Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
205/22.3Y2MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO M. MENEZES
Descritores: CONTRAORDENAÇÕES
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RP20230308205/22.3Y2MTS.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A jurisdição comum é materialmente incompetente para conhecer das impugnações deduzidas contra decisões de autoridades administrativas que apliquem coimas por infrações às normas (jus-administrativas) em matéria de urbanismo, sendo competentes, para o efeito, os Tribunais Administrativos e Fiscais (artigo 4.º, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais)
II - A violação das regras de competência material configura nulidade (insanável), prevista no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, que implica, pelo menos, a invalidade de todos os atos praticados pelo Tribunal no processo (após a receção deste em Juízo) destinados a assegurar a realização da audiência de discussão e julgamento e subsequente decisão da impugnação apresentada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º: 205/22.3Y2MTS.P1
Origem: Juízo Local Criminal de Matosinhos (Juiz 1)
Recorrente: Ministério Público
Referência do documento: 16681915


I
1. O Ministério Público impugna, no presente recurso, decisão proferida no Juízo Local Criminal de Matosinhos (Juiz 1), que, invocando dúvida quanto à factualidade para tanto relevante, decidiu absolver a arguida nos autos da imputada prática de «uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 4.º, n.º2, al. c) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 4.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 4.º, n.º 2, al. j) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação».
2. Censura-lhe, em concreto (reproduzem-se as «conclusões» com que termina as suas alegações):
«1º - A douta sentença proferida pelo Tribunal Ad quo, julgou procedente o recurso e, em consequência, absolveu “A..., Lda.” da prática das contraordenações previstas e punidas pelo art.º 4º n.º 1 e 2. al b), c) e j) do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.
2º - A empresa arguida no processo de contraordenação foi acusada e condenada pelo facto de ter executado operações urbanísticas sem a respetiva licença administrativa, factos que constituem contraordenação nos termos previsto no art.º 98º do RJUE.
3º - Conforme previsto na al. l) do n.º 1 do art.º 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete aos Tribunais Administrativos julgar as impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
4º - Considerando que, no caso em apreço, a empresa arguida apresentou o recurso de impugnação judicial da decisão do Município de Matosinhos, que lhe aplicou uma coima no montante de €50,000,00 pela violação de normas de direito urbanístico, o Tribunal ad quo é materialmente incompetente para dele conhecer.
5º - Por conseguinte, deveria o Meritíssimo Juiz ter declarado o tribunal ad quo incompetente em razão da matéria e remetido o processo para o tribunal competente.
6º - A douta sentença recorrida violou assim as disposições legais constantes da al. l) do n.º 1 art.º 4º do E.T.A.F. e do nº. 1 do art.º 32º e do n.º 1 do art.º 33º ambos do CPP, por remissão do art.º 41º do Regime Geral das Contraordenações
Sem prescindir,
7º - É indiscutível o evidente benefício que tais obras trouxeram à aqui sociedade, tal como fundamenta e bem a decisão administrativa.
8º - Não se concebe que a recorrente, enquanto comproprietária do prédio em questão, não obstasse à realização de quaisquer obras para as quais entendeu não ter dado o seu assentimento, designadamente, quando essas obras determinam uma efectiva alteração da configuração do terreno e delimitação e por onde era efectuado o respectivo acesso.
9º - Ainda que não seja possível discriminar a pessoa que em concreto deu ordem, já não concordamos que não se possa identificar o autor, com base nos factos provados vertidos nos Autos, pelo conjunto da obra feita, pela exploração da sociedade e por falta de factos que indiciem usurpação ilegítima.
10º - A recorrente tinha em seu poder o imóvel e com o dever de o vigiar.
11º - Ainda que a se trate de uma presunção ilidível, era ao recorrente que genericamente deveria comprovar que não foi por sua culpa que ocorreu a obra, e que mesmo com a diligência devida, esta ocorreria, o que não se verificou.
12º - Verifica-se preenchidos os tipos objectivos do ilícito em apreço e do comportamento assumido pela recorrente é possível estabelecer-se uma ligação por forma a poder-se afirmar que a situação existente se ficou a dever a um comportamento dominável pela vontade da recorrente – imputação subjectiva.
13º - Eram obras visíveis e notórias e o “consentimento mesmo sem dar a ordem como pretende fazer valer” é irrelevante para efeitos de exclusão da ilicitude da actuação da recorrente.
14º - Toda a prova que o tribunal valorou e apreciou incorrectamente, pelos motivos e fundamentos citados, deve ser apreciada e, em consequência, ser alterada a decisão sobre a matéria de facto no que respeita à sua autoria.»

3. A sociedade recorrida, pelas razões que enuncia nas suas alegações, e no essencial, veio acenar com a eventual falta de legitimidade do recorrente e com a sua parcial falta de interesse em agir e, no demais, defender o julgado.
4. O Ministério Público junto deste Tribunal, no tocante à questão de incompetência suscitada nos autos, aderiu às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando, também, pela improcedência do presente recurso.
5. A este «Parecer» replicou a recorrida, insistindo pela improcedência do recurso interposto.
6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.

II
7. O presente recurso merece provimento.
8. 1. Contrariamente ao que defende a sociedade recorrida, o Ministério Público tem legitimidade para (e interesse em) interpor o presente recurso.
9. A sociedade recorrida, na sua resposta, suscita, antes de mais, a questão da «legitimidade do recorrente», por entender ser «claro e evidente que o recorrente no presente recurso é o Município de Matosinhos, embora representado judicialmente pelo MP», pois que «o MP não interpôs o presente recurso em nome próprio, mas sim agindo na invocada qualidade de representante do Município de Matosinhos», razão pela qual «[q]uem recorre é, assim, a pessoa jurídica Município de Matosinhos» sendo que, na sua opinião, «[é] manifesto que o Município de Matosinhos não tem legitimidade para recorrer da sentença (…) proferida».
10. Para além disso, suscita, ainda, a questão da eventual falta de interesse em agir por parte do digno recorrente, por entender «que o MP não ficou vencido na questão da competência», sendo mesmo que «foi o MP quem deu diretamente causa à pretensa questão de incompetência que agora vem invocar como fundamento do seu recurso», ao ter decidido apresentar os autos a Tribunal porventura incompetente para deles conhecer.
11. Ora, pese embora o Ministério Público abra as suas alegações afirmando que age «em representação do Município de Matosinhos, participante nos autos supra identificados», fá-lo, como é evidente, sempre no uso dos seus poderes próprios de representação orgânica do Estado (lato sensu), constitucional e legalmente consagrados, e, portanto, na sua veste de titular da ação pública (também) no domínio do direito de mera ordenação social (algo que a própria recorrida não deixa igualmente de reconhecer, quando afirma que «[o] papel do MP nos recursos contraordenacionais não é o de um mero recetáculo postal dos autos do processo ou de simples núncio da Autoridade Administrativa: o MP é o acusador, cabendo-lhe exercer a ação pública em matéria contraordenacional»).
12. Recorrente nestes autos é, pois, o Ministério Público, como o será sempre, independentemente da entidade que, no uso dos seus aludidos poderes, entenda (ou, mais exatamente, lhe caiba), em cada momento, «representar» processualmente, no exercício da sua autonomia própria; e enquanto sujeito processual, com a especial posição que lhe é reconhecida pelas funções que exerce, tanto no pródromo como no decurso da fase judicial do procedimento, é evidente ter ele legitimidade para interpor recurso contra a decisão recorrida (cf., a este propósito, o artigo 73.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro).
13. Por outro lado, tendo o Tribunal a quo absolvido a sociedade recorrida da prática das contraordenações que nos autos lhe foram imputadas, antolha-se-nos evidente que foi proferida decisão contrária à posição mantida no processo pelo Ministério Público no tocante à alegada responsabilidade contraordenacional da arguida, tendo assim manifesto interesse em (e necessidade de) suscitar a intervenção deste Tribunal com vista a sindicar o julgado e, sendo caso disso, alterá-lo conforme for de Direito, se e na medida em que tal seja admissível (vd. os artigos 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 74.º, n.º 4, daquele diploma legal).
14. O mesmo interesse em agir, em (eventual) defesa da legalidade, tem ainda o Ministério Público quanto à questão da alegada incompetência da jurisdição comum para conhecer da impugnação deduzida nos autos contra a decisão tomada pela autoridade administrativa, porquanto o Tribunal a quo, ao proferir decisão conhecendo dessa mesma impugnação, assumiu (aliás expressamente, ainda que de forma tabelar), competência material que, a faltar-lhe, se traduz na prática de uma nulidade insanável, para o que, como é óbvio, não releva, de qualquer forma, a posição que o digno recorrente tenha (ao menos aquando da apresentação dos autos em Juízo) assumido porventura na matéria (cf. o artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal).
15. A questão de incompetência suscitada perante este Tribunal, de qualquer modo, sempre seria de conhecimento oficioso (as «nulidades insanáveis (…) devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento», como resulta do proémio do citado artigo 119.º do Código de Processo Penal), de novo independentemente do entendimento que, sobre a mesma, possam os demais sujeitos processuais manter, que, de todo o modo, sempre as poderiam invocar também, até ao eventual trânsito em julgado da decisão recorrida (e, portanto, mesmo que sobre ela nos não pronunciássemos).
16. 2. Sendo a jurisdição comum materialmente incompetente para conhecer das impugnações deduzidas contra decisões das autoridades administrativas que, como ocorre no caso dos autos, apliquem coimas por infrações às normas (jus-administrativas) em matéria de urbanismo, verifica-se, na hipótese vertente, a nulidade (insanável) prevista no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal.
17. Como se referiu, o digno recorrente sustenta, no presente recurso, que ao Tribunal recorrido (rectius, à jurisdição comum) falta(va) competência material para conhecer da impugnação da decisão proferida nos autos pela autoridade administrativa recorrida, competência essa que, considerando o preceituado no artigo 4.º, n.º 1, alínea l), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pertencerá aos Tribunais desta ordem jurisdicional.
18. A nosso ver, tem razão.
19. Como é sabido, à jurisdição comum (aos tribunais judiciais, portanto) cabe «apenas» o exercício da iurisdictio nas matérias cujo conhecimento não seja atribuído a outras ordens judiciais (artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
20. Ora, como bem salienta o digno recorrente, o aludido artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reserva para os «tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo (…)», norma que, enquanto lex specialis, se impõe ao critério geral de competência fixado no artigo 61.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
21. No caso, afigura-se-nos inexistirem dúvidas de que as condutas pelas quais a sociedade recorrida responde nos presentes autos relevam – pelo menos do ponto de vista da autoridade administrativa que aplicou a sanção impugnada, e é este que delimita o objeto do processo (e da subsequente impugnação judicial) – da violação de normas relativas ao licenciamento de operações urbanísticas, como, aliás, decorre da natureza dos factos descritos e, em especial, da qualificação jurídica que lhes foi dada.
22. Assim, o que está em causa nos autos é (1) a «coloca[ção] em data não apurada [de] uma vedação face à via pública sobre um murete de betão existente com rede metálica até cerca de 2,50 metros de altura na extensão de aproximadamente 70 metros, incluindo portão de acesso, sem [que] para tal existisse licença administrativa» (o que violaria «a alínea c) do n.º 2 do art.º 4.º do RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro); (2) a realização de «trabalhos de destruição do revestimento vegetal, com alteração do relevo natural e das camadas de solo arável, provocados pela deposição de terra e pedras para regularização e nivelamento do terreno, em área não concretamente apurada, sem que existisse licença administrativa» (o que violaria «o n.º 1 e alínea b) do n.º 2 do art.º 4.º , em conjugação com o disposto na alínea m) do art.º 2.º do RJUE»); e (3) a «[o]cupação do solo com armazenagem a descoberto de Contentores e Depósitos de Armazenamento de Combustíveis na periferia da zona de intervenção (...)», sem que possuísse a respetiva licença administrativa» (o que violaria «o n.º 1 e alínea j) do n.º 2 do art.º 4.º, em conjugação com o disposto na alínea j) do art.º 2.º do RJUE»), sendo tudo sem ulterior «regularização administrativa».
23. Este último facto, bem como a exata qualificação jurídica de cada infração imputada à sociedade recorrida, importa esclarecê-lo, foi-se buscar diretamente à decisão administrativa impugnada, já que na sentença recorrida nem sequer houve o cuidado de transcrever adequadamente um e outra, o que diz muito sobre a falta de cuidado do Tribunal recorrido na fixação dos factos relevantes para a apreciação da decisão administrativa que se julgou competente para conhecer e, em geral, na construção da própria decisão recorrida.
24. Ora, em conclusão, todos os factos, e questões jurídicas, suscitadas nos autos – e só esses podem aqui ser tidos em consideração por esta Relação – resultam de alegada infração a normas de natureza jus-administrativa, sc., da infração de normas relativas ao licenciamento administrativo prévio de operações (de novo, alegadamente) sujeitas ao aludido Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, ou seja, ao regime essencial em matéria de urbanismo.
25. Sendo assim as coisas, o conhecimento da decisão proferida nos presentes autos pela autoridade administrativa está legalmente reservado, como se disse, à jurisdição administrativa e fiscal, carecendo os Tribunais judiciais, consequentemente, de competência (material) para o efeito, ou, por outras palavras, o Tribunal recorrido excedeu a sua competência ao conhecer do objeto deste processo.
26. A violação das regras de competência do tribunal, como se referiu anteriormente, constitui nulidade insanável (artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal), cuja verificação não pode deixar de implicar, pelo menos, a invalidade de todos os atos praticados pelo Tribunal recorrido no processo após a receção deste em Juízo, destinados a assegurar a realização da audiência de discussão e julgamento e, bem assim, a decidir a impugnação apresentada pela sociedade recorrida contra a decisão sancionatória proferida pela autoridade administrativa.
27. Ao Tribunal competente, ao qual os autos têm de ser remetidos (artigo 33.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Penal) fica, naturalmente, sempre salva a competência que lhe reserva a segunda parte do citado preceito legal.
28. 3. Face ao teor da decisão que será proferida, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo digno recorrente no seu recurso.
29. 4. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

III
30. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente o presente recurso:
a) Declarar a incompetência, ratione materiae, da jurisdição comum para conhecer da impugnação apresentada, nos presentes autos, contra a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, e competente para o efeito a jurisdição administrativa e fiscal;
b) Julgar, por isso, verificada a nulidade (insanável) prevista no artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e consequentemente declarar a invalidade de todos os atos praticados pelo Tribunal recorrido após a receção do processo em Juízo e destinados a conhecer da impugnação nele deduzida;
c) Determinar a descida dos autos à 1.ª instância para, nada obstando, se dar oportuno cumprimento ao preceituado no artigo 33.º, n.º 1, primeira parte, do Código de Processo Penal.

31. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Porto, 8 de março de 2023.
Pedro M. Menezes
Pedro Donas Botto
Paula Guerreiro
(acórdão assinado digitalmente).