Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4800/18.7T8OAZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
FALTA DE COMPARÊNCIA DO REPRESENTANTE
COMINAÇÃO
LEGITIMIDADE PARA REQUERER A INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICES
Nº do Documento: RP201907104800/18.7T8OAZ-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 902, FLS 60-72)
Área Temática: .
Sumário: I - A falta injustificada de comparência do legal representante do devedor à audiência de julgamento torna ineficaz a sua oposição à insolvência e determina que se considerem confessados os factos alegados pelo requerente.
II - A natureza controvertida do crédito invocado pelo requerente da insolvência não priva o alegado credor de legitimidade para requerer a insolvência do devedor.
III - Os factos-índices previstos no artigo 20.º do CIRE são simples presunções de insolvência susceptíveis de serem ilididas pelo devedor mediante prova em contrário.
IV - A mera alegação de que o devedor não pagou ao credor e se desconhece património do devedor é insuficiente para preencher os factos-índice das alíneas a) e b) d artigo 20.º do CIRE.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4800/18.7T8OAZ-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
O.Azeméis - Juízo Comércio - Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos presentes autos veio o Ministério Público, em representação da trabalhadora B…, requerer a declaração de insolvência de “C…, Lda.”, com sede na Rua …, Loja ., .., Oliveira de Azeméis, alegando, em suma, que B… é titular de um crédito sobre a Requerida no montante de € 6.148,00, proveniente de um contrato laboral estabelecido entre aquela e a sociedade requerida e decorrente da violação do mesmo por parte da ré e cessação, com justa causa, por parte da trabalhadora, atendendo ao alegado comportamento ilícito da requerida. Como tal, invoca que são devidas a B… as quantias que discrimina sob o ponto 11.º da petição inicial, a título de Salários em atraso, Subsídios de alimentação, de Férias e de Natal, respectivos proporcionais e indemnização. Mais alega que a requerida se encontra incapaz de pagar as suas dívidas vencidas e, embora não consiga identificar o passivo da empresa para além da dívida que respeita ao Requerente, julga que o mesmo deverá ser superior ao activo, concluindo pela situação de insolvência. Conclui, assim, peticionando que seja declarada a insolvência da Requerida.

Citada a requerida, veio a mesma deduzir contestação, contudo, um dos seus legais representantes não compareceu em audiência de julgamento, nem se fez representar por quem tinha poderes para transigir, sendo que a requerida se vincula pela intervenção dos seus dois gerentes.
Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho:
“Relativamente à ausência do Sr. D… nesta audiência de julgamento, salienta-se, em primeiro lugar, que o mesmo não justificou a sua ausência, apenas juntou no dia de hoje um documento comprovativo que se encontrava agendada uma consulta para o dia de hoje, não tendo apresentado qualquer comprovativo da realização da mesma, nem invocado qualquer motivo que fosse justificativo de que o mesmo está absolutamente impedido de estar nesta audiência e, mais, que estava impedido de conferir os poderes especiais para ser representado nesta audiência à sua ilustre mandatário ou ao seu co-gerente.
Portanto nenhum destes motivos foi invocado, para além de que mesmo que fosse a falta considerada justificada, mesmo assim não seria motivo de adiamento da presente audiência de julgamento, face ao regime especial previsto no art.º 35.º do CIRE, cujas consequências para a falta vêm especialmente previstas, tendo o legislador consciência que são, obviamente gravosas, mas são as consequências que o CIRE apresenta.
Por outro lado, relativamente à questão do Tribunal poder aguardar mais tempo pela chegada do Sr. D…, entendemos que o tempo decorrido é manifestamente suficiente para o mesmo estar presente (decorreu quase uma hora desde a hora da chamada para esta audiência de julgamento), sendo que o tribunal tem ainda diligências agendadas para as 10h30m, não podendo aguardar mais tempo.
Assim sendo, e atendendo a tudo o que ficou dito e ao abrigo do disposto no art.º 35.º, n.º 2 do CIRE, considero confessados os factos alegados na petição inicial pelo M.ºPº, em representação da credora B…, quer no que toca ao crédito invocado sobre a devedora, quer ainda quanto à situação de que a Requerida se encontra em incumprimento pontual e generalizado das suas obrigações vencidas e de não dispor de património suficiente para cumprimento das mesmas.”

Foi assim proferida decisão a declarar a insolvência da devedora “C…, Lda.”

C…, LDA veio interpor recurso, concluindo:
1) A ora Recorrente não pode concordar com a Douta Sentença proferida em 30/04/2019, nos termos da qual se decidiu declarar a insolvência da firma C…, Lda., por entender que, além de terem sido cometidas nulidades processuais, o Douto Tribunal ad quo fez uma errada e abusiva interpretação do disposto nos artigos 20.º e 35.º do CIRE, afrontado, de modo inadmissível e irremediável o direito ao contraditório, e ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, assegurado no artigo 20.º da CRP, no que concerne à não justificação da falta do representante legal da Recorrente, D…, ao não adiamento da audiência de julgamento e até mesmo ao indeferimento do Requerimento do ora Recorrente de aguardar cerca de 15 minutos pela chegada do referido legal representante, razão pela qual a Douta Sentença proferida, deve ser revogada, sendo, em consequência, declarada a desistência do pedido por parte da Requerente, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 3 do CIRE, atenta a falta de comparência da Requerente na audiência de julgamento supra referida.
2) Com efeito, e no que respeita à matéria fáctica, verifica-se, com relevância para o presente Recurso que, em 29/11/2018, o Douto Ministério Público, em representação de B…, veio peticionar a declaração de insolvência da ora Recorrente, nos termos e com os fundamentos ali constantes e que se dão por reproduzidos e, por sua vez, em 01/04/2019, veio a ora Recorrente deduzir oposição, nos termos e para os efeitos do artigo 30.º do CIRE, alegando, em síntese, três fundamentos/razões para que o pedido de insolvência fosse totalmente destituído de fundamento: 1) a primeira decorre do facto de a credora/requerente não ter fundamentos para a resolução do contrato; 2) a segunda decorre do facto de a mesma não ser titular do alegado crédito sobre a Recorrente nos montantes peticionados; 3) a terceira, porquanto a Recorrente não se encontra em situação de insolvência, nem passaria a ser insolvente mesmo que o crédito em crise tivesse qualquer adesão à realidade.
3) A Recorrente invocou em sede de Oposição, a excepção de ilegitimidade da Requerente para peticionar a insolvência da Recorrente, que indevidamente não foi objeto de conhecimento por parte do Douto Tribunal ad quo, antes de proferir sentença de declaração de insolvência e que deveria ter sido conhecida, por entender que não estavam reunidos os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, pois que não foi feita prova do crédito invocado, atento o facto de a Requerente nunca ter instaurado ação própria, declarativa, de foro laboral, que permita a discussão do litigio em concreto e por a obrigação correspondente ao “crédito” alegado pela Requerente, além de não ser exigível, também é incerta e ilíquida e indeterminada (juntando para o efeito com a Oposição Acórdão proferido pela Relação do Porto recentemente, quanto a esta mesma questão, relativamente a outro trabalhador da firma).
4) Apesar disso, em sede de Audiência de Julgamento de 30/04/2019, o Douto Tribunal ad quo decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 35.º, n.º 2 do CIRE, considerar confessados os factos alegados na Petição Inicial, no que respeita ao alegado crédito invocado sobre a devedora, e no que respeita à alegada situação de a Recorrente se encontrar em incumprimento pontual e generalizado das suas obrigações vencidas e de não dispor de património suficiente para cumprimento das mesmas – factos pelos quais o Recorrente não concorda, nem pode concordar.
Quanto à não justificação da falta do legal representante da ora Recorrente, D…, à audiência de julgamento de 30/04/2019 e ao adiamento da diligência:
5) O Recorrente, em primeiro lugar, e por razões de economia processual, dá aqui por reproduzido o teor dos requerimentos e dos despachos constantes da Ata de audiência de julgamento de 30/04/2019 (estes últimos despachos dos quais discorda totalmente em termos de fundamento legal, fáctico e respetivas consequências e para cujo teor remete e que se encontram supra reproduzidos.
6) Decorre dos Autos, que o legal representante da Recorrente, D…, em 29/04/2019, foi notificado para comparecer na audiência de julgamento designada para o dia seguinte, dia 30/04/2019, pelas 9:30h (cfr. notificação da data de audiência de julgamento de 23/04/2019 com a ref.ª 106676206 e aviso de receção).
7) O legal representante da Recorrente, no mesmo dia, em que recebeu a dita notificação (29/04/2019), para comparecer na audiência de julgamento agendada para o dia seguinte (30/04/2019), dirigiu aos Autos, através da sua Mandatária, Requerimento com a ref.ª 32278152, nos termos do qual, o mesmo refere que, “tendo sido hoje notificado para, na qualidade supra descrita, comparecer na Audiência de julgamento designada para o dia de amanhã, vem informar V. Exa. que, tem marcada para a mesma hora uma consulta médica inadiável, motivo pelo qual não pode comparecer na dita audiência de julgamento”, requerendo que se digne considerar justificada a sua falta, juntando para prova do alegado comprovativo de marcação de consulta para o dia 30/04/2019, pelas 9:40h. (cfr. notificação da data de audiência de julgamento de 23/04/2019 com a ref.ª 106676206 e aviso de receção e requerimento de 29/04/2019, com a ref.ª 32278152).
8) O legal representante da ora Recorrente supra mencionado teve o cuidado de justificar a falta a audiência de julgamento, juntando documento comprovativo da ausência, pelo que deveria ter sido a falta dada como justificada, nos termos do disposto no artigo 603.º do CPC ex vi do artigo 17.º do CIRE (cfr. requerimento de 29/04/2019, com a ref.ª 32278152).
9) Não obstante a natureza de urgência e celeridade de que a norma do artigo 35.º, n.º 1 do CIRE atribui ao processo de insolvência, atento o facto de a audiência ter de ser marcada para um dos cinco dias, a contar da oposição do devedor, o certo é que nos presentes Autos as circunstâncias impunham a justificação da falta dada pelo representante legal da Recorrente D…, e/ou mesmo fosse determinado o adiamento da audiência.
10) É pressuposto da prática de qualquer acto processual que a realização do mesmo tenha atempada e adequadamente sido comunicado às partes que a ele devam comparecer, ou seja, deve dar-se conhecimento do lugar, dia e hora da realização do acto, pela forma adequada (a notificação – cfr. n.º 2 do artigo 219.º e n.º 2 do artigo 228.º do CPC), e com a antecedência devida, de modo a permitir que o visado possa comparecer ao mesmo e que possa estar munido dos elementos necessários a fazer valer os seus intentos, sendo esta uma regra elementar a observar nas notificações.
11) Estando em causa acto judicial marcado com uma antecedência de apenas cinco dias, como foi o caso, impunham-se particulares cuidados no modo de comunicação do acto, pois, previsivelmente, a adotar-se a notificação postal, havia o risco de esta não chegar em tempo ao conhecimento do destinatário ou de a notificação não se ter por efetuada em tempo útil, ainda mais quando a falta de comparência das partes ou dos seus representantes tem consequências tão gravosas como as previstas, nos n.ºs 2 e 3 do artigo
35.º do CIRE, ou seja, a confissão dos factos alegados na petição inicial, faltando o devedor, e a desistência do pedido, na falta do requerente da insolvência, com a consequente prolação da decisão prevista no n.º 4 do mesmo artigo (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 991/12.9TBFAR.E1).
12) No caso, o legal representante da ora Recorrente só foi notificado da marcação da audiência de julgamento no dia anterior à realização da mesma e logo, se apressou a comunicar à sua Mandatária a impossibilidade de comparecer no Douto Tribunal no dia seguinte.
13) Não colhe também a justificação do Douto Tribunal ad quo, nos termos da qual refere que o Recorrente não juntou qualquer comprovativo de realização da consulta, pois tal junção aos Autos era impossível, à data de 29/04/2019, pois que a dita consulta ainda não tinha ocorrido.
14) Contrariamente ao alegado no douto despacho proferido, a audiência aludida no preceituado artigo 35.º, n.º 1 CIRE não é impeditiva de justificação da falta e/ou do adiamento do julgamento, tanto mais que o artigo 17.º do CIRE refere que o processo de insolvência se rege pelo CPC em tudo que não contrarie as disposições do CIRE e este como se viu permite a justificação da falta e/ou adiamento do julgamento.
15) Ora, mesmo a seguir-se o entendimento de que a norma do n.º 1 do artigo 35.º do CIRE, em regra, não permite o adiamento da audiência, o que só se admite por mera cautela, no caso concreto tal adiamento impunha-se, porque a parte não foi atempadamente convocada para o acto, o que é pressuposto da aplicação do preceito.
16) E não se argumente que, sabendo a parte da natureza urgente e célere do processo de insolvência e de que, nos termos do n.º 1 do artigo 35.º, a audiência devia ser marcada para um dos cinco dias subsequentes à dedução da oposição, pois não é razoável impor-lhe tal ónus, tanto mais que o próprio Tribunal ad quo, não cumpriu o esse prazo, atento a data de entrada da oposição (01/04/2019) e a realização da audiência de julgamento (30/04/2019) decorreu um mês.
17) De resto, do adiamento da audiência não decorre qualquer consequência processual, pois que esta não está prevista, não trazendo qualquer prejuízo para o Tribunal.
18) Além disso, o legal representante da ora Recorrente atuou com manifesta diligência e cuidado, pois que, tendo sido notificado da marcação da audiência de julgamento no dia anterior à realização da mesma, logo, se apressou a comunicar à sua Mandatária a impossibilidade de comparecer no Douto Tribunal no dia seguinte, e esta, por sua vez, logo efetuou Requerimento a informar a impossibilidade de comparência do legal representante da parte D…, juntando prova dessa impossibilidade.
19) Por outro lado, o outro legal representante da Recorrente, Sr. E…, pese embora não ter sido notificado, à data da realização da audiência de julgamento em 30/04/2019, da sua marcação compareceu, nessa audiência, a pedido do Sr. D…. (cfr. notificação da data de audiência de julgamento de 23/04/2019, com a ref.ª 106676205 e aviso de receção).
20) Os legais representantes da Recorrente, atuaram com manifesta diligência e cuidado.
21) Deste modo, e concluindo, entende-se que ocorria fundamento para justificação da falta e/ou adiamento da audiência de julgamento, pelo que, tendo a mesma sido realizada na ausência do legal representante da Recorrente, D…, fazendo equivaler a sua não comparência à confissão dos factos (tanto mais que se encontrava presente um representante legal da Recorrente, Sr. E…, tal configura a prática de um acto que a lei não permite (o que corresponde a uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do CPC, pois que tal violação influi na decisão da causa, o que se requer, subsidiariamente, por mera cautela).
Quanto ao indeferimento do demais peticionado pela Recorrente (designadamente quanto ao Requerimento para o Tribunal aguardar 15 minutos para a chegada do legal representante, D…):
22) No âmbito da supra mencionada audiência de julgamento, a ora Recorrente, veio ainda requerer o seguinte: “De qualquer forma e para evitar consequências gravosas para a firma, por uma mera questão formal, já foi contactado, repita-se, o Sr. D… que se encontra a caminho devendo, para o caso de V. Ex.ª indeferir o requerimento de justificação de falta, V.Ex.ª aguardar pelo menos um quarto de hora, vinte minutos no máximo, para que o mesmo esteja presente” (cfr. ata de audiência de julgamento de 30/04/2019).
23) No entanto, o Douto Tribunal ad quo, na sequência do requerido, proferiu despacho, quanto a esta questão, referindo que o “tempo decorrido é manifestamente suficiente para o mesmo estar presente (decorreu quase uma hora desde a hora da chamada para esta audiência de julgamento), sendo que o tribunal tem ainda diligências agendadas para as 10h30m, não podendo aguardar mais tempo.”
24) O contante desse trecho do despacho proferido pelo Douto Tribunal, além de não corresponder à verdade, carece manifestamente de fundamento fáctico e legal, sendo mesmo violador das mais elementares regras de cooperação processual entre as partes, do contraditório e da boa-fé processual.
25) Consta da mencionada Ata de audiência de julgamento como presentes, a Digna Magistrada do Ministério Público em representação da Requerente B…, a Ilustre mandatária da requerida, ora Recorrente, Sr.ª Dra. F… e o legal representante da requerida E… e como faltosos, o legal representante da requerida D…, a Requerente B… e todas as testemunhas arroladas pelas partes.
26) Refere ainda a Ata de audiência de julgamento, que “constata-se que são, neste momento, 10h22m, estando a audiência de julgamento agendada para as 09h30m.
Pese embora o tempo aguardado, verifica-se que não se encontra presente nesta audiência de julgamento o legal representante da devedora D… (nem se fazendo representar por pessoa com poderes especiais para transigir), estando apenas presente o gerente E…” e que “Por outro lado, relativamente à questão do Tribunal poder aguardar mais tempo pela chegada do Sr. D…, entendemos que o tempo decorrido é manifestamente suficiente para o mesmo estar presente (decorreu quase uma hora desde a hora da chamada para esta audiência de julgamento), sendo que o tribunal tem ainda diligências agendadas para as 10h30m, não podendo aguardar mais tempo.”
27) Ao contrário do alegado, o Douto Tribunal ad quo, não esteve a aguardar uma hora pela chegada do legal representante da Recorrente D… (até porque já tinha antecipadamente conhecimento de que este não iria estar presente atento o Requerimento de 29/04/2019), foi apenas e tão-só depois de se encontrar aberta a audiência de julgamento, pelas 10:22h e no seguimento da Meritíssima Juiz dar conta do teor do Despacho que iria proferir (nos termos do qual iria considerar o Sr. D… como não presente e consequentemente aplicar o disposto no artigo 35.º, n.º 2 do CIRE), é que o legal representante, Sr. E… (e também ilustre mandatária presente na audiência), contataram telefonicamente o legal representante D…, e confirmou que, estando à espera de consulta médica, iria prescindir da mesma e que estava, naquele momento, a dirigir-se para este Tribunal.
28) Veja-se a este propósito, o teor do Requerimento efetuado pela Mandatária da Recorrente que dá conta disso mesmo: “De qualquer forma, e atento o facto da Mm.ª Juiz ter já adiantado, que iria considerar como não presente o legal representante D…, o mesmo foi contactado telefonicamente e estando à espera de consulta médica, irá prescindir da mesma e vir de imediato, já confirmou com a mandatária ora subscritora deste requerimento, que está neste momento a dirigir-se para este tribunal, a fim de estar presente na audiência de julgamento. Por esse efeito, considera antes de mais, que a falta do legal representante D…, está justificada e deverão ser extraídas as consequências do requerimento apresentado e considerar que a sua presença, embora deva existir, o certo é que não podendo comparecer, deverá ser marcada nova data de julgamento, para ele poder estar presente. De qualquer forma e para evitar consequências gravosas para a firma, por uma mera questão formal, já foi contactado, repita-se, o Sr. D… que se encontra a caminho devendo, para o caso de V. Ex.ª indeferir o requerimento de justificação de falta, V.Ex.ª aguardar pelo menos um quarto de hora, vinte minutos no máximo, para que o mesmo esteja presente”.
29) Tais factos são, aliás, comprovados pela declaração de presença emitida pelo Tribunal, constante dos Autos, nos termos da qual consta que “Para os devidos efeitos se declara que após contactado pela ilustre mandatária da devedora, Dra. F…, compareceu hoje neste tribunal, às 10h48m o Senhor(a) D…, tendo a diligência terminado às 10h40m”.
30) Ou seja, o legal representante da Recorrente, efetivamente, cerca de 20 minutos, após a Mandatária ter requerido ao Douto Tribunal para aguardar cerca de um quarto de hora, vinte minutos no máximo, pela sua chegada, encontra-se presente no Tribunal (cfr. declaração de presença emitida em 30/04/2019).
31) Os princípios estruturantes de todo e qualquer processo, o princípio do processo equitativo, o princípio do contraditório, o principio da lealdade, o principio da cooperação, o principio da verdade material e o principio da boa-fé na condução do processo, dos actos e dos sujeitos processuais, implicam necessariamente que o Tribunal ad quo, não aplique as consequências mais gravosas para a Recorrente, considerando confessados os factos da Petição Inicial, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 2 do CIRE, como ocorreu no caso, no circunstancialismo supra descrito, sem antes dar ao Recorrente a hipótese de ultrapassar essa questão, aguardando apenas e tão-só cerca de 15 minutos pedidos. Tanto mais se atendermos ao facto de que também a Requerente, apesar de notificada, não se encontrava presente.
32) A presença dos legais representantes da Recorrente, nos termos do disposto no artigo 35.º do CIRE, tem vista, em primeiro linha possibilitar até uma eventual transação com efeitos vinculativos da sociedade Recorrente (fase conciliatória), pelo que, não estando também presente a Requerente, apesar de devidamente notificada, não se mostra possível esta primeira fase conciliatória, que não deve ser preterida (coisa diferente seria se a Requerente estivesse presente – o que não estava).
33) A redação do artigo 35.º, n.º 1 do CIRE, que faz expressão referência à possibilidade de “transigir”, tem em vista, precisamente, a possibilidade de obviar à realização da audiência, que como bem entende a doutrina e jurisprudência, a este propósito, é a principal motivação para a exigência da comparência pessoal ou equivalente (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, p. 250).
34) Foram, assim, violados, além dos princípios supra mencionados, o disposto no artigo 35.º do CIRE, bem como as garantias de acesso ao direito, defesa e do contraditório previstos nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Quanto à alegada situação de insolvência da Recorrente:
35) Sem prescindir, por mera cautela, há a referenciar que a falta de comparência de um dos representantes legais do devedor, envolvendo a confissão dos factos alegado não determina necessariamente a declaração de insolvência, pois que ao Juiz cabe ainda apreciar se os factos são subsumíveis a alguma das situações enunciados no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, pois só, assim, deverá ser proferida a sentença declaratória, nos termos do n.º 4.
36) Salvo melhor opinião, atento o teor da fundamentação da Doutra Sentença proferida quanto a esta questão supra transcrito e que se dá aqui por integralmente reproduzido e o alegado em sede de Petição Inicial pela Requerida, para cujo teor remete, entende a Recorrente que a Requerente não invocou, nem provou factos dos quais pudesse resultar que a mesma se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, ou que se encontre verificado os factos-índice previstos alíneas a) e b) do citado artigo 20.º, n.º 1 do CIRE, pois que é a própria Requerente que refere na Petição Inicial que desconhece o ativo e o passivo da Recorrente.
37) A alínea a), do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE, refere-se à “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas”, sendo que, conforme entendimento da jurisprudência, a este propósito, “suspensão” significa uma “cessação” ou “paralisação” do cumprimento (não se encontra em causa uma situação meramente transitória, que o vocábulo “suspensão” poderia pressupor), ou seja, por “suspensão generalizada” entende-se a cessação, senão de todas elas, de um conjunto muito amplo de obrigações do devedor (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/09/2018, processo n.º 6983/17.4T8VNG-A.P1).
38) A questão é que não basta ao credor/ Requerente alegar genericamente a previsão normativa para que esta se mostre integrada – cumprir-lhe-ia, ao credor, ter especificado qual o conjunto de credores que viu “cessado” ou “paralisado” o cumprimento das obrigações que a Recorrente tinha para com eles, ou quais as obrigações concretas que se viram assim suspensas – neste sentido, Acórdão do TRC de 17/11/2015, processo n.º 3383/15.4T8VIS.C1).
39) Nada sendo dito pela Requerente, de factual e relevante, que permitisse a conclusão relativa à cessação generalizada de pagamentos a credores – facto-índice relevante, não era lícito ao Douto Tribunal ad quo ter concluído pela verificação desse mesmo facto índice.
40) Atento o exposto, não se nos afigura mostrar-se integrado o facto-índice da alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º CIRE.
41) Para a integração da norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º CIRE é ónus do requerente, o de, juntamente com a alegação de incumprimento, concretizar a desproporção do crédito ou a natureza das circunstâncias que, uma vez demonstradas, fazem deduzir a penúria generalizada (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/09/2018, processo n.º 6983/17.4T8VNG-A.P1), ou seja, exige-se que a Requerente invoque e demonstre a “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
42) Conforme se acentuou no Acórdão do TRC de 17/01/2012 in Coletânea I/10, o legislador quer significar que será de decretar a insolvência sempre que se verifique que um dos créditos já vencidos atinge um valor de tal forma desproporcionado perante os demais que, nesse quadro, não valerá já a pena, ou será inútil, admitir que o devedor venha a satisfazer as restantes obrigações ou então que concretizadas circunstâncias do incumprimento revelam a impossibilidade de cumprir pontualmente com a generalidade das obrigações respetivas.
43) Neste caso, conforme refere a este propósito o Acórdão do TRL de 24/5/2011, processo n.º 221/10.8TBCDV-A.L1-7: “é ónus do requerente o de, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada; importam aqui factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos”.
44) Atento o alegado pela Requerente, em sede de Petição Inicial, nomeadamente o desconhecimento do ativo e passivo da Recorrente, verifica-se que, no caso dos autos não existem elementos que permitam efetuar esse necessário juízo de “desproporção” do crédito da Requerente, face à generalidade dos restantes, nem ainda se conhecem as circunstâncias do incumprimento para que se conclua pela “penúria generalizada”, pois que nada foi alegado a este propósito.
45) De resto, porque apenas foi feita uma tentativa de interpelação (não tendo sido instaurado qualquer ação laboral, nem ação executiva), sendo certo que a dita interpelação não foi rececionada por nenhum dos gerentes da Requerente, nem chegou ao conhecimento destes, mas foi rececionada por um terceiro, Sr. G…, que é aliás, pai da Requerente e contra o qual, a firma tem diversos processos crime.
46) Além disso, desconhecendo a existência de património da Recorrente, cumpria à Requerente ter passado pelo crivo da verificação dessa insuficiência em processo de execução, como expressamente a alude a presunção da alínea e) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/09/2018, processo n.º 6983/17.4T8VNG-A.P1)
47) Assim sendo, não resultando provada, por parte da Requerente, a impossibilidade de cumprir quaisquer obrigações vencidas e, por isso, exigíveis pelos seus credores, conclui-se que inexiste fundamento para a declaração de insolvência.
48) Foram violados o disposto nos artigos 20.º, 35.º do CIRE, bem como as garantias de acesso ao direito, defesa e do contraditório previstos nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e os princípios do processo equitativo, do contraditório, da lealdade, da cooperação, da verdade material e da boa-fé na condução do processo, dos actos e dos sujeitos processuais.
Requer a V. Exa., nos termos do artigo 646.º do CPC, que seja junto ao Recurso as seguintes peças processuais: petição inicial; oposição; ata da audiência de julgamento de 30/04/2019 e respetiva sentença; notificação da data de audiência de julgamento com data de 23/04/2019, com a ref.ª 106676206, e respetivo aviso de receção ao legal representante da Recorrente, Sr. D…; notificação da data de audiência de julgamento com data de 23/04/2019, com a ref.ª 106676205, e respetivo aviso de receção ao legal representante da Recorrente, Sr. E…; notificação da data de audiência de julgamento com data de 23/04/2019, com a ref.ª 106676151, e respetivo aviso de receção ao legal representante da Requerente, B…; Requerimento da Recorrente de 29/04/2019, com a ref.ª 32278152 e declaração de presença emitida pelo Tribunal em 30/04/2019 ao Sr. D….
Nestes termos e nos melhores de Direito, requer-se a V. Exa. se digne dar provimento ao presente Recurso de Apelação e, por conseguinte, ser a sentença, inteiramente revogada, e substituída por outra que considere justificada a falta do legal representante da Recorrente, D…, e/ou que conclua pela existência de nulidades processuais, atenta a violação do disposto nos artigos 20.º e 35.º do CIRE e do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e dos demais princípios supra invocados, e/ou pelo indevido indeferimento do adiamento da audiência de julgamento e do requerimento da Recorrente para o Tribunal ad quo, aguardar 15 minutos para a chegada do legal representante, D… e, em consequência, sempre ser declarada a desistência do pedido por parte da Requerente, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 3 do CIRE, atenta a falta de comparência da Requerente na audiência de julgamento supra referida.
Caso assim não se entenda, sempre deverá ser revogada a Douta Sentença proferida, e considerado que dos factos julgados confessados não resultam preenchidos e provados o cumprimento dos requisitos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE de que dependa a declaração de insolvência, nos termos e com os fundamentos supra descritos, determinando, assim, que não ficou demonstrada pela Requerida a situação de insolvência da Recorrente.
Farão V. Exas. a Costumada e Inteira JUSTIÇA.

O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou resposta, concluindo que a sentença recorrida não merece qualquer reparo e, como tal, deve o recurso interposto pela recorrente ser julgado improcedente.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se deve ou não ser decretada a insolvência da apelante.

II – Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou confessados os factos alegados na petição inicial, ao abrigo do disposto no art.º 35.º, n.º2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas:
1º A sociedade C…, Lda tem como objecto social transportes terrestres de passageiros nacionais, internacionais e urbanos - cfr. Doc. nº 1.
2º O capital social da sociedade Requerida é de 100.000,00€, actualmente distribuído pelos dois sócios, H… e E…, sendo gerentes E… e D…. – cfr. Doc. nº 1.
3º A trabalhadora B… foi admitida ao serviço da Requerida no dia 20 de Janeiro de 2015, onde exercia funções de secretária administrativa. - cfr. Doc. n.º 2.
4º A insolvente pagava-lhe a retribuição mensal de 580,00€, acrescida de subsídio de alimentação. – cfr. Doc. n.º 3.
5.º A trabalhadora B… foi funcionária da Requerida até ao dia 14/03/2018.
6.º Porém, a Requerida, invocando dificuldades económicas, a partir do mês de Novembro de 2017, inclusive, deixou de pagar a B… todas as retribuições mensais devidas pelo trabalho por aquela executado.
7º Ou seja, B… trabalhou para a Requerida durante os meses de Novembro e Dezembro de 2017, assim como Janeiro, Fevereiro e os primeiros 14 dias de Março de 2018, sem receber qualquer retribuição e subsídio de alimentação.
8º Perante tal situação, B… remeteu à Requerida carta registada, datada de 14/03/2018, com aviso de recepção, denunciando o contrato de trabalho com justa causa, por falta culposa do pagamento pontual das retribuições. - cfr. doc. n.º 4.
9º Além da falta de pagamento das remunerações mensais vencidas, no dia 14 de Março de 2018, B… não havia ainda recebido da Requerida o subsídio de férias e de Natal vencidos a 01/01/2018, assim como o valor proporcional desses subsídios ao serviço prestado no ano de 2018, nos termos da al. a) do art.º 263.º do Código do Trabalho.
10º Ao que acresce, nos termos do art.º 396.º, n.º 1 do Código do Trabalho, o dever de a Requerida pagar a B… uma indemnização igual à retribuição de 15 a 45 dias, por cada ano de antiguidade, face à resolução do contrato de trabalho com a justa causa resultante da falta de pagamento pontual das suas retribuições.
11º Posto que se conclui que a Requerida não pagou a B… os seguintes montantes resultantes do contrato de trabalho que havia sido celebrado entre ambas e que a seguir se discriminam:
Salários em atraso …………..……………………………………2.610,00€;
Subsídios de férias e Natal, vencidos em 1-1-2018……………..……………………………………………………………1.160,00€
Proporcionais de férias, subsídios de férias e Natal …..……….348,00€
Indemnização…………………………………………………………2.030,00€.
12.º Pelo que subsiste sobre a Requerida o referido crédito de 6.148,00€ a favor de B… e que lhe é devido a título de créditos salariais.
13º À Requerida é desconhecido património que permita a cobrança de tal montante.

III – Fundamentação de direito
Sustenta a recorrente que o tribunal recorrido fez uma errada e abusiva interpretação do disposto nos artigos 20.º e 35.º do CIRE, afrontado o direito ao contraditório e ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, assegurado no artigo 20.º da CRP, no que concerne à não justificação da falta do representante legal da Recorrente, D…, ao não adiamento da audiência de julgamento e até mesmo ao indeferimento do requerimento do ora recorrente de aguardar cerca de 15 minutos pela chegada do referido legal representante.
Contrariamente ao alegado no despacho proferido, a audiência aludida no preceituado artigo 35.º, n.º 1 CIRE não é impeditiva de justificação da falta e/ou do adiamento do julgamento, tanto mais que o artigo 17.º do CIRE refere que o processo de insolvência se rege pelo CPC em tudo que não contrarie as disposições do CIRE e este permite a justificação da falta e/ou adiamento do julgamento.
Vejamos.
É consabido que o processo é comum ou especial.
O processo de insolvência é uma execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição o produto obtido pelos credores – artigo 1º do CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE).
É um processo especial que se rege pelas disposições que lhe são próprias e, em tudo o que não lhes seja contrário, pelo Código Processo Civil (artigo 17º do CIRE).
Esta especificidade começa, desde logo, pelo julgamento que difere dos julgamentos ocorridos nas acções comuns ou especiais tipificadas no nosso CPC.
Assim, o artigo 35º do CIRE regula a audiência de julgamento neste processo:
1- Tendo havido oposição do devedor, ou tendo a audiência deste sido dispensada, é logo marcada audiência de discussão e julgamento para um dos cinco dias subsequentes, notificando-se o requerente, o devedor e todos os administradores de direito ou de facto identificados na petição inicial para comparecerem pessoalmente ou para se fazerem representar por quem tenha poderes para transigir.
2 - Não comparecendo o devedor nem um seu representante, têm-se por confessados os factos alegados na petição inicial, se a audiência do devedor não tiver sido dispensada nos termos do artigo 12.º
3 - Não se verificando a situação prevista no número anterior, a não comparência do requerente, por si ou através de um representante, vale como desistência do pedido.
4 - O juiz dita logo para a acta, consoante o caso, sentença de declaração da insolvência, se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis no n.º 1 do artigo 20.º, ou sentença homologatória da desistência do pedido.
5 - Comparecendo ambas as partes, ou só o requerente ou um seu representante, mas tendo a audiência do devedor sido dispensada, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova.
6 - As reclamações apresentadas são logo decididas, seguindo-se de imediato a produção das provas.
7 - Finda a produção da prova têm lugar alegações orais e o tribunal profere em seguida a sentença.
8 - Se a sentença não puder ser logo proferida, sê-lo-á no prazo de cinco dias.”
Esta norma especial patenteia a natureza urgente dos processos especiais de insolvência e recuperação de empresas (artigo 9.º do CIRE), afastando, por isso, o regime geral da audiência e julgamento do processo comum.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código a Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, pág. 83, explica que o CIRE veio repristinar, em sede de processo de insolvência, algumas cominações que caracterizavam o processo sumaríssimo em que a falta do réu à audiência de julgamento tinha a mesma consequência que a falta de contestação.
Assim, do preceito resulta que a violação pelas partes do dever de comparência implícito no nº 1, tem consequências que, no caso do devedor, pode tornar ineficaz a oposição que tenha deduzido, na medida em que, não tendo sido dispensada a sua audiência nos termos do artigo 12º, se ele faltar, ou um seu representante, se consideram confessados os factos alegados na petição.
Portanto, contrariamente ao que diz a recorrente não são de aplicar aqui as normas gerais referentes à audiência do CPC.
As regras específicas, decalcadas no antigo processo sumaríssimo como se viu, são imperativas:
- a não comparência do devedor, nem de um seu representante indicado para esse efeito, implica a confissão dos factos alegados na petição inicial.
Esta cominação está bem expressa na lei e não ofende nem o direito ao contraditório nem ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva.
Se o devedor não puder comparecer providencia pela sua representação por alguém designado para tal.
Salvaguardadas estarão naturalmente as situações de acontecimentos imprevisíveis, sendo que apenas essas poderão configurar um verdadeiro justo impedimento.
Deste modo, considera-se assertivo o despacho proferido em audiência:” “Relativamente à ausência do Sr. D… nesta audiência de julgamento, salienta-se, em primeiro lugar, que o mesmo não justificou a sua ausência, apenas juntou no dia de hoje um documento comprovativo que se encontrava agendada uma consulta para o dia de hoje, não tendo apresentado qualquer comprovativo da realização da mesma, nem invocado qualquer motivo que fosse justificativo de que o mesmo está absolutamente impedido de estar nesta audiência e, mais, que estava impedido de conferir os poderes especiais para ser representado nesta audiência à sua ilustre mandatário ou ao seu co-gerente.”
Mais salienta a recorrente que invocou, em sede de oposição, a excepção de ilegitimidade da requerente para peticionar a insolvência por entender que não estavam reunidos os pressupostos exigidos pelo n.º 1 do artigo 20.º do CIRE pois que não foi feita prova do crédito invocado, atento o facto de a requerente nunca ter instaurado acção própria, declarativa, de foro laboral, que permita a discussão do litigio em concreto e por a obrigação correspondente ao “crédito” além de não ser exigível, também ser incerta e ilíquida e indeterminada.
Tal, refere, não foi objecto de conhecimento por parte do Tribunal ad quo.
Atentemos.
No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.
A lei trata os requisitos do crédito cuja satisfação coactiva é susceptível de ser realizada no processo de insolvência a propósito da legitimidade para apresentar o pedido de insolvência (artigo 19º e 20º CIRE).
Essa legitimidade afere-se pela qualidade de credor, seja qual for a natureza do crédito e ainda que este seja condicional (artigo 20º nº 1, 1ª parte, do CIRE).
O pedido de insolvência não está, quanto à natureza do crédito, sujeito a qualquer restrição quanto à competência do tribunal. Na insolvência podem ser actuados quaisquer créditos, ainda que o tribunal da insolvência não seja materialmente competente para a sua apreciação. Opera-se, deste modo, uma extensão da competência material do tribunal da insolvência, o que justifica a admissibilidade do pedido da insolvência por créditos públicos, como é o caso dos créditos fiscais, ou de créditos laborais.
Sendo, aliás, de notar que esta extensão de competência ocorre em todos os processos concursais, ou seja, em todos os processos em que haja lugar ao concurso de credores, dado que é admissível a reclamação de créditos públicos e também por exemplo, de créditos laborais seja na execução singular pendente seja na insolvência em curso.
A legitimidade do credor para deduzir o pedido de insolvência tem sido objecto de controvérsia na jurisprudência, defendendo-se, de um lado, que só é dotado de legitimidade para promover o procedimento de insolvência o credor cujo crédito não é controvertido ou litigioso, e, de outro, que este credor de crédito litigioso também pode desencadear o processo de insolvência.
A legitimidade ad causam constitui um pressuposto processual positivo, uma condição que deve estar preenchida para que possa ser proferida a decisão de mérito.
A ilegitimidade ad causam consubstancia uma excepção dilatória nominada imprópria, dado que se limita a impugnar um pressuposto processual positivo que o autor considera preenchido.
Sabe-se que o objecto do processo é constituído pelo pedido e pela respectiva fundamentação pelo que será o pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte. Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação. Esta noção permite vincar a diferença entre legitimidade e procedência.
Segundo Catarina Serra, em “A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, O problema da natureza do Processo de liquidação aplicável à insolvência no Direito Português”, Coimbra, 2009, págs. 263 e 264, no processo de insolvência, a legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva – mas a legitimidade processual, ad causam (artigo 20º nº 1 do CIRE). Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artigo 17 do CIRE).
Assim, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado. A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência.
Parte legítima no processo de insolvência, não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou. Um e outro são partes legítimas.
Se, todavia, vier a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência, é, não a absolvição da instância do demandado, por ilegitimidade ad causam– mas a sua absolvição do pedido.
A lei não estabelece, no tocante aos credores reclamantes, qualquer restrição quer quanto à natureza do crédito e aos seus fundamentos, quer quanto à sua pacificidade, admitindo, sem qualquer limitação, a reclamação, por exemplo, de créditos públicos e de créditos laborais ainda por mais controvertidos ou contestados que estes se mostrem (artigos 128º nº 1, 131º, 134º, 135º, 136º, 139º e 140º nºs 1 e 2 do CIRE).
O que significa que se o credor, em vez de requerer a declaração de insolvência, tivesse reclamado o seu crédito na insolvência já declarada, é indiscutível que tanto a natureza do seu crédito quer o seu carácter controvertido nenhum obstáculo colocariam à admissibilidade da reclamação e da verificação do crédito.
Se assim é, não há qualquer razão justificativa para uma diferença de tratamento do mesmo crédito.
Só este entendimento se coaduna com o já mencionado princípio da auto-suficiência do processo de insolvência, segundo o qual este processo é, em regra, o lugar adequado ao conhecimento de todas as questões cuja solução se revele necessária para a decisão a tomar - a declaração de insolvência.
Ora, se bem se observarem as alegações da recorrente o que ela vem suscitar não é a ilegitimidade ad causam ou processual da credora, mas sim o fundamento do crédito: diz que que não foi feita prova do crédito invocado.
A recorrente confunde o pressuposto processual da legitimidade com o mérito, sendo que o que verdadeiramente pretende é a discussão desse mérito, o qual foi objecto de apreciação do tribunal, atenta a falada auto-suficiência do processo de insolvência.
Por fim esgrime a apelante que a requerente não invocou, nem provou factos dos quais pudesse resultar que se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, ou que se encontrem verificados os factos-índice previstos alíneas a) e b) do citado artigo 20.º, n.º 1 do CIRE.
Ponderemos.
O que caracteriza, essencialmente, o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (artigo 3º nº 1 do CIRE).
A verificação de um dos factos enumerados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º pode, pela sua simples verificação, determinar a declaração de insolvência
Os denominados factos-índices da insolvência avançados pela lei são, designadamente: a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo valor ou pelas circunstâncias do incumprimento, revelem a impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das duas obrigações; a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito verificada em processo executivo movido contra o devedor; incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias ou de contribuições para a segurança social, de dívidas emergentes do contrato de trabalho ou sua cessação e violação e, tratando-se de pessoa colectiva ou de património autónomo, manifesta superioridade do passivo sobre o activo, documentada no último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, desde que legalmente exigível (artigo 20º nº 1, a), b) e), g), i), ii), iii) e h) do CIRE).
Estes factos-índices operam como simples presunções susceptíveis de ser elididas por prova em contrário e não como causas necessariamente determinantes da declaração de insolvência, conforme, desde logo, se expressa no preâmbulo do diploma que aprovou o Código (nº 19, in fine).
Em suma, a alegação e prova de factos cuja verificação objectiva se integre em qualquer uma, ou em várias, das situações previstas nas diversas alíneas deste preceito, constitui ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência. Alegados e provados estes factos-índice ou presuntivos da insolvência, e que em face das regras da experiência, constituem manifestações da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, este será consequentemente, considerado em situação de insolvência, salvo se demonstrar a sua solvência nos termos do artigo 30.º, n.ºs 3 e 4, do CIRE.
Caberá então ao devedor trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, não obstante a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice (cfr. Ac. da RE., de 25/10/2007, in CJ, 2007, IV, pág. 259).
No caso em análise, consta da sentença:
Ora, dos factos julgados como confessados resultam preenchidas as alíneas a) e b) do citado artigo 20.º. Com efeito, resulta claro o estado de precariedade da situação económico-financeira da Requerida, face ao facto de ter deixado de cumprir com as suas obrigações de pagar pontualmente aos seus credores, entre eles a aqui Requerente (ex-trabalhadora da requerida), e de não lhe ser conhecido património para solver as suas dívidas. Assim, encontra-se a requerida impossibilitada de solver as suas obrigações vencidas.”
Os factos-índices apontados são:
- a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
- a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
É esta factualidade que a credora tem de alegar e provar para que seja declarada a falência do devedor.
Por isso, imperioso é indagar se tal materialidade fáctica se demonstrou nos autos.
Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, pág. 132, referem que o que importa é a realidade que se pretende atingir: o devedor deixa de dar satisfação aos seus compromissos, em termos que projectam a sua incapacidade de pagar É uma situação de paragem ou paralisação que não pode ser apenas transitória.
A suspensão a que alude a al. a) do artigo 20º tem que ser generalizada, ou seja, deve respeitar à generalidade das obrigações do devedor porque só assim inculca uma significativa incapacidade financeira.
Sempre se tendo em vista que o processo de insolvência se baseia na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas entre os credores.
O estado de insolvência traduz-se sempre numa impotência económica – a impotência para fazer face às obrigações assumidas.
Também basta para que o devedor se considere em estado de insolvência que a impossibilidade de pagamento se refira às obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, ou pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornem patente, a impotência económica daquele para assegurar a satisfação da generalidade das suas obrigações. Esta é a situação configurada a al. b) do mencionado preceito.
Essa impotência constitui uma realidade diversa da simples superioridade do passivo relativamente ao activo. O devedor pode estar impossibilitado de pagar aos seus credores e, no entanto, ter um activo superior ao passivo. E o inverso também pode ser verdade: o devedor pode, em dado momento, ter um activo inferior ao passivo, mas dispor de crédito, ou seja, da possibilidade de mobilizar, por recurso a terceiros, disponibilidades monetárias que lhe permitam satisfazer os compromissos para com os seus credores, à medida que se vão tornado exigíveis.
Relativamente às sociedades comerciais a impossibilidade de solver as suas obrigações liga-se normalmente à insuficiência do activo. É por isso que se consideram em estado de insolvência quando o activo for inferior ao passivo e não exista pessoa singular que responda, pessoal e ilimitadamente por ele.
De todo o modo, a situação de insolvência não é uma realidade evidente ou imediatamente apreensível e é precisamente por isso que a lei se socorre de sinais exteriores que tipicamente a revelam: os chamados índices ou factos presuntivos da insolvência.
Já se disse que cabe ao credor a invocação e a demonstração da factualidade que a lei designou como presuntiva da insolvência.
E o certo é que percorrendo a factualidade considerada confessada não conseguimos chegar à mesma conclusão da sentença e que se transcreveu.
Os únicos dados de que dispomos são o de que a requerida não pagou à requerente os créditos laborais que esta reclama e a afirmação – que é uma abstracção – de que é desconhecido património à sociedade requerida que permita a cobrança de tal montante.
Manifestamente não se alcançam factos bastantes dos quais se possa retirar que ocorre uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas ou então que há falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
Comprovadamente só se apurou que existe um único crédito vencido que a requerida não cumpre – o da requerente - e nada mais.
Não há manifestamente indícios de que a requerente esteja impossibilitada - por impotência económica – de fazer face às suas obrigações assumidas.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente procedente a presente apelação e, em consequência, revoga-se a sentença que declarou a insolvência da apelante.
Sem custas por a apelada delas estar isenta (artigo 4º, nº 1 al. h) do RCJ)

Porto, 10 de Julho de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília Agante