Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1304/15.3T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SÃO PEDRO SOEIRO
Descritores: PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO
ÂMBITO DE APLICAÇÃO
DEVEDORES NÃO EMPRESÁRIOS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RP201510121304/15.3T8STS.P1
Data do Acordão: 10/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários, isto é, que não exerçam, elas mesmas e por si, uma actividade económica, como é o caso dos requerente, em que o requerente exerce actividade remunerada por conta de outrem e a requerente é doméstica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO Nº1304/15.3T8STS.P1

Acordam no tribunal da Relação do Porto – Secção Cível:

B…, gerente, e mulher C…, empregada de balcão, residentes na Rua …, …, em Valongo, vieram nos termos do disposto nos art. 17º-A e ss do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), intentar o presente processo especial de revitalização.
Alegaram, para o efeito e no essencial, que e têm duas filhas. Foram e são sócios de sociedade denominada D…, Lda, com sede em Valongo.
Para o desenvolvimento do projecto social da empresa contraíram empréstimos, avalizaram e afiançaram várias operações de crédito, mas actualmente, por falta de liquidez encontram-se em situação económica difícil, com sérias dificuldades em cumprir com as suas obrigações para com terceiros, reunindo porém as condições necessárias para a sua recuperação.

Em 16.04.2015 o Tribunal a quo exarou a fls 44 e 45 o despacho recorrido com o seguinte teor:
“O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (art. 17º–A/1 do Código da Insolvência e da
Recuperação de Empresas).
O processo especial de Revitalização (PER) foi introduzido no ordenamento jurídico português pela Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, pretendendo-se a obtenção de um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência atual, uma vez que a situação económica obriga a procurar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento dos agentes económicos, pois que por cada agente que desaparece acresce um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, gerando desemprego e extinguindo oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011).
Assim, após estudo mais aprofundado do regime jurídico estabelecido pelo supra citado diploma, verifica-se que o processo especial de revitalização foi construído em torno da ideia da recuperação de agentes económicos, ou seja, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma atividade autónoma e por conta própria gera receita e/ou cria emprego, não sendo aplicável a pessoas singulares que não sejam devedores empresários (neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.2015 disponível em www.dgsi.pt e Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, pg. 143).
Para os devedores pessoas singulares não empresários existem no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas outros mecanismos legais a que podem, querendo, recorrer e que oferecem uma resposta às situações económicas comprovadamente difíceis mas recuperáveis, como seja a apresentação à insolvência com plano de pagamentos prevista nos art. 249º e ss. do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, indefiro liminarmente o Processo Especial de Revitalização requerido por B…, e mulher C…, em virtude de não se mostrarem preenchidos os requisitos exigidos para desencadear o processo especial de revitalização uma vez que, não sendo os requerentes comerciantes ou empresários, nem exercendo por si mesmos qualquer atividade autónoma e por conta própria, não se mostra justificado o recurso a este processo de revitalização.
(…)”

Inconformados vieram os requerentes interpor o presente recurso formulando as seguintes conclusões:
«A) Na sentença recorrida entendeu-se que o PER não se aplicava a pessoas singulares não comerciantes, tendo sido citado na mesma o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.2015 disponível em www.dgsi.pt;
B) É referido na douta sentença que existiu um estudo aprofundado sobre a questão;
C) Inexistiu qualquer estudo aprofundado sobre a questão pelo tribunal a quo porque o acórdão citado nem que sequer teve por objeto a admissibilidade ou não de um PER de pessoa singular não comerciante;
D) O Acórdão citado teve apenas por objeto a remuneração devida (ou não) ao administrador judicial provisório nomeado;
E) O julgador do tribunal a quo ficou-se pela leitura do sumário daquele acórdão o qual é completamente erróneo face ao seu teor, conteúdo e objeto;
F) O acórdão citado refere que B… pessoa singular, divorciada, professora, não comerciante, … detendo em regime de compropriedade os bens que identifica, e que estão onerados com hipotecas, refere a existência de processos executivos em curso na qual é devedora por aval; detendo um capital necessário para pagar aos seus credores e que ela e um credor manifestaram vontade de encetarem negociações conducentes à sua revitalização através de um plano de recuperação;
G) Daqui resulta que no processo nº 3700/13.1TBGDM.P1, no qual foi proferido o acórdão em questão, foi admitido liminarmente o PER de uma pessoa singular, não comerciante, o qual veio a ser indeferido por duas razões, a saber: porque foi excedido o prazo previsto no nº 5 do art.º 17º-D sem que tenha sido apresentado o plano de recuperação e porque a nova lista apresentada pelo Administrador Judicial Provisório foi indeferida e por via disso foi determinado o encerramento do processo;
H) Neste mesmo acórdão é referido que tem-se entendido, pelo menos na generalidade das decisões judiciais que tal processo especial também se aplica às pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes;
I) É inequívoco que o processo especial de revitalização se aplica a todo o devedor, “titular ou não de uma empresa” tal como defende, entre outros Autores, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2014, pág. 280, ou seja, que tal processo especial também se aplica às pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes;
J) No caso dos autos temos duas pessoas singulares que, por intermédio de uma empresa exerceram o comércio, a qual ainda se encontra ativa, e que o Recorrente marido é sócio e gerente de uma outra empresa do mesmo ramo das telecomunicações;
K) Daqui resulta que apesar dos comerciantes por excelência serem as duas empresas, o que é facto é que ambos Recorrentes estão intimamente ligados à prossecução do objeto social de ambas, porque são sócios nas referidas empresas;
L) Em consequência da execução do objeto social daquelas, avalizaram diversas operações financeiras pelas quais hoje estão a ser demandados;
M) Pelo que, dúvidas não podem subsistir que é possível aos Recorrentes o recurso ao processo especial de revitalização, razão pela qual a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por um acórdão que admita liminarmente o referido processo e ordene o prosseguimento do mesmo até final;
N) A sentença recorrida efetuou uma errada interpretação da lei isto porque o art.º 17-A do CIRE refere no seu nº 1 que é permitido ao “devedor” estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducentes à sua recuperação e o seu nº 2 refere que este processo pode ser utilizado por todo o devedor;
O) Este normativo não distingue pessoas coletivas nem pessoas singulares, não distingue comerciantes dos não comerciantes, refere sim “TODO O DEVEDOR”, e era nesse sentido que o Tribunal a quo deveria ter interpretado a lei e deveria ter admitido liminarmente o solicitado PER e não o indeferido liminarmente, até porque aquele reúne todas os requisitos exigidos por lei.»

Por se ter entendido que este processo não tem parte contrária e o MºP não ter intervenção processual, foram os autos remetidos a este Tribunal sem notificação para contra alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A única questão que urge apreciar é de saber se os requerentes/devedores, pessoas singulares, ele gerente e ela empregada de escritório , sócios de uma sociedade e que, com vista a desenvolver o objecto social da empresa, contraíram diversas obrigações e, por isso encontram-se em situação económica difícil, com dívidas, mas ainda em situação de não insolvência, podem recorrer ao processo de revitalização previsto no arts.17º e segs do CIRE
O Processo Especial de Revitalização (PER) foi introduzido no ordenamento jurídico português pela Lei 16/2012, de 20 de Abril e, como resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011, “pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual.
(…)A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” dos agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”.
Tem-se entendido, que o processo especial de revitalização se aplica a qualquer devedor, “titular ou não de uma empresa” (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2014, pág. 280 e Luis M. Martins, Processo de Insolvência, 2014, 3ª Edição, pág.100, ou seja, que tal processo especial também se aplica às pessoas singulares, mesmo que não sejam comerciantes.
Sendo o processo de revitalização aplicável a todo o devedor, refere Luis M. Martins, ob.cit, pág.101 “Para ser um “devedor” elegível no âmbito do PER, o devedor tem de se encontrar numa de duas situações:
a)Estar numa situação económica difícil, encontrando-se nesta situação “…o devedor que encontrar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente, por falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito…”-cfr.art.17º-B;
b)Estar numa situação de insolvência meramente iminente, ou seja, ter a percepção de que, de futuro e num curto prazo, não consegue cumprir as suas obrigações vencidas.”
Parece-nos, no entanto, como se diz na decisão recorrida, apontando nesse sentido o Ac. desta Relação de 23.02.2015, proc. nº3700/13.1TBGM.P1, “o processo especial de revitalização foi construído em torno da ideia da recuperação de agentes económicos, ou seja, de comerciantes, de empresários ou de quem exerce uma actividade autónoma e por conta própria que gera receita e/ou cria emprego, não sendo aplicável a pessoas singulares que não sejam devedores empresários.”
Neste sentido, escreve Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, Quid Juris, págs. 142/143, nota 8: “De todo o modo, o apelo à recuperabilidade como vetor matricial do processo de revitalização introduz a questão da delimitação do respetivo âmbito de aplicação. Perante o teor literal do preceito, dir-se-ia que ele abrange qualquer devedor, independentemente das respetivas natureza e qualidade. Cremos, todavia, existir um bom par de razões para um entendimento distinto. Com efeito, a ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário. Foi assim, sem dúvida, na vigência do CPEREF, como o foi enquanto prevaleceu o regime do Decreto-Lei n.º 177/86, de 2 de julho. Foi ainda assim com o procedimento especial de conciliação, previsto e regulado pelo Decreto-Lei n.º 316/98, de 20 de outubro, e é-o agora com o denominado SIREVE – Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial -, cuja disciplina consta do Dec.-Lei n.º178/2012, de 3 de agosto. E é-o também com o CIRE, como facilmente se induz da própria denominação do Código e também se comprova pelo seu art.º 1.º, quer na respectiva versão originária, quer na resultante da alteração operada pela Lei 16/2012. Por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização, inserida na revisão do Código, foi, como confessado na exposição de motivos que fundamentou a apresentação pelo Governo à Assembleia da república da Proposta de Lei n.º 39/XII, a promoção da recuperação, “privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, acrescentando-se, aliás, mais adiante que “a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar solução que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”. Manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial, no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para efeitos do Código – na globalidade deste! -, e agora também do SIREVE (cfr. art.º 2.º, n.º 2 do Dec.-lei n.º 178/2012), se acolhe no art.º 5.º. Acode, também, uma outra razão que não se deve ter por despicienda. É que, embora já num enquadramento insolvencial, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos artigos 251.º e seguintes, por força do qual não de vê particular utilidade em cumular a possibilidade de recurso, por eles, ao processo de revitalização, com o consequente e, cremos, ineficiente consumo de recursos que este processo implica – judiciais e atinentes à administração provisória, de nomeação e envolvimento obrigatórios. Temos, pois, por adequada a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a consequente restrição ao sentido literal do texto. Neste sentido, a mais dos pressupostos objetivos do processo de revitalização que se materializam na situação económica difícil ou de insolvência iminente do devedor e da sua recuperabilidade, acresce o pressuposto subjetivo traduzido na exigência de que se trate de um devedor em cujo património se integre uma empresa – devedor empresário”
Pelo que, entendemos, tal como na decisão recorrida, que este processo especial de revitalização é inaplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes, empresários ou, dito de outro modo, que não exerçam, elas mesmas e por si, uma actividade económica
No caso, alegam os recorrentes que se encontram numa situação económica difícil, por terem contraídos diversas obrigações – empréstimos, avalizaram e afiançaram diversas operações – com vista ao desenvolvimento do objecto social de uma empresa, da qual são sócios.
No entanto, visam os recorrentes com o presente processo não a insolvência ou revitalização de uma empresa e serem, mas sim a insolvência enquanto pessoas singulares. Os requerentes, enquanto pessoas individuais, não empresários ou comerciantes não podem, como se diz na decisão recorrida, recorrer a este processo de recuperação (PER), nos termos do art.17-A do CIRE.

Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.

Porto, 2015.10.12
Isabel São Pedro Soeiro
Maria José Simões
Abílio Costa