visa com esta acção, a esta cabe o ónus da prova desses factos constitutivos do seu direito- artº 342º, nº1, CC. A prova de um facto em processo civil não é absoluta, bastando-se com aquela que não permita ao julgador uma dúvida razoável, sabendo-se que estamos perante meios de prova sujeitos ao princípio da livre convicção do julgador- artº 607º, nº 5, CPC[2].
Concordamos com o douto Acórdão do STJ de 07.09.2017, que mitiga a sindicância do tribunal da Relação no recurso da matéria de facto interposto da sentença do tribunal de primeira instância da forma que consta deste seu sumário:
“1. É hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.
2. No âmbito dessa apreciação, dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.
3. Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.
4. Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.
5. O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure”.
Ora, ouvidos os depoimentos das testemunhas indicadas pela apelante e considerando, ainda, o teor do depoimento da ré quanto à assentada na parte em que confessou parte da matéria do artigo 20º da petição inicial relevante para a resposta ao facto provado 12. e as fotografias tiradas no local e juntas aos autos de fls 91 a 97 em sede de diligência de inspecção ao local realizada[3], este tribunal superior formula o mesmo juízo de convicção que o tribunal a quo, mantendo-se assim aqueles factos 7, 8, 9 e 12 como provados.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto nessa parte.
Assim, esta Relação mantem a factualidade provada e não provada que consta da sentença que interessa à decisão.
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II.2.4-Extinção pelo não uso da servidão de passagem:
Foi dado como não provado o facto essencial alegado pela ré, em sede de excepção peremptória, aliás em decorrência da prova dos factos alegados pela autora quanto à aquisição por usucapião da alegada servidão de passagem sobre o prédio da ré, que consistia em “c. A faixa de terreno de terreno referida em 7. a 9. esteve, durante, pelo menos, 20 anos, com silvas e vegetação que impossibilitavam qualquer passagem”. A ré não impugnou esta resposta.
Assim, não está demonstrada a extinção da servidão em causa por não uso, nos termos do artº 1569º, nº1, al. b) CC, não tendo a ré invocado a usucapio libertatis, nos termos dos artº 1569º, nº1, al. c) e 1574º CC.
Improcede, assim, a conclusão XXVI das alegações do recurso.
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II.2-5- Falta de prova de sinais visíveis e permanentes:
Conclui, finalmente, a apelante que “XXVII. Não se vislumbra qual a matéria de facto dada como provada que sustente a decisão do Tribunal a quo ao reconhecer uma servidão de passagem constituída por usucapião sobre o prédio da recorrente a favor do prédio da autora, quando não consta do elenco de factos provados qualquer facto que permita concluir que estamos perante uma servidão aparente, ou seja, que revele “sinais visíveis e permanentes”, como impõe o artigo 1548º do Código Civil”.
Não tem razão a apelante.
Basta transcrever partes da sentença recorrida para o demostrar:
(…)A lei define a servidão predial como sendo um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de um outro prédio pertencente a dono diferente [cfr. art. 1543.º do Código Civil].
A servidão implica, assim, uma relação de dependência entre dois prédios: de um lado o dominante, em cujo proveito ela se estabelece; do outro o serviente, onerado com o encargo em que ela se traduz.
Não se pode rigorosamente delimitar o conteúdo das servidões, já que estas podem, em princípio, ter como conteúdo, toda e qualquer utilidade [ainda que futuras ou incertas] que um prédio pode prestar a outro [cfr. art. 1544.º do Código Civil]”.
E, mais à frente “(…)Nos termos do disposto no art. 1547.º do Código Civil, as servidões podem, entre outros vários títulos, ser constituídas por usucapião [que é a que aqui nos importa abordar por ser aquele em causa nestes autos, por ter sido invocados pela autora].
Porém, só é legalmente possível constituir, por usucapião, servidões [neste nosso caso de passagem] desde que as mesmas se revelem por sinais visíveis e permanentes, excluindo-se, assim, as servidões não aparentes [cfr. art. 1548.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil].
Com tal exigência [de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião] visou-se afastar a aquisição do respetivo direito com base em atos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança. Com tal norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir, para a constituição da servidão, sinais visíveis [destinados a garantir a não clandestinidade] e permanentes [por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão].
Assim, e como escrevem os profs. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA [in ob. cit. pág. 630], para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, etc.
Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, sendo admissível a sua substituição ou até transformação.
Ora, a aquisição de um direito de servidão de passagem, por via do instituto da usucapião, dá-se nos termos do art. 1287.º do Código Civil, onde se estatui que «a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação».
A apreciação dos sinais visíveis e permanentes foi tarefa realizada pelo julgador a quo plasmada na fixação da matéria de facto provada e não provada e que aqui ficou confirmada.
Improcede, assim, a conclusão a XXVII das alegações de recurso.
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III- DECISÃO:
Nestes termos, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela recorrente (sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.

Porto, 27-06-2018
Madeira Pinto
Carlos Portela
José Manuel Araújo de Barros
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[1] Ver Recursos no Novo Código de Processo Civil, Consº Abrantes Geraldes, Almedina 2013, pág 25 e outros autores ali referidos na nota 22.
[2] Á ré cabia opor contraprova, por forma a tornar esses factos duvidosos e a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem aproveita- artºs 346º CC e 414º CPC- dando-se o facto como não provado. [3] Conforme acta de 09.02.2017.