Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2179/09.7TAVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
AEROSSOL
FACA BORBOLETA
Nº do Documento: RP201506052179/09.7TAVLG.P1
Data do Acordão: 06/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – É uma arma da classe A o aerossol cujo conteúdo (e em particular o tipo de gás) se desconhece.
II – Antes da redação dada pela Lei n.º 17/2009, de 6 de maio, ao art. 2º da Lei das Armas, uma “faca de borboleta” com lâmina de 9 cm não era arma proibida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal 2179/09.7TAVLG.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No TRIBUNAL DA COMARCA DO PORTO, Instância Local de Santo Tirso, Secção Criminal, foram julgados em processo comum (nº. 2179/09.7TAVLG Juiz 2) e perante Tribunal Singular, os arguidos “B…, Lda.” e C…, representante legal da "B…, Lda.", devidamente identificados nos autos, tendo a final sido proferida sentença com a seguinte decisão:
“(…)
Face ao exposto, julgo totalmente procedente a acusação pública deduzida e, consequentemente, decide-se:
a) Condenar o arguido C… pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, nº. 1, alínea d), da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro na pena de 200 dias de muita, à taxa diária de € 6,50, o que perfaz o montante de €1.300,00.
b) Condenar a sociedade "B…, Lda." pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86°, nº. 1, alínea d), e 95°, ambos da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €100,00, o que perfaz o montante de €12.000,00.
c) Condenar cada um dos arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC's.
d) Declarar os objectos referidos no ponto 3 dos factos provados perdidos a favor do Estado e determino, após trânsito, que os mesmos sejam entregue à PSP para os fins tidos por convenientes.
(…)”
Inconformados com tal decisão, os arguidos recorreram (conjuntamente) para esta Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
1º O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal "a quo" que condenou o Recorrente C… pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €6,50, o que perfaz o montante de € 1.300,00. E condenou, também, a Recorrente B…, Lda., pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 100,00, o que perfaz uma pena de multa no montante de € 12.000,00.
2º Os Recorrentes não se conformam com a decisão proferida, e, as razões de discordância incidem quer sobre a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, quer sobre a aplicação do direito, como a seguir se descreverá.
3º Em primeiro lugar e como opção sistemática, e sem prejuízo do que mais à frente de concluirá, cumpre, desde logo, dizer que sentença proferida pelo Tribunal "a quo" violou o princípio geral sobre a aplicação da lei no tempo.
4º Assim, o Recorrente C… foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86, nº. 1, aliena d) da Lei nº. 5/2006, que à data dos factos (na decisão em recurso está citada a redacção actual do artigo), dispunha o seguinte; "Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver (...) arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objecto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da aliena a) do n.º7 artigo 3°, armas lançadoras de gases, bastão eléctrico, arma eléctricas não constantes da aliena b) do n.º 7 do artigo 3°, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, munições, bem como munições com os respectivos projecteis expansivos, perfurantes, explosivos ou incendiários, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias."
5º Do cotejo da sentença em recurso, colhe-se que a decisão para efeitos de condenação do Recorrente C… e da Sociedade B… aplicou o artigo 86, nº. 1, alínea d) da Lei nº. 5/06, de 23 de Fevereiro, com a redacção introduzida pela Lei nº. 12/2011, de 27 de Abril, no âmbito da qual ao crime de detenção de arma ilegal corresponde uma moldura abstracta de pena de prisão até 4 anos ou pena de multa até 480 dias.
6º Sucede que, à data da prática dos factos, a norma em causa dispunha que a esse crime correspondia uma moldura penal abstracta de pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
7º Ora, dispõe o artigo 2°, nº. 1 do Código Penal que "as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem". Pelo que, o Tribunal "a quo" só poderia e deveria aplicar a redacção actualmente em vigor se essa fosse mais favorável ao Recorrente, o que, como se viu não é o caso.
8º No caso dos autos, é seguro que a sentença em recurso analisou os factos, bem como ponderou e formulou a condenação com base na redacção actual da norma que tipifica o crime de que os Recorrentes foram condenados.
Pelo que, ao faze-lo a sentença proferida é, desde logo, nula, por violação do disposto no artigo 2° do Código Penal, devendo, consequentemente, ser revogada e declarada de nenhum efeito.
9ª Sem prescindir, entendem os Recorrentes o Tribunal "a quo" fez uma errada apreciação da prova constante e da prova produzida nos autos, e, que, consequente, se traduziu numa clara contradição e falta de fundamentação da decisão.
10ª Assim, como se colhe da fundamentação da decisão em recurso para a decisão tomada sobre a matéria de facto, o Tribunal "a quo" considerou e fundou-se, essencialmente, no ter do "relatório do exame pericial" efectuado às armas e acessórios apreendidos, pelo Núcleo de Armas e Explosivos do Comando Metropolitano do Porto da Policia de Segurança Publica, o qual consta de fls. 87, 87 verso e 88.
11ª O Tribunal "a quo" considerou provados os factos constantes do número 3 da matéria de facto dada como provada, precisamente com base no documento de fls. 87, 87 verso e 88 dos autos.
12ª De modo que, a esse propósito, na sentença em recurso consta o seguinte: "De tal relatório foi possível extrair as características das armas e acessórios em causa, concretamente quanto à respectiva classe, calibre das armas e munições, características dos aerossóis, das navalhas facas borboleta e corrediças metálicas, factos que resultaram inequivocamente provados dado o valor probatório da perícia" (sublinhado nosso).
13ª Sucede que, salvo o devido respeito por melhor opinião, o documento em causa não é uma perícia, ou seja, não pode ser considerado como prova pericial, mas é sim e apenas um exame directo ao material apreendido. De facto, compulsados os autos, resulta que nenhuma perícia foi determinada - veja-se despacho de fls. 79. O que foi sim solicitado foi um exame aos objectos. A que acresce que, a realização de prova pericial obedece e está condicionada a outros requisitos formais, mormente a notificação ao Arguido da realização da mesma, o que é seguro não ocorreu.
14ª Sendo assim seguro que nenhuma perícia foi realizada nos autos, nem o Tribunal "a quo" poderia considerar na fundamentação da matéria de facto um exame pericial, ou seja, uma prova pericial, o referido documento de fls. 87 e 88 é um auto de exame directo. A que acresce que, encontra-se nos autos outro auto de exame directo dos objectos - a fls. 24 e seguintes - que curiosamente apresenta constatações diferentes.
15ª Os exames directos são meios de obtenção de prova. O exame directo traduz-se numa descrição do constatado fruto da observação, do visionamento directo, que depois é relatado ou registado. Pelo contrário, a perícia é conclusiva, e resulta numa interpretação ou juízo científico. Nos presentes autos não ocorreu qualquer perícia, mas sim exames directos aos objectos, mais concretamente dois, um a fls. 24, 25, 26 e 27 dos autos e outro a fls. 87 e 88.
16ª Os dois autos de exames directos apresentam constatações diferentes. Veja-se que o auto de exame de fls. 24 constata tratar-se de duas corrediças, incapacitada, sem valor venal. Aliás, este auto de exame com excepção das duas facas borboleta e dos aerossóis, constatou que os demais objectos estão incapacitados.
17ª Porém, a sentença em recurso apenas refere-se ao auto de exame directo de fls. 87 e 88, mas, mesmo este, como se verá, não permite retirar as conclusões que foram vertidas na sentença em recurso, e sempre impunha considerações e conclusões diversas, sobre os factos em causa nos autos.
18ª Assim, analisemos o dito auto de exame directo dos objectos, e não exame pericial, e vejamos as razões do invocado erro de apreciação da prova. Relativamente aos aerossóis: o auto de exame directo diz que se tratam de quarenta e um aerossóis de defesa, classe A, marca BODY_GURAD, com 40ml, de gás C.S.- PARAL/SANT, com 9cm de comprimento e com 3,5 cm de diâmetro, fabricados na Alemanha, encontram-se me bom estado de conservação e carregados com gás.
19ª O aludido exame directo não diz mais nada, ou seja, diz que é classe A, mas pergunta-se porquê. Realçando-se que em audiência de julgamento - como se colhe da fundamentação - não foi produzida qualquer outra prova a propósito dos objectos, ou seja e mais concretamente, não foram ouvidos os agentes da autoridade que elaboraram o auto de exame directo de fls. 87, 87 verso e 88.
20ª Assim sendo, dizer-se que um determinado objecto enquadra-se na classe A das armas, sem mais, salvo o devido respeito, não tem qualquer valor.
21ª Pelo que, a prova produzida nos autos é claramente insuficiente para se ter enquadrados os aerossóis como armas da classe A, devendo o ponto três da matéria de facto dado como provado relativamente aos aerossóis ser dada como não provada.
22ª Caso assim senão entenda, mas sem prescindir, dispõe o artigo 3°, n° 7, aliena a) da Lei n° 5/2006, de 25 de Fevereiro (redacção vigente à data dos factos) que "São armas da classe E, os aerossóis de defesa com gás cujo princípio activo seja capsaicina ou oleoresina de capsicum (gás pimenta)." E, por sua vez, dispondo a aliena h) do n° 2 da mesma norma que "São armas da classe A os aerossóis de defesa não constantes da aliena a) do n° 7 do presente artigo e as armas lançadoras de gases".
23ª Deste modo, face às disposições legais atrás citadas, e em face do auto de exame directo, cabe perguntar porque é que os aerossóis em causa nos autos se enquadram na classe A, e não classe E.
24ª É que os aerossóis com gás pimenta são um gás lacrimogéneo. O auto de exame directo apenas refere que os aerossóis são de gás c.s. O auto de exame directo refere que são de gás c.s - paralisantes são todos - mas não diz qual o princípio activo se é a cpsaicina ou oleoresina de capsicum, ou outro. Deste modo, o auto de exame directo é notório e claramente insuficiente para permitir concluir-se na sentença em recurso que os aerossóis em causa nos autos pertencem à classe A.
25ª E, aliás, na sentença em recurso, também, não consta qualquer fundamentação, qualquer análise e conclusão porque se entendeu enquadrar esses objectos (aerossóis) como armas de classe A. Em rigor, cumpre dizer, que a única referência constante dos autos a esse propósito resulta do despacho de encerramento do inquérito, mais concretamente a fls. 1 80. Embora não se concorde com o enquadramento, é certo que é feita uma análise e enquadramento dos objectos. Contudo, em mais nenhuma parte dos autos é feita uma análise e fundamentação para o enquadramento desses objectos (aerossóis) como armas da classe A, nem na acusação, nem para o que presente interessa, na sentença.
26ª Por conseguinte, a prova que foi produzida é clara e manifestamente insuficiente para o Tribunal "a quo" ter concluído que os aerossóis apreendidos nos autos pertenciam à classe A das armas, devendo ser considerado não provado que os quarenta e um aerossóis de defesa, marca BODY-GUARD pertençam à classe A das armas.
27ª Relativamente às navalhas "facas borboleta", foi, também, considerado provado que o Recorrente C… detinha duas navalhas "facas borboleta", classe A.
28ª E, também neste caso, foi o apelidado de relatório pericial, que fundamentou tal entendimento. Pois bem, no referido documento de fls. 87 verso diz-se que "trata-se de uma navalha faca de borboleta, classe A, de uma lâmina articulada em aço inoxidável com 82 mm de comprimento" e "trata-se de uma navalha faca borboleta, classe A, de uma lâmina articulada em aço inoxidável com 97mm de comprimento".
29ª E, o Tribunal "a quo" com base no dito auto de exame directo, e por, citando a lei (alínea av) do n° 1 do artigo 2° da Lei n° 5/2006, de 23.02) considerou as referidas navalhas armas brancas, e condenou o Recorrente C… pela sua detenção.
30ª Todavia, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, tais objectos não poderiam ser considerados armas da classe A. isto porque, a Lei n° 5/2006, de 23.02 (à data da prática dos factos) refere-se aos objectos em causa (navalhas), no artigo 2°, n° 1, alienas l) e aq), que têm que se interpretadas em conjunto.
31ª As facas borboleta apreendidas e em causa nos autos têm, respectivamente, 82mm e 97 mm de comprimento.
32ª Ora, dispõe o artigo 2°, n° 1 alínea l) da Lei n° 5/2006, de 23.02 (redação à data da prática dos factos) que é "arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lamina ou outra superfície cortante ou perfurante de comprimento igual ou superior a 10 cm" (sublinhado nosso).
33ª Consequentemente, atendendo a que as facas borboleta em causa nos autos não têm lâmina superior a 10cm, não poderiam as mesmas ter ser consideradas como armas da classe A, ou seja, proibidas, e não poderia o Recorrente C… ter sido condenado por as deter.
34ª A este propósito veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo n° 0845701, de 03.12.2008, em www.dgsi.pt. que no seu sumário refere o seguinte "não é uma arma proibida uma «faca borboleta» com lâmina de 9cm".
35ª Pelo que, o Tribunal "a quo" não poderia ter dado como provado que as duas navalhas "facas de borboleta" em causa nos autos pertenciam à classe A das armas, e, consequentemente, ter condenado o Recorrente C… pela sua detenção.
36ª Relativamente, aos demais objectos apreendidos e que fundaram a condenação dos Recorrentes, entende-se que, também, ocorreu um claro erro na apreciação da prova.
37ª Pois bem, na sentença aqui em recurso, em sede de fundamentação, está dito o seguinte; "Importa ainda sublinhar que o alegado mau estado das armas e acessórios apreendidos não é corroborado pelo exame feitos aos mesmos (com excepção da munição calibre 6mm, obsoleta, como aliás referido na acusação), nem aquele exame é referida qualquer data de validade dos aerossóis".
38ª Acontece que, se, por um lado, nos basearmos no exame directo de fls. 24 a 27 constatamos que, com excepção dos aerossóis e das duas facas, tudo o mais está incapacitado, e sem valor venal. Acrescendo que, mesmo que só se considere o auto de exame directo de fls. 87 e 88, podemos, desde logo, constatar o seguinte; - treze cartuchos munições SRINGFIELD, em razoável estado de conservação;.- uma munição calibre 44-40 WINCHESTER em mau estado de conservação; - uma munição calibre 22 SHORT em mau estado de conservação; - duas corrediças metálicas, calibre 8mm, uma partida na ponta interior, e uma munição 6 mm BELO-DOG, em mau estado de conservação. Esta é a dita ABSOLETA.
39ª Desta forma, ao contrário do que consta da sentença em recurso não era apenas a munição calibre 6 mm que estava em mau estado. Pelo contrário, apenas as dez munições calibre 6,35, uma munição calibre 22, e uma corrediça estavam em bom estado de conservação.
40ª O Tribunal "a quo", ressalvado o devido respeito por melhor opinião, fez assim uma clara, notória e errada apreciação da prova constante dos autos, mormente na análise dos autos de exame directo realizados.
41ª Porquanto, não era apenas a munição dita obsoleta que estava em mau estado de conservação, mas, também, a munição calibre 44-40, a calibre 22 SHORT, e uma corrediça estava partida na ponta. Estes factos deveriam e impõe-se que sejam considerados provados, o que se requer. Devendo ser considerado provado o estado em que se encontravam as munições e partes de armas constantes da conclusão 38°.
42ª Acresce que tais factos permitem concluir que (com excepção dos aerossóis) todos os objectos eram usados. Isto facilmente se depreende do auto de exame directo, quando se refere em bom estado, em estado razoável, e mau estado. De facto, tais observações são próprias da análise de objectos usados.
43ª A que acresce outro facto, qual seja os locais onde os objectos se encontravam. De facto, como se constata das fotografias que se encontram juntas aos autos, juntas ao auto de busca e apreensão (fls.5 a i5) tais objectos encontravam-se espalhados pela "oficina" junto com muitos outros, ou seja, não estavam escondidos, dissimulados ou ocultados por que forma fosse.
44ª Estes factos confirmam objectivamente as declarações do Recorrente C…, ou seja, que seriam munições que foram retiradas de armas que foram entregues para reparação. Note-se que o Recorrente possui outros estabelecimentos onde as reparações também eram feitas, mas muitas das vezes, como é compreensível, os clientes entregavam-nas naquele local.
45ª As próprias características das munições também o demonstram claramente, ou seja, eram munições diferentes, provenientes de diferentes armas, que foram retiradas das mesmas, e, seriam, posteriormente destruídas.
46ª Acrescendo que, ao contrário do constante na fundamentação da decisão em recurso, é facto facilmente compreensível e adquirido por qualquer pessoa, que ao receber uma arma, fosse verificado se existia alguma munição na câmara, e em caso afirmativo, retira-la para poder ser manuseada em segurança.
47ª Além do que, também não se mostra claramente desconforme às regras da experiência comum, bem pelo contrário, que alguém leve uma arma para reparar com uma munição na câmara. Basta lembrarmo-nos de vários acidentes com armas protagonizados por pessoas que limpavam armas, ou por crianças que por qualquer razão tiveram acesso a uma arma.
48ª Como consta dos autos o Recorrente não detinha caixas de munições, existiam sim munições diversas, em mau estado e espalhadas. Por conseguinte, está assim claramente demonstrada e justificada a razão da detenção das referidas munições.
49ª Sem prescindir, em rigor dos factos, como consta da informação prestada pela Policia de Segurança Publica datada de 29.10.2014, que foi junta aos autos na secção de audiência de julgamento de 31.1 0.201 4, o Recorrente C… à data dos factos tinha licença de uso e porte de arma da Classe C (n° ../../2007) e até 2007 também teve licença para uso e porte de arma da classe B1. Por conseguinte, em bom rigor também poderia deter as munições em causa.
50ª Relativamente às partes de armas (corrediças) como consta do auto de exame directo uma estava partida. O que confirme as declarações do Recorrente de que eram de armas que tinham sido deixadas para reparar e seriam para destruir.
51ª Estes factos deveriam ter sido considerados provados, e considerados pelo Tribunal "a quo", e, consequentemente, o Recorrente nunca deveria ter sido condenado pela detenção dessas munições e partes de armas, pois desde logo estava justificada a sua detenção, além de que por ter licença de uso e porte de arma, podia detê-las.
52ª Sem prescindir de todo ao atrás alegado, cumpre, ainda, dizer o seguinte sobre a condenação - responsabilidade criminal - da Recorrente B…, Lda.
53ª O direito penal, em regra, pune a responsabilidade individual. Porém, é certo que nos termos do artigo 95° da Lei n° 5/2006, de 23.02, as pessoas colectivas poderão ser responsabilizadas. Trazendo- se aqui, também à colação o disposto no artigo 11° do Código Penal.
54ª Deste modo, é seguro que para se possa condenar uma pessoa colectiva é necessário a verificação de dois requisitos, ou seja, que o agente tenha actuado em seu nome e no interesse colectivo.
55ª No caso sub judice, a fundamentação da condenação da Recorrente B…, Lda., baseou-se e só no seguinte; "No caso em apreço, o arguido C… é sócio e gerente da B…, desde a sua constituição. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, e também em representação da sociedade arguida, no âmbito da actividade de comércio que a mesma tinha como fim."
56ª Pois bem, ressalvado o devido respeito por melhor opinião, a condenação da Recorrente B…, carece de fundamentação.
57ª Isto porque, quanto ao requisito do interesse colectivo, salvo melhor opinião a decisão carece de fundamento, não se aceitando como tal a simples menção que o Recorrente C… agiu no âmbito da actividade de comércio que a mesma tinha como fim.
58ª Os Recorrentes não foram acusados de comercializar qualquer arma, ou parte de arma não permitida legalmente, no estabelecimento da Recorrente B…. A verificação do requisito necessário para punição da Recorrente, qual seja a actuação no interesse colectivo, impõe que fosse provado e devidamente fundamentado que o Recorrente C… actuou tendo em vista o funcionamento e prossecução dos fins da sociedade, que tenha praticado os factos com a finalidade de realização dos objectivos sociais da sociedade comercial.
59ª O fim de uma sociedade comercial é o lucro, e não foi provado nem demonstrado a existência de qualquer proveito lucrativo ou económico para Recorrente B….
60ª Pelo que, sem prejuízo de todo o atrás alegado, a Recorrente B…, Lda, por falta desse requisito, nunca poderia ser condenada pelo crime de detenção de arma proibida. Ao faze-lo a sentença proferida violou o disposto no artigo ii° do Código Penal, devendo ser revogada e a Recorrente absolvida.
61ª Face a todo o exposto, deve a sentença proferida ser revogada, por, desde logo, ter violado o princípio da aplicação da lei no tempo em direito penal (artigo 2° do Código Penal), na medida em que não aplicou a lei em vigor à data da prática dos factos, aplicando a lei actualmente em vigor, que no caso é desfavorável aos Recorrentes. Sem prescindir, em face da errada apreciação da prova deve a decisão proferida sobre a matéria de facto ser alterada nos termos atrás descritos. Devendo os Recorrentes ser absolvidos na medida em que não se provou que algumas armas eram proibidas deter (aerossóis e facas borboleta), as demais esta claramente justificada a sua detenção, e sempre o Recorrente as poderia deter em face da licença de uso e porte de arma que possuía. Assim se fazendo justiça!
*
O MP junto do Tribunal de 1ª instância respondeu à motivação do recurso, defendendo a sua parcial procedência, “considerando-se nula a sentença, na parte em que não aplicou a lei vigente à data da prática dos factos (Lei nº. 5/2006, de 23.02, com a redacção da Lei nº. 59/2007, de 04.09), por violação do disposto no artigo 2º n.º1 e 4 do Código Penal e, consequentemente, deverá ser julgado como não integrante do crime previsto na alínea d)do n.º 1 do art. 86º da Lei das armas, a detenção das duas facas borboleta e ser reformulada a pena fixada, não só atendendo à exclusão da punição destes dois objectos, como também atendendo à moldura prevista para o crime à data da prática dos factos.”
Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer concordante com a resposta do MP na 1ª instância, no sentido da parcial procedência do recurso.
Cumprido o disposto no artigo 417º,2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência para julgamento.
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2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto
Realizada audiência de discussão e julgamento, a sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
Factos provados (da acusação)
1. A sociedade arguida tem por objecto o comércio de artigos desportivos, sendo a contribuinte fiscal n° ………, com sede na Rua …, Trofa, área desta comarca de Santo Tirso.
2. O arguido C… é sócio e gerente da B…, desde a sua constituição.
3. No âmbito de mandados de busca efectuados ao estabelecimento comercial B…, Lda., sito na Rua …, n° …, Trofa, área desta comarca de Santo Tirso, no dia 5 de Fevereiro de 2009, o arguido detinha vários objectos, designadamente peças de armas, munições de diversos calibres, facas de borboleta e aerossóis de defesa e que lhe foram apreendidos nos autos e que examinados, verificando-se tratar-se de:
- Quarenta e um aerossóis de defesa, classe A, marca BODY-GUARD, com 40m! de gás C.S-PARALISANT;
- Duas navalhas “facas de borboleta” classe A;
-Treze cartuchos munições, calibre 30-06 SPRINGFIELD, próprios para armas de fogo da classe C; 
- Dez munições, calibre 15,35 MM BROWNING, próprios para armas de fogo da classe BI;
- Uma munição, calibre.44-40 WINCHESTER, próprio para armas de fogo da classe C;
-Uma munição, calibre.22 SHORT, próprio para armas de fogo, classe C;
-Uma munição, calibre.22 LONG RIFLE, próprio para armas de fogo, classe C;
-Uma munição, calibre 6 MM BELO-DOG (obsoleto);
-Duas corrediças metálicas, calibre 8 mm, própria para pistolas de alarme, classe A.
4. O arguido C…, à data dos factos, não possuía habilitação para deter aerossóis de defesa, facas de borboleta, munições e partes essenciais de armas de fogo no estabelecimento comercial B…, Lda.,
5. No momento em que foi efectuada a busca ao estabelecimento, o licenciamento que possuía permitia o comércio de armas de caça, recreio, de cano liso e respectivas munições.
6. O arguido sabia que detinha os citados objectos sem a respectiva licença e que não podia detê-los fora das condições legais e que eram as armas proibidas cuja detenção não é permitida por lei.
7. Sabia ainda que ao deter armas e objectos proibidos e armas e objectos sem respectiva licença estava a praticar um crime, mas apesar de o saber quis actuar da forma descrita, nas condições em que o fez.
8. Agiu de forma livre, deliberada e consciente, e também em representação da sociedade arguida, no âmbito da actividade de comércio que a mesma tinha como fim,
Mais se provou que:
(Da situação pessoal e económica:)
9. Nem o arguido nem a sociedade arguida têm antecedentes criminais.
10.O arguido tem seis estabelecimentos comerciais, e desde 1983 que se dedica à actividade comercial relacionada com caça e pesca.
11. O arguido recebe o salário mínimo nacional como gerente da "B…, Lda.", no valor de €485,00, tem direito a despesas de representação e viatura da empresa.
12. A "B…, Lda." não tem apresentado lucro nos últimos anos e foi objecto de um processo de revitalização.
13. O arguido é divorciado, tem um filho maior e vive sozinho em casa própria, pela qual paga uma prestação bancária mensal de cerca de €180,00.
(Da contestação apresentada pelos arguidos)
14. O arguido C… há alguns anos que se dedica também ao comércio de armas e é sócio e gerente da sociedade "D…, Lda.", com sede na Rua …, n,° …, no Porto.
15. À sociedade "D…, Lda." foi concedido em 15-01-2008 alvará de armeiro tipo 2, com o n° …/2008 e válido até 15-01-2013, para compra, venda e reparação de armas das classes B, BI, C, D, E, F, G e suas munições.
16. Ao arguido C… foi concedido em 08-01-2010 alvará de armeiro tipo 2, com o n° …/2010 e válido até 08-01-2015, para compra, venda e reparação de armas das classes B, BI, C, D, E, F, G e suas munições a exercer na Rua …, …, Trofa, o qual já tinha sido requerido previamente e no ano de 2009 às entidades competentes.
17. Nos estabelecimentos da sociedade arguida e da "D…, Lda." é feita reparação de armas.
18.Os aerossóis encontravam-se numa caixa e os demais objectos referidos em 3 no espaço do estabelecimento destinado a reparação de armas e no escritório.
Factos não provados
a) O alvará referido em 16 foi concedido à sociedade arguida "B…, Lda.".
b) O procedimento habitual dos funcionários é retirar as munições que as armas trazidas para reparar eventualmente tragam e é normal que no espaço destinado a reparação de armas ou no escritório se encontrem munições avulsas dos mais variados tipos, que são depois encaminhadas para destruição por funcionário da empresa, não sendo este procedimento feito diariamente mas em conjuntos de vários artigos,
c) As munições referidas em 3 foram retiradas de armas trazidas para o estabelecimento para reparação.
d) As duas corrediças metálicas referidas em 3 não tinham valor venal e estavam incapacitadas, tendo sido retiradas de armas trazidas para o estabelecimento para reparação.
e) As facas borboleta referidas em 3 tinham sido entregues no estabelecimento para reparação e destinavam-se a ser destruídas, para ir para o lixo.
f) Os aerossóis referidos em 3 tratavam-se de amostras que tinham sido enviadas por um fornecedor da Alemanha e iam ser destruídos ou devolvidos ao fornecedor se assim este o pretendesse, não se destinando a ser comercializados ou a qualquer outro fim.

(O demais descrito na contestação apresentada pelos arguidos, designadamente o referido nos pontos 6 a 13 e 32 a 43, não assume relevância para apreciação dos crimes imputados aos arguidos, é conclusivo/jurídico ou mostra-se já comtemplado nos factos provados e não provados).
Motivação
Na formação da sua convicção, o Tribunal apreciou de forma livre, crítica e conjugada a prova produzida em audiência, bem como a prova documenta! e pericial junta aos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127° do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinem uma convicção racional, objectiva e fundamentada/motivada.
Assim, o tribunal tomou desde logo em consideração o teor do relatório do exame pericial efectuado às armas e acessórios apreendidos, efectuado pelo Núcleo de Armas e Explosivos do Comando Metropolitano do Porto da Polícia de Segurança Pública, o qual consta de fls. 87, 87 verso e 88. De tal relatório foi possível extrair as características das armas e acessórios em causa, concretamente quanto à respectiva classe, calibre das armas e munições, características dos aerossóis, das navalhas "facas de borboleta" e corrediças metálicas, factos que resultaram inequivocamente provados, dado o valor probatório da perícia.
Quanto à prova dos factos constantes dos pontos 4, 5, 15 e 16, o tribunal estribou ainda a sua convicção nos documentos constantes de fls. 28 (cópia do alvará de armeiro n° ./2006 para exploração de estabelecimento de comércio de armas de caça, recreio de cano liso e munições correspondentes), de fls. 133 (cópia do alvará de armeiro tipo 2 n° …/2010), de fls. 227 (cópia do alvará de armeiro tipo 2 n.° …/2008), e de fls. 287 e 295 (cópia da licença de uso e porte de arma para classe C, do arguido C…, emitida em 09-10-2012 a válida até 08-10-2017 e resposta do Departamento de Armas e Explosivos da Direcção Nacional da PSP junta a fls. 295), de onde resulta que à data dos factos (e aquando da realização da busca) o arguido C… não possuía habilitação para deter aquelas armas e acessórios no estabelecimento comercial B…, Lda. nem se encontrava licenciado para o efeito.
A referida prova documental não foi infirmada, por qualquer forma, em sede de audiência.
Quanto à factualidade vertida em 1, 2 e 12, o Tribunal fundou-se no teor da certidão comerciai da sociedade "B…", junta a fls. 260 a 264, e quanto ao facto constante do ponto 14 no teor da certidão comercial da sociedade "D…, Lda.", junta a fls. 265 a 271.
No que concretamente respeita ao facto dado como provado sob o ponto 3., a convicção do tribunal fundou-se no auto de busca e apreensão de fls. 2 a 16, lavrado pelos agentes da GNR que efectuaram a diligência - o qual, por si só, é dotado de força probatória porquanto é elaborado por um órgão de polícia criminal e tem como pressuposto uma constatação imediata de determinado facto, a descrição do mesmo e dos procedimentos adoptados, e a identificação do seu autor -, em conjugação com o depoimento das testemunhas E… e F…, como se passa a explicar.
A testemunha E…, Militar da GNR, esclareceu que fez parte da equipa que procedeu à busca no estabelecimento B…, confirmando que no decurso da mesma foram apreendidas várias armas e acessórios, esclarecendo que se tratavam de aerossóis, munições e facas borboleta bem como o local onde os mesmos se encontravam no interior da loja. O depoimento da testemunha revelou-se sério, isento e espontâneo, pelo que nos mereceu credibilidade. Muito embora não se recordasse dos motivos concretos que estiveram na origem da busca, corroborou, no essencial o facto vertido em 3.
Também a testemunha F…, à data militar da GNR e que presidiu à realização da busca, explicou que a mesma ocorreu na sequência de um outro inquérito que corria termos em Valongo, no âmbito do qual foram feitas escutas e surgiram suspeitas sobre a existência de armas proibidas no estabelecimento em causa. Revelou um depoimento igualmente isento e objectivo, que foi considerado pelo tribunal para a formação da sua convicção. Confirmou o teor do auto elaborado, bem como que as fotografias juntas ao mesmo retractam os exactos locais do estabelecimento nos quais estavam os objectos apreendidos.
O arguido optou por prestar declarações, mas grande parte delas foram contrariadas pela prova documental a que já aludimos, em conjugação com as regras da experiência comum.
O arguido, na senda do que veio alegar em sede de contestação, pese embora não tenha negado que na data dos factos tenha sido realizada a busca e apreendidos os objectos descritos na acusação, quis "afastar" a sua responsabilidade dizendo que as facas borboleta estavam estragadas e "esquecidas" no estabelecimento, que as munições apreendidas estavam espalhadas e eram levadas por clientes nas armas que aí levavam para limpar, que os aerossóis eram amostras enviadas por uma empresa alemã, estavam fora da validade e não sabia que eram da classe A, e que tudo estava à vista e não escondido.
A testemunha G…, empregado de balcão da sociedade arguida, prestou declarações que foram ao encontro da versão trazida aos autos pelo arguido, explicando que estava presente na loja quando foi efectuada a busca, que o material apreendido não estava escondido, que algumas das munições eram de pessoas que as levavam nas armas que pediam para serem I impas e acabavam por ficar no estabelecimento, que as facas borboleta estavam partidas e que ouviu dizer a outro funcionário que os aerossóis seriam amostras.
Ora, da prova documental junta aos autos, concretamente dos alvarás a que já aludimos, resulta claramente que em 5 de Fevereiro de 2009, nem ao arguido nem à sociedade arguida havia sido atribuído alvará de armeiro do tipo2, para a compra e venda e reparação de armas das classes B, BI, C, D, E, F e G e suas munições, pelo que nem sequer se alcança ao abrigo de que autorização legal procediam à reparação de armas das referidas classes.
Por outro lado, pese embora seja verosímil que no estabelecimento da sociedade arguida se procedessem a reparações de armas (tendo até o arguido obtido alvará para o efeito em 20101), já se mostra desconforme às regras da experiência comum que as pessoas levem uma arma carregada com munições para ser reparada num estabelecimento e que aí as deixem ficar indefinidamente, sem as levantarem depois da suposta reparação, bem como é totalmente ilógico que o arguido C…, que referiu trabalhar na área do comércio de armas e outros artigos há 30 anos, acedesse a que as pessoas deixassem sob a sua responsabilidade munições para cuja detenção naquela data não tinha licença ou autorização ou que não tivesse o cuidado de diligenciar por dar um destino a esses objectos.
Importa ainda sublinhar que o alegado mau estado das armas e acessórios apreendidos não é corroborado pelo exame feito aos mesmos (com excepção da munição de calibre 6 mm, obsoleta, como aliás referido na acusação), nem naquele exame é referida qualquer data de validade dos aerossóis.
Finalmente importa referir que a quantidade de aerossóis apreendida, num total de 41, não se mostra compatível também com a versão de se tratar de "amostras", nem se mostra de acordo com as regras do normal acontecer que alguma empresa remeta essa quantidade de produto a um mero potencial cliente.
De qualquer forma, a versão do arguido cai por terra na medida em que mesmo que as munições fossem de clientes e os aerossóis simples amostras, o que não se concede, sempre se teria por provada a detenção ou guarda dos mesmos, tratando-se de armas ou acessórios proibidos ou para cuja detenção não havia licença. 
Os elementos considerados provados e relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido, foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível directamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum. Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta (uma vez que o arguido não os confesse) como são todos os elementos de estrutura psicológica, os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa - assim, M. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Proc. Penal. Vol. II, 1981, pág, 292. Em correcção e simultânea corroboração desta afirmação, diz-nos N. F. Malatesta, in A Lógica das Provas em Matéria Criminal, pág. 172 e 173, que exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita e, dessas coisas, passa-se a concluir pela sua existência.
Impõe-se referir que o arguido, estando ligado ao comércio na área das armas e pesca há largos anos, e tendo naturalmente conhecimentos específicos adquiridos por força dessa experiência, não convenceu o Tribunal sobre o alegado desconhecimento de que os aerossóis eram proibidos e integravam a as armas da ciasse A.
Relativamente à actuação do arguido em representação da sociedade arguida, cumpre dizer que decorre da certidão comercial desta que a mesma se obriga com a intervenção do arguido C…, seu gerente, que atestou nas suas declarações esta qualidade, sendo que todos os objectos apreendidos o foram no espaço comerciai da sociedade arguida, cujo objecto está conexionado ao comércio de artigos onde incluem também armas (o que foi corroborado, aliás, pelo próprio arguido e pela testemunha E…, que referiu que o estabelecimento tinha material de pesca e armas). Acresce que é o arguido mesmo que refere a existência de uma conexão à sociedade arguida, afirmando que no estabelecimento correspondente à sede desta eram, à data dos factos, efectuadas reparações de armas das classes correspondentes às munições apreendidas.
Tomou-se, ainda, em consideração o teor dos certificados de registo criminal dos arguidos, de fls. 293 e de fls. 247.
A comprovação da situação pessoal, familiar e profissional do arguido decorreu das declarações deste, sendo que não existem, nos autos, elementos que as contrariem.
Quanto aos factos não provados, além do que já se expôs na motivação que antecede, não foi colhida prova bastante e capaz de sustentar a sua demonstração.
2.2 Matéria de direito
De acordo com a motivação do recurso e respectivas conclusões, os arguidos (C… e sociedade) insurgem-se contra a decisão que os condenou pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86°, nº. 1, alínea d) e 95º da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro, nas penas respectivas de 200 e 120 dias de muita, à taxa diária de € 6,50 e € 100,0, colocando as seguintes questões (sumariadas pelo MP junto da primeira instância):
a) Violação do regime de aplicação da lei no tempo;
b) Erro na apreciação da prova quanto às características das armas apreendidas;
c) Errado enquadramento jurídico relativo às “facas borboleta”;
d) Insuficiência da matéria de facto para a condenação da arguida sociedade.
Vejamos cada uma das referidas questões:
a) Violação do regime de aplicação da lei no tempo.
Relativamente a esta questão, dizem os arguidos que os factos foram praticados no domínio de vigência da Lei n.º 5/06, de 23 de Fevereiro, mais precisamente em 5 de Fevereiro de 2009, tendo a sentença aplicado a referida Lei nº. 5/06, na redacção que lhe foi dada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio, vigente na data da condenação.
Constata-se efectivamente que a sentença recorrida integrou os factos praticados pelos arguidos na previsão do art. 86º, n.º 1, alínea d) da lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio (cujo teor transcreveu a fls. 311 dos autos, 14 da sentença), a qual pune os comportamentos aí descritos com pena de prisão até 4 anos ou multa até 480 dias. Contudo, a referida norma, na redacção constante da lei nº. 5/06, de 23 de Fevereiro (vigente à data da prática dos factos) punia tal comportamento com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
Impunha-se assim, perante a sucessão de leis no tempo, que o juiz colocasse e apreciasse a questão de saber qual das duas leis era mais favorável aos arguidos, pois daí decorreria a lei concretamente aplicável ao caso – art. 2º, 4,do Código Penal.
Não tendo o juiz colocado e conhecido essa questão, como devia, verifica-se a nulidade da sentença (por omissão de pronúncia) prevista no art. 379º, n.º 1, al. c) do Código Processo Penal.
Todavia, a existência do referido vício não impede o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso, que não estão com a mesma numa relação de prejudicialidade, impondo-se prosseguir assim a análise dos fundamentos do recurso.
b) Erro na apreciação da prova quanto às características das armas apreendidas.
Alegam os arguidos que a prova produzida nos autos é claramente insuficiente para o enquadramento dos aerossóis de defesa como armas da classe A, não se entendendo a razão por que os mesmos não foram incluídos na classe E. Alegam ainda que relativamente a eles não foi feita qualquer perícia, mas sim exame directo.
Vejamos então.
O auto de exame directo descreve quarenta e um aerossóis de defesa, classe A, marca BODY-GUARD, com 40 ml de gás C.S. PARALISANT, de 9 cm de comprimento e com 3,5 cm d diâmetro, fabricados na Alemanha, em bom estado de conservação.
Tendo em conta a referida descrição, verifica-se que os recorrentes têm razão neste ponto.
Em primeiro lugar, a qualificação dos aerossóis de defesa nas classes A ou E não é matéria de facto mas de direito e, por isso, a sua classificação (na Classe A) não podia constar do auto de exame directo. Por outro lado, não tendo sido feito um exame (pericial) ao conteúdo de cada um dos aerossóis, não podia ter-se dado como provado que os mesmos continham gás C.S.PARALISANT, pois uma coisa é a embalagem e outra, o seu conteúdo.
Deste modo e neste ponto, deve dar-se como provado apenas que “(…) o arguido detinha vários objectos (…) que lhe foram apreendidos nos autos e que, examinados, se verificou tratar-se de Quarenta e um aerossóis de defesa, marca BODY-GUARD, indicando a embalagem que continha 40 ml de gás C.S. PARALISANT.”
A referida alteração não tem qualquer consequência jurídica, já que os referidos aerossóis devem enquadrar-se efectivamente nas armas da classe A, pois nesta alínea cabem “os aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do presente artigo (ou seja, as armas da classe E) – cfr. art. 2º, nº. 1 e 2 al. h) da Lei 5/06, de 23.02.
Com efeito, o n.º 7 do citado artigo refere serem armas da Classe E “Os aerossóis de defesa com gás cujo princípio activo seja a capsaicina ou oleorresina de capsicum (gás pimenta) …”. Não se tendo provado o conteúdo dos aerossóis (e, consequentemente, do tipo de gás), a respectiva qualificação só pode ser feita nas armas, munições e acessórios da Classe A.
Daí que a modificação da matéria de facto seja (como dissemos) irrelevante, pois, em termos de qualificação jurídica, os factos provados permitem integrar a detenção dos referidos aerossóis de defesa nas armas da classe A.
Assim, quanto ao invocado erro na apreciação da prova sobre as características das armas apreendidas, o recurso deve ser julgado improcedente.
c) Errado enquadramento jurídico relativo às facas borboleta.
Neste segmento do recurso, os arguidos consideram que as “facas de borboleta” não podem ser qualificadas como tal, para efeitos do disposto no art. 2º, 1, al. l) da lei 5/2006, de 23/02, por não terem lâmina superior a 10 cm e, portanto, não poderem ser consideradas da classe A, nem sequer proibidas.
Vejamos.
Da matéria de facto provada (ponto 3) resulta que os arguidos detinham duas navalhas “facas de borboleta”, classe A.
Todavia, de fls. 87 dos autos consta que as lâminas das referidas “navalhas” tinham 82 mm e 97 mm respectivamente. Deste modo, deve modificar-se a matéria de facto dada como assente e retirar da mesma a parte conclusiva, ou seja, deve ficar a constar do ponto 3 o seguinte:
“(…)
- Duas navalhas “facas de borboleta”, cujas lâminas tinham o cumprimento de 82 mm e 97 mm, respectivamente.
(…)
Esta modificação da matéria de facto leva a que o arguido tenha toda a razão. Aliás, o MP junto do Tribunal “a quo” acompanhou a tese do recorrente, no seguimento da jurisprudência do TRP de 03-12-2008, recurso n.º 0845701, e do TRL de 12-11-2009, recurso 11060/08-9), segundo a qual “não é arma proibida uma faca borboleta cuja lâmina tem 9 cm de comprimento”.
Com efeito, até à entrada em vigor da Lei 17/2009, de 6/5, alterando a definição de arma branca, apenas era punida como crime a detenção de facas de borboleta com lâmina superior a 10 cm. Tal decorria do disposto do disposto no art. 2º, n.º 1, al. l) da Lei 5/2006, de 23/2, segundo o qual se considerava “Arma branca todo o objecto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante ou perfurante, de comprimento igual ou superior a 10 cm, ou com parte corto-contundente, bem como destinado a lançar lâminas ou virotões, independentemente das suas dimensões”.
Este preceito viria a ser modificado pela Lei 17/2009, de 6 de Maio, cuja alínea m) do n.º 1 do art. 2º passou a ter a seguinte redacção: “Arma branca, todo o objecto ou instrumento portátil dotado de lâmina ou outra superfície cortante, perfurante, ou corto-contundente, de comprimento igual ou superior a 10 cm e, independentemente das suas dimensões, as facas borboletas, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, os estiletes com lâmina ou haste e todos os objectos destinados a laçar lâminas, flechas ou virotões”.
Verifica-se assim que, na data dos factos, a detenção das duas facas borboleta em causa nos autos, tendo em conta o comprimento das respectivas lâminas (inferiores a 10 cm), não preenchia o tipo legal de crime.
De acordo com o disposto no art. 2º, n.º 1 do Código Penal, as penas aplicáveis são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto.
Dado que no momento da prática do facto a detenção das referidas “facas borboleta” não era considerada crime, não podem os arguidos ser condenados por essa detenção.
Impõe-se, assim, conceder provimento ao recurso, nesta parte.
d) Insuficiência da matéria de facto para a condenação da arguida “B…”.
Alegam os arguidos que, neste ponto, os factos dados como provados não permitem a condenação da arguida sociedade. Na sua óptica, para que se possa condenar uma pessoa colectiva (sociedade) é necessário que o agente tenha actuado em seu nome e no interesse colectivo. No presente caso (alegam) os recorrentes não foram acusados de comercializar qualquer arma não permitida no estabelecimento, não estando assim provado que o arguido C… tenha actuado tendo em vista o funcionamento e prossecução dos fins da sociedade e, portanto, tenha praticado tais actos com a finalidade de realizar objectivos sociais da sociedade comercial.
Como é bom de ver, os recorrentes não têm qualquer razão.
Com efeito, provou-se que as armas proibidas se encontravam no estabelecimento comercial da arguida “B…” e que o arguido (pessoa física) agiu também em representação da sociedade arguida, no âmbito da actividade de comércio que a mesma tinha como fim (facto 8). Provou-se ainda que a sociedade tinha como fim o comércio de artigos desportivos (facto 1), sendo que a sociedade, de acordo com o licenciamento que possuía, “permitia o comércio de armas de caça, recreio, de cano liso e respectivas munições” (facto 5).
Dos factos referidos resulta pois (com toda a clareza) que a arguida era uma sociedade comercial licenciada para a venda de armas de caça, recreio, cano liso e respectivas munições e, portanto, as “armas” encontradas no seu estabelecimento estavam afectas à sua actividade comercial.
Assim, a tese da recorrente, pretendendo afastar a punição pelo crime de detenção das referidas armas, no seu estabelecimento, pelo seu sócio gerente, não tem razão de ser. O art. 95º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro determina que “as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos no art. 86º e art. 87º”.
Impunha-se, deste modo, nos termos do citado artigo, a condenação da sociedade arguida pela prática do crime de detenção de arma proibida, pois foi no seu estabelecimento que as armas foram encontradas.
Assim, e nesta parte, o recurso deve também ser julgado improcedente.
e) Conclusão
Impõe-se agora apreciar as consequências jurídicas da omissão de pronúncia sobre a questão da aplicação da lei penal mais favorável aos arguidos.
Tendo em conta as questões acima apreciadas, resulta necessariamente que aos arguidos deve ser aplicada a Lei vigente na data da prática dos factos (5.02.09). Na verdade, segundo o disposto no art. 2º, 4 do C.P, é aplicável o regime concretamente mais favorável ao agente.
Ora, no caso em apreço, e como acima vimos, o regime vigente no momento da prática dos factos não considera crime a detenção das duas “facas borboleta”, sendo portanto necessariamente mais favorável aos arguidos.
Nestes termos, impõe-se aplicar aos arguidos a Lei nº. 5/2006, de 23/2, na redacção anterior à Lei nº. 17/2009, segundo a qual o crime em causa é punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias (em vez de prisão até 4 anos ou multa até 480 dias, previsto no mesmo preceito após a redacção da lei 17/2009, de 6/5).
Uma vez que do processo constam todos os elementos necessários para a condenação dos arguidos, tendo em conta a lei penal mais favorável ao agente, há que proceder à sua determinação.
Vejamos então.
A pena concreta a aplicar aos arguidos deve ter em conta a moldura penal abstracta mais favorável, isto é, prisão até 3 anos ou multa até 360 dias e, ainda, a menor gravidade do ilícito, na medida em que a detenção de “duas facas borboleta” não configura qualquer crime.
A sentença recorrida condenou o arguido C… pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, 1, d) da lei 5/2006, de 23/2, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,50.
A nosso ver, tendo a conta a moldura penal aplicável, a menor gravidade do ilícito e as circunstâncias referidas a propósito na sentença recorrida, julgamos adequada e justa a pena de 100 dias de multa, à mesma taxa diária de 6,5 euros, ou seja, a multa global de € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros).
A sociedade arguida “B…, LDA” foi condenada pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 86º, 1, al. d) e 95º da lei 5/2006, de 23/2, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 100,00, ou seja, na multa global de € 12.000,00 euros.
Tendo em conta as razões acima referidas (moldura penal abstracta inferior à que foi tomada em conta na sentença e menor gravidade do ilícito), consideramos adequada e justa a pena de 35 dias de multa, à mesma taxa diária, o que perfaz a multa global de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente:
a) Modificar a matéria de facto, nos termos acima expostos.
b) Considerar que a detenção de duas “facas borboleta” não integra a prática de qualquer crime.
c) Condenar o arguido C… pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, n.º 1, al. d) da Lei nº. 5/2006, de 23/02, na redacção anterior à Lei 17/2009, de 6/5 (aplicando assim a lei mais favorável ao agente, tendo em conta a sucessão de leis no tempo), na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,5 euros, ou seja, na multa global de 650,00 euros (seiscentos e cinquenta euros).
- Condenar a arguida B…, LDA, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 86º, 1, al. d) e 95º da lei 5/2006, de 23/2, na redacção anterior à Lei 17/2009, de 6/5 (aplicando assim a lei mais favorável ao agente, tendo em conta a sucessão de leis no tempo), na pena de 35 dias de multa, à taxa diária de 100,00 euros, ou seja, na multa global de € 3.500,00 (três mil e quinhentos euros).
d) Manter, em tudo o mais, a sentença recorrida.
Sem custas.

Porto, 05/06/2015
Élia São Pedro
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