Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
54/13.0GCAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
FACTOS PROVADOS
FACTOS NÃO PROVADOS
EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Nº do Documento: RP2016042754/13.0GAMT.P1
Data do Acordão: 04/27/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NULIDADE DA SENTENÇA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 1000, FLS.45-52)
Área Temática: .
Sumário: Mesmo que algum dos crimes imputados na acusação tenha sido objecto, de extinção do procedimento criminal por desistência de queixa, homologada em audiência, os factos a esse crime relativos constantes da acusação, devem constar da sentença como provados ou não provados e a sua fundamentação, se estiverem conexos com outros factos criminosos acusados, por manter interesse esse conhecimento para a apreciação destes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 54/13.0GCAMT.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum singular nº 54/13.0GCAMT, que corre termos na Comarca de Porto Este, Instância Local de Amarante, Secção Criminal, J1, submetido a julgamento pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de sequestro, p.p., respectivamente, pelos Artsº 143 nº1 e 158 nº1, ambos do C. Penal, que lhe eram imputados pelo M.P., veio a ser deles absolvido o arguido B….

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., tendo concluído da seguinte forma (transcrição):

a) Relativamente aos factos constantes da acusação que o Tribunal não decidiu se considerava provados ou não provados o Tribunal incorreu numa omissão de pronuncia que determina a nulidade da sentença recorrida nos termos do artº 379°, nº1, alo c) do Código de Processo Penal;
b) O arguido e o ofendido contaram versões completamente diferentes relativamente à forma como decorreram os factos de 08 de Março de 2013, sendo que o relato que ambos fizeram são inconciliáveis entre si e nessa medida seria expectável que o Tribunal recorrido considerasse um dos relatos verdadeiro e o outro inverdadeiro. No limite poderia até o Tribunal recorrido não ter acreditado em nenhum dos depoimentos, não pode é o Tribunal valorar ambos os depoimentos corno credíveis porque tal constitui urna contradição insanável nos termos do art º 410°, n02, alo b), do Código de Processo Penal;
c) Face ao conteúdo dos depoimentos, parcialmente, transcritos é manifesto que não podem ambos ser avaliados corno serenos, objectivos, e isentos credíveis que lograram acolhimento por parte do Tribunal;
d) É manifesto que a objectividade e credibilidade de um depoimento determina que o outro depoimento não possa ser considerado objectivo e credível pois o arguido e o ofendido contaram versões dos factos completamente diferentes e incompatíveis.
e) O Tribunal ao reconhecer credibilidade a ambos os referidos depoimentos incorre numa contradição insanável da fundamentação da sua convicção e, necessariamente, entre a fundamentação e a decisão.
f) A versão dos factos relatada pelo arguido é de todo inverosímil, sendo infirmada, além do mais, pelas provas objectivas que constam dos autos, o exame pericial e o relatório de urgência de fls. 6, 7, 21, 29 e 30;
g) O depoimento das restantes testemunhas da acusação foram congruentes e consistentes com o depoimento do ofendido C…, mas o Tribunal esqueceu-se de tomar posição sobre a credibilidade que lhe mereceram estas testemunhas e nessa medida incorreu em mais uma omissão de pronuncia que determina a nulidade da sentença nos termos do artº 379°, nº1, al. c) do Código de Processo Penal;
h) É incompreensível como é que foi possível considerar credível o depoimento do arguido pois a versão que o mermo apresentou contraria a as mais elementares regras de experiência comum;
i) Face à prova produzida, nomeadamente o depoimento do ofendido que o Tribunal valorou como credível, conjuntamente com os exames periciais e o relatório de urgência deveria o Tribunal ter dado como provado que:
a. No dia 08 de Março de 2013, pelas 23.00 horas, junto ao "café D…", situado na rua …, em …, comarca de Porto Este, E... actuando em comunhão de esforços e sintonia de vontades com o arguido convenceu o ofendido C…, levando-o ao engano, a entrar, no interior do veículo de marca "Audi", modelo "…", de matrícula ..-...-TM.
b. Já com o ofendido no interior do veículo o E… desferiu-lhe um murro e disse-lhe "o que é que andaste a fazer?".
c. De imediato o arguido B… entrou no lugar do condutor do veículo e iniciou a marcha, seguido ao seu lado no lugar do pendura um filho menor de E….
d. F… seguia sentado ao lado do ofendido no banco traseiro e durante o percurso, sem que nada o justificasse F… desferiu vários murros, no ofendido com os quais o atingiu na cabeça e nas costas.
e. Como consequência directa e necessária desta conduta sofreu o ofendido C… as lesões descritas e examinadas no episódio de urgência de fls. 21 nomeadamente "hematoma ligeiro da região occipital direita e da região frontal esquerda".
f. Tais lesões demandaram ao ofendido 8 dias de doença para cura sem afectação da capacidade de trabalho;
g. Após chegarem à referida localidade de … o arguido e o F… não deixaram sair o ofendido, que depois de ter sido agredido sentia-se atemorizado e receoso que ambos o pudessem agredir novamente se tentasse sair do automóvel tendo por isso permanecido por um tempo não concretamente apurado, mas não inferior a 30 minutos.
h. O arguido sabia que este seu comportamento era proibido e punido por lei, mas, apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e, assim molestar no corpo o C… e priva-lo da liberdade contra a sua vontade, o que conseguiu."
j) Ao não ter dado como provado os factos que constavam da acusação o Tribunal incorreu em omissão de pronúncia que determina a nulidade da sentença nos termos do art º 379°, nºl, al. c) do Código de Processo Penal;
k) Relativamente aos factos que não constavam da acusação, o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento por não ter feito a ponderação adequada de toda a prova produzida.
Termos em que, afigura-se-nos, deverá ser dado provimento ao recurso e determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento.

C – Resposta a Recurso

O arguido respondeu ao recurso e apresentou as seguintes conclusões (transcrição):

I - O recurso interposto pelo Ministério Público, da sentença proferida em 29 de Junho de 2015, não tem qualquer sustentação e outra não poderá ser a decisão que sobre o mesmo venha a recair que não a sua total improcedência, confirmando-se, consequentemente, quanto ao arguido, na íntegra, a douta sentença absolutória proferida nestes autos.
II - A acusação pública foi julgada improcedente, por não provada e, em consequência, absolvido o Recorrido, e MUITO BEM.
III - Com o decidido diz o Recorrente não conformar-se por entender que o tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia e erro na apreciação da prova produzida no decurso do julgamento.
IV - A sentença recorrida, não ostenta nenhuma das nulidades que o Recorrente pretende assacar-lhe.
V - Refere o Recorrente que a sentença recorrida é completamente omissa relativamente aos factos que consubstanciam um crime de ofensa à integridade física simples.
VI - De facto, a sentença não podia nem devia como não o fez, e MUITO BEM, decidir sobre estes factos porquanto no início do julgamento o ofendido desistiu do procedimento criminal contra o arguido em relação aos factos que consubstanciam um crime de ofensa à integridade física simples.
VII - A desistência de queixa do ofendido do crime de ofensa à integridade física simples foi homologada, extinguindo-se, assim, o procedimento criminal, cessando a perseguição do crime e o apuramento dos factos respetivos, com o consequente arquivamento dos autos.
VIII - Daí que os alegados factos que consubstanciam o crime de ofensa à integridade física não integram o objeto dos autos, a alegada prática do crime de sequestro, e nessa medida o tribunal a quo não ponderou nem decidiu sobre se fez ou não prova da sua veracidade, e MUITO BEM.
IX - No crime de sequestro protege-se a liberdade pessoal, a liberdade de movimentos, de locomoção, a liberdade de se deslocar de um lugar para outro. No crime de ofensas à integridade física protege-se o corpo e/ ou a saúde da pessoa e a vida humana.
X - Os elementos objetivos do tipo de ilícito do crime de sequestro não comportam qualquer ofensa à integridade física, segundo o disposto no artº 158º nº 1 do CP, crime de que vinha o arguido acusado, para a sua verificação é necessário demonstrar-se que a conduta do arguido consistiria em "deter, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade".
XI - Logo, como se contata, não é elemento objetivo deste tipo de ilícito a ofensa ao corpo ou a saúde do ofendido.
XII - Termos em que esteve MUITO BEM o tribunal a quo em não se pronunciar sobre a verificação ou não sobre o crime de ofensa a integridade física simples pois esta é totalmente alheia ao crime de sequestro.
XIII - Pelo que, não assiste razão ao Recorrente ao alegar que houve omissão de pronúncia do douto tribunal a quo não se verificando qualquer nulidade da sentença.
XIV - Aliás, diga-se em abono da verdade que o ofendido também manifestou vontade de desistir do crime de sequestro só não o fez porque não podia por exigência legal. Apenas e tão só a natureza pública do crime de sequestro impediu o ofendido de desistir de todo o procedimento criminal
XV - Por outro lado, refere o recorrente que os depoimentos do arguido e do ofendido são incompatíveis entre si e que por isso o tribunal a quo não podia ter considerado os dois depoimentos objetivos e credíveis.
XVI- O arguido e o ofendido não se encontravam nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar.
XVII - É desde logo manifesto que o arguido e o ofendido não presenciaram os mesmos momentos da situação, o que terá de ser atendido como condicionante para avaliação dos seus depoimentos. O arguido somente vê o ofendido já dentro da carrinha. Por seu turno, o ofendido presencia tudo desde o início.
XVIII- Estas constatações seriam, desde logo, suficientes para se entender que a mera circunstância de o depoimento do ofendido e do depoimento do arguido não serem integralmente coincidentes, não determinaria forçosamente a ausência de credibilidade do depoimento prestado por um ou pelo outro.
XIX- É precisamente da conjugação destes elementos probatórios, analisados à luz das regras de experiência comum, que o tribunal de la instância fundamenta a escolha dos factos dados como assentes e que o recorrente impugna, mas sem sucesso, uma vez que face aos argumentos acabados de aduzir, não se pode concluir pelo afastamento do depoimento prestado pelo ofendido e pelo arguido, por não ser o mesmo contraditório.
XX - Não houve violação dos parâmetros estabelecidos para a formação da convicção, pelo tribunal de primeira instância, pois inexiste arbitrariedade ou discricionariedade na forma como tal apreciação foi feita, mostrando-se a mesma lógica, racional e suficientemente apoiada pela prova recolhida.
XXI- Mostrando-se a decisão de primeira instância devidamente fundamentada e cabendo dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (artº's 127 e 374 nº2 do C.P. Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais, não sendo possível a sua alteração em sede de recurso.
XXII - Na verdade, a lei estipula que a modificação só é possível quando os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
XXIII- Como se viu, da análise realizada não resulta forçosamente a alteração da convicção obtida em la instância, não se impondo assim a sua modificação, pelo que o recurso interposto está condenado ao insucesso.
XXIV - Não concordamos com o Recorrente porquanto o que se verifica efetivamente é que os dois depoimentos não só são compatíveis entre si como também se complementam.
XXV - Alega ainda o Recorrente que, relativamente aos factos que não constavam da acusação, o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento por não ter feito a ponderação adequada de toda a prova produzida.
XXVI - Quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo.
XXVII - Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
XXVIII - São os Juízes de1ª instância quem de forma direta e "imediata" podem observar, as intransferíveis sensações que derivam das declarações e que se obtêm a partir do que os arguidos e das testemunhas disseram, do que calaram, dos seus gestos, da palidez ou do suor do seu rosto, das suas hesitações. É uma verdade empírica que frente a um mesmo facto diversos testemunhos presenciais, de boa-fé, incorrem em observações distintas.
XXIX - Tal oralidade e imediação características da fase do julgamento são condições da garantia da estrutura essencialmente acusatória do nosso modelo do processo penal português.
XXX - É que o julgamento é a fase da produção e valoração da prova por excelência.
XXXI- Os factos indiciários, dos quais foi inferida a prova dos factos probandos integradores do tipo objetivo, devem ser enumerados na matéria de facto provada. Não basta apenas identificá-los na motivação da decisão da matéria de facto. O Tribunal primeiro deve identificar e enumerar os factos que deu como provados e depois, com aquela matéria claramente autonomizada, partir para o exame crítico das provas.
XXXII- Na sentença ora recorrida verifica-se que o Tribunal a quo obedeceu a todos os requisitos supra expostos.
XXXIII- Dos factos dados como provados o tribunal a quo teve por base, na formulação da sua convicção, as declarações do arguido, ora recorrido, que considerou que as suas declarações foram prestadas de forma serena, objetiva, logrando acolhimento por parte do tribunal.
XXXIV - O Tribunal a quo teve ainda em consideração o depoimento do ofendido o qual referiu que se pudesse desistia do processo, tendo o seu depoimento sido dado como prestado de forma objetiva, isenta e credível.
XXXV - Dos factos dados como não provados considerou o Tribunal a quo que não foi feita qualquer prova certa e segura sobre esses factos.
XXXVI- Com efeito, refere a sentença ora em crise que /f o arguido afirmou que quando saiu do café o ofendido já se encontrava no interior da carrinha:"
XXXVII- O ofendido confirmou isso mesmo ao referir que " ... quando entrou na carrinha o arguido não se encontrava ali perto, da carrinha."
XXXVIII- As demais testemunhas da acusação inquiridas nada sabem do que se passou, ou seja, o que sabem foi o que lhes foi contado.
XXXIX- Assim, ao contrário do que alega o recorrente tais depoimentos não merecem qualquer valor probatório pois não se tratam de testemunhas que tenham tido conhecimento direto dos factos apenas sabem aquilo que lhes contaram.
XL - Da prova produzida, e até pelas declarações do arguido e do ofendido, o Tribunal a quo ficou com sérias dúvidas se o arguido, ora recorrido, sabia se o ofendido tinha sido forçado a entrar e permanecer no veículo.
XLI - Mais, o Tribunal a quo estranha que tendo o ofendido na sua posse o telemóvel, tendo telefonado a dois amigos e aos pais, que este, ofendido, não tenha ligado para as forças de autoridade.
XLII - Por tudo isto, o Tribunal a quo ficou com sérias e inabaláveis dúvidas da imputação destes factos ao arguido.
XLIII - Pelo que, numa situação em que se fique com dúvidas razoáveis de que os factos tenham sido praticados pelo arguido, essa dúvida deve ser resolvida da maneira mais favorável ao arguido em obediência ao princípio de presunção de inocência dos arguidos, princípio basilar e estruturante do nosso sistema processual penal consagrado no artigo 32°, nº 2, da nossa Constituição da República, e do qual decorre um outro princípio muito importante - o princípio in dúbio pro reo.
XLIV - A acusação imputa os factos alegadamente praticados pelo arguido como autoria material de um crime de sequestro. Mas na descrição dos factos refere que o mesmo, arguido, teria atuado em conjugação de esforços e sintonia de vontades com uma outra pessoa. Ora, tais factos apontariam mais para a incriminação do arguido como co-autor e não como autor material.
XLV- Mas, o próprio Tribunal a quo na sua motivação de facto e exame critico das provas, dos factos dados como não provados, refere que não foi feita qualquer prova certa e segura sobre estes factos.
XLVI- O Recorrente pode discordar da decisão, mas tal discordância não pode confundir-se, nem com qualquer causa de nulidade da mesma, nem com as causas tipicamente geradoras dos vícios previstos no art 410º nº 2 do CPP nem, menos ainda, com o princípio da livre convicção do julgador, que decorre do disposto no art. 127º do CPP e do princípio da imediação nos termos do artigo 355° nº 1 do CPP.
XLVII - A convicção do tribunal assentou, na análise crítica da prova produzida em audiência, na conjugação do depoimento do arguido, do ofendido e das restantes testemunhas inquiridas.
XLVIII - Ora, a mera discordância do recorrente face ao decidido, não permite que se considere estarmos perante algum dos vícios referidos no nº 2 do art 410° do CPP. XLIX - Nesse sentido, e citando MANUEL SIMAS SANTOS, E MANUEL LEAL
HENRIQUES, os vícios do artigo 410º n° 2 do C.P.P., não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a conclusão que o Tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo principio da livre apreciação da prova inscrito no art.127º do CPP." (Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Editora Rei dos Livros, Lisboa, 2011, pp 75, nota 76)
L - E sendo estas as conclusões parcelares julga-se ser de concluir, face a elas, pela improcedência do presente recurso, com a consequente manutenção da decisão que absolveu o arguido,
Assim se fazendo JUSTIÇA!

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, o arguido reiterou a sua posição.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
Tendo em conta as conclusões do recurso em causa, são as seguintes as questões sujeitas à apreciação deste tribunal:

1) Nulidade da sentença;
2) Erro de julgamento;
3) Vícios do Artº 410 nº2 do CPP;

B – Apreciação

Definidas as questões a tratar, importa atentar no que, na decisão sindicada, se deu por provado e não provado (transcrição):

Fundamentação de facto
a)Factos provados:
Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1°) No dia 8 de março de 2013, pelas 23 horas, junto ao café "D…", situado na rua de são sebastião, em travanca, vila meã, comarca do Porto Este, o C… foi introduzido no interior do veículo de marca …, modelo .., matrícula ..-..-TM.
2°) Já com o ofendido no interior do veículo, o arguido B… assumiu a direção do mesmo e o E… sentou-se ao lado do ofendido, ambos no banco traseiro.
3°) Nessa posição percorreram cerca de 2,5 km, até à localidade de quintas, junto ao restaurante "G…".
Mais se provou que:
4°) O arguido é casado. Tem uma filha, de 2 anos de idade.
5°) Encontra-se desempregado há cerca de 4 meses, recebendo € 419 de subsídio de desemprego. A esposa encontra-se também desempregada, recebendo € 370 de subsídio de desemprego.
6°) Vive em casa arrendada, pagando € 250 por mês de renda.
7°) Paga € 60 mensais de um crédito pessoal.
8°) Tem o 9° ano de escolaridade.
9°) O arguido não tem antecedentes criminais.

b)Factos não provados:
Da discussão da causa não resultaram provados os seguintes factos:
a) No circunstancialismo espácio-temporal referido em 1 ° dos factos provados, o arguido, atuando em comunhão de esforços e sintonia de vontades com E…, introduziu à força o ofendido C… no interior do veículo de marca audi, modelo .., matrícula ..-..-TM.
b) O arguido sabia que este seu comportamento era proibido e punido por lei, mas, apesar de o saber, quis atuar da forma descrita e assim privar o C… da liberdade, contra a sua vontade, o que conseguiu.

B.1. Nulidade da sentença

Alega o recorrente a nulidade da sentença, nos termos do Artº 379 nº1 al. c) do CPP, por ter omitido pronúncia sobe factos relevantes para a boa decisão da causa e que se prendem com a matéria pela qual era imputado ao arguido um crime de ofensa à integridade física simples, sendo que sobre ela o tribunal a quo nada disse, não decidindo se a mesma ficou, ou não, provada.
Apreciando.
Para além do crime de sequestro que era assacado ao arguido, vinha o mesmo acusado de um crime de ofensa à integridade física simples, sobre o qual, na dita peça processual, se plasmavam os seguintes factos:
“Durante o percurso, sem que nada o justificasse, o aludido indíviduo "F…", desferiu vários murros, no ofendido com os quais o atingiu na cabeça e nas costas.
Como consequência directa e necessária desta conduta sofreu o ofendido C… as lesões descritas e examinadas no episódio de urgência de fls. 21 nomeadamente "hematoma ligeiro da região occipital direita e da região frontal esquerda
Tais lesões demandaram ao ofendido 8 dias de doença para cura sem afectação da capacidade de trabalho.
O arguido sabia que este seu comportamento era proibido e punido por lei, mas apesar de o saber, quis actuar da forma descrita e, assim molestar no corpo o C… e priva-lo da liberdade contra a sua vontade, o que conseguiu”
Efectivamente, sobre esta matéria, o tribunal recorrido não se pronunciou, não a relegando, fosse para os factos provados, fosse para os não provados, omissão que talvez radique na circunstância do ofendido ter desistido do procedimento criminal contra o arguido pelos factos que consubstanciavam o crime de ofensa á integridade física simples que lhe era imputado, desistência que foi aceite por aquele, e homologada pelo tribunal, pelo que terá sido entendido que os factos em causa deixavam de integrar o objecto dos autos, deixando portanto de interessar a prova sobre a sua veracidade.
Acontece todavia, que, como bem nota o recorrente, tal factualidade, deixando naturalmente de relevar para eventual integração do crime de ofensa à integridade física – face à desistência de queixa operada pelo ofendido – continua a relevar em sede de crime de sequestro, o qual, pela sua natureza pública, se manteve sob crivo jurisdicional.
Com efeito, ambos os crimes, tal como descritos na acusação (Cfr. Fls. 70/72), tiveram lugar no mesmo local, o interior do veículo automóvel Audi .., de matrícula ..-..-TM, onde, à força, o ofendido terá sido introduzido e conduzido pelo arguido durante 2,5 km, sendo que, durante o percurso, terá sido agredido com diversos murros na cabeça e nas costas.
Nessa medida, para a própria configuração do crime de sequestro – afinal, a dinâmica criminosa é uma só, ainda que susceptível de enquadramento em dois tipos de crime – a prova ou não dos referidos factos é relevante, para a imputação daquele ilícito ao arguido, ou, pelo menos, para que a discussão sobre essa possibilidade se alicerce em todos os elementos de facto disponíveis.

Na verdade, como resulta do Artº 339 nº4 do CPP, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que, resultando da prova produzida em audiência, se mostrem importantes para todas as soluções jurídicas pertinentes, o que quer dizer que quando se afirma que o tribunal deve conhecer de todas as questões de facto que constituem o objecto de processo, implica que se pronuncie sobre todos os factos que constam daquelas peças processuais, ou resultem da discussão da causa, enumerando-os um a um, excluindo, naturalmente, as meras conclusões ou alegações de direito.
Só desta forma, aliás, é que a actividade de fiscalização e controle por parte dos tribunais superiores, relativamente às decisões proferidas em 1.ª instância, se desenhará como válida e eficaz.
Cabe assim ao tribunal de julgamento, individualizar os factos provados e não provados – para além, como é óbvio, de justificar tais motivações – sendo certo que a não inclusão de todos os factos constantes da acusação na fundamentação da decisão, valorados como provados ou não provados, gera a nulidade da sentença, nos termos combinados dos Artsº 368, 374 nº2 e 379 nº1 al. a), todos do CPP.
In casu, é isso que se verifica, na medida em que a instância sindicada omitiu a pronúncia factual em relação aos factos supra mencionados, não os incluindo, quer nos factos provados, quer nos não provados, sendo que os mesmos, como se disse, podem relevar para a própria prática do crime de sequestro imputado ao arguido e que terá sido cometido quando o ofendido foi por este conduzido onde terá sido agredido.
Na verdade, provando-se as referidas agressões – que o ofendido relata em pormenor, esclarecendo que era impossível que o arguido, como condutor da dita viatura, delas não se apercebesse – a eventual configuração do crime de sequestro pode assumir outros contornos.
Esta asserção é ainda mais verdadeira, se tivermos em conta que, de forma algo incompreensível, a convicção factual do tribunal recorrido se funda em dois depoimentos aparentemente inconciliáveis, como sejam o do arguido e o do ofendido, os quais foram valorados, ambos, como credíveis, pela instância sindicada, apesar de apresentarem versões distintas, e mesmo antagónicas, dos factos descritos na acusação.
Trata-se também de um segmento da decisão recorrida a carecer de melhor esclarecimento, de forma a entender-se bem qual o substracto probatório em que se funda a convicção do tribunal – sem olvidar, obviamente, a prova documental junta aos autos, nomeadamente, os exames periciais de Fls. 6/7 e 29/30 e o relatório de urgência de Fls. 21 - e quais as razões em que o mesmo se alicerça, sob pena de se cair numa insanável contradição da fundamentação de facto.
Assim sendo, torna-se evidente a importância dos factos supra mencionados, constantes da acusação, para a boa decisão da causa, tendo presente, como atrás se disse, que nos termos do Artº 339 nº4 do CPP, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e que se mostrem importantes para todas as soluções jurídicas pertinentes.
Cometeu pois o tribunal a quo e com o devido respeito, o apontado vício da nulidade, deste modo qualificado, como se referiu, ao abrigo das disposições conjugadas dos Artsº 374 nº2 e 379 nº1 al. a), ambos do CPP.
Caberá assim ao tribunal recorrido suprir esta nulidade, proferindo nova decisão, onde faça incluir na factualidade em causa, provada ou não provada, a matéria supra descrita e plasmada na acusação, devendo também aproveitar para suprir as deficiências apontadas em sede de fundamentação de facto.
Com a procedência do recurso por esta via, prejudicadas ficam as restantes questões nele suscitadas.

3. DECISÃO

Nestes termos, julga-se procedente o recurso e em consequência, declara-se a nulidade da sentença recorrida, a qual deve ser suprida pelo tribunal a quo, proferindo-se nova decisão, que se pronuncie, factualmente, sobre a matéria descrita na acusação e alusiva ao crime de ofensa à integridade física simples imputado ao arguido.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
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Porto, 27 de Abril de 2016
Renato Barroso
Vítor Morgado