Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6993/10.2TBMTS-K.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: VENDA EM INSOLVÊNCIA
GARANTIA BANCÁRIA
CREDOR COM GARANTIA REAL
Nº do Documento: RP201710266993/10.2TBMTS-K.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 110, FLS.211-219)
Área Temática: .
Sumário: I - O cheque visado ou a garantia bancária exigidas pelo administrador da insolvência como condição de eficácia das propostas de aquisição do bem são uma garantia de pagamento do preço, que será executada no caso de o preço proposto e aceite não ser pago e será devolvida ao apresentante se o preço for pago.
II - Os credores com garantia real sobre o bem têm o direito de obter a dispensa do depósito do preço até ao valor do seu crédito garantido.
III - Na venda em processo de insolvência essa dispensa não inclui o valor necessário ao pagamento das dívidas da massa insolvente, designadamente as custas do processo, as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores.
IV - Nessa situação o cheque visado ou a garantia bancárias apenas devem ser devolvidos depois de calculado esse valor e de o mesmo se mostrar pago pelo credor com garantia real, sob penas de o cheque visado ou a garantia bancária serem executados para obter esse valor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 6993/10.2TBMTS-K.P1 [Comarca do Porto / Juízo de Comércio de Santo Tirso]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
No decurso da fase da liquidação do processo de insolvência em que é insolvente B…, contribuinte fiscal n.º ………, foi colocado à venda, mediante propostas em carta fechada o prédio urbano composto por casa de habitação com dois pisos e logradouro, sito na Rua … n.º …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o nº 552 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 4691º, da freguesia da União de Freguesias de … e ....
Na publicidade da venda o administrador da insolvência mencionou que era condição de aceitação das propostas que fosse junto com estas, como caução, um cheque visado à ordem da massa insolvente no montante correspondente a 20% do valor base do bem ou garantia bancária no mesmo valor.
O credor C… apresentou uma proposta de aquisição do referido imóvel no valor de €101.001,01, juntando com a mesma um cheque visado à ordem da massa insolvente no valor de €24.441,10, correspondente a 20% do valor base do imóvel.
Na sequência da aceitação da proposta o administrador de insolvência, em representação da massa insolvente, celebrou com o credor C… um contrato de compra e venda da fracção pelo preço de €101.001,01.
Na cláusula segunda do referido contrato, relativa ao preço do bem, consignou-se que o adquirente depositou «a quantia de €24.441,10, estando dispensado de pagar o preço na qualidade de credor garantido, por direito de retenção, considerando-se o remanescente assegurado no encontro de contas que … terá de receber da massa insolvente, salvo no montante indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º, do CIRE».
Posteriormente, o credor adquirente requereu ao tribunal que fosse ordenado ao administrador da insolvência que restitua o cheque visado referindo que o cheque foi entregue a título de caução nos termos do artigo 164.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e que em resultado da verificação e graduação do seu crédito o adquirente estava dispensado do pagamento do preço.
Foi ouvido o administrador da insolvência, o qual se opôs ao pedido de restituição, sustentando que o cheque serve de garantia ao pagamento das dívidas e custas da massa insolvente, pelo que não pode ser restituído até ao apuramento desses encargos.
A Mma. Juíza a quo proferiu então o seguinte despacho: «Indefere-se a restituição do cheque uma vez que o pagamento de 20% se destina a acautelar a dívidas da massa insolvente. Oportunamente se aferirá da existência de saldo a restituir ao proponente.».
Do assim decidido, o credor adquirente interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1) O despacho de que se recorre decide da seguinte forma “Indefere-se a restituição do cheque uma vez que o pagamento de 20% se destina a acautelar a dívidas da massa insolvente”, a uma questão em que os aqui recorrentes apresentaram diversos argumentos para o seu direito à restituição do cheque, necessário e imprescindível se tornava rebater tal fundamentação de maneira a, de forma simples e clara, demonstrar que os recorrentes não tinham razão na sua pretensão.
2)Da simples leitura desta frase se conclui não conter a decisão qualquer justificação de direito. Inquestionável, sem dúvida.
3) O reporte à sustentação e facto, é, apenas, feita uma afirmação conclusiva, desamparada de qualquer suporte fáctico que não permite apreender e perceber qual a razão do acautelamento e qual a justificação para o percentual de 20%.
4) O tribunal ao proferir esta decisão não respeitou a obrigação de fundamentação, a que estava sujeito e tinha o dever funcional de cumprir religiosamente.
5) A decisão sob censura não representa um despacho de mero expediente, dado tratar-se de decidir da restituição ou não de um cheque, pelo que seria obrigatória a competente fundamentação.
6) A decisão sob censura está ferida de nulidade, nos termos das disposições combinada dos artigos 613º, n.º 3, e 615º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.
7) E consubstancia, ainda, a violação do regime do artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pois não se tratando de uma decisão de mero expediente, não está devidamente fundamentada, de acordo com o regime dos artigos 607º, n.ºs 3 e 4 e 154º, do sobredito código.
8) Os recorrentes são credores da massa insolvente da B…, no montante de €232.802,93, tendo o seu crédito sido verificado e graduado como garantido por direito de retenção sobre o imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 552, no montante de €114.723,52, e a parte remanescente, ou seja, €118.079,41, verificado e graduado como crédito comum.
9) Nas diligências de liquidação, o AI nomeado, publicitou a venda do imóvel sob o qual impendia o direito de retenção dos recorrentes, a decorrer na modalidade de “propostas em carta fechada”, a realizar no seu escritório, no dia 5 de Julho de 2012, pelas 9H30M, a que correspondia o lote 1, em que a condição para aceitação da proposta seria a entrega como “caução”, um cheque visado à ordem da “massa insolvente B…”, no montante correspondente a 20% do valor base do bem, ou garantia bancária no mesmo valor.
10) Considerando que o valor base de venda do imóvel era de €122.205,48, cfr. doc. n.º 1, os recorrentes apresentaram uma proposta em carta fechada, e atenta a condição de validade da proposta ser a apresentação, a título de caução, de um cheque visado com o valor de 20% do valor base, instruíram a proposta, no valor de €101.001,00, com um cheque visado no valor de €24.441,10.
11) A caução é uma garantia especial de uma obrigação com regime de prestação previsto no artigo 623º e seguintes do Código Civil.
12) Como garantia do cumprimento de uma obrigação, só pode ser executada, no caso de o devedor ou o obrigado ao cumprimento da obrigação a não satisfazer.
13) Os recorrentes nunca foram notificados para o cumprimento de qualquer obrigação.
14) A exigência legal da caução de 20% do valor base do bem a vende, tem como ratio legis a eliminação de propostas não sérias, falsas, simuladas, como, invariavelmente vinha sucedendo em processos executivos e de falência.
15) Compreendem os bens da massa insolvente aqueles que foram apreendidos pelo AI nomeado, após a declaração de insolvência e servirem para satisfação das dívidas aos credores, bem como aqueles bens ou rendimentos que a massa insolvente adquirir após a declaração de insolvência.
16) O cheque em crise não foi entregue para realizar qualquer pagamento, sinal, antecipação de pagamento.
17) O cheque foi entregue para cumprir com a condição de validade da proposta apresentada, como caução.
18) Foi nestes precisos termos que os recorrentes entregaram o cheque visado à ordem da massa insolvente.
18) Os recorrentes e os restantes proponentes não foram alertados que a quantia de 20% do valor base se destinaria ao pagamento de custas do processo, remunerações do AI ou pagamento de dívidas da massa insolvente.
19) O valor titulado por esse cheque não corresponde nenhum rendimento da massa e, em consequência não pode ser apreendido e utilizado em seu favor.
20) O imóvel foi adjudicado aos recorrentes com dispensa do pagamento do preço.
21) No contrato de compra e venda, fez-se constar, por imposição do Sr. Administrador da Insolvência, a eventual responsabilidade dos recorrentes, por dívidas da massa insolvente, nos termos do n.º2, do artigo 172º, do CIRE.
22) Só são pagas as dívidas da massa insolvente que estiverem verificadas por sentença, transitada em julgado, nos termos das disposições combinadas dos artigos 140º e 173º do CIRE.
23) No caso “sub iudice” não se faz qualquer menção de dívidas que se encontrem nesta situação.
24) O artigo 165.º do CIRE garante aos credores de insolvência com garantia real, o que é o caso, uma posição idêntica àquela que teriam num processo executivo comum.
25) Em consequência, impõe-se a restituição do cheque aos aqui recorrentes, ou a transferência do seu valor nominal, ou seja, a quantia de €24.441,10.
26) Mas mesmo que assim não se considere, temos de atentar ao preceituado no artigo 172.º, n.º 2 do CIRE, em que a imputação das dívidas da massa a cada bem vendido não pode exceder a proporção de 10%.
27) E neste caso em concreto, essa imputação ascende a 20%, em clara violação do preceituado invocado retro.
28) O despacho em crise violou as seguintes disposições legais, entre outras, art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa, artigos, 613.º, 615.º, 607.º, 815.º, todos do Código do Processo Civil, artigo 24.º, n.º 1 e 154, n.º 1 da Lei 62/2013 de 26/08, artigo 165.º, artigo 172, n.º 2, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
29) Face ao exposto, deverá ser o despacho em crise revogado por total ausência de fundamentação, e substituído por outro que ordene ao AI a restituição do montante de €24.441,10 aos recorrentes, ou caso assim não considere, ordene a restituição do montante de €12.220,55, que corresponde à imputação máxima de 10% sobre o produto do imóvel vendido com garantia real, direito de retenção, para pagamento das dívidas da massa insolvente.
Não houve resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o cheque apresentado como caução no momento da apresentação da proposta de compra do bem da massa insolvente deve ser restituído ao adquirente por este na qualidade de credor da massa com crédito graduado em primeiro lugar ter sido dispensado do pagamento do preço ou deve manter-se na posse do administrador da insolvência para garantia do pagamento das dívidas e custas da massa insolvente.
III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
A] da junção de documentos com as alegações de recurso:
Com as suas alegações de recurso, o recorrente juntou dois documentos dizendo fazê-lo ao abrigo do artigo 651.º, n.º 1 do Código de Processo Civil atenta a necessidade de análise dos mesmos para uma correcta decisão.
Ora a junção de documentos com as alegações de recurso não constitui um direito potestativo de natureza processual mas um acto que se encontra regulamentado nos artigos 425.º e 651.º do Código de Processo Civil.
Nos termos da primeira destas disposições legais, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Nos termos da segunda, as partes apenas podem juntar documentos às alegações naquela situação e ainda o caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Sucede que no caso os documentos juntos são relativos a actos da liquidação do activo onde foi proferida a decisão recorrida (anúncio e contrato de compra e venda). Nessa medida não são documentos no sentido de meios de prova destinados a fazer prova de factos, que é a situação prevista naqueles preceitos legais, mas meras cópias de actos processuais ou de actos praticados pelo administrador da insolvência na liquidação do activo.
Daí resulta que o recorrente não tinha sequer de juntar tais documentos; bastava-lhe pedir que o apenso a criar para subida do recurso em separado fosse instruído com tais documentos, se necessário pedindo que o administrador de insolvência os juntasse aos autos caso ainda não o tivesse feito.
Pelo exposto, não se considera que estejamos propriamente perante um incidente de junção de documentos e, pese embora a irregularidade da forma como se fez a sua junção, admitem-se os documentos que de outra forma deveriam instruir o recurso em separado.
Notifique.

B] da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação:
O recorrente defende que a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
No seu requerimento cujo indeferimento motivou o recurso, o ora recorrente alegou que entregou um cheque visado a título de caução e que como foi dispensado do pagamento do preço o cheque deve ser-lhe devolvido. Na decisão recorrida esse requerimento foi indeferido por se ter entendido que o cheque se destina a acautelar o pagamento das dívidas da massa insolvente. Não se disse ou justificou mais nada. Significa isso que existe falta de fundamentação?
Lendo a decisão recorrida atinge-se que foi apresentado um fundamento para recusar a restituição do cheque e esse fundamento é inteiramente perceptível (a necessidade de se garantir o pagamento das dívidas da massa). O fundamento pode ou não estar correcto mas existe e, a ser correcto, é bastante para alicerçar a decisão do ponto de vista jurídico. O que vale por dizer que se pode discutir o mérito da fundamentação, mas não que a fundamentação não seja perceptível, apreensível e o seu sentido e conteúdo alcançável.
É jurisprudência pacífica que só a absoluta falta de fundamentação determina a nulidade da sentença, não padecendo desse vício a sentença que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada.
Como escreve Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 5º, pág. 140, «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”. Para Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 687 e segs., deve entender-se que “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito. (…) Para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e coloca na base da decisão”.
A falta de fundamentação da decisão há-de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira. Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou imperceptível. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afecta o valor legal da decisão qua tale (cf., entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, in Boletim do Ministério da Justiça 489º, pág. 396 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2004, 12.05.2005 e 10.07.2008, in www.dgsi.pt, e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390).
Tendo presente essa posição unânime, salvo melhor opinião, cremos que a decisão recorrida apesar de tudo, preenche no limite, o mínimo legalmente exigível de fundamentação, pese embora esta seja débil e lacónica (tal como, aliás, era o requerimento que motivou a decisão) por não se ter estendido à abordagem de um aspecto essencial à respectiva sustentação: se a dispensa do depósito do preço também abrange o valor das dívidas da massa insolvente que saem precípuas dos rendimentos da massa ou do produto dos bens vendidos.
Mesmo que se entendesse diferentemente, isto é, que estamos perante uma absoluta falta de fundamentação, ainda assim tal não teria qualquer interesse para o caso.
Com efeito, a arguição das nulidades da decisão recorrida é no actual sistema processual civil, na maior parte das vezes, uma inutilidade. Com efeito, o artigo 665.º do Código de Processo Civil determina que ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação. Por força dessa norma, mesmo que a decisão recorrida padeça de nulidade, nem por isso se segue, necessariamente, a anulação do processado e o regresso dos autos à fase anterior ao cometimento da nulidade.
Quando, como aqui sucede, a nulidade não é o único objecto do recurso mas apenas mais um dos fundamentos através dos quais se ataca o mérito da decisão recorrida e se reclama a sua alteração, o tribunal de recurso, ainda que conheça da nulidade, deve substituir-se ao tribunal recorrido sanando a nulidade e conhecendo dos demais fundamentos do recurso.
Sucede mesmo que o tribunal de recurso pode não necessitar sequer de conhecer da nulidade da decisão recorrida e não deve conhecer desse vício se puder logo confirmar ou revogar a decisão recorrida com outro fundamento.
Isso mesmo é referido com inteiro acerto no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.12.2011, relatado por Henrique Antunes, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “na apelação, a regra é da irrelevância da nulidade, uma vez ainda que julgue procedente a arguição e declare nula a sentença, a Relação deve conhecer do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 do CPC). No julgamento da arguição de nulidade da decisão impugnada de harmonia com o modelo de substituição, impõe-se ao tribunal ad quem o suprimento daquela nulidade e o conhecimento do objecto do recurso (artºs 715 nº 1 e 731 nº 1 do CPC). Contudo, nem sempre, no julgamento do recurso, se impõe o suprimento da nulidade da decisão recorrida nem mesmo se exige sempre sequer o conhecimento da nulidade, como condição prévia do conhecimento do objecto do recurso. (…) Raro é o caso em que o recurso tenha por único objecto a nulidade da decisão recorrida: o mais comum é que a arguição deste vício seja apenas mais um dos fundamentos em que o recorrente baseia a impugnação. Sempre que isso ocorra, admite-se que o tribunal ad quem possa revogar ou confirmar a decisão impugnada, arguida de nula, sem previamente conhecer do vício da nulidade. Isso sucederá, por exemplo, quando ao tribunal hierarquicamente superior, apesar de decisão impugnada se encontrar ferida com aquele vício, seja possível revogar ou confirmar, ainda que por outro fundamento, a decisão recorrida. Sempre que isso suceda, é inútil a apreciação e o suprimento da nulidade, e o tribunal ad quem deve limitar-se a conhecer dos fundamentos relativos ao mérito do recurso e a revogar ou confirmar, conforme o caso, a decisão impugnada (artº 137 do CPC).”
Nessa medida e revertendo ao caso concreto, acaba por ser despiciendo saber se a fundamentação da decisão recorrida é inteligível ou enferma de nulidade uma vez que em concreto a apelação demanda da Relação que aprecie ela mesma se existem motivos para rejeitar o pedido de restituição do cheque.
Pelo exposto, julga-se improcedente ou declara-se prejudicado o conhecimento das nulidades da decisão recorrida e passa-se ao conhecimento do respectivo acerto.

C] da restituição do cheque:
A decisão sobre a questão que está colocada no presente recurso depende do que resulte do regime legal sobre a forma como se deve realizar a venda dos bens da massa insolvente, sobre a dispensa do depósito do preço pelo credor graduado e sobre o regime das custas do processo de insolvência.
Vejamos em pormenor estes aspectos.
Segundo o artigo 46.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.
O artigo 51.º do mesmo diploma define o que está compreendido no conceito de dívidas da massa insolvente, assinalando que se incluem nesse conceito, salvo preceito expresso em contrário e além de outras como tal qualificadas no Código: a) as custas do processo de insolvência; b) as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) as dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) as dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) a obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º.
Esta norma deve ser conjugada com o disposto no artigo 304.º segundo o qual as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.
Nos termo do artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas cabe ao administrador da insolvência escolher a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.
Tratando-se da alienação de um bem onerado com garantia real, o credor garantido é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada, sendo-lhe permitido, no prazo de uma semana ou posteriormente mas em tempo útil, apresentar uma proposta de aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado. Essa proposta só é eficaz, no entanto, se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa falida, no valor de 20% do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º Código de Processo Civil (na versão actual correspondentes aos artigos 897.º e 898.º na remissão original).
Segundo o artigo 824.º do Código de Processo Civil os proponentes devem juntar obrigatoriamente com a sua proposta, como caução, um cheque visado, no montante correspondente a 5% do valor anunciado ou garantia bancária no mesmo valor. Aceite a proposta, o proponente é notificado para, no prazo de 15 dias, depositar numa instituição de crédito a totalidade ou a parte do preço em falta.
Segundo o artigo 825.º, findo esse prazo, não tiver sido depositado o preço, o agente de execução, ouvidos os interessados na venda, pode: a) determinar que a venda fique sem efeito e aceitar a proposta de valor imediatamente inferior, perdendo o proponente o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou b) determinar que a venda fique sem efeito e efectuar a venda dos bens através da modalidade mais adequada, não podendo ser admitido o proponente ou preferente remisso a adquirir novamente os mesmos bens e perdendo o valor da caução constituída nos termos do n.º 1 do artigo anterior; ou c) liquidar a responsabilidade do proponente ou preferente remisso, devendo ser promovido perante o juiz o arresto em bens suficientes para garantir o valor em falta, acrescido das custas e despesas, sem prejuízo de procedimento criminal e sendo aquele, simultaneamente, executado no próprio processo para pagamento daquele valor e acréscimos.
O artigo 165.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece ainda que os credores garantidos que adquiram bens integrados na massa insolvente e aos titulares de direito de preferência, legal ou convencional com eficácia real, é aplicável o disposto para o exercício dos respectivos direitos na venda em processo executivo.
Ora nos termos do artigo 815.º do Código de Processo Civil, os credores com garantia real sobre os bens a vender podem ser dispensados de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar a credores graduados antes dele e não exceda a importância que tem direito a receber.
Todavia, é necessário ter presente o disposto no artigo 541.º do Código de Processo Civil segundo o qual as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução, apensos e respectiva acção declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados. Da aplicação deste preceito resulta que a dispensa do depósito do preço de que beneficia o credor com garantia real sobre o bem não abrange as custas prováveis da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução.
Também o artigo 172.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelece que antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo. O n.º 2 da norma acrescenta que as dívidas da massa insolvente são imputadas aos rendimentos da massa, e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel; porém, a imputação não excederá 10% do produto de bens objecto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos.
Vistas as normas, recapitulemos o que delas resulta.
O administrador da insolvência pode escolher a modalidade da venda dos bens da massa objecto da liquidação. Escolhendo uma modalidade de venda prevista no Código de Processo Civil para o processo executivo o administrador deverá, em regra, observar as regras legais que regulam essa modalidade, excepto quanto aos pormenores em que justificadamente decidir observar um regime especial para optimizar os resultados da liquidação.
O administrador da insolvência pode pois subordinar a eficácia das propostas apresentados à junção pelo proponente de um cheque visado ou garantia bancária no montante de 5% do valor anunciado para a venda por propostas em carta fechada.
A percentagem de 20% prevista no artigo 164.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas parece apenas estar prevista em relação ao credor com garantia real (qualidade que o recorrente tinha) e ao momento anterior ao anúncio de data para abertura de propostas em carta fechada (quando o que vem referido é que o credor apresentou uma proposta para ser aberta na data designada para abertura de propostas).
No caso, o administrador da insolvência exigiu, qualquer que fosse o proponente, que essa percentagem correspondesse a 20%, mas não cabe no âmbito do presente recurso decidir se podia fixar essa percentagem, tanto mais que o proponente recorrente a aceitou.
Todavia, essa exigência tem a natureza de garantia do pagamento do preço. Trata-se, com efeito, de uma caução ou garantia bancária que será executada no caso de o preço proposto e aceite não ser pago. O seu objectivo é, por um lado, desincentivar manobras dilatórias na venda, designadamente com a apresentação de propostas irrealistas para não serem cumpridas e com isso se frustrar a venda. E, por outro lado, dar a quem promoveu as diligências da venda poder para decidir dar sem efeito a venda, caso em que a garantia é perdida e o seu valor se soma ao resultado da venda que vier a ser obtido nas novas diligências, ou considerar feita a venda e afectar o valor da garantia ao pagamento do preço, accionando o proponente para obter coercivamente o pagamento do resto do preço.
Servindo de garantia ao pagamento do preço, o cheque visado ou a garantia bancária apresentados deverão ser devolvidos ao proponente assim que este deposite o preço proposto e aceite. Só se esse pagamento não for todo feito é que a caução poderá ser accionada para obter o pagamento da parte do preço garantida pela mesma. Esta não é, pois, uma garantia do pagamento das custas prováveis da execução e da remuneração do responsável pela venda (agente de execução/administrador da insolvência).
Os credores com garantia real sobre o bem vendido podem, no entanto, não depositar o preço sem que isso importe o accionamento da garantia parcial do pagamento do preço. Basta para o efeito que exerçam o direito de obter a dispensa do depósito do preço até ao valor do seu crédito garantido, como aqui sucedeu. Se o credor tem esse direito e o exerce não tem naturalmente de depositar o preço na parte compreendida no valor do seu crédito garantido e se não tem de proceder ao seu depósito também não poderá em circunstância alguma ser executada a garantia de depósito do preço prestada através do cheque visado ou da garantia bancária.
Sucede, contudo, que como resulta das normas citadas, o credor garantido não pode ser dispensado do pagamento da totalidade do preço na medida em que o produto da venda garante em primeiro lugar o pagamento das custas da execução e, portanto, o valor das custas prováveis tem de ser depositado pelo credor que obteve a dispensa do depósito do preço já que antes da satisfação do seu crédito haverá lugar ao pagamento das custas.
Este regime aplica-se identicamente ao processo de insolvência por virtude da remissão do artigo 165.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e das normas específicas deste Código que estipulam o pagamento em primeiro lugar das dívidas da massa insolvente, onde estão compreendidas, entre outros encargos, as custas do processo de insolvência e as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores[1].
Como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 11.09.2014, proc. n.º 755/12.0T2STC-I.E1, in www.dgsi.pt:
«O pagamento dos créditos em sede de insolvência encontra-se regulado nos artºs 172º e segs do CIRE, que concretizando no seu nº 1 a regra geral da precipuidade das custas e despesas de liquidação, dispõe que “Antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência o administrador deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo”. (…)
Daqui decorre que as dívidas da massa (em que se incluem, além de outras, as custas do processo, as remunerações do administrador e as despesas deste e dos membros da comissão de credores, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente – artº 51º) são pagas à custa dos rendimentos da massa “qualquer proveito patrimonial que acresça ao universo de bens apreendidos e que resulte directamente deles ou da sua administração, excluídos, no entanto, os bens que venham a integrar a massa por virtude do exercício pelo administrador, do direito à resolução de actos do insolvente ao abrigo dos artºs 120 e segs., ou em razão da recusa do cumprimento de negócios em curso em conformidade com os artºs 102º e segs.”, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda in C.I.R.E. Anotado, 2ª ed., p. 680.
Se os rendimentos da massa não chegarem para satisfazer as dívidas da massa, serão os próprios bens móveis ou imóveis que têm de as suportar, mesmo que esses tenham sido objecto de garantias, através do produto da liquidação, sem qualquer limite, desde que isso seja indispensável à satisfação integral das mesmas e, na respectiva medida (ob. cit. p. 681)
Coerentemente, dispõe o nº 1 do artº 174º do CIRE, relativamente ao pagamento aos credores garantidos que “Sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artº 172º, liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas, é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba; quanto àqueles que não fiquem integralmente pagos e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, são os saldos respectivos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, caso não se verifique coincidência entre eles.”.
A este respeito referem C. Fernandes e J. Labareda, “Os princípios estruturantes do regime são, por um lado, o do pagamento imediato aos credores que beneficiem de garantia real sobre os bens da massa, logo que liquidados e, por outro, o da inclusão como crédito comum do saldo remanescente, que não tenha sido satisfeito à custa do produto dos bens onerados.
Traduzem como está bem de ver, projecções processuais do regime substantivo das garantias reais, no que nelas é característico: a preferência do credor garantido no pagamento pelo valor obtido na alienação de bens onerados, sem prejuízo de concorrerem como demais credores comuns ao património geral do devedor.
Sendo assim, razoável é que, liquidado o bem, o resultado seja logo afecto aos credores a quem ele deva satisfazer, sem mais delongas, sujeitando-se o que ficar por pagar ao regime comum.
Esta preocupação está, aliás, em linha com a celeridade que atravessa todo o processo e, além dela, com a de potenciação máxima de realização dos interesses dos credores, assumida como objectivo fundamental do instituto (…)
Cabe, no entanto, sublinhar que o pagamento não pode ser feito pela totalidade do produto obtido na liquidação. Haverá, por um lado, que abater pela totalidade as despesas próprias a que a liquidação deu lugar e, por outro proceder à dedução das reservas necessárias à satisfação geral das dívidas da massa, observando-se, a propósito, o que determinam os nºs 1 e 2 do artº 172º (…)” (ob. cit. p. 685)».
Também no Acórdão da Relação do Porto de 16.11.2015, proc. n.º 372/14.0TBOAZ-G.P1, in www.dgsi.pt, a propósito do artigo 172.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se assinala o seguinte:
«Este preceito traduz e concretiza a regra da precipuídade das custas do processo e despesas de liquidação. (…) Resulta desta norma que se deve imputar prioritariamente às dívidas da massa, em que se incluem as custas do processo, os rendimentos [..] que ela própria gera. Se os rendimentos da massa insolvente não chegarem para satisfazer as suas dívidas, serão os próprios bens móveis ou imóveis que têm de as suportar, mesmo que esses tenham sido objecto de garantias, através do produto da liquidação, sem qualquer limite, desde que isso seja indispensável à satisfação integral das mesmas, e na respectiva medida. [..] Todavia, se isso não acontecer, isto é, se não se verificar a excepção prevista no nº 2 2ª parte do artigo 172.º, a imputação no que concerne aos bens objecto de garantia deve limitar-se a 10% do seu valor. Assim, o art.º 174.º do CIRE, relativo ao pagamento aos credores garantidos, prescreve que, “Sem prejuízo do disposto no art.º 172.º n.ºs 1 e 2, liquidados os bens onerados com garantia real, e abatidas as correspondentes despesas, é imediatamente feito o pagamento aos credores garantidos com respeito com a prioridade que lhes caiba; quanto àqueles que não fiquem integralmente pagos e perante os quais o devedor responda com a generalidade do seu património, são os saldos respectivos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, caso não se verifique coincidência entre eles”».
Aqui chegados podemos concluir, por um lado, que o cheque apresentado pelo credor garantido para servir de caução não podia ser retido pelo administrador de insolvência para garantia das dívidas da massa insolvente, mas, por outro lado, que o credor garantido não beneficia da dispensa do depósito do preço na parte destinada a assegurar o pagamento precípuo das dívidas prováveis da massa insolvente, pelo que tinha de depositar essa parte do preço e, nessa medida, não o tendo feito, o respectivo cheque podia ser retido para pagamento (não das custas mas) da parte do preço que não era passível de dispensa.
Não prática está por demonstrar que o resultado seja o mesmo. Uma coisa é o valor inscrito no cheque que corresponde a 20% do valor anunciado para a venda; outra coisa será o valor provável das dívidas da massa que deverão ser pagas em primeiro lugar pelos rendimentos da massa, se os houver, ou se os não houver ou quanto ao excedente pelo produto da venda de cada bem, móvel ou imóvel, na devida proporção.
Desse modo, o que deve ser feito é o seguinte: o administrador da insolvência deverá proceder ao cálculo das dívidas prováveis da massa insolvente e à sua distribuição nos termos do artigo 172.º. n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, apurando o montante que previsivelmente terá de ser pago pelo produto da venda deste bem; apurado esse valor deverá notificar o credor garantido para efectuar o seu pagamento; feito o pagamento deverá restituir o cheque visado ao credor garantido; se o pagamento não for feito no prazo assinalado pelo administrador da insolvência, deverá usar o cheque para obter o pagamento do montante calculado daquela forma restituindo ao credor garantido o valor titulado pelo cheque que exceda o montante calculado.
No caso existe uma particularidade que podia alterar a solução do caso. Referimo-nos à circunstância de no contrato de compra e venda celebrado subsequentemente à aceitação da proposta do credor garantido constar uma cláusula segundo a qual o adquirente depositou «a quantia de €24.441,10, estando dispensado de pagar o preço na qualidade de credor garantido, por direito de retenção, considerando-se o remanescente assegurado no encontro de contas que … terá de receber da massa insolvente, salvo no montante indispensável à satisfação integral das dívidas da massa insolvente, nos termos do n.º 2 do artigo 172.º, do CIRE».
A interpretação desta cláusula podia permitir concluir que entre o vendedor (a massa insolvente) e o comprador (o credor garantido) se firmou acordo no sentido de o valor titulado pelo cheque ficar depositado para assegurar a satisfação integral das dívidas da massa, acordo que haveria de ser respeitado por o contrato de compra e venda ser válido e eficaz.
Todavia, uma vez que nos encontramos perante normas legais que instituem um regime imperativo no tratamento da questão, não é curial pretender que as partes no contrato de compra e venda pudessem por acto de vontade negocial estabelecer um regime diferente daquele que consta das normas legais. Nessa medida, a referida cláusula não pode servir para mudar o regime legal e impor solução distinta da que resulta deste.
Pelo exposto, o recurso deve ser julgado parcialmente procedente e a decisão recorrida ser alterada em conformidade com o regime exposto.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida a qual passa a ter o seguinte conteúdo: ordena-se que o administrador da insolvência proceda ao cálculo das dívidas prováveis da massa insolvente e à sua distribuição nos termos do artigo 172.º. n.º 2, do CIRE, apurando o montante que previsivelmente terá de ser pago pelo produto da venda deste bem; apurado esse valor deverá notificar o credor garantido para efectuar o seu pagamento; feito o pagamento deverá restituir o cheque visado ao credor garantido; se o pagamento não for feito no prazo assinalado pelo administrador da insolvência, deverá usar o cheque para obter o pagamento do montante calculado daquela forma, restituindo ao credor garantido o valor titulado pelo cheque que exceda o montante calculado.
Custas do recurso pela massa insolvente (tabela I-B).

Porto, 26 de Outubro de 2017.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto 377)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] No sentido do que aqui se decide, afirma-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 16.04.2013, proc. n.º 1642/10.1TBVIS-Y.C1, in www.dgsi.pt que «terá de ser dado cumprimento ao disposto no artigo 172.º, n.º 1, do CIRE, que assume a tradicional regra da precipuidade das custas do processo e despesas de liquidação, a calcular com os limites previstos no n.º 2 do mesmo preceito legal». No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 13.10.2016, proc. n.º 170/09.2TBEPS-AI.G1, in www.dgsi.pt.