Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18625/18.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DEPÓSITO DO PREÇO
IMPOSTOS
Nº do Documento: RP2021051018625/18.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Através da previsão do artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil, pretende-se, nos contratos promessa de compra e venda, garantir que o promitente vendedor, ao ver consumada a prometida alienação sem a sua colaboração (mediante o suprimento da sua declaração), sempre recebe, em simultâneo com a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa objecto do contrato prometido, a integralidade do preço acordado.
II - Como assim, em acção de execução específica de contrato promessa de compra e venda, incumbe ao autor (promitente comprador), em momento prévio à prolação da sentença, comprovar o depósito do valor do preço em falta, sob pena de improcedência da acção, nos termos do citado n.º 5 do artigo 830º.
III - Equivalendo a procedência da acção específica de contrato promessa de compra e venda à realização do prometido contrato, o promitente-comprador deve assegurar, antes da prolação da sentença, o pagamento dos impostos de que depende a transmissão, em concreto do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e do Imposto de Selo (IS), sob pena de a acção não poder prosseguir, em conformidade com o disposto no artigo 274º, n.º 1, do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 18625/18.6T8PRT.P1
Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – J4
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário (elaborado pelo Relator):
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. B… deduziu a presente acção de processo comum contra C… pedindo, a final, que a posição jurídica (como comprador) adveniente do contrato promessa de compra e venda celebrado em 10 de Maio de 2011 com o aludido Réu e que tem por objecto a metade do prédio misto sito na D… ou D1… na freguesia …, concelho de S. João da Pesqueira, seja transferido para a sua titularidade do autor.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que em 10 de Maio de 2011 celebrou com o Réu um contrato promessa de compra e venda que tem por objecto a metade do prédio misto sito na D… ou D1… na freguesia …, concelho de S. João da Pesqueira, acima descrito, pelo preço de € 100.000,00, tendo o Réu recebido, a título de sinal, a quantia de € 99.900,00.
Mais, ainda, alegou, que as partes acordaram que a escritura seria outorgada em dia, hora e Cartório Notarial que o segundo outorgante (o aqui Autor) viesse a designar, devendo avisar o primeiro outorgante (o ora Réu) com pelo menos 8 dias de antecedência.
Por outro lado alegou que designou dia para a outorga da escritura com a antecedência devida e comunicou essa marcação ao Réu, que veio, porém, a faltar à mesma.

2. Citado, o Réu veio arguir a nulidade da sua citação e requerer a prorrogação do prazo para deduzir contestação à acção, o que foi indeferido por despacho de fls. 273 a 276.

3. No mesmo despacho de fls. 276 foram, face à ausência de contestação do réu, julgados confessados os factos alegados pelo autor.

4. Cumprido o disposto no artigo 567º, n.º 2, do CPC, ambas as partes ofereceram alegações por escrito.

5. Com data de 10.07.2019 foi proferido despacho a conceder ao autor o prazo de 10 dias para o mesmo comprovar nos autos o remanescente do preço e “ o cumprimento das obrigações fiscais – artigo 274º, nº1, do CPC “ (sic), despacho que foi notificado a 11.07.2019, conforme certificado nos autos pelo programa «citius».

6. O Autor veio mediante requerimento de 10.09.2019 informar que solicitou a 28.08.2019, junto do Serviço de Finanças do Porto 2, a emissão das guias para liquidação do IMT devido relativo ao ajuizado contrato promessa, tendo sido informado que o direito à liquidação já se mostra caduco nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 35º do CIMT.

7. Mediante requerimento datado de 18.09.2020, o Autor veio juntar aos autos o comprovativo do depósito atinente ao remanescente do preço previsto no contrato promessa (€ 100,00).

8. Aberta conclusão, ao abrigo do preceituado no artigo 567º, n.º 3, do CPC, veio a ser proferida sentença que julgou procedente a acção.

9. Inconformado, veio o Réu interpor recurso de apelação, pedindo, a final, a revogação da sentença, ao passo que o Autor interpôs recurso subordinado com ampliação, subsidiária, do objecto do recurso.

10. Por acórdão desta Relação foi rejeitado o recurso interposto pelo Réu (por falta de conclusões).

11. Este acórdão da Relação foi revogado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nele se decretando o conhecimento do objecto do recurso.

12. No âmbito do recurso principal, o Réu ofereceu oportunamente as seguintes
CONCLUSÕES
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13. O Recorrido, por seu turno, ofereceu contra-alegações em que pugnou pela rejeição do recurso (por falta de conclusões) ou, a assim não se entender, pela sua improcedência e deduziu, ainda, a título subsidiário, a ampliação do objecto do recurso, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
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14. Cumpre decidir, em conformidade com o determinado pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.ºs 3 e 4 e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação, em função das conclusões e em face do já decidido pelo Acórdão do STJ, as questões a dirimir são as seguintes:
Recurso interposto pelo Réu:
a) Nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto;
b) Depósito do remanescente do preço em falta – momento da sua realização - extemporaneidade – consequências ao nível da improcedência da acção;
c) Execução específica de contrato-promessa de compra e venda – obrigações tributárias - consequências pelo não cumprimento (despacho de 10.07.2019);
Ampliação do objecto do recurso por parte do Autor:
d) Despacho de 10.07.2019 – nulidade por ambiguidade, obscuridade e/ou falta de fundamentação de direito;
e) Despacho de 10.07.2019 – nulidade por decisão surpresa (contraditório).
f) Despacho de 10.07.2019 – erro de julgamento – pagamento do preço em falta e demonstração do cumprimento das obrigações tributárias.
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III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
III.I. Nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto:
Como resulta do objecto do recurso, a primeira questão que importaria, de um ponto de vista lógico, conhecer seria a alegada nulidade da sentença proferida por falta de fundamentação de facto, nos termos e para efeitos do preceituado no artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC, sendo certo que, como defende o réu/apelante, a reconhecer-se essa nulidade, sempre cumpriria à Relação, em substituição do Tribunal de 1ª instância, proceder à fundamentação de facto omitida naquele acto decisório, nos termos do artigo 665º, n.º 1, do CPC.
Com efeito, como é consabido, a definição do quadro factual apresenta-se, do ponto de vista lógico, como prévio à subsunção jurídica a efectuar no acto decisório, pois que, na maioria das vezes, esse quadro factual determina ou condiciona a própria solução jurídica do litígio.
No entanto, no caso particular dos autos e como melhor se justificará noutro passo deste acórdão, a sentença recorrida não pode, em nosso ver, subsistir e, portanto, nesse contexto, seria uma actividade inútil e espúria fixar o quadro factual provado para efeitos decisórios.
De facto, como melhor se verá, colocam-se a montante da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância outras questões prévias também suscitadas no recurso interposto pelo réu/apelante e pelo próprio autor/apelado em sede de ampliação do objecto do recurso, questões essas que conduzem, em nosso ver, à inelutável anulação da sentença proferida e, portanto, neste pressuposto, seria inútil conhecer da questão da nulidade da própria sentença por alegada falta de fundamentação de facto e proceder eventualmente à sanação dessa nulidade por meio dos poderes de substituição que assistem a este Tribunal.
Destarte, ao abrigo dos poderes de gestão e adequação processual consagrados em termos gerais no artigo 6º, n.º 1, do CPC e do princípio geral consignado no artigo 130º, do mesmo Código, que proíbe a realização de actos inúteis, decide-se não conhecer da questão atinente à alegada nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Note-se, para evitar quaisquer equívocos, que esta nossa posição expressa não traduz qualquer omissão de pronúncia, na estrita medida em que essa nulidade só existiria se o tribunal não se pronunciasse de todo sobre a questão suscitada pelo apelante e sem dar qualquer justificação para essa sua opção, o que, como se vê do anterior excurso, não ocorre.
Neste sentido, como referia o Prof. ALBERTO dos REIS, “CPC Anotado”, V volume, 1984, pág. 143, “… uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.”
Por conseguinte, pelas razões antes expostas, não se conhece da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto.
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III.II. Execução específica – Depósito do remanescente do preço – momento da sua realização – extemporaneidade.
A segunda questão que se mostra suscitada nos autos refere-se ao depósito do remanescente do preço do imóvel prometido vender e ao momento processual em que deve ter lugar a comprovação nos autos desse pagamento.
Nesta sede, não obstante a extensão das alegações e das contra-alegações e, ademais, da própria confusão dos termos prolixos e repetitivos das mesmas, em termos principais e se bem percebemos as ditas alegações e contra-alegações, as partes no processo defendem, na esteira das posições divergentes assumidas na doutrina e na jurisprudência sobre esta matéria, duas posições diametralmente opostas.
O réu/apelante sustenta, no essencial, que, à luz do preceituado no artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil, o depósito do preço em falta deve ser efectuado dentro do prazo que o juiz fixar para o efeito e sempre previamente à sentença, sendo que, não sendo comprovado esse depósito, a acção deve improceder, independentemente do seu mérito substantivo.
Como assim, ainda segundo o réu, não tendo o autor efectuado o depósito do preço em falta no prazo fixado pelo juiz no despacho de 10.07.2019 (prazo esse que terminou, no limite, no dia 13.09.2019, sendo que o depósito foi realizado apenas a 18.09.2019) sempre a presente acção deveria ter sido julgada improcedente, improcedência que o mesmo pretende ver decretada nesta instância, com a consequente revogação da sentença recorrida – vide conclusões L) a AP) do recurso do réu.
Por seu turno, o autor, nesta matéria, no âmbito das contra-alegações propriamente ditas, sustenta que o depósito do remanescente do preço não pode ser visto como elemento constitutivo do direito à execução específica do ajuizado contrato promessa de compra e venda e, por isso, a sentença deve ser proferida sob a condição de realização do pagamento do preço em falta em prazo a fixar pelo juiz e a correr apenas após o trânsito em julgado da sentença.
Como assim, na sua perspectiva, ao contrário do que advoga o réu/apelante, não ocorrem razões para decretar a improcedência da presente acção de execução específica, sendo certo, por um lado, que a sentença proferida ainda não transitou em julgado e, por outro, que o próprio despacho de 10.07.2019 (que determinou o depósito do remanescente do preço), não estabeleceu qualquer cominação para efeitos do citado n.º 5, do artigo 830º.
Por outro lado, ainda, a título subsidiário e no âmbito da ampliação do objecto do recurso, defende o autor que, a assim não se entender, o despacho de 10.07.2019, na parte em que determinou aquele depósito, é nulo pois sofre de ambiguidade ou obscuridade que o tornam ininteligível (artigo 615º, n.º 1, alínea c), do CPC), é omisso quanto à sua fundamentação de direito (artigo 615º, n.º 1, alínea b), do CPC), assim como, a entender-se que a falta do depósito em causa é fundamento para o decretamento da improcedência da acção, esse mesmo despacho é nulo por consubstanciar uma “ decisão-surpresa “, sendo certo que não consta do dito despacho de 10.07.2019 qualquer cominação quanto a uma eventual improcedência da acção por falta desse depósito.
Delimitadas, assim, as questões suscitadas duas notas prévias se nos afiguram devidas.
A primeira é a de que, como resulta da reclamação prevista no artigo 643º, do CPC (e que constitui apenso a estes autos) – que consultámos por acesso electrónico -, o autor/apelado pretendeu recorrer do despacho proferido a 10.07.2019 na parte em que foi o mesmo notificado para, em 10 dias, comprovar nos autos o (depósito) do remanescente do preço e para cumprimento das obrigações fiscais.
Sucede que, por decisão do Tribunal de 1ª instância esse recurso não foi admitido como apelação autónoma a interpor imediatamente (por alegada inverificação da hipótese da alínea h), do n.º 2 do artigo 644º, do CPC), decisão esta que, como consta da aludida reclamação, foi confirmada por decisão proferida por este Tribunal da Relação, com data de 16.12.2019, onde foi expressamente decidido que o despacho de 10.07.2019 não podia ser imediatamente impugnado pro via de recurso de apelação autónoma, mas só podia ser reapreciado no recurso a interpor a final, ou seja, com o recurso que viesse a ser interposto da sentença.
Ora, sendo assim, temos apenas que acatar essa decisão e, na sua sequência lógica, admitir que o réu/apelado possa agora, nas contra-alegações do recurso interposto pelo autor (única parte vencida na sentença), esgrimir das questões atinentes ao despacho de 10.07.2019 e sua legalidade, na parte ora em causa, ou seja, das questões que o mesmo já tinha suscitado naquele outro recurso (não admitido) e que o mesmo agora, no fundo, repete nas contra-alegações ao recurso interposto pelo autor.
Na verdade, não tendo o autor ficado vencido na sentença que julgou inteiramente procedente a acção e, por isso, não tendo legitimidade para recorrer da sentença, ainda assim, em função do decidido na citada reclamação, ter-se-á de lhe reconhecer a possibilidade de, em ampliação do recurso, esgrimir da legalidade de decisões intercalares proferidas ao longo do processo “mas relativamente às quais lhe estava vedada a interposição de recurso, por não se integrarem no elenco previsto no n.º 2 do artigo 644º” [1], como foi definitivamente decidido por esta Relação na citada reclamação prevista no artigo 643º.
Note-se, ainda, neste conspecto, na sequência do antes exposto e do que consta da dita reclamação prevista no artigo 643º, ao contrário do que parece defender o réu/apelante, o recurso que o autor interpôs do despacho de 10.07.2019 não foi julgado improcedente pela simples e óbvia razão de que o Tribunal nem sequer chegou a tomar conhecimento do seu objecto, face à não admissibilidade daquele recurso naquela fase processual.
Esclarecido este ponto prévio, a segunda nota refere-se ao conhecimento das questões acima expostas, não obstante, como já se referiu, a sentença proferida não poder subsistir, pois que se poderia sustentar que, nesse contexto, o conhecimento desta questão também deixaria de ter utilidade.
Mas, em nosso ver, não é assim.
De facto, segundo julgamos, importa tomar posição e decidir sobre a questão do depósito do remanescente do preço convencionado no ajuizado contrato, sendo certo que se vingar a tese defendida pelo réu/apelante a acção deve ser julgada improcedente por falta de comprovação atempada do dito depósito, ficando, naturalmente, prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso interposto pelo réu.
Por seu turno, se não vingar a tese defendida pelo réu ao nível da improcedência da causa, impor-se-á o conhecimento das questões subsequentes.
Tendo isto presente, cumpre, pois, conhecer da questão esgrimida pelas partes quanto ao depósito do remanescente do preço, em conformidade com o disposto no artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil.
Nesta matéria, a primeira ideia que importa ter por assente, pois que nem sequer é matéria de contencioso entre as partes, é que na presente acção está em causa a execução específica de um contrato-promessa bilateral de compra e venda do prédio misto melhor descrito na petição inicial, ou seja, do contrato em que o réu prometeu vender e o autor prometeu comprar aquele prédio misto (artigo 410º, do Cód. Civil), visando o autor, face à situação de mora do promitente vendedor, obter no processo a “… sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso…”.
De facto, tanto quanto resulta das questões suscitadas pelas partes no âmbito do recurso e da ampliação do seu objecto, nenhuma põe em causa a qualificação jurídica do ajuizado contrato como contrato-promessa de compra e venda, nem, ainda, a situação de mora no cumprimento do mesmo por parte do réu/promitente-vendedor.
Por outro lado, ainda, apesar da existência de sinal, que, como é consabido, funciona como convenção em contrário quanto à possibilidade de recurso à execução específica (artigo 830º, n.º 2, do Cód. Civil), as partes expressamente derrogaram aquela regra e convencionaram na dita promessa, no âmbito da sua autonomia privada, que a existência do sinal não prejudicava o recurso a uma eventual execução específica do contrato-promessa.
É certo, diga-se, neste contexto, que o réu invoca nas suas alegações escritas, produzidas nos termos do disposto no artigo 567º, n.º 2, do CPC, que nenhum contrato-promessa as partes quiseram celebrar e que nenhum preço foi pago pelo promitente-comprador.
Todavia, face à ausência de contestação do mesmo réu, esses precisos factos – atinentes à celebração do contrato-promessa e ao recebimento pelo promitente vendedor de parte do preço convencionado - mostram-se, como defende o autor/apelado, definitivamente demonstrados por força do próprio contrato-promessa que foi junto aos autos como documento n.º 1, com a petição inicial, conjugado, ainda, com a confissão ficta que emerge do artigo 567º, n.º 1, do CPC, sendo certo que não ocorre qualquer uma das excepções ao efeito cominatório a nível factual decorrente da falta de contestação (confissão dos factos alegados pelo autor) e que se encontram previstas no artigo 568º, do mesmo Código.
Dito isto e assentes, pois, os anteriores pressupostos, o citado n.º 1 do artigo 830º, do Cód. Civil, prevê o seguinte:
1. Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.”
E, no diz respeito ao suprimento daquela declaração negocial do promitente faltoso, ou seja, no que tange à execução específica, prevê o n.º 5 do mesmo normativo, o seguinte: “No caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a excepção de não cumprimento, a acção improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal.”
Este último normativo, como é consabido e resulta evidenciado das alegações e contra-alegações, não tem merecido da parte da doutrina e da jurisprudência, no âmbito do contrato-promessa bilateral de compra e venda, como é o caso dos autos, uma leitura unívoca, antes se defendendo duas posições radicalmente opostas.
Segundo a maioria da doutrina e da jurisprudência, a consignação em depósito da parte do preço em falta deve ser feita imediatamente antes da prolação da sentença, mediante despacho do juiz a fixar prazo para tal efeito, sob pena de, não sendo o depósito efectuado, a acção de execução específica improcede, sem se conhecer sequer do mérito substantivo da pretensão deduzida.
É esta a posição defendida, entre outros, na doutrina, por P. LIMA, A. VARELA, I. GALVÃO TELLES, ANA PRATA, J. CALVÃO da SILVA, L. MENEZES LEITÃO e A. MENEZES CORDEIRO [2] e, na jurisprudência, para além de vários acórdãos das Relações, nos Acórdãos do STJ de 31.05.2016, de 3.02.2009, de 8.07.2003, relatados, respectivamente, pelos Srs. Juízes Conselheiros Gabriel Catarino, Azevedo Ramos, Luís Fonseca, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Segundo outra posição, que também merece acolhimento em alguma doutrina e jurisprudência, ainda que minoritária, o prazo para a consignação em depósito do preço em falta deve ser estabelecido apenas na sentença proferir, contando-se aquele prazo a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença.
É esta a posição defendida na doutrina por ALMEIDA COSTA, NUNO PINTO de OLIVEIRA e F. GRAVATO MORAIS [3] e, ainda, na jurisprudência, para além de vários acórdãos das Relações, no AC STJ de 1.04.2004, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida, cujo sumário também se mostra disponível no mesmo sítio oficial.
Terá sido, segundo cremos, aquela primeira posição maioritária a sufragada pelo Tribunal de 1ª instância no despacho de 10.07.2019 e é também essa a posição que, com o devido respeito, perfilhamos, ou seja, aquela que faz depender a procedência da acção de execução específica da prévia, relativamente à sentença, consignação em depósito do valor do preço ainda em falta.
De facto, em nosso ver, sendo, como é o caso dos autos, o contrato prometido (compra e venda) um contrato bilateral sinalagmático, em que à transmissão da propriedade da coisa deve corresponder, em termos correspectivos, o pagamento simultâneo e integral do preço (salvo convenção em contrário, que no caso não existe), a transmissão do direito de propriedade, a efectuar através da sentença constitutiva que supre a declaração do promitente faltoso e opera a transmissão do direito de propriedade, só deve ter lugar depois de garantida, pelo depósito, a satisfação integral do preço.
Como assim, em nosso ver, tem o juiz do processo que estabelecer, antes da prolação da sentença (e independentemente do sentido da mesma), um prazo para que o promitente-adquirente, devedor do preço da coisa a transmitir, proceda à consignação em depósito do preço em falta ou da parte do preço ainda em falta.
Na verdade, como sustenta o Ilustre Professor J. CALVÃO da SILVA, op. cit., pág. 155, “A procedência da acção específica sob condição (…) do pagamento ou consignação em depósito no prazo fixado com termo a quo no dia do trânsito em julgado da decisão não se coaduna minimamente com a letra e o espírito do n.º 5 do artigo 830º, que diz “a acção improcede, se…” e não a acção procede, se o requerente consignar… no prazo … a partir do trânsito em julgado …
Digamos que, com o devido respeito por opinião em contrário, em nosso ver, a própria letra da lei e o seu sentido são claros ao estabelecer que a consignação em depósito do preço em falta deve ter lugar em momento prévio à sentença a proferir, pois que, se esse depósito não ocorrer, a acção improcede, não se colocando, pois, a não existir o dito depósito, sequer a hipótese de ser proferida sentença a decretar a procedência da acção, sob a condição da sua ocorrência posterior.
Destarte, em conclusão, se, em desrespeito do dito prazo, no momento em que o juiz do processo for chamado a proferir sentença, aquele preço não se mostrar assegurado pelo dito depósito, a acção, em nosso julgamento, terá inevitavelmente que improceder, sem se conhecer sequer do mérito da pretensão do autor.
Tendo isto presente, a questão subsequente que se coloca, no caso particular dos autos, é a de saber se, como defende o réu/apelante, não tendo o autor procedido ao depósito no prazo consignado no despacho de 10.07.2019 (na parte em que determinou o depósito do preço), a sentença deveria ter decretado a improcedência da presente acção.
Quanto a esta questão, e sendo indiscutido que o depósito do preço não foi feito naquele prazo de 10 dias (tendo lugar apenas a 18.09.2019), em função do que já antes se expôs quanto à razão de ser da exigência da prévia consignação em depósito do preço em falta, a resposta, apesar disso, não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, se é objectivo que o prazo em causa não foi cumprido pelo autor (e não vemos que tivesse o juiz que explicitar no despacho a cominação prevista no artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil, pois que essa decorre expressamente da lei e o autor mostra-se patrocinado por Advogado), também é objectivo e indiscutível que o depósito ora em causa foi efectuado antes de os autos serem conclusos para a prolação de sentença.
Ora, se assim é, como resulta indiscutido dos autos, independentemente de o prazo do despacho de 10.07.2019 não ter sido cumprido pelo autor, nessas circunstâncias, o risco que o legislador pretendeu cobrir com o normativo do n.º 5 do artigo 830º, do Cód. Civil, qual seja, repete-se, o risco de o vendedor ver, por força da sentença entretanto proferida, transferida a propriedade da coisa para o comprador sem que este último pague o preço e sem possibilidade já de invocação útil da excepção de não cumprimento, já não existia, precisamente por que, antes da prolação da sentença, foi efectuado o dito depósito e, portanto, estava sempre assegurado que o comprador pagava a parte do preço ainda em falta pela transmissão em seu favor da propriedade do imóvel em causa.
De facto, nestas circunstâncias - estando assegurado o pagamento do preço em falta pelo depósito (e abstraindo, por ora, das questões tributárias) -, não faria sentido, em nosso ver, que a sentença num excesso de formalismo julgasse improcedente a presente acção por incumprimento do prazo do despacho de 10.07.2019, pois que o fim que nele se visava – assegurar o pagamento integral do preço pelo comprador – se mostrava assegurado.
Portanto, em conclusão, nesta parte improcede a apelação interposta pelo réu e, neste contexto, mostra-se inútil conhecer, a título subsidiário, das questões suscitadas pelo autor em sede de ampliação do objecto do recurso e quanto à alegada nulidade do despacho de 10.07.2019, na parte em que no mesmo se consigna a obrigação de o autor proceder, em momento prévio à prolação da sentença e no prazo ali previsto, ao depósito do preço em falta e para os efeitos do preceituado no artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil.
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III.III. Execução específica – Obrigações tributárias – Consequências pelo não cumprimento – Despacho de 10.07.2019.
Dirimida a questão anterior, cumpre agora, em termos lógicos, conhecer da questão atinente ao pagamento dos impostos devidos pela transmissão, sendo certo que no despacho de 10.07.2019 o Sr. Juiz determinou que o autor, ora apelado, comprovasse em 10 dias “o cumprimento das obrigações fiscais – art.º 274º, n.º 1, do CPC.”
Nesta matéria, o réu apelante invoca, em termos essenciais, que, em face do dito despacho de 10.07.2019 e não tendo o autor comprovado nos autos o pagamento do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) e, ainda, o pagamento do imposto de selo (IS) ou, a sua eventual isenção e/ou outra razão para esse não pagamento e atestado pela Autoridade Tributária, em conformidade com o disposto no citado artigo 274º, n.º 1, do CPC, os autos não podiam prosseguir para a prolação de sentença e, portanto, não podia ser decretada a procedência da acção de execução específica.
Como assim, deve a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que declare a improcedência da presente acção de execução específica.
Por seu turno, o autor/apelado defende, em termos essenciais, que o pagamento do IMT e IS não constituem pressuposto necessário ao decretamento da procedência da acção de execução específica, nem afectam a validade do negócio jurídico em causa, sendo que a obrigação de liquidação prévia dos impostos antes da escritura pública e do registo contende apenas com os deveres de fiscalização dos Notários e dos Conservadores do cumprimento das obrigações fiscais.
Por outro lado, ainda, segundo alega, a liquidação do IMT encontrava-se caduco e prescrita tal dívida tributária, não podendo, pois, implicar a improcedência da presente acção.
Ainda neste âmbito, a título subsidiário, a entender-se que o despacho de 10.07.2019 compreende o pagamento do IMT e do IS, defende o autor/apelado que esse despacho é ambíguo, obscuro e falho de fundamentação de direito, sendo nulo e, nesses termos, deve ser decretada a nulidade do despacho de 10.07.2019 e de todos os actos posteriores, incluindo a sentença proferida, com a prolação de novo despacho a conceder ao autor prazo para o cumprimento e/ou demonstração das obrigações fiscais.
Delimitadas, assim, no extenso arrazoado das alegações, contra-alegações e respectivas conclusões, as questões esgrimidas pelas partes, cumpre decidir.
A primeira questão que, de um ponto de vista lógico, importa dirimir consiste, desde logo, em saber se, estando em causa uma acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda, como ora sucede, deve o juiz, em momento prévio à sentença, exigir do promitente-comprador/autor que pretende, por mor da procedência daquela acção, a transmissão da propriedade do imóvel objecto do contrato prometido de compra e venda a comprovação do pagamento dos impostos devidos por essa transmissão.
Neste conspecto, a primeira ideia a ter por assente é a de que, como cremos ser indiscutido, a procedência da execução específica equivale ao cumprimento forçado do contrato prometido e, portanto, a sentença que supre a declaração do promitente faltoso é, em termos práticos e jurídicos, o equivalente à escritura pública de compra e venda que, sendo cumprido voluntariamente o contrato, seria celebrada entre as partes outorgantes na promessa.
De facto, como refere J. CALVÃO da SILVA, op. cit., pág. 138, “… a chamada execução específica é, em última instância, no plano funcional, a mesma coisa que a acção de cumprimento: apenas esta se dirige à condenação do devedor no adimplemento da prestação, enquanto aquela produz imediatamente os efeitos da declaração negocial do faltoso (sentença constitutiva).”
Significa isto, em nosso ver, que o juiz do processo, em caso de acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda de imóveis, em termos similares a qualquer outra entidade a quem está atribuído o poder (público) de fiscalizar, em termos prévios ao acto de transmissão em causa, o cumprimento das obrigações tributárias tem o dever de cumprir essa fiscalização a nível tributário, ou seja de se assegurar que, previamente à prolação da sentença da qual pode resultar, como é o caso, a transmissão onerosa de um bem imóvel, o pagamento desses impostos se mostra assegurado.
É certo, diga-se que, seja no Código do IMT, seja no Código do IS, não existe uma norma específica que lhe atribua tais poderes de fiscalização, mas também não era necessário que existisse e seria, ademais, uma tal norma sempre seria redundante, na medida em que esses poderes de fiscalização já lhe estão expressamente atribuídos pelo artigo 274º, n.º 1, do CPC, enquanto norma que se dirige ao juiz do processo (por isso a sua inserção no Código de Processo Civil) e que estabelece que “Não obsta ao recebimento ou prosseguimento das acções, incidentes ou procedimentos cautelares que pendam perante os tribunais judiciais a falta de demonstração pelo interessado do cumprimento de quaisquer obrigações de natureza tributária que lhe incumbam, salvo nos casos em que se trate de transmissão de direitos operada no próprio processo e dependente do pagamento do imposto de transmissão.”
Portanto, em nosso ver, como resulta de forma clara do dito normativo, quando a transmissão de direitos opera no próprio processo (no caso, através da prolação da sentença constitutiva de execução específica) e a consumação da transmissão depende do pagamento do(s) imposto(s) em causa, deve o juiz, em termos similares ao que acontece com os Srs. Notários, Conservadores ou outras entidades, assegurar-se, em momento prévio, à prolação da sentença (tal como sucede nas escrituras de compra e venda – cfr. artigo 49º, n.º 1, do CIMT e artigo 42º, do CIS)- , que o pagamento de tais impostos está garantido, mediante a junção do documento comprovativo desse pagamento ou de documento oficial (emitido pela Autoridade Tributária) que ateste a respectiva isenção ou outra causa válida do seu não pagamento.
E sempre se dirá que, em nosso ver, não poderia ser de outra forma, sob pena de se introduzir, por esta via, uma discriminação injustificada entre aqueles que efectuam tais actos de transmissão perante outras entidades e que, por isso, têm, necessariamente, que demonstrar, previamente ao acto de transmissão, o pagamento de tais impostos, e aqueles que o fazem por meio da intervenção do tribunal com a prolação de sentença de procedência da acção de execução específica e a quem, a ser de outra forma, seria dado o benefício, injustificado e violador do princípio da igualdade, nomeadamente em termos fiscais, de poder não proceder ao pagamento de tais impostos em momento prévio à sentença e, assim, de o poder não fazer ou fazê-lo apenas quando melhor lhes aprouver.
Destarte, em nosso ver, à luz do citado artigo 274º, n.º 1, do CPC, estando em causa acção de execução específica de contrato-promessa de transmissão de bem imóvel (prédio misto), nomeadamente, compra e venda, como é o caso, deve o juiz do processo, precavendo a possibilidade de ser decretada a transmissão por mor do suprimento da declaração do promitente-vendedor faltoso, exigir, antes da prolação da sentença, a prova do pagamento dos ditos impostos (IMT e IS) – cfr. artigos 1º, n.º 1, 2º, n.º 1, 4º, n.º 1, do CIMT e artigos 1º, n.º 1, 2º, n.º 3, 4º, n.º 1 do CIS e artigo 1., 1.1. da Tabela geral do Imposto de Selo -, sob pena de a dita sentença não ser emitida.
Com efeito, ao contrário do que parece sugerir o réu/apelante, a não comprovação do pagamento de tais pagamentos não conduz à improcedência da causa – pois que se trata de questão exterior ao mérito da pretensão deduzida em juízo e não existe uma norma equivalente ao citado n.º 5 do artigo 830º -, mas, antes, como decorre, em termos explícitos, do citado artigo 274º, n.º 1, do CPC, à suspensão dos autos e até que aquela comprovação tenha lugar no processo.
De facto, segundo julgamos, este último normativo consagra uma causa atípica de suspensão da instância (cfr. artigo 269º, n.º 1, alínea d), do CPC), que prejudica a realização dos actos posteriores, nomeadamente a prolação de sentença, pois que, enquanto não estiver oficialmente comprovado nos autos o pagamento, a isenção ou outra causa válida de não pagamento dos impostos em causa (o que compete à Autoridade Tributária, através das respectivas repartições de finanças), a acção, pura e simplesmente, não deve prosseguir e, portanto, nem se coloca a questão da sua procedência ou improcedência, a qual só se colocará depois de acção estar em condições de prosseguir e, consequentemente, de ser proferida sentença que conheça do mérito da causa.
Ora, dito isto, no caso dos autos, de facto, a sentença ora recorrida foi, com o devido respeito, proferida de forma prematura e sem que se levasse em consideração o despacho anterior de 10.07.2019 (que fazia depender o prosseguimento dos autos da comprovação do cumprimento por parte do autor das obrigações tributárias atinentes à almejada transmissão do imóvel em causa), sobretudo quando tal despacho se mantinha absolutamente vinculante no processo, pois que, como já acima se viu a propósito da reclamação prevista no artigo 643º, do CPC, o recurso interposto pelo autor sobre o mesmo não foi admitido e, consequentemente, esse despacho de 10.07.2019 não tinha sido revogado ou alterado.
Dito de outra forma, mantendo-se vinculante no processo o despacho de 10.07.2019 e não tendo o autor/apelado efectuado a prova, por meio de documento oficial emitido pelas Finanças, do pagamento do IMT e do IS, ou seja, do cumprimento das suas obrigações tributárias, não podia o Tribunal de 1ª instância, contra o seu próprio despacho anterior de 10.07.2019 (sobre o qual se tinha esgotado o poder jurisdicional do Tribunal de 1ª instância – cfr. artigo 613º, n.ºs 1 e 3, do CPC), proferir a sentença ora em causa, antes deveria manter suspensa a instância e até que a prova do cumprimento das obrigações tributárias por parte do autor se mostrasse efectuada.
Por isso, como logo se referiu no início desta fundamentação, a sentença proferida não pode subsistir, antes se impondo a sua revogação e substituição por despacho a decretar a suspensão da instância e até que o autor comprove, por meio de documento oficial das finanças, o pagamento dos já referidos impostos ou, a sua isenção, ou, ainda, a verificação de outra causa justificativa para o seu não pagamento, o que deve fazer, no limite, no prazo de 6 meses e sob pena de deserção da instância – cfr. artigo 281º, n.º 1, do CPC.
Aqui chegados e decretada, assim, a parcial procedência da apelação interposta pelo réu/apelante, cumpre, ainda, tecer algumas, muito breves, considerações quanto à alegada nulidade do despacho de 10.07.2019 por falta de fundamentação de direito, obscuridade/ambiguidade e violação do contraditório (decisão-surpresa).
É de aceitar que o despacho de 10.07.2019, na parte ora em causa e em que se refere às obrigações tributárias a cargo do autor e cujo cumprimento/pagamento exigiu para fazer prosseguir os autos, podia ser mais explícito, no sentido de indicar quais os impostos a que se referia e os preceitos legais que consagram a obrigação de pagamento dos mesmos e que já acima deixámos expostos.
No entanto, é de convir também que o autor, mais, ainda, encontrando-se devidamente patrocinado por Advogado (declaratário relativamente a tal despacho), estava em perfeitas condições de perceber o significado e o alcance do despacho em causa, sendo certo que a informação sobre os impostos devidos em caso de realização de escritura de compra e venda (e a execução específica de um contrato-promessa de compra e venda é, na prática, um acto de transmissão exactamente equivalente) é perfeitamente acessível a qualquer cidadão, nomeadamente através de contacto com qualquer Repartição de Finanças.
Aliás, em última instância, suscitando-se dúvidas sérias sobre o sentido e alcance do despacho, nomeadamente quanto aos impostos ali tidos em vista, agindo o autor de boa-fé e em espírito de colaboração (como lhe é exigido pelos artigos 7º, n.º 1 e 8º, do CPC), sempre poderia dirigir requerimento ao juiz do processo, em ordem a obter o esclarecimento dos impostos a que o mesmo despacho se referia.
Ora, sendo assim, com o devido respeito, a despeito de o despacho em causa poder ser mais claro, não se pode colocar, em termos fundados, qualquer questão quanto à fundamentação de direito ou quanto à ambiguidade ou obscuridade do despacho de 10.07.2019, nem, ainda, quanto ao alegado efeito surpresa, pois que o despacho em causa ao referir expressamente o já citado artigo 274º, n.º 1, do CPC, deixou perfeitamente claro (para um declaratário medianamente diligente e sagaz, com as específicas habilitações profissionais do Ilustre Mandatário do autor) que, enquanto não se mostrassem cumpridas as obrigações tributárias em causa, os autos não teriam seguimento e, portanto, a sentença não iria ser proferida.
É certo que a sentença veio a ser proferida, mas como já o dissemos antes, com o devido respeito, foi proferida quando ainda não o podia ser, em função do preceituado no artigo 274º, n.º 1, CPC e sendo inequívoco que o autor não comprovou (ainda) em termos oficiais (repete-se, através de documentos emitidos pelas Finanças) o cumprimento das obrigações tributárias acima referidas, pois que, como também já referimos, essa comprovação não se basta com qualquer documento, sendo mister que esse documento seja emitido pelas Finanças, seja o comprovativo do pagamento, seja o comprovativo da alegada isenção, seja ainda a verificação de alguma outra causa justificativa do não pagamento.
No entanto, independentemente disto, certo é que, analisadas as pretensões deduzidas pelo autor, a título subsidiário e em função da alegada nulidade do despacho de 10.07.2019, as mesmas, face ao já antes exposto, não podem proceder.
De facto, a final, o autor, em primeiro lugar, conclui pedindo que seja decretada a nulidade do despacho de 10.07.2019 e que, assim, seja proferida nova notificação para os efeitos do disposto no artigo 830º, do Cód. Civil ou, ainda, que seja proferida nova sentença com a concessão de novo prazo para depósito e/ou demonstração do cumprimento das “obrigações fiscais”.
Ora, como resulta do já antes decidido, o depósito do preço em falta mostra-se já assegurado – não tendo que haver nova notificação para esse efeitos - e quanto às obrigações fiscais a demonstração do seu cumprimento deve ser efectuado pelo autor em momento prévio à prolação da sentença, sendo que, enquanto essa demonstração não ocorrer, os autos não devem prosseguir e, portanto, logicamente, a sentença não pode ser proferida.
Por outro lado, em segundo lugar, o autor/apelado concluiu peticionando que o despacho de 10.07.2019 seja revogado por erro de julgamento e que a fixação do prazo para o pagamento do preço em falta seja feita constar da sentença condicional a proferir.
Sucede, no entanto, como resulta do segmento deste acórdão que conheceu desta matéria, essa pretensão não tem, em nossa perspectiva, fundamento à luz da letra e da ratio legis que emerge do preceituado no artigo 830º, n.º 5, do Cód. Civil e, por isso, mostra-se prejudicada pelo já decidido em III.II. deste acórdão.
Por conseguinte, à luz do antes exposto, improcedem as questões suscitadas no âmbito da ampliação do objecto do recurso e procede parcialmente a apelação interposta pelo réu/apelante, com o sentido antes referido.
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V. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação interposta pelo réu C…, revogando a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância e, em substituição, decreta-se a suspensão da instância e até que o Autor, B…, comprove nos autos o cumprimento das suas obrigações tributárias, nos termos acima expostos.
Efectuada essa comprovação, estarão então os autos em condições de prosseguir e de ser proferida nova sentença.
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Custas pelo apelante e apelado, em partes iguais, pois que ambos ficaram vencidos em igual proporção no recurso – artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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Porto, 10.05.2021
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 171-172.
[2] P. LIMA, A. VARELA, “Código Civil Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 109, I. GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações”, 6ª edição, pág. 120, ANA PRATA, “O contrato-promessa e seu regime civil”, pág. 973-974, J. CALVÃO da SILVA, “Sinal e Contrato Promessa”, 14ª edição, 2017, pág. 153-155, L. M. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, I volume, 7ª edição, pág. 232 e A. MENEZES CORDEIRO, “Tratado de Direito Civil – Direito das Obrigações”, Tomo II, 2010, pág. 433.
[3] ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 11ª edição, pág. 421-422, NUNO PINTO de OLIVEIRA, “Princípios de Direito dos Contratos”, pág. 285-287 e F. GRAVATO MORAIS, “Contrato Promessa em Geral, Contratos Promessa em Especial”, pág. 150.