Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
999/20.0PWPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CONVERSAS INFORMAIS
PROIBIÇÃO DE PROVA
DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTES
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA PARA A DECISÃO
REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Nº do Documento: RP20230125999/20.0PWPRT.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO MINISTÉRIO PÚBLICO E REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Devem ser tidas como conversas informais, insuscetíveis de ponderação em sede de julgamento, as respostas às questões que o órgão de policia criminal coloca aos suspeitos que intercetou a partir do momento em que é seguro que vai ser aberto inquérito onde os mesmos vão ser constituídos arguidos.
II - Padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, a sentença que dá como provada a detenção de estupefacientes por parte do arguido, mas absolve-o do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, 22 de janeiro, sem que, concomitantemente, dê como provado o destino desse mesmo produto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 999/20.0PWPRT.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 999/20.0PWPRT, a correr termos no Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 4, por sentença de 20-12-2021, foi decidido:
«Tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decide-se:
Julgar parcialmente improcedente, por não provada, a acusação e, em consequência:
- absolver os arguidos AA e BB, da prática, como co - autores materiais, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
- Condenar o arguido CC como autor material da prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-A e I-B anexa ao mesmo diploma, na pena de quatorze meses de prisão.
- Suspender a execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido CC, pelo mesmo período de quatorze meses de prisão, ao abrigo do art. 50º do CP.
Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido.
Condenar o arguido CC a pagar as custas, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UCs.
- Proceda-se ao depósito - art. 372º, n.º 5 do CPP. - Notifique.
- Comunique ao Gabinete de Combate à Droga do Ministério da Justiça – artigo 64º, n.º 2 do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
- Após trânsito extraia certidão de todo o processado e remeta para a Comissão para Dissuasão da Toxicodependência – art. 5º da Lei n.º 30/2000.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que contemple a condenação dos arguidos AA e BB e a elevação da medida concreta da pena quanto ao arguido CC.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«DOS ARGUIDOS AA E BB
Do erro notório, relativamente à co-autoria e venda de estupefacientes
1. Os arguidos AA e BB foram absolvidos da prática do crime tráfico de estupefacientes de menor gravidade, em razão do tribunal a quo ter considerado que, sem prova testemunhal directa do acordo entre os três arguidos e da venda de estupefacientes, não é possível presumir os correspondentes factos, descritos nos pontos A, B e C dos factos não provados.
2. Sob pena de destruição do Estado de Direito (art.º 1º da Constituição da República Portuguesa), e à luz do princípio da prova livre (art.º 125º do Código de Processo Penal), do princípio da livre apreciação (art.º 127º do Código de Processo Penal) e do princípio do inquisitório (art.º 340º do Código de Processo Penal), o tribunal pode e deve socorrer-se de presunções judiciais/prova indirecta, mesmo que contra os arguidos, quando existir um nível de certeza prática de que tais factos correspondem à verdade.
3. No caso dos autos, a mera análise dos pontos de factos provados 1, 2, 3, 5, 6 e 7, à luz das mais elementares regras do normal acontecer, evidencia uma colaboração dos arguidos entre si, com vista à venda de estupefacientes a terceiros.
4. Com efeito, não há outra hipótese razoável que explique as circunstâncias dos arguidos AA e BB terem os seus bens pessoais na casa do arguido CC, o arguido AA ter as chaves de casa do arguido CC, os arguidos AA e BB terem dinheiro e substâncias estupefacientes consigo, e o cofre na casa do arguido CC se encontrar aberto, com muitos mais estupefacientes lá dentro, para além dum trânsito de e para a casa do arguido CC por parte dos outros dois arguidos, no contexto duma colaboração entre os três arguidos, com vista à venda do estupefaciente a terceiros.
5. Se a causa dos factos provados 1, 2, 3, 5, 6 e 7 não pode ser atribuída senão aos pontos de facto não provados A, B e C, “o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se da prova directa”.
6. Assim, a decisão de não prova dos pontos de facto A, B, e C, corresponde a um erro notório na apreciação da prova (art.º 410º/1, al. c), do Código de Processo Penal); suprível através da sua passagem para o rol dos factos provados (artº. 426º/1 do Código de Processo Penal, a contrario).
Do erro de julgamento, relativamente co-autoria e a intenção de venda
7. De acordo com o depoimento da única testemunha ouvida na audiência de discussão e julgamento, o agente de polícia DD, que foi considerado credível pelo tribunal a quo (cfr. gravação com nome da testemunha, disponível na sessão de julgamento de 23/11/2021, circa 02:52 a 03:00 e 03:31 a 05:00):
a. Os arguidos AA e BB encontravam-se juntos, quando foram interceptados;
b. O arguido AA tinha a chave da caixa de correio da casa do arguido CC, onde foram encontradas as substâncias estupefacientes aludidas no ponto 5 dos factos provados.
c. E foi o arguido AA que indicou a existência de cocaína e heroína nessa caixa de correio.
8. Os três factos/indícios acrescentados pela testemunha, à luz das regras da normalidade, reforçam o nível de certeza da prática dos pontos de facto A, B e C, que já resultava da análise dos pontos 1 a 7 dos factos provados.
9. Assim, a não se entender que existiu um erro notório, a conjugação da argumentação contida nas conclusões 1 a 8 evidencia violação de regras da normalidade na decisão de não prova dos pontos de facto A, B e C, a justificar a sua passagem para o rol dos factos provados.
Do erro notório, relativamente à detenção de estupefacientes, por parte do arguido BB
10. Como resulta do ponto 3 dos factos provados, o arguido BB tinha consigo cocaína, canábis e MDMA.
11. Apesar disso, a sentença recorrida, no ponto C) dos factos não provados, sem explicar os motivos, também deu como não provado os elementos subjectivos relativos à mera detenção dos estupefacientes.
12. À luz das mais elementares regras da normalidade (art.º 127º do Código de Processo Penal), é óbvio que, qualquer pessoa que tenha consigo cocaína, canábis e MDMA, quer ter consigo estas substâncias.
13. Assim, devia ter-se considerado provado que “O arguido BB actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a detenção não lhe era permitida, querendo atuar desta forma”.
14. Uma vez que estes factos estão contidos no ponto C) (são um minus relativamente a este):
a. a sua consideração não consubstancia qualquer alteração de factos,
b. e a decisão da respectiva não prova corresponde a um erro notório na apreciação da prova, suprível através da sua passagem para o rol dos factos provados e correspondente alteração do ponto C) dos factos não provados, para evitar eventual contradição.
Da insuficiência de factos, relativamente à detenção de estupefacientes por parte do arguido AA
15. Relativamente à detenção de estupefacientes por parte do arguido AA, do depoimento da testemunha DD (cfr. gravação com nome da testemunha, disponível na sessão de julgamento de 23/11/2021, circa 03:31 a 05:00), resultou a demonstração de dois factos:
a. O arguido AA tinha a chave da caixa de correio da casa do arguido CC, onde foram encontradas as substâncias estupefacientes aludidas no ponto 5 dos factos provados.
b. Logo após a sua intercepção por parte dos órgãos de polícia, o arguido AA indicou a existência de cocaína e heroína nessa caixa de correio.
16. De acordo com o art.º 21º do DL 15/96, basta a mera detenção para que o crime de tráfico de estupefacientes se verifique.
17. Os factos indicados pela testemunha evidenciam que as substâncias encontradas na caixa de correio estavam sob domínio/ detenção do arguido AA, pelo que, nos termos do art.º 368º/2, al. a), do Código Processo Penal, deveriam constar da matéria de facto a decidir pelo tribunal.
18. Inexistindo a pronúncia expressa do tribunal a quo sobre os preditos factos juridicamente relevantes, verifica-se o vício do art.º 410º/2, al. a), do Código de Processo Penal.
19. O suprimento do vício poderá fazer-se através da consideração dos factos supra transcritos na conclusão 15 como provados, e com a prova do elementos subjectivos contidos no ponto C), relativos à mera detenção de estupefacientes por parte do arguido AA. Sugere-se a seguinte redacção:
a. O arguido AA actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a detenção não lhe era permitida, querendo atuar desta forma.”
DO ARGUIDO CC
20. Tendo em conta o nível de especialização e preparação criminosa não despicienda, o papel director do arguido CC na conduta descrita nos autos (era ele que detinha a “fonte” de estupefacientes traficada), e a quantidade de estupefacientes apreendida, parece-nos que a pena decretada peca por defeito, sendo mais adequada a sua condenação numa pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa por igual período.
Pelo exposto, roga-se que:
1) se declare que a decisão de não prova dos pontos A, B e C dos factos não provados consubstancia um erro notório na apreciação da prova, se supra o vício através da sua passagem para o rol dos factos provados, e, em consequência, se condene os arguidos AA e BB pelo crime pelo qual vinha acusados;
2) se assim não se entender, se declare que a mesma decisão de não prova consubstancia um erro de julgamento, com o suprimento e as consequências referidas no ponto anterior;
3) se se entender que não existe qualquer erro relativamente à decisão de não prova da co-autoria e intenção de venda:
a. se considere que a decisão de não prova da vontade e consciência de detenção de estupefacientes por parte do arguido BB, factos estes contidos no ponto c) dos factos não provados, consubstancia um erro notório na apreciação da prova, se supra o vício através da sua passagem para o rol dos factos provados, e, em consequência, se condene o arguido BB;
b. e se considere que existe uma insuficiência de factos, relativamente à detenção de estupefacientes por parte do arguido AA, se supra o vício através do aditamento de tais factos e da passagem dos respectivos elementos subjectivos contidos no ponto c) dos factos não provados para o rol dos factos provados, e, em consequência, se condene o arguido AA;
4) e se altere a medida da pena aplicada ao arguido CC, condenando-se o mesmo numa pena de 2 anos e 8 meses de prisão, suspensa por igual período;
assim se fazendo Justiça
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O recurso foi admitido, mas apenas quanto aos arguidos AA e BB, uma vez que o arguido CC ainda não havia sido notificado da sentença.
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Notificados, os arguidos não responderam ao recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde acolheu a posição assumida pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnando, assim, pela procedência do recurso.
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Notificados nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, os recorridos não apresentaram resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
Pelas razões já indicadas, apenas se conhece do recurso quanto aos arguidos AA e BB.
E as questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro notório na apreciação da prova;
- Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto.
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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):
«2 - Fundamentação:
2.1 - Matéria de facto provada
De relevante para a discussão da causa, resultou o seguinte circunstancialismo fáctico:
1. No dia 13 de outubro de 2020, de madrugada, nas traseiras do dito bloco ..., foram intercetados os arguidos AA e BB, quando para aí se deslocavam.
2. Efetuada uma revista aos arguidos, foi encontrada na posse do arguido AA, a quantia monetária de 149,08€ (cento e quarenta e nove euros e oito cêntimos), subdivididas em 8 notas de 5€, 2 notas de 10€, 4 notas de 20€, 1 moeda de 2€, 6 moedas de 1€, 7 moedas de 0,20€, 3 moedas de 0,10€, e 2 moedas de 0,05€ e dois conjuntos de chaves, um da sua residência e o outro da casa ..., do bloco ..., da entrada ..., naquele bairro, residência do arguido CC.
3. Após revista ao arguido BB foi encontrado na sua posse uma embalagem de COCAÍNA (éster metílico), com o peso líquido de 0,12 gramas, uma de CANABIS (resina) com o peso líquido de 0,53 gramas e um pedaço de MDMA com o peso líquido de 0,08 gramas.
4. Após a autoridade policial se dirigir ao bloco ..., entrada ..., encontrou naquele local, o arguido CC.
5. No interior da caixa de correio da casa ..., situada na entrada ..., do bloco ... (residência do arguido CC), encontrava-se uma caixa azul que tinha no seu interior várias embalagens de HEROÍNA com o peso líquido de 0,455 gramas e de COCAÍNA (éster metílico) com o peso líquido de 6,44 gramas.
6. No interior da dita residência do arguido CC, foi encontrado em cima da mesa da sala, um cofre de cor vermelha que se encontrava aberto e no seu interior várias embalagens de COCAÍNA (éster metílico) com o peso líquido de 13,36 gramas e de HEROÍNA com o peso líquido de 1,057 gramas.
7. Também em cima da mesa, encontravam-se dois telemóveis, pertencentes aos arguidos AA e BB e ainda um passe cartão/andante em nome do arguido BB.
8. O arguido CC tinha perfeito conhecimento da natureza e características das substâncias estupefacientes que lhe foram apreendidas nos autos e que destinava à venda a quaisquer consumidores que o procurassem em busca das mesmas não obstante saber que a respectiva aquisição, detenção, cedência e venda lhe eram vedadas, sendo proibidas e punidas por lei.
9. Aos arguidos não são conhecidos antecedentes criminais.
10. Do relatório social do arguido CC consta que: “(…) o arguido aufere 174,41 Euros provenientes do RSI sendo-lhe descontados 15 Euros para apoio para a renda. Segundo referiu, assim que recebe o subsídio, entrega 100 Euros à irmã que se encarrega de pagar as despesas fixas com a habitação (num total de 41 Euros) a medicação (75 Euros) e que lhe disponibiliza a alimentação, confecionada ou em géneros para cozinhar em casa. O remanescente do RSI (74,41 Euros) fica de posse do arguido para os seus gastos pessoais”.” Por volta dos 41 anos foi alvo de diagnóstico de doença oncológica, tendo sido ostomizado, desde então que refere que não consegue trabalhar, por incapacidade para assumir tarefas que exijam esforço físico, subsistindo do RSI e do apoio mais próximo da irmã que reside nas proximidades. O arguido manifesta adaptação à limitação física decorrente do facto de ser ostomizado, e aderiu ao tratamento à toxicodependência inicialmente no CRI Ocidental e presentemente na extensão de Matosinhos daquela unidade de saúde, conforme declaração do médico psiquiatra que o acompanha”.
11. Do relatório social do arguido BB resulta que o mesmo tem o 12º ano e “(…) BB apresenta uma trajetória desenvolvimental com fragilidades ao nível do contexto familiar, com experiências de abandono, de rejeição e fraca vinculação com as figuras cuidadoras e falhas na definição e operacionalização de estratégias educativas assertivas. O padrão comportamental desenvolvido por BB, principalmente em contexto escolar, associada ao enquadramento familiar determinaram a intervenção da promoção e proteção, consubstanciada na medida de acolhimento residencial, registando um percurso institucional marcado por dificuldades de relacionamento interpessoal, por atitudes de desafio e falta de respeito para com o adulto investido de autoridade e pelo incumprimento dos normativos instituídos.”
12. Do relatório social do arguido AA resulta que: “(…) O processo de desenvolvimento de AA poderá ter sido influenciado negativamente pela ausência, na idade precoce, dos progenitores, pela falta, quando libertada, de condições sócia afetivas da progenitora, como ainda pela baixa exigência comportamental da mesma, condições que poderão ter facilitados não só as dificuldades de adaptação do arguido a contextos mais formais, nomeadamente o da escola, como também o confronto com a situação de sem abrigo, como ainda os vários contactos com os sistemas de promoção e proteção e tutelar educativo. Atualmente, a pouca idade, a instabilidade familiar e afetiva, a subsistência de dificuldades de adaptação a contextos formais, a integração em grupo de pares antissociais, a impulsividade, a frequência de locais conotadas com práticas delinquentes e a conduta criminal desde muito jovem poderão contribuir para a manutenção do estilo de vida até agora adotado.”
2.2 - Matéria de facto não provada:
Não se provou que:
A) No dia 13 de Outubro de 2020, de madrugada, os arguidos, de comum acordo e em conjugação de esforços, encontravam-se junto ao bloco ... do Bairro ..., do Porto, a proceder à venda de produtos estupefacientes a transeuntes que os abordavam para tal efeito.
B) Os arguidos AA e BB destinavam os produtos estupefacientes apreendidos, à venda a terceiros, consumidores de tais substâncias, a troco de dinheiro.
C) Os arguidos actuaram em comunhão de esforços e de acordo com um plano previamente elaborado, de modo livre, deliberado e consciente, sabendo ainda que a detenção, distribuição e venda dos mencionados produtos estupefacientes não lhes era permitida, querendo atuar desta forma.
D) O produto estupefaciente apreendido ao arguido CC destinava-se ao seu consumo exclusivo.
Com interesse para a decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos nomeadamente por constituírem simples conceitos de direito ou juízos conclusivos.
2.3 - Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base:
A convicção do tribunal é formada pelos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas; pela análise conjugada das declarações e depoimentos, atendendo a factores vários a elas referentes e que transpareçam na audiência, a saber o comportamento das testemunhas e dos arguidos, a imparcialidade ou parcialidade, a coerência, as contradições, a serenidade, as hesitações, devendo por tal dar-se relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
A conviccção positiva do tribunal resultou essencialmente do auto de noticia e Auto de busca e apreensão e testes rápidos de despistagem efetuados.
Tais elementos, em conjugação com o depoimento prestado pelo agente inquirido, Agente da PSP, DD, que prestou declarações de forma clara e coerente, merecendo credibilidade, - em conjugação com as regras da experiência comum - permitiu dar os factos como provados, tal como elencados, e, nomeadamente, com relação ao arguido CC. Este agente confirmou o local e a intercepção.
Em relação ao arguido CC forma-se assim prova do produto que lhe foi apreendido na sua posse e ao seu cuidado – e a mera detenção é suficiente para a sua punição.
O arguido CC devidamente notificado – não compareceu – procedendo-se ao julgamento na sua ausência.
Os restantes dois arguidos fizeram uso da faculdade legal que lhes assiste e não prestaram declarações.
Nenhuma outra prova foi produzida em audiência.
Ainda que se possa recorrer às regras da experiência comum, por força do art. 127º do C.P.P., sem qualquer outra prova de suporte, tal não pode significar que só por si se possa dizer que os ora arguidos atuavam em co - autoria. Algo mais é necessário.
Para a prova da acusação, haveria que recolher das testemunhas a ouvir em sede de julgamento, declarações que permitissem enquadrar a actividade dos ora arguidos na co-autoria e no tráfico de estupefacientes. O que não se logrou efetivar.
Com relação aos outros dois arguidos também nenhuma prova é efetuada. Pelo facto de ao arguido AA ter sido apreendida a quantia dada como provada e forma como se encontrava e chaves (da sua residência e do arguido CC), não permite extrair, por si só, que essa quantia era produto da venda e, que o mesmo actuava em comunhão de esforços e divisão de tarefas com os demais arguidos.
Por outro lado, também o facto de se encontrarem na residência do arguido CC os telemóveis e passe ou cartão andante dos arguidos AA e BB – também não nos permite, com a certeza exigível, presumir a co – autoria entre os três arguidos.
Também a diminuta quantia de produto estupefaciente apreendida ao arguido BB não pode ser valorada a seu desfavor, na ausência de outra prova.
Assim, e porque não se pode presumir uma conduta que seja prejudicial aos ora arguidos e porque o princípio in dubio pro reo opera, outra solução não resta que não seja dar como não provados os factos que estejam relacionados com o tráfico imputado aos arguidos AA e BB.
O tribunal atendeu ainda ao exame pericial e ao CRC junto aos autos e relatórios sociais.»
*
Vejamos.
Começamos pela apreciação da actuação conjunta dos arguidos, pois o provimento desta parcela do recurso torna inútil a análise de uma eventual responsabilidade singular dos arguidos AA e BB.
O recorrente imputa à decisão recorrida vícios de lógica da decisão previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, mais concretamente os previstos nas suas alíneas a) e c).
É pacífico o entendimento de que quanto à impugnação da matéria de facto pode o recorrente seguir um de dois caminhos: ou invoca os vícios de lógica da sentença previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPPenal, devendo, neste caso, ater-se apenas ao texto da decisão e às incoerências que aí possam ser encontradas, ou apresenta uma impugnação alargada, que lhe permite analisar a prova produzida em julgamento, extrapolando o espaço limitado do texto da decisão recorrida.
Em qualquer das opções impõe-se ao recorrente o cumprimento de regras para que o recurso possa ser apreciado e tenha viabilidade de sucesso em termos formais.

Quanto à primeira perspectiva, que abarca, em abstracto, os invocados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, als. a) e c), do CPPenal, respectivamente, reitera-se que são defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão e que são detectáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente perceptíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
O erro notório na apreciação da prova é uma falha que resulta, como se referiu, do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum, e traduz-se numa deficiência lógica na apreciação da prova, num «erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio.»[2]
É o caso, por exemplo, de as provas apontarem em determinado sentido e na decisão se concluir em termos opostos, o que é passível de ser detectado por qualquer pessoa de mediana formação[3].
Por outro lado, a mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do Tribunal não configura o vício em apreço[4].

Relativamente ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, podemos dizer que o mesmo corresponde a uma «carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura»[5], devendo também ser patente da decisão em causa que o Tribunal a quo podia e devia ter indagado outros factos de modo a tornar o elenco dos factos provados e não provados aptos a uma sustentada solução de direito.

O recorrente começa por invocar o erro notório na apreciação da prova relativamente à decisão de incluir nos factos não provados as suas alíneas A), B) e C) ao invés de se considerar tal factualidade como provada.
Alega neste sentido que que a mera análise dos pontos de facto provados 1, 2, 3, 5, 6 e 7, à luz das regras da experiência, evidencia uma colaboração dos arguidos entre si com vista à venda de estupefacientes a terceiros, posto que não há outra hipótese razoável que explique as circunstâncias de os arguidos AA e BB terem bens pessoais na casa do arguido CC, o arguido AA ter as chaves de casa do arguido CC, os arguidos AA e BB terem dinheiro e substâncias estupefacientes consigo, e o cofre na casa do arguido CC «se encontrar aberto, com muitos mais estupefacientes lá dentro, para além dum trânsito de e para a casa do arguido CC» Simões por parte dos outros dois arguidos, no contexto duma colaboração entre os três arguidos, com vista à venda do estupefaciente a terceiros.
Em termos teóricos não discordamos de parte da argumentação do recorrente, pois «a convicção judicial pode formar-se a partir de prova indiciária, sendo que se tal convicção for desfavorável ao arguido ela deve ser alcançada para além de toda a dúvida razoável e assentar em juízos objetivos e motiváveis[6].»
Por outro lado, o Tribunal Constitucional também já proferiu juízo de não inconstitucionalidade do art. 125.º do CPPenal na interpretação segundo a qual a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal[7].

Não temos, também, a menor dúvida de que a hipótese configurada pelo recorrente é com algum grau de probabilidade a que corresponde à realidade dos factos.
Porém, tal como se depreende da sentença recorrida, esse não é único cenário que se pode formar a partir dos factos provados e muito menos para além da dúvida razoável.
O caso em apreço respeita a um momento isolado, sem ligação a outras situações localizadas no tempo antes ou depois deste acontecimento, deixando-nos, por isso, sem perceber, através da conjugação de outras circunstâncias, a natureza da relação entre os arguidos.
Salienta-se, neste ponto, que, ao contrário do alegado, não está relatado qualquer trânsito de e para casa do arguido CC, pelo que essa alegação se mostra impertinente.
A presença dos arguidos na zona do bloco ... e a existência de bens pessoais (telemóveis e um passe) dos arguidos AA e BB na residência do arguido CC ou a posse pelo arguido AA das chaves de casa e da caixa do correio deste último pode ter múltiplas explicações, começando, desde logo, por razões de amizade e convívio entre si. Uma vez que a natureza das ligações entre os arguidos são um dado desconhecido não podemos fundamentar ilações sólidas sobre aquelas invocadas circunstâncias.
Deve recordar-se que não vem comprovado qualquer acto de venda, ou sequer de movimentações que se destinassem a tal finalidade.
Assim, a droga que foi encontrada, quer na sala, quer na caixa do correio, da residência do arguido CC só a si pode responsabilizar.
Por outro lado, o facto de o arguido AA ter consigo € 149 divididos em 14 notas e várias moedas também nada demonstra. É verdade que esta repartição de dinheiro em várias notas é congruente com a venda de estupefacientes. Mas daí a concluirmos que esse dinheiro resulta da venda de estupefacientes e para além disso em conjunto com os outros arguidos, sem que se tivesse demonstrado, nem por aproximação, uma qualquer conduta tendente à comercialização de estupefacientes, é um salto no vazio.
Não podia aquele dinheiro ter outra origem? Claro que sim. E até podia ser fruto de venda de estupefacientes num outro contexto que nada tem a ver com os demais arguidos. Não sabemos, pois inexistem elementos conhecidos suficientes que permitam a ilação que o recorrente pretende retirar.
Também da posse de estupefacientes pelo arguido BB pouco se pode retirar para além da demonstração desse mesmo facto. Não podia aquele estupefaciente ser apenas seu (para consumo ou venda é irrelevante neste ponto da abordagem)? Claro que sim.
Mais uma vez, extrapolar deste facto para um cenário construído em que este arguido vende estupefacientes juntamento com os demais é ficcionar uma realidade que não tem suporte factual para existir.
É verdade que todos os referidos factos em conjunto criam uma suspeita consistente de que os três arguidos podiam estar organizados para proceder à venda de estupefacientes.
Mas não é, seguramente, uma suspeita para além da dúvida razoável, permanecendo em aberto como possíveis outras hipóteses de explicação dos factos provados para além da que consta das als. A), B) e C) dos factos não provados.
Para que as ilações retiradas dos factos conhecidos e provados pudessem conduzir à demonstração dos pontos A), B) e C) dos factos não provados seria necessária prova sobre a ligação entre os três arguidos à comercialização conjunta de estupefacientes, por exemplo, através de escutas telefónicas, de vigilâncias ou prova testemunhas por quem haja adquirido estupefacientes aos mesmos.
Sem a comprovação de uma tal realidade de fundo não é possível afirmar que o episódio de que tratamos nestes autos corresponde a uma co-autoria dos arguidos na prática de um crime de tráfico de menor gravidade.
A verdade é que, como já se afirmou, nem está demonstrado que no dia 13 de Outubro de 2020, de madrugada, junto ao bloco ... do Bairro ..., Porto tenha ocorrido qualquer acto de venda de estupefacientes ou que tenha sido estabelecido qualquer contacto com qualquer dos arguidos para esse efeito. Como é então possível concluir que os arguidos estavam ali a vender produtos estupefacientes a transeuntes que os abordavam para o efeito? Não é.
Como bem se salienta no acórdão desta Relação do Porto de 14-01-2015[8]
«I - Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.
II - Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:
a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;
b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;
c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.
III - Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade.»

No caso concreto, a factualidade provada não permite ultrapassar o limiar da mera probabilidade relativamente à veracidade dos factos ínsitos das als. A), B) e C) do elenco dos factos não provados, razão pela qual, à luz do princípio da presunção de inocência, se impõe concluir pela sua não demonstração.
Improcede nesta parcela o recurso apresentado.
*
Ainda neste segmento da actuação conjunta dos arguidos, na improcedência do reconhecimento do vício do erro notório na apreciação da prova, invoca o recorrente o erro de julgamento em sede de matéria de facto.
É jurisprudência pacífica que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração que for efectuada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios.
Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada e não à consignada pelo Tribunal.
E na análise da prova que apresenta na sua impugnação da matéria de facto (alargada) tem o recorrente de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[9]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[10]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, passemos à análise em concreto da impugnação da matéria de facto (alargada) apresentada pelo recorrente.
A sua pretensão é, mais uma vez, que os pontos de facto não provados A), B) e C) sejam dados como provados, passando a integrar o elenco da matéria de facto provada.
Nesse sentido, ao raciocínio que fundamentou a argumentação do segmento do recurso que se analisou anteriormente acrescenta o conteúdo do depoimento da única testemunha ouvida, o agente da PSP DD, transcrevendo excertos do seu depoimento onde o mesmo descreve a sua actuação no local ao abordar os arguidos.
De relevante deste depoimento, segundo recorrente, resulta que i) os arguidos AA e BB estavam juntos quando foram interceptados, ii) o arguido AA tinha a chave da caixa do correio da casa do arguido CC e que iii) nessa caixa foi encontrado o estupefaciente indicado no ponto de facto provado 5, tendo sido o arguido AA a indicar que no seu interior havia heroína e cocaína.
Quanto ao primeiro ponto, é preciso referir que resulta do depoimento mencionado que os arguidos não estavam sozinhos, mas integrados num grupo de várias pessoas que dispersou quando o veículo policial (descaracterizado) se aproximou, tendo sido possível interceptar os dois arguidos, que na altura se deslocaram para as traseiras do edifício.
O facto de os arguidos AA e BB estarem juntos não só já resultava do teor do ponto de facto provado 1 como não vemos que possa corroborar o sentido da pretensão do recorrente. Estavam aqueles dois arguidos e uma série de outras pessoas, não havendo relato de movimentações sugerindo, no momento, tráfico de estupefacientes entre si.
Que o arguido AA tinha a chave da caixa do correio da casa do arguido CC, onde foi encontrado estupefaciente, também já resultava dos pontos de facto provados 2 e 5.
Deve notar-se, porém, que o arguido AA não tinha apenas a chave do correio em questão, pois caso fosse essa a situação as ilações a tirar davam outra força à pretensão do recorrente. Com efeito, se eu dou a minha chave do correio a alguém é seguro que quero que essa pessoa ali vá buscar ou introduzir qualquer coisa cuja dimensão não é possível fazer entrar pelas ranhuras próprias. Porém, se entrego um conjunto de chaves onde está a de casa e a do correio posso apenas ter pretendido facultar a entrada em casa, escusando-me ao trabalho de estar a separar as chaves.
Ora, este arguido tinha dois conjuntos de chaves, um da sua residência e outro da residência do arguido CC, o qual tinha as chaves de casa e do correio.
As ilações a retirar colocam-nos no âmbito desta última situação descrita, sendo difusa a intenção com que foi entregue o conjunto das chaves.
Por fim, a indicação de que o arguido AA, aquando da sua intercepção, disse que no interior da caixa havia heroína e cocaína, suscita dois tipos de análise. Em termos lógicos e de ponderação de indícios, continua a não fazer a efectiva diferença valorativa no conjunto da prova indirecta recolhida, pois num cenário de amizade entre este arguido e o arguido CC (desconhecemos que tipo de relação os liga, como já se referiu) é possível e natural que o primeiro soubesse o que se encontrava naquela caixa do correio. Saber que alguém tem droga ou até trafica não torna essa pessoa co-autora do crime.
Mas ainda que assim não fosse, a questão fundamental que esta abordagem suscita é a da proibição de valoração desta parcela da prova por se traduzir na ponderação das chamadas conversas informais.
O recorrente considera que estas conversa é perfeitamente válida como elemento probatório, atendendo à fase cautelar em que ocorreu.
É verdade que num primeiro momento em que o OPC intercepta os arguidos, pois havia suspeitava de que estariam ligados à actividade de tráfico de estupefacientes, suspeita adensada com a dispersão do local do grupo de pessoas que ali observaram, estamos dentro do âmbito das medidas cautelares e de polícia admissíveis nos termos dos arts. 248.º e ss. do CPPenal.
Nessa medida, é perfeitamente adequado que os suspeitos interceptados sejam identificados e que se procedam a revistas ou buscas no lugar em que se encontrarem, de acordo com o disposto nos arts 250.º e 251.º do CPPenal.
Porém, a partir do momento em que, realizadas as revistas, o OPC encontra na posse dos suspeitos valores e objectos que indiciam ou são susceptíveis de indiciar a prática de um crime, como ocorreu no caso concreto com a apreensão de dinheiro ao arguido AA e de droga ao arguido BB, cessa a possibilidade de se estabelecerem conversas informais impulsionadas pelo OPC (como resulta do auto de notícia) que possam ser aproveitadas como meio de prova em julgamento.
É que, apesar de formalmente inexistir ainda inquérito ou constituição de arguidos, é certo e seguro que aqueles suspeitos vão ser constituídos arguidos em inquérito onde se irá apurar a sua responsabilidade criminal pela detenção do estupefaciente e do dinheiro suspeito.
Essa pré-condição é o suficiente para que possam beneficiar por inteiro dos direitos de defesa que qualquer arguido constituído teria.
Veja-se que a busca à caixa do correio do arguido CC não resultou de uma normal busca ao local onde os outros arguidos foram interceptados, nos termos do art. 251.º do CPPenal, pois da simples posse de um conjunto de chaves o OPC nunca conseguiria discorrer que o mesmo pertencia à caixa do correio da casa ... da entrada ... do bloco ... em causa.
Foi em resultado das questões colocadas pelo OPC em conversas informais tidas com o arguido AA que ali chegaram.
A aceitação como meio de prova válida do depoimento da testemunha DD na parte correspondente a conversas informais com o arguido AA, e nos termos em que ocorreu esse diálogo, representaria um caso de fraude à lei.
Com efeito, a reprodução ou leitura de declarações do arguido em audiência de julgamento mostra-se limitada às situações previstas no art. 357.º do CPPenal, nestas não se enquadrando, claramente as conversas informais tidas com os órgãos de polícia criminal, já que não materializadas em qualquer suporte que permita a sua reprodução ou leitura. Aliás, a ausência de um qualquer auto que possa assegurar a respectiva ocorrência nem podemos afirmar que processualmente existiu alguma conversa.
Por outro lado, o art. 356.º, n.º 7, do CPPenal, aplicável às declarações de arguido por remissão do n.º 3 do art. 357.º do mesmo diploma legal, determina que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
Ou seja, no caso dos autos, sendo evidente que tudo o que o arguido AA referiu ao OPC após a sua revista e a revista ao acompanhante BB, bem como após a apreensão de bens e valores aos mesmos, foi comunicado em respostas a questões colocadas em momento em que era patente que seria constituído como arguido, estava vedado ao Tribunal a quo aceitar o depoimento da indicada testemunha na parte em que recaiu sobre tais conversas informais, à margem das situações previstas no art. 357.º do CPPenal[11].
Mesmo que aquelas declarações tivessem sido reproduzidas em auto, a testemunha continuava impossibilitada de divulgar o seu conteúdo, ao abrigo dos mesmos preceitos, salvo se o arguido o tivesse solicitado (art. 357.º, n.º 1, al. a), do CPPenal), o que não ocorreu.
Conforme se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-12-2013 292/11.0JAFAR.E1.S1[12], «[o] agente de órgão de polícia criminal não pode ser inquirido como testemunha sobre o conteúdo de declarações formais que estão no processo ou de declarações informais que, devendo estar no processo por imposição legal, efectivamente não estão.»

Acresce que, sendo os arguidos jovens de idade inferior a 21 anos, relativamente aos quais se impõe a presença de defensor oficioso para a prática de qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido – art. 64.º, n.º 1, al. d), do CPPenal –, deveria o OPC ter simplesmente procedido à sua constituição como arguidos, sem mais.

Em suma, as mencionadas conversas informais estabelecidas com o arguido AA não o podem desfavorecer, não podendo ser valoradas, sendo certo que o conjunto da prova produzida – ainda que incluindo o trecho das conversas informais invocado – não permite dar como provados, para além da dúvida razoável, a factualidade constante das als. A), B) e C) dos pontos de facto não provados.
Pelas razões indicadas, tão-pouco permite o acrescento de factos que se procurou alcançar através da invocação da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto à (não) detenção de estupefacientes por parte do arguido AA, posto que fundamentado nestas mesmas conversas informais.
Improcedem, pois, igualmente estes segmentos do recurso.
*
Seguidamente, para a hipótese de não proceder a anterior argumentação quanto à actuação conjunta dos arguidos, sustenta o recorrente que a decisão padece do vício de erro notório na apreciação da prova relativamente à detenção de estupefaciente por parte do arguido BB.
Alega que ao ser dado como provado no ponto 3 que o arguido tinha consigo cocaína, canábis e MDMA era imperioso, «à luz das mais elementares regras da normalidade (art.º 127º do Código de Processo Penal)» que se desse como provado que queria ter consigo estas substâncias.
Este raciocínio, continua, «evidencia que o ponto C dos factos não provados, na parte relativa à detenção, deveria constar dos factos provados.»
Entende, assim, que devia ter-se dado como provado que o arguido BB actuou de modo livre, deliberado e consciente, sabendo que a detenção não lhe era permitida, querendo atuar desta forma, mantendo-se o demais que consta daquele ponto C) como não provado.
Concorda-se com o recorrente quanto à verificação da indicada incongruência, posto que à detenção do estupefaciente há-de corresponder um qualquer posicionamento interior do arguido.
Contudo, a questão é mais complexa e remete-nos para o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, já inicialmente identificado, e que é de conhecimento oficioso.
Na verdade, sendo a quantidade de droga encontrada na posse do arguido BB reduzida, é legítimo – mais ainda se nenhuma ligação é estabelecida entre este arguido e o arguido CC no âmbito da actividade de tráfico de estupefacientes – colocar-se a questão da finalidade daquela detenção, se para cedência a terceiros se para consumo pessoal.
É que, se não há dúvida de que o crime de tráfico de estupefacientes se mostra completo com a mera detenção de estupefacientes, independentemente da natureza ou quantidade, não é menos verdade que, em termos objectivos, igual afirmação pode ser realizada relativamente à detenção de estupefacientes para consumo, seja no âmbito do art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22-01, seja no do art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11.
Neste contexto, assume toda a relevância perceber da finalidade daquela detenção.
O Tribunal a quo não a indagou, presumindo, sem explicar o porquê, a sua detenção para consumo, mas sem que, concomitantemente, fixasse na matéria de facto provada essa mesma intenção.
Desta configuração resulta uma clara insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, pois, ao não ser dada como provada a detenção do estupefaciente para consumo próprio, o arguido não podia ser absolvido, sem mais, do crime de tráfico de menor gravidade em resultado da mera detenção, já que esta permite a consumação do crime imputado.
Esta deficiência não é passível de correcção por este Tribunal de recurso, pois falham elementos justificativos que permitam entender o percurso lógico da decisão, sendo certo que da mesma nem resulta – apesar de não ser elemento determinante – se o arguido era consumidor.
Neste segmento do recurso, impõe-se, por isso, o reenvio do processo para novo julgamento parcial, limitado ao apuramento e correcção das falhas de lógica mencionadas, indagando-se do destino do estupefaciente detido (ou ausência dele) e proferindo-se decisão em conformidade.
No sentido da solução aqui encontrada, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31-10-2006[13], segundo o qual:
«I - A simples detenção de estupefacientes que está prevista no art. 21.º e no tipo privilegiado do art.º 25.º, do DL 15/93, de 22-01, é também comum à situação prevista no, para quem vem entendendo que esta norma não foi revogada pelo art. 28.º da referida Lei 30/2000.
II - Neste quadro de análise, e independentemente da posição jurídica que, de entre as duas referidas, se partilhe, torna-se decisivo determinar qual o fim a que a droga apreendida ao arguido (53,60 g de canabis) era destinada.
III - Exercido pelo tribunal o dever oficioso de averiguar e esclarecer o referido fim, se subsistirem, a final, dúvidas sobre o destino da droga, esse estado de dúvida deve reverter a favor do arguido, de acordo com o princípio in dubio pro reo.
IV - Não tendo o tribunal a quo apurado qual o destino da droga encontrada na posse do arguido (53,60 g. de canabis), a matéria de facto que o mesmo deu como provada é, no ponto em causa, insuficiente para a decisão, nos precisos termos do art. 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.»
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcial procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:
a) - Reconhecer verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPPenal, e, em consequência, determinar, ao abrigo do disposto no art. 426.º do CPPenal, o reenvio parcial do processo para novo julgamento, limitado ao apuramento e correcção das falhas de lógica supramencionadas quanto à conduta singular do arguido BB, tendo em conta os factos já provados e o que se vier a apurar quanto ao destino do estupefaciente detido (ou ausência dele) e o mais necessário à completude da decisão, proferindo-se sentença em conformidade em sede de matéria de facto e de direito. O novo julgamento será realizado de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial;
b) - No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida, com o âmbito aqui apreciado, nos seus precisos termos.
Sem tributação.
Notifique.

Porto, 25 de Janeiro de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
_________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. acórdão do STJ de 28-06-2018, relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 687/13.4GBVLN.P1.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[3] Cf. acórdão do TRL de 01-06-2016, relatado por Albertina Pereira no âmbito do Proc. n.º 24 781/15.8T8LSB.L1-4, acessível in www.dgsi.pt.
[4] Cf. acórdão do STJ de 15-01-2015, relatado por Helena Moniz no âmbito do Proc. n.º 92/14.5YFLSB, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Cf. acórdão do STJ de 20-12-2006, Proc. n.º 3379/06, citado no acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 05-12-2007, relatado por Raul Borges no âmbito do Proc. n.º 07P3406, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Cf. acórdão do TRL de 14-04-2015, CJ, XL, tomo II, pág. 314.
[7] Cf. acórdão n.º 521/2018, de 17-10-2018, relatado por Gonçalo Almeida Ribeiro e acessível in www.tribunalconstitucional.pt., aí se fazendo ainda referência ao acórdão n.º 391/2015 do mesmo Tribunal.
[8] Relatado por Eduarda Lobo no âmbito do Proc. n.º 502/12.6PJPRT.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[9] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[10] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[11] Neste sentido, desta Relação do Porto, vejam-se os acórdãos de 12-10-2011, Proc. n.º 2/08.9GCVPA.P1, 21-03-2012, Proc. n.º 628/11.3GAMAI.P1, 13-06-2012, Proc. n.º 1222/11.4JAPRT.P1, e 01-07-2015, Proc. n.º 425/11.6GFPNF.P2, todos acessíveis in www.dgsi.pt, aqui se afirmando que : «Do disposto nos artigos 357º, nº 1 e 3, e 356º, nº 7, do Código de Processo Penal resulta que os órgãos de polícia criminal não podem ser inquiridos sobre o que tenham ouvido dizer ao arguido quando não seja este a solicitar essa inquirição. E, para este efeito, o regime é o mesmo tratando-se de depoimento reduzido a auto ou de “conversa informal”, antes ou depois da constituição formal como arguido ou da abertura formal do inquérito (a ratio do preceito aplica-se em qualquer destas situações; se assim não fosse, poder-se-ia «deixar entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta»).»
[12] Relatado por Santos Cabral no Âmbito do Proc. n.º 11.0JAFAR.E1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
[13] Relatado por Alberto Mira no âmbito do Proc. n.º 1842/06-1, acessível in www.dgsi.pt.