Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
271/16.0T8ETR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DECLARAÇÕES DE PARTE
DAÇÃO EM PAGAMENTO
ANULABILIDADE
CADUCIDADE
PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
ACTOS DE ADMINISTRAÇÃO ORDINÁRIA
ACTOS DE ADMINISTRAÇÃO EXTRAORDINÁRIA
Nº do Documento: RP20180221271/16.0T8ETR.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 669, FLS 498-511)
Área Temática: .
Sumário: I - A credibilidade das declarações da parte, no segmento em que não integrem confissão, deve ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas que, desde logo, desvalorizem o seu depoimento apenas porque é parte, nada impedindo que as suas declarações possam servir para dar certo facto que lhe é favorável como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação, maxime quando sejam confirmadas, em maior ou menor medida, por outros subsídios probatórios que hajam sido carreados para o processo.
II - O património comum do casal representa uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela, constituindo, assim, objeto de uma propriedade coletiva ou de mão comum.
III - Relativamente à prática de atos que tenham por objeto móveis integrados nesse acervo patrimonial a lei estabelece um princípio de codireção, que pode revestir dupla variante: gestão concorrente ou disjuntiva, para atos de administração ordinária, e gestão conjunta para atos de administração extraordinária.
IV - Constituem atos de administração ordinária, que cada cônjuge pode praticar isoladamente, aqueles que atendam às necessidades ordinárias e quotidianas da família, que não comportem decisões de fundo, suscetíveis de impedir ou condicionar a sua direção conjunta; já constituirá ato de administração extraordinária, aquele que implique uma alteração da composição que o património tinha no momento em que a administração se iniciou.
V - A dação em cumprimento de automóveis, bens comuns do casal, realizada por apenas um dos cônjuges não constitui ato de administração ordinária, estando a sua validade dependente de autorização ou consentimento do outro cônjuge.
VI - A falta desse consentimento gera uma “ilegitimidade conjugal” que tem como consequência a anulabilidade do respetivo ato de disposição nos termos do artigo 1687.º do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 271/16.0T8ETR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Estarreja – Juízo de Competência Genérica, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B... intentou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra C... e D..., pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre os quatro veículos automóveis que identifica na petição inicial e bem assim seja anulado o negócio celebrado entre os réus que teve por objeto esses veículos.
Peticiona ainda a condenação do réu D... a devolver-lhe tais veículos.
Para tanto, e em síntese, alega:
- Estar casada com o réu C..., desde 2002, no regime da comunhão de adquiridos;
- Está a correr ação de divórcio intentada por si na sequência da degradação da relação conjugal;
- Na constância do matrimónio, o casal adquiriu, com dinheiro comum, quatro viaturas automóveis de coleção;
- Em agosto de 2015 os réus celebraram entre si negócio intitulado confissão de dívida e contrato de dação em pagamento, mediante o qual o réu C... entregou ao réu D... aquelas quatro viaturas automóveis para pagamento de uma dívida inexistente de €45.000,00;
- Este contrato foi celebrado sem conhecimento e contra a vontade da autora;
- Só teve conhecimento da disposição dos veículos em 10 de Novembro de 2015.
Devidamente citado, o réu C... deduziu contestação, alegando, em síntese, que:
- Decorreu o prazo de seis meses desde o conhecimento do ato anulável para que a autora o pudesse requerer;
- Os veículos foram adquiridos com dinheiro próprio do réu C...;
- Contraiu junto do corréu D... uma dívida de €45.000,00, entendendo que a forma menos gravosa para o seu agregado familiar de pagar essa dívida seria mediante a dação das viaturas.
Por seu turno, o réu D... deduziu contestação, alegando, essencialmente, que:
- O réu C..., num contexto de dificuldades em obter crédito na Venezuela, pediu-lhe dinheiro emprestado que se comprometeu a pagar em Portugal.
- Acordaram que a dívida se deveria quantificar em €45.000,00.
- Nessa medida, e por falta de liquidez, o réu C... comprometeu-se a pagar-lhe mediante a dação das viaturas, que disse serem suas.
- O negócio foi efetuado no notário, estando o réu D... convencido da licitude do mesmo, tendo atuado sempre de boa-fé.
- Os veículos estão registados em seu nome, sendo que apenas em agosto de 2016 foi a presente ação registada, pelo que tendo a autora conhecimento, pelo menos desde 10 de Novembro de 2015 da celebração do negócio, decorreu já o prazo para que a mesma pudesse invocar e requerer a sua anulabilidade.
A autora respondeu à matéria da invocada exceção de caducidade do direito de ação, pugnando pela sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença que julgou “a ação procedente por provada e, em consequência:
A. Declar[ou] a anulabilidade do contrato de dação em pagamento celebrado entre os RR. C... e D..., mediante o qual o primeiro transferiu para o segundo a propriedade sobre os veículos automóveis
a. Fiat de matrícula HI-..-...
b. MG de matrícula RO-..-...
c. Riley de matrícula PT-..-...
d. Mercedes-Benz de matrícula BC-..-...
B. Conden[ou] o R. D... a restituir os mesmos veículos à autora e R. C....
C. Declar[ou] reconhecido o direito de propriedade da autora e do R. C... sobre os mesmos veículos automóveis.
D. Ordenou o cancelamento dos registos de aquisição de propriedade dos referidos veículos em nome de D..., sendo
a. Quanto ao Fiat de matrícula HI-..-.., o registo de propriedade nº ....., efetuado em 24.8.2015.
b. Quanto ao MG de matrícula RO-..-.., o registo de propriedade nº ....., efetuado em 24.8.2015.
c. Quanto ao Riley de matrícula PT-..-.., o registo de propriedade nº ....., efetuado em 24.8.2015.
d. Quanto ao Mercedes-Benz de matrícula BC-..-.., o registo de propriedade nº ....., efetuado em 24.8.2015”.
Não se conformando com o assim decidido, veio o réu C... interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:

1ª – O apelante considera incorretamente julgado o ponto 12 dos factos provados: «12º - A autora teve conhecimento do contrato referido em 11 em 10.11.2015».
2ª – Esse facto foi considerado provado com base nas declarações de parte da autora e identificados na parte expositiva das alegações que se considera reproduzida.
3ª – As declarações de parte devem sempre ser valoradas enquanto declarações de parte, isto é, como alguém interessado no resultado da ação e que não pode constituir confissão.
4ª – Mesmo das declarações de parte da autora resulta que a mesma podia ter tomado conhecimento da dação em pagamento dos veículos na primeira quinzena do mês de Setembro de 2015, como resulta das suas declarações gravadas no sistema integrado de gravação digital em 05.04.2017 ao minuto 12.
5ª – A testemunha F..., no seu depoimento, (gravação de 05.04.2017 minuto 04:12) referiu que, no início de Setembro de 2015 a autora teve conhecimento da retirada dos veículos da casa de morada de família, conforme transcrição na parte expositiva para onde remete.
6ª – A testemunha E..., no seu depoimento (gravação de 05.04.2017 ao minuto 06:00) referiu que a autora teve conhecimento no princípio de Setembro, de que os veículos tinham saído de casa, conforme transcrição na parte expositiva para onde se remete.
7ª – Consta do ponto 15º dos factos provados que os veículos referidos foram registados na Conservatória do Registo Automóvel a favor do réu D... em 24.08.2015.
8ª – Face ao referido nas conclusões 1ª a 6ª, conclui-se que a autora teve possibilidades de ter conhecimento na primeira quinzena de Setembro de 2015 que os veículos se encontravam registados a favor do 2º réu por lhe terem sido dados em pagamento. Para tal, face à ausência dos veículos da casa de morada de família, bastava-lhe ir à Conservatória e pedir a informação. Aliás, como provado (facto nº 9) as relações entre o casal foram-se degradando nos últimos anos.
9ª – A autora invoca a data de 10.11.2015 apenas com base no facto de, nessa data, lhe terem sido entregues certidões do registo dos veículos com a propriedade registada a favor do 2º réu.
10ª – Quando a lei fala no prazo a contar da data do conhecimento de um facto, quer abranger os casos em que a pessoa podia ter tido conhecimento desse facto e, se não teve, tal só a ela pode ser imputado. A autora, face às relações já conflituosas existentes entre o casal, ao facto de, em 20.08.2015, todos os veículos terem sido retirados da garagem da casa onde sempre estiveram e ainda ao facto de, a partir de 24.08.2015 os veículos estarem registados a favor do 2º réu, permitem concluir que a autora, mesmo que não soubesse (o que só se admite por hipótese de raciocínio) teve possibilidades de saber da cessão na primeira quinzena de Setembro de 2015.
11ª – Assim, o facto constante do ponto 12º devia ter sido provado nos seguintes termos: A autora teve conhecimento do contrato referido em 11 na primeira quinzena do mês de Setembro de 2015.
12ª – Tendo a ação dado entrada em 09.05.2016, já havia decorrido o período de seis meses. E não foi imputado ao contrato outro fundamento de invalidade.
13ª – A exceção de caducidade devia ter sido julgada procedente.
14ª – Sem conceder, entende o apelante que a douta sentença recorrida deve ser alterada.
15ª – Nos termos do nº 3 do artº 1678º do C.C. cada um dos cônjuges tem legitimidade para a prática de atos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal.
16ª – O apelante tinha contraído uma dívida que era uma dívida comum do casal.
17ª – A dação em pagamento foi feita para pagar essa dívida comum, tendo a mesma deixado de constar do passivo do casal.
18ª – Esse ato deve ser considerado um ato de gestão normal da economia familiar.
19ª – Não foi provado que o valor dos veículos era superior ao da dívida, nem foi imputado ao ato qualquer outro vício que afetasse a sua validade.
20ª – Mesmo que a douta sentença tivesse considerado que a dação em pagamento necessitava do consentimento da autora, devia ter mantido a cessão e ordenar que o valor dos veículos entrasse na partilha dos bens comuns do casal.
21ª – O património comum dos cônjuges é uma comunhão de direitos, em que o contitular tem uma quota ideal sobre esse património como um todo unitário. Nesse sentido, entrando o valor dos veículos na partilha dos bens comuns, esse “todo” não é afetado.
22ª – A douta sentença recorrida não fez correta aplicação e interpretação do disposto nos artºs 1678º, nº 3 e 1687º do Código Civil.
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Notificada a autora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. da caducidade do direito de ação;
. determinar se o ato de alienação dos veículos automóveis que faziam parte do património comum do casal constituído pela autora e 1º réu, que foi levado a cabo por este último, assumiu natureza de ato de administração ordinária.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1º. A autora instaurou contra D... procedimento cautelar comum cujos termos correram por este Juízo sob o nº 659/15.4T8ETR, apenso aos presentes autos, no âmbito do qual pediu a apreensão de quatro veículos automóveis.
2º. No âmbito do qual as partes transigiram.
3º. A A. e o R. C... contraíram entre si casamento no dia 17.10.2002, sob o regime da comunhão de adquiridos, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 23 de Setembro de 2016.
4º. Antes de casarem, a autora e o réu C... já viviam em união de facto, desde 1988, ano em que ambos se instalaram em Caracas, Venezuela, dedicando-se ao sector da panificação e exploração de estabelecimento comercial.
5º. Tal situação manteve-se até 2005, data em que a autora regressou a Portugal, trazendo consigo os três filhos do casal e instalando-se na casa de morada de família sita na urbanização “...”, casa .., ..., ....
6º. A autora não desempenhava actividade profissional em Portugal.
7º. No final de 2011, a casa de morada de família passou a ser na Rua ..., nº .., ..., Estarreja, aí residindo a autora e os filhos do casal.
8º. O réu C... tinha residência habitual em Caracas, sendo na residência referida em 7º que se instalava quando vinha a Portugal.
9º. O relacionamento da autora e do réu foi-se degradando nos últimos anos de casamento.
10º. Na constância do matrimónio o casal adquiriu quatro veículos automóveis, com as seguintes marcas e matrículas:
a. Fiat de matrícula HI-..-.., registado em nome do réu C... em 7.11.2002.
b. MG de matrícula RO-..-.. registado em nome do réu C... em 15.11.2002.
c. Riley de matrícula PT-..-.. registado em nome do réu C... em 21.6.2006.
d. Mercedes-Benz de matrícula BC-..-.. registado em nome do réu C... em 1.8.2006.
11º. Os réus C... e D... celebraram entre si contrato escrito que intitularam de “confissão de dívida e contrato de dação em pagamento”, autenticado por notário em 20.8.2015, e de onde consta:
a. “1ª O primeiro contraente (C...) confessa-se devedor ao segundo contraente (D...) da quantia de quarenta e cinco mil euros, dívida essa resultante de múltiplos empréstimos que lhe foram feitos pelo mesmo segundo contratante ao longo dos últimos cinco anos na Venezuela, os quais, na sua totalidade, perfazem aquele montante em dívida.
b. 2ª Os múltiplos empréstimos foram celebrados verbalmente, tendo sido, em todos eles, convencionada a inexistência de prazo para pagamento dos montantes emprestados bem como a inexistência da incidência de quaisquer taxas de juros sobre os montantes mutuados.
c. 4ª O primeiro contraente, em virtude de alterações que pressupõe poderem vir a ter lugar na sua vida pessoal e que podem alterar também a sua situação patrimonial, necessita de solver e cumprir todas as obrigações carentes de cumprimento, tendo já acordado verbalmente com o ora segundo contraente a forma de pagamento ao mesmo do montante em dívida atrás referido e, consequentemente, a extinção das obrigações subjacentes.
d. 5ª Assim, o primeiro contraente é dono e legítimo possuidor dos seguintes bens:
i. Um – veículo automóvel da marca Riley, modelo ..., com a matrícula PT-..-.., quadro nº ........, ao qual atribui o valor de quinze mil euros (15.000,00 €).
ii. Dois – veículo automóvel de marca Mercedes-Benz, modelo ..., com a matrícula BC-..-.., quadro mº .............., a que atribui o valor de dezasseis mil e quinhentos euros (16.500,00 €).
iii. Três – veículo automóvel de marca MG, modelo ... com a matricula RO-..-.., quadro nº .........., a que atribui o valor de nove mil euros (9.000,00 €).
iv. Quatro – veículo automóvel da marca Fiat, modelo ..., com a matrícula HI-..-.., quadro nº ..........., a que atribui o valor de quatro mil e quinhentos euros (4.500,00 €).
e. 6ª O primeiro contraente, devedor, para pagamento da dívida atrás identificada naquele montante de quarenta e cinco mil euros, dá ao credor, ora segundo contraente, os bens supra identificados, no valor global atribuído de quarenta e cinco mil euros igual ao montante em dívida.
f. O segundo contraente aceita, para pagamento integral da mencionada dívida os bens atrás descritos e, em consequência, declarada extinta a referida dívida.”
12º. A autora teve conhecimento do contrato referido em 11º em 10.11.2015.
13º. Os réus são emigrantes na Venezuela, onde se vive uma situação de carência de bens, nomeadamente matéria-prima que impede as empresas de laborar sem interrupções.
14º. É habitual entre a comunidade portuguesa emigrante na Venezuela recorrer-se a empréstimos entre particulares, sendo os emigrantes que assim se vão financiando uns aos outros, sendo que, por vezes e para tanto, preenchem documentos ali denominados de giros.
15º. Os veículos referidos em 10º foram registados na CRA em nome do réu D... em 24.08.2015.
16º. A presente ação foi interposta em 09.5.2016 e registada em 02.08.2016.
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O Tribunal de 1ª instância considerou que não se provaram os demais factos alegados pelas partes nos seus articulados, designadamente que:
A. Entre autora e réu passaram a ser frequentes os desentendimentos e discussões, sendo que este passou a imputar-lhe comportamentos desrespeitosos da honra e dignidade, determinando que, desde o verão de 2013, deixasse de haver condições para a manutenção da vida conjugal e a autora foi progressivamente assumindo o propósito de pôr fim ao casamento e projetando uma vida independente do réu C....
B. Os veículos referidos em 10º foram pagos com fundos que pertenciam ao casal constituído pela autora e pelo réu C....
C. A dívida referida no contrato descrito em 11º inexistia.
D. O réu C... pediu emprestado ao réu D... entre 2013 e 2015 um total de seis milhões e oitocentos mil bolívares para o que emitiu os respectivos giros, titulando a dívida.
E. Os aludidos giros tiveram o seu vencimento e não foram pagos.
F. Em agosto de 2015 os réus encontravam-se ambos de férias em Portugal e o réu D... insistiu junto do réu C... pelo pagamento da supra referida dívida uma vez que o C... lhe dissera que tinha dinheiro em Portugal para pagar.
G. O réu C... sabendo que o réu D... gostava de automóveis antigos e argumentando que a sua liquidez era diminuta para os encargos, propôs-lhe pagar a dívida que, por acordo, quantificaram em €45.000, mediante a dação em pagamento referida em 11º.
H. O réu C... explicou ao réu D... que fora ele, com o seu trabalho, que ganhara o dinheiro com que comprara os automóveis, o que este acreditou.
I. O réu D... actuou convicto da legalidade do negócio, desconhecendo estar a lesar algum direito à autora, tendo actuado de boa-fé.
J. A autora teve, ou podia ter tido, conhecimento da dação em pagamento dos veículos referidos em 10º, em 20 de Agosto de 2015.
K. Os veículos foram adquiridos com dinheiro que o réu C... possuía enquanto solteiro.
L. Era o réu C... quem tratava dos carros e cuidava da sua manutenção, sendo que autora não o fazia.
M. Apesar das dificuldades sentidas na Venezuela na exploração do negócio de padaria, o réu C... continuou a enviar dinheiro para Portugal para sustentar os seus filhos e os encargos da casa, evitando dar a conhecer essas dificuldades e na esperança de que a situação melhorasse.
N. O R. C... foi alvo de um sequestro em que teve de entregar dinheiro para o deixarem em paz.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Erro na apreciação e valoração da prova

O apelante inicia as suas alegações recursivas discordando da forma como na decisão recorrida se considerou provada a materialidade vertida no ponto nº 12.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação dos depoimentos prestados nesse ato processual, sendo que, no caso vertente, se encontram reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto estabelecidos no art. 640º.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele preconizados.
Como se referiu, a única proposição factual de cujo julgamento discorda diz respeito ao ponto nº 12 da materialidade provada que tem a seguinte redação: “A autora teve conhecimento do contrato referido em 11º [ou seja do contrato que as partes denominaram de “confissão de dívida e contrato de dação em pagamento”] em 10.11.2015”.
Entende o recorrente que deve antes considerar-se provado que “A autora teve conhecimento do contrato referido em 11º na primeira quinzena do mês de setembro de 2015”.
Para fundamentar o sentido decisório referente a tal facticidade escreveu-se na decisão recorrida que «[a] convicção do Tribunal alicerçou-se em todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento e nos documentos juntos aos autos, os quais foram valorados de forma crítica na sua globalidade e de acordo com regras da experiência comum e juízos de normalidade, à luz do princípio da livre convicção da prova.
Para a resposta à matéria de facto teve-se sempre em atenção o disposto na lei civil e processual civil sobre o ónus da prova – cfr. arts. 342º do Código Civil e 414º do Código de Processo Civil (…)
As declarações da autora foram ainda essenciais para prova do facto elencado em 12º, sendo que, por si foi referido que teve conhecimento de que as viaturas haviam sido alienadas quando, por intermédio do seu advogado, foram obtidos os registos junto da CRA.
Ora, resulta do documento de fls. 18 e seguintes que esta informação terá sido obtida em 10 de Novembro de 2015, sendo natural e conforme as regras da experiência que, logo que obtida esta informação, e porque contrária aos interesses da sua cliente, a mesma lhe tenha, de imediato, sido transmitida. Note-se, ainda, que nenhuma prova em contrário, concretamente de que o conhecimento da alienação tenha, ou pudesse ter, ocorrido em momento anterior, foi produzida em julgamento. Na verdade, da mera circunstância de a relação do casal estar conturbada e de a autora se ter apercebido em Agosto de 2015 que as viaturas tinham desaparecido da garagem, não se pode concluir necessariamente pela necessidade de aquela saber que as mesmas tinham sido alienadas. Com efeito, afirma B... que, nessa altura, perguntou ao seu, ainda, marido pelas viaturas, tendo o mesmo afirmado que as tinha levado para o museu na Maia, a pedido do proprietário. Em virtude de as viaturas por vezes irem para aquele Museu, onde estiveram mesmo parqueadas enquanto o casal residia na Venezuela, aquela aceitou a resposta como boa, apenas tendo desconfiado quando em Novembro lhe disseram que os carros tinham sido vendidos pelo seu marido, o que pediu ao seu advogado para confirmar e despoletou o pedido que teve por resposta os documentos de fls. 18 a 35 verso. Ora, todo este relato, conforme afirmado, pautou-se por ser conforme com as regras da experiência e normalidade dos factos, não sendo contrariado por qualquer outro elemento probatório atendível, não sendo assim possível concluir pela prova do facto afirmado em J (…)».
Colocado perante a transcrita motivação da decisão de facto, o apelante, com vista ao rebatimento do sentido decisório acolhido no referido ponto 12º, argumenta, fundamentalmente, que o decisor de 1ª instância atribuiu um relevo indevido às declarações prestadas pela própria autora, desconsiderando os demais elementos probatórios produzidos no âmbito do processo, mormente alguns dos depoimentos prestados na audiência final (concretamente pelas testemunhas F... e E...) que, na leitura que deles faz, confirmam que aquela teve conhecimento do contrato de “confissão de dívida e dação em pagamento” na primeira quinzena do mês de setembro de 2015.
Registe-se, desde logo, que, na economia da presente ação, a materialidade em causa relevará para efeito de afirmação da ocorrência (ou não) da caducidade do direito da autora requerer a anulação do referido “contrato de confissão de dívida e dação em pagamento” nos termos do nº 2 do art. 1687º do Cód. Civil, no qual se estabelece que esse direito «[p]ode ser exercido nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do ato, mas nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração».
Consequentemente, de acordo com a regra plasmada no nº 3 do art. 343º do mesmo Corpo de Leis, impenderia sobre os réus o ónus da prova de que a presente ação anulatória foi proposta já para além dos prazos fixados na aludida fattispecie normativa, o que, in casu, tendo a presente ação sido intentada em 9 de maio de 2016, pressupunha que lograssem demonstrar que nessa data haviam decorrido mais de seis meses desde que a demandante teve conhecimento do ato alienatório dos ajuizados veículos automóveis, ou seja, que esse conhecimento ocorreu em momento anterior a 9 de novembro de 2015 (data esta determinada em conformidade com as regras sobre o cômputo do termo estabelecidas no art. 279º do Cód. Civil).
Significa isto, portanto, que mais do que considerar provado que “a autora teve conhecimento do contrato referido em 11º em 10 de novembro de 2015”, o que relevaria para efeito de poder ser julgada procedente a invocada exceção perentória da caducidade seria antes que esse conhecimento ocorreu em momento anterior a essa data.
Com esse enquadramento (que é o que se mostra consonante com a referida regra de repartição do onus probandi), competiria, pois, aos demandados aportar aos autos elementos probatórios que permitissem afirmar que a autora teve conhecimento da realização do aludido contrato em data anterior a 9 de novembro de 2015, sendo certo que, neste conspecto, o tribunal a quo deu como não provado (na alínea J)), que “A autora teve, ou podia ter tido, conhecimento da dação em pagamento dos veículos referidos em 11º, em 20 de agosto de 2015”.
Ora, malgrado o apelante impugne diretamente o facto provado nº 12 (e não, como se impunha, o facto dado como não provado na alínea J), importa, ainda assim, dilucidar se os subsídios probatórios que convoca (concretamente os depoimentos das testemunhas F... e E...) para legitimar a preconizada alteração dessa materialidade são de molde a justificá-la.
Procedeu-se à audição do registo fonográfico dos aludidos depoimentos, verificando-se que, no decurso dos mesmos (cfr. esses registos a partir, respetivamente, do minuto 4 e 05 segundos e do minuto 5 e 50 segundos), as indicadas testemunhas efetivamente referiram que os veículos em causa terão sido retirados da garagem da residência do casal formado pela autora e 1º réu, em 2015, por ocasião da festa de ... (que se realiza na localidade da Torreira e que tem lugar na primeira quinzena de setembro), apresentando como razão de ciência uma conversa que, por essa altura, tiveram com a demandante, a qual lhes confidenciou que as viaturas haviam sido “levadas” pelo (então) seu marido, tendo ainda a autora acrescentado que este referira que os carros (antigos e de coleção) estariam num museu na cidade da Maia.
No entanto, em parte alguma desses depoimentos se deu nota da razão pela qual, nessa oportunidade temporal, os veículos foram retirados da garagem da residência do casal, desconhecendo as testemunhas se os mesmos foram ou não alienados pelo 1º réu ao 2º réu, sendo que, a este respeito, a testemunha F... adiantou que somente no mês de novembro desse mesmo ano a autora lhe disse que o (então) seu marido havia transmitido esses carros a outra pessoa.
Neste ponto, aquando da sua audição no julgamento, a demandante igualmente confirmou ter-se apercebido da retirada dos veículos por ocasião da festa da Torreira; acrescentou, no entanto, que, em momento algum, o 1º réu a informou que tivesse procedido à alienação dos veículos ao réu D..., tendo aquele, como justificação para essa retirada, referido a uma das filhas do casal (que transmitiu essa informação à autora) que os veículos haviam sido colocados no museu da cidade da Maia, como, aliás, ocorrera em anteriores ocasiões.
Daí que, tal como o decisor de 1ª instância assinalou na motivação da decisão de facto, será perfeitamente crível que somente com a obtenção das certidões extraídas da competente Conservatória do Registo Automóvel (que foram colocadas à disposição da autora em 10 de novembro de 2015 – cfr. fls. 18 a 35) esta haja ficado em condições de ter efetivo conhecimento da realização do ato alienatório realizado entre os réus.
O recorrente rebela-se contra esse posicionamento, advogando que o tribunal recorrido não poderia filiar o sentido decisório que foi firmado relativamente à materialidade em causa tão-somente nas declarações da própria autora.
Afigura-se-nos, contudo, que tal objeção não pode proceder porquanto, por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, nada obstaculiza que das declarações da parte se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao próprio depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis[5].
De facto, a credibilidade das declarações da parte, no segmento em que não integrem confissão, deve ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas que, de forma automática, desvalorizem as declarações da parte apenas porque é parte. Isso mesmo é particularmente enfatizado por ELIZABETH FERNANDEZ[6] que ressalta que “se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha”.
Na esteira desta visão das coisas, nada impedirá, pois, que as declarações de parte possam servir para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação[7], maxime quando essas declarações sejam corroboradas, em maior ou menor medida, por outros subsídios probatórios que hajam sido carreados para o processo.
Ora esses subsídios efetivamente existem, como é confirmado pelos aludidos suportes documentais e bem assim pelos depoimentos das referidas testemunhas, sendo que, ao invés do entendimento sustentado pelo apelante, o conhecimento relevante para que possa operar a invocada caducidade do direito de anulação é o da data da realização do ato alienatório e não tanto o momento em que terá ocorrido a retirada dos veículos da garagem da residência do casal, posto que desse facto não pode concludentemente extrair-se que a autora ficou em condições de saber que os mesmos haviam sido transmitidos ao réu D....
Daí que não se verifique razão bastante para divergir do sentido decisório trilhado pelo julgador de 1ª instância relativamente a essa materialidade, já que os réus não aportaram aos autos quaisquer elementos de prova que, de forma consistente e objetiva, permitissem suportar conclusão segura no sentido de que a autora teve conhecimento da alienação em momento anterior ao que foi afirmado na decisão sob censura.
Improcedem, assim, as conclusões 1ª a 11ª.
*
IV.2 – Da caducidade do direito da autora requerer a anulação do “contrato de dação em pagamento”

A autora intentou a presente ação (constitutiva) com o propósito de obter a declaração do vício de anulabilidade de que enfermará o negócio jurídico celebrado entre os réus e que estes denominaram de “confissão de dívida e contrato de dação em pagamento”.
Para tanto, filiou juridicamente a sua concreta pretensão de tutela jurisdicional no regime consagrado nos arts. 1682º e 1687º do Cód. Civil, sendo que no nº 2 do último normativo citado expressamente se estabelece que esse direito de anulação somente pode ser exercitado dentro dos prazos (relativo – “nos seis meses subsequentes à data em que o requerente teve conhecimento do ato”– e absoluto – “nunca depois de decorridos três anos sobre a sua celebração”) aí fixados, sob pena de caducidade do respetivo direito, sendo certo que, conforme pacificamente se vem entendendo, o momento relevante para impedir essa caducidade é o momento da propositura da ação (cfr. art. 259º, nº 1).
Ora, como anteriormente se sublinhou, constituindo a caducidade um facto extintivo do direito da demandante, naturalmente competiria aos réus provar que a presente ação (intentada em 9 de maio de 2016) foi proposta já para além do assinalado prazo relativo, o que, todavia, não lograram.
Improcedem, assim, as conclusões 12ª e 13ª.
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IV.3- Da (in)validade do “contrato de dação em pagamento” realizado entre os réus e que teve por objeto os ajuizados veículos automóveis

De acordo com o tecido fáctico apurado a autora e o réu C... foram casados entre si no regime da comunhão de adquiridos, pelo que, tendo os veículos automóveis em causa sido adquiridos, a título oneroso, na constância do matrimónio os mesmos integram o património comum do casal (cfr. arts. 1717º, 1721º, 1724º al. b) e 1725º do Cód. Civil).
Esse património comum constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela.
Daí que, como tem sido ressaltado pela doutrina majoritária[8], os bens comuns dos cônjuges constituem objeto não duma relação de compropriedade - mas duma propriedade coletiva ou de mão comum.
Cada um dos cônjuges detém uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar.
No caso vertente, questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso prende-se com a validade da dação em pagamento que foi realizada entre o 1º e 2º réus e que teve por objeto mediato os mencionados quatro veículos automóveis.
O tribunal a quo, convocando o regime vertido nos arts. 1682º e 1687º do Cód. Civil, considerou que a referida datio pro solutum enferma de vício de anulabilidade, na medida em que, importando a transmissão da propriedade das viaturas, constituiu um ato de administração extraordinária que foi levado a cabo sem o consentimento ou autorização da ora demandante.
O apelante rebela-se contra tal segmento decisório argumentando, fundamentalmente, que a dação que realizou consubstancia antes um ato de administração ordinária, posto que “foi feita para pagar uma dívida comum do casal”.
Tendo em conta o modo como o recorrente baliza a questão, o normativo a trazer à colação será, pois, o art. 1682º do Cód. Civil, que no seu nº 1 dispõe que «[A] alienação ou oneração de móveis comuns cuja administração caiba aos dois cônjuges carece de consentimento de ambos, salvo se se tratar de ato de administração ordinária».
Como emerge do inciso transcrito, o princípio subjacente aos poderes de disposição e oneração de bens móveis é o de que pode alienar ou onerar quem pode administrar[9].
Consequentemente, tratando-se de móveis comuns cuja administração caiba a ambos os cônjuges (como é o caso), a sua alienação carece do consentimento de ambos, exceto se se tratar de ato de administração ordinária.
Isso mesmo resulta outrossim do nº 3 do art. 1678º do Cód. Civil, onde se consagra a regra da direção disjunta para os atos de administração ordinária, ou seja, qualquer dos cônjuges pode praticar sozinho tais atos, e a da direção conjunta no sentido de só ambos os cônjuges em conjunto poderem praticar os atos em causa, para os atos de administração extraordinária, salvo as exceções previstas no nº 2 do mesmo artigo.
Estabeleceu-se, assim, um princípio de codireção, que pode revestir dupla variante: gestão concorrente ou disjuntiva, para atos de administração ordinária, e gestão conjunta para atos de administração extraordinária.
Deste modo, a resolução da enunciada questão passa por determinar se a dação em pagamento celebrada entre os réus pode (ou não) ser juridicamente qualificada como ato de administração ordinária, sendo certo que, sob o enfoque do critério normativo plasmado no art. 342º do Cód. Civil, impenderia sobre os réus – enquanto forma de neutralizar a pretensão anulatória aduzida nestes autos pela autora – demonstrar que esse negócio translativo assumiu essa natureza.
Como salienta CARVALHO FERNANDES[10], o legislador não nos fornece um critério rigoroso para apurar o que sejam atos de administração ordinária e extraordinária e só casuisticamente se poderá estabelecer a sua delimitação.
No sentido de procurar um critério operativo que permita densificar tais conceitos indeterminados, a doutrina pátria[11] vem definindo atos de administração ordinária como aqueles que visam a conservação do bem ou a sua frutificação normal, sem alterarem a substância da coisa, e que podem ser efetuados sem sacrifício económico relevante e sem recurso às reservas financeiras, isto é, utilizando só uma parte dos rendimentos correntes, enquanto os atos de administração extraordinária serão “aqueles que ainda se incluem nos poderes de administração mas que abrangem a feitura de obras que alteram a integridade do património” ou “atos de conservação, uso e fruição mas anormais e particularmente importantes”, ou seja, abrangem os atos de frutificação anormal ou a realização de benfeitorias ou melhoramentos nos bens.
A esta luz, no domínio do direito da família, afigura-se-nos constituírem atos de administração ordinária, que cada cônjuge pode praticar isoladamente, aqueles que atendam às necessidades ordinárias e quotidianas da família, que não comportem decisões de fundo, suscetíveis de impedir ou condicionar a sua direção conjunta; já constituirá ato de administração extraordinária, aquele que implique uma alteração da composição que o património tinha no momento em que a administração se iniciou.
Em face de tal delimitação conceptual, não se quadra ao conceito de ato de administração ordinária o negócio de alienação dos veículos automóveis que foi levado a cabo pelo réu C..., na justa medida em que alterou a própria substância do património comum do casal[12], através de uma (injustificada) variação negativa do mesmo, ultrapassando, por conseguinte, as finalidades próprias da mera administração, tanto mais que não logrou este demonstrar (cfr. alíneas D), E), F) e G) da matéria de facto não provada) que a celebração do ato translativo em causa tivesse efetivamente como desiderato a liquidação de dívida da responsabilidade de ambos os cônjuges.
Destarte, na ausência de consentimento ou autorização da autora, a consequência desta “ilegitimidade conjugal”[13] é, por mor do disposto no nº 1 do art. 1687º do Cód. Civil, a anulabilidade desse ato de disposição, assistindo-lhe, pois, o direito à sua anulação nos moldes afirmados na decisão recorrida que, assim, não merece censura.
De igual modo, carece de sentido a crítica que o apelante dirige a esse ato decisório por não “ter mantido a dação e por não ordenar antes que o valor dos veículos entrasse na partilha dos bens comuns do casal”.
Com efeito, a sufragar-se esse entendimento, isso corresponderia à retirada de sentido útil à consequência anulatória estabelecida no citado art. 1687º, cuja ratio essendi se traduz, precisamente, na salvaguarda dos interesses patrimoniais do cônjuge que não deu o seu consentimento ou autorização a ato de disposição de bem comum levado a cabo, à sua revelia, pelo seu cônjuge.
Improcedem, pois, as conclusões 14ª a 22ª.
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V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 21.02.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., pág. 232; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., neste sentido, na jurisprudência, inter alia, acórdãos do STJ de 2.10.2003 (processo nº 03B1909), de 9.05.2006 (processo nº 06A989) e de 16.03.2011 (processo nº 237/04), todos acessíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, REMÉDIO MARQUES, A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte, in Julgar, nº 16, págs. 168 e seguintes e ELIZABETH FERNANDEZ, Nemo debet esse testis in propria causa ? Sobre a (in)coerência do sistema processual a este propósito, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, págs. 27 e seguintes.
[6] Op. citada, pág. 36.
[7] Assim, PIRES DE SOUSA, in Prova testemunhal, 2013, pág. 366.
[8] Cfr., por todos, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Direito da Família, 3ª ed., pág. 507 e seguinte e ANTUNES VARELA, Direito da Família, 1999, pág. 436, os quais assinalam que um dos aspetos mais marcantes do regime de propriedade coletiva da comunhão conjugal se traduz no facto de antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles pode dispor da sua meação nem lhes é permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento.
[9] A este respeito CASTRO MENDES (in Direito da Família, AAFDL, 1990/1991, pág. 135) considera criticável que a titularidade dos poderes de disposição (poderes mais importantes) esteja dependente ou decorra dos poderes de administração (menos relevantes).
[10] In Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 2001, págs. 562 e seguinte.
[11] Cfr., por todos, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª ed. revista e atualizada, pág. 289, CASTRO MENDES, ob. citada, pág. 130, ANTUNES VARELA, ob. citada, pág. 381 e MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 1992, págs. 61 e seguintes.
[12] Em idêntico sentido se decidiu nos acórdãos desta Relação de 21.03.2013 (processo nº 57/07.3TBSBR.P1) e de 27.09.2016 (processo nº 5822/15.5T8MTS.P1), acessíveis em www.dgsi.pt..
[13] De facto, malgrado os poderes de disposição dos cônjuges surjam tratados a propósito das incapacidades conjugais, a doutrina tem, recorrentemente, chamado a atenção para o facto de se tratar antes de ilegitimidades dos cônjuges, pois não são estabelecidas, para cada um dos cônjuges, por se reconhecer que ele é inapto ou menos idóneo, por causa do casamento, para governar a sua pessoa ou os seus bens, mas sim em vista de proteger – na ideia da lei – o outro cônjuge e os interesses gerais da família – assim, inter alia, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, ob. citada, pág. 425, LEITE DE CAMPOS, Lições de Direito da Família, 2ª ed., pág. 398 e ANTUNES VARELA, ob. citada, pág. 388.