Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0421613
Nº Convencional: JTRP00038335
Relator: MARQUES DE CASTILHO
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RP200509200421613
Data do Acordão: 09/20/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA.
Decisão: CONFIRMADA.
Área Temática: .
Sumário: I- O Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial, veio criar um instrumento normativo de direito comunitário que permite o reconhecimento e execução rápidos e simples, das decisões proferidas sobre essas matérias.
II- Do reconhecimento distingue-se a exequibilidade.
III- Não existe revisão de mérito.
IV- A decisão estrangeira não será reconhecida se for manifestamente contrária à ordem pública do Estado-Membro requerido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

B............. SRL, através do seu legal representante C..........., com domicilio em Itália requereu o reconhecimento automático e a declaração de executoriedade de sentença estrangeira, nos termos do Regulamento CE 44/2001 do Conselho de 22 de Dezembro (Convenção de Bruxelas) relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria cível e comercial, nomeadamente nos termos dos preceitos constantes do Cap.III e especificamente dos art. 32º, 33º, 38º, 39º e anexo II contra
D............ & IRMÃOS Ldª,
ambas já melhor identificada com os sinais dos autos pedindo que seja reconhecida automaticamente a sentença e declarada a sua executoriedade e em consequência a R. seja citada para querendo recorrer ou não o fazendo para pagar as quantias a que foi condenado constantes e discriminadas no art.6º do aludido requerimento ou seja, no total de € 49 176,65 acrescido de juros ate efectivo pagamento, ou nomear bens à penhora, seguindo-se os ulteriores termos até final.
Apresentado o petitório acompanhado da decisão proferida em 18 de Novembro de 1999, com nota de transito no Tribunal de Prato, Itália a qual tem força executiva tendo-lhe sido aposto o carimbo de exequatur a favor do requerente e encontrando-se igualmente junta tradução certificada em língua portuguesa foi pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo proferido despacho nos seguintes termos:

“Atentas as disposições conjugadas dos artºs 31º, 32º nºs 1 e 3 e 34º e 27º e 28º da Convenção de Bruxelas de 1968 confiro força executiva ao título de fls. 5.
Cumpra o disposto no artigo 35º da dita Convenção sob a forma de citação e com inclusão do direito previsto no seu art. 36º e 37º”.
Inconformada veio a Requerida interpor o presente recurso de agravo para este Tribunal nos termos que invoca do disposto no artigo 37º do aludido Regulamento CE 44/2001 tendo, para além do pedido de fixação de efeito suspensivo que foi indeferido conforme despacho de fls. 44, e no qual além do mais se fixou que ao processo é aplicável o regime vigorante, anterior à publicação do Decreto-Lei 38/03 de 8 de Março ex vi artigo 150º nº 2 alínea b) do Código Processo Civil como serão todas as outras disposições legais infra citadas de que se não faça menção especial atenta a data de remessa do requerimento inicial por via postal com carimbo de 12/09/03, nas alegações ao mesmo tempo oferecidas, aduzido a seguinte matéria conclusiva:
“Tal norma dispõe que o recurso nela previsto é interposto de acordo com as regras do processo contraditório; todavia, a citada Convenção nada dispõe quanto ao conceito ou definição do que seja o "processo contraditório", pelo que se afigura à ora recorrente que o aludido "processo contraditório" nada mais é do que o "princípiodo contraditório", previsto no art.3º nº3 do Cod. Proc. Civil, consubstanciando-se tal princípio na regra de que não é lícito ao Juiz decidir questões de direito ou de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Foram pela parte contrária apresentadas contra-alegações nas quais pugna pela manutenção do decidido tendo a Mmª Juiz proferido despacho tabelar de sustentação do despacho proferido.
Mostram-se colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Adjuntos pelo que importa decidir.

THEMA DECIDENDUM
A delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso, art. 684 nº3 e 690 nº1 e 3.

A questão que esta subjacente na apreciação do presente recurso traduz-se em determinar se com a prolação do despacho de concessão de executoriedade à sentença proferida pelo Tribunal italiano existe violação do principio do contraditório.

DOS FACTOS E DO DIREITO
A factualidade de relevância para a decisão é a que se encontra exarada supra.
Vejamos.
O Regulamento (CE) nº 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões, em matéria civil e comercial (publicado no J.O.C., nº L 12, de 16.01.2001), veio criar um instrumento normativo de direito comunitário que permitiu a unificação, no âmbito da sua aplicação, das normas de conflito de jurisdição em matéria civil e comercial, bem assim a simplificação das formalidades com vista ao reconhecimento e execução, rápidos e simples, das decisões proferidas sobre essas matérias.
No caso sub judice, está em causa a exequibilidade de uma sentença proferida por um Estado-Membro, Itália - uma “decisão” desse tribunal, na noção que nos é concedida na conformidade do art. 32º do Regulamento aludido.
Distingue-se no citado diploma o reconhecimento da exequibilidade da “decisão”.
Quanto ao primeiro dispõe o art. 33º do mesmo Regulamento que:
"As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo".
Trata-se de um preceito que parte do princípio da confiança mútua entre jurisdições dos Estados-Membros, possibilitando a livre circulação das decisões judiciais - a chamada 5ª liberdade (as outras são as liberdades económicas dos Tratados: circulação das mercadorias, dos trabalhadores, dos serviços e dos capitais).
“A confiança recíproca na administração da justiça no seio da Comunidade justifica que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro sejam automaticamente reconhecidas, sem necessidade de recorrer a qualquer procedimento, excepto em caso de impugnação” Considerando 16º ao diploma.
“A mesma confiança recíproca implica a eficácia e a rapidez do processo para tornar executória num Estado-Membro uma decisão proferida noutro Estado-Membro. Para este fim, a declaração de executoriedade de uma decisão deve ser dada de forma quase automática, após um simples controlo formal dos documentos fornecidos, sem a possibilidade de o tribunal invocar por sua iniciativa qualquer dos fundamentos previstos pelo presente regulamento para uma decisão não ser executada” - Considerando 17º ao diploma.
Trata-se de um sistema de inversão do contencioso, para possibilitar a celeridade de circulação do título sendo certo que está em elaboração e estudo a instauração do chamado título executivo europeu.
Quanto à exequibilidade da decisão dispõe o art. 38º do mesmo Regulamento que:
“1. As decisões proferidas num Estado-Membro e que nesse Estado tenham força executiva podem ser executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias, a requerimento de qualquer parte interessada.”
É essa mesma executoriedade que se pretende nos presentes autos ou seja, reconhecer a exequibilidade da sentença proferida em pelo Tribunal de Prato, Itália, com certidão junta aos autos.
Dispõe-se no art. 41º do Regulamento que:
“A decisão será imediatamente declarada executória quando estiverem cumpridos os trâmites previstos no artº 53º”
ou seja, estando junta a cópia da decisão que satisfaça os necessários requisitos de autenticidade, bem assim a “certidão” referida no art. 54º - documentação que se encontra junta aos autos como se aludiu supra.
No art. 41º nº 2 estatui-se que:
“A parte contra a qual a execução é promovida não pode apresentar observações nesta fase do processo”.
É justamente na fase de recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade e apenas e só nesta fase - recurso esse admissível para o tribunal da Relação, independentemente do valor (cfr. art. 43º do Reg. e Anexo III) -, que a parte contra a qual a execução é promovida terá ocasião de alegar motivos de recusa da declaração de execução, previstos nos arts. 34º e 35º, do mesmo Regulamento.
Daí que “O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos arts. 43º e 44º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35º...” por força do regime imposto pelo art. 45º do mesmo diploma legal que vem sendo citado.
Igualmente se deve e tem de referir que as decisões estrangeiras “não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito” de acordo com o determinado no nº 2 do citado art. 45º e também do art. 36º - o que constitui uma regra fundamental e estruturante do sistema do Regulamento, baseada nos princípios enunciados supra do reconhecimento da mútua confiança entre as jurisdições dos estados-membros; daí se determinando que a vontade do juiz nacional quanto ao fundo da matéria, não pode ser substituída pela vontade do juiz estrangeiro.
A confiança recíproca entre as jurisdições dos Estados-Membros é a pedra angular que justifica a livre circulação das decisões judiciais, no espaço de liberdade, de segurança e de justiça, como se tratasse de um único território estadual, ou espaço judiciário único.
É assim na fase de recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade que a parte contra a qual a execução é promovida terá ocasião de alegar motivos de recusa da declaração de execução, previstos nos arts. 34º e 35º, do mesmo Regulamento vindo o Agravante invocar a violação do principio do contraditório.
Os motivos de recusa estão indicados no art. 45º nº1 do Regulamento e na remissão para as normas nele referidas designadamente para um dos motivos que se encontram consignados e especificados nos artigos 34º e 35º.
Ou seja de acordo com o nº 1 do primeiro dos indicados normativos:
“1. Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido.”
Importa assim perfectibilizar e preencher tal conceito normativo sendo de referir que a ordem pública pode ser de natureza processual (lesão grave do contraditório, da imparcialidade do juiz, falta de fundamentação da decisão), ou natureza material (ordem púbica material - lesão grave de regras de concorrência).
Na Doutrina tal conceitualização tem diferentes perspectivas de definição assim por exemplo Mota Pinto, in Teoria Geral Direito Civil pág. 434 define como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas”.

Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica págs 334-335 refere que, pela dificuldade em definir tal noção, se faz apelo aos interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse sistema.
Vaz Serra in BMJ-74, Separata pág. 127 refere que “ …é sempre muito difícil definir o conceito de “ordem pública”, uma vez que o mesmo varia com os tempos. Exemplificativamente são as leis que têm por fim garantir a segurança do comércio jurídico e proteger terceiros, bem como as regras fundamentais da organização económica.”
Mas apreciando a questão existirá in casu violação do principio do contraditório com a prolação do despacho que, refira-se, o próprio Agravante, se bem interpretamos a sua explanação, não consegue factualizar ou concretizar devidamente, mas que julgamos ter mínima e razoavelmente compreendido, ao referir que tendo sido como foi proferido tal despacho deveria ter sido previamente citado ou chamado aos autos face à formulação deduzida podendo evitar as graves consequências da inexistência do mesmo chamamento por concessão de tal executoriedade.
Importa referir que não lhe assiste razão.
Desde logo porque tendo intervindo, como inegavelmente o fizeram processualmente, pois não negam nem contestam tal facto, da sentença proferida pelo Tribunal Italiano verifica-se que nesses mesmos autos foram garantidos os correspondentes direitos de defesa, dado que como resulta da própria decisão a aqui agravante foi citada para os termos daquela outra acção e apresentou articulado de defesa impugnando de facto e de direito as questões suscitadas, ainda que fora do prazo, por advogado com procuração com poderes especiais para o processo mas tal facto sibi imputet.
Depois invoca ainda a Agravante, efectivamente jogando com as regras do processo de execução, designadamente art. 812º nº 6 e seu regime, decretado com o diploma que porém, como já supra se referiu, não é o aplicável, o Dec-Lei 38/2003 de 6 de Março, porque como se viu o seu envio pelo correio foi anterior a 15/9/2003, e nesse segmento o despacho proferido pela Mmª Juiz não foi impugnado, ou seja transitou em julgado, não lhe sendo por tal, contrariamente ao que afirma, coarctado o direito à nomeação de bens à penhora.

O que está em causa nestes autos é a mera declaração de exequibilidade à sentença italiana, e nada mais.
Assim não cabe no âmbito deste Tribunal da Relação, designadamente, tomar conhecimento de eventuais procedimentos, sendo em sede de execução da sentença que pode a agravante, por via de oposição à execução, suscitar o que bem entender, designadamente invocando os motivos de impugnação previstos no art. 813º, e daí que não exista no caso também qualquer violação do invocado principio do contraditório no caso, o que aliás decorre do disposto no artigo 45º nº2 do referido Regulamento uma vez que as “decisões estrangeiras não podem em caso algum ser objecto de revisão de mérito.” Estando clara e inequivocamente garantido tal principio no decurso do iter processual

DELIBERAÇÃO
Nestes termos em face do que vem de ser exposto não se concede provimento ao interposto recurso mantendo a decisão proferida nos seus precisos termos.

Custas pela Agravante.

Porto, 20 de Setembro de 2005 (elaborado em férias judiciais por acumulação de serviço, designadamente por distribuição em número superior ao referido pelo C. S. Magistratura, como número índice de produtividade por Relator de 90 processos/Ano)
Augusto José Baptista Marques de Castilho
Maria Teresa Montenegro V. C. Teixeira Lopes
Emídio José da Costa