Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2544/18.9T8OAZ-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: HERANÇA AINDA NÃO PARTILHADA
DIREITO DOS HERDEIROS
VENDA EM ACÇÃO EXECUTIVA
TRANSFERÊNCIA DO PRODUTO DA VENDA
Nº do Documento: RP201907102544/18.9T8OAZ-B.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º180, FLS.95-101)
Área Temática: .
Sumário: I - Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
II - Por força do nºs 2 e 3 do art.º 824º do Código Civil, a venda de bens na ação executiva é feita livre dos direitos de garantia que os onerarem, pelo que os direitos de terceiro que, assim, caducarem se transferem para o produto da venda dos respetivos bens. O credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
III - Se uma herança é composta apenas por um imóvel, a ela concorrem vários herdeiros e foi apreendido para a massa insolvente o direito e ação que nela tem o devedor insolvente, sendo de 1/6 esse direito, pendendo processo de execução onde o imóvel vai ser vendido e hipoteca sobre esse prédio a favor de um credor reclamante na insolvência, o produto da venda equivalente a 1/6 do preço do imóvel deve ser transferido para a massa insolvente, devendo o credor hipotecário ser pago com preferência sobre os demais credores (comuns).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2544/18.9T8OAZ-B.P1 (apelação)
Comarca de Aveiro – Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis – J2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam na Relação do Porto
I.
Proferida a sentença que declarou insolventes B... e C…, pelo Sr. Administrador de Insolvência foi apresentada, no dia 21.9.2018, a relação de créditos reconhecidos a que se refere o art.º 129º do CIRE[1].
Por requerimento de 1.10.2018, a D…, S.A. impugnou a lista apresentada, pugnando pelo reconhecimento de um crédito seu no valor global de €373.817,11.
O Administrador da Insolvência declarou, por resposta de 7.12.2018, nada ter a opor à impugnação. Nenhum outro interessado se pronunciou.
Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Face a tudo o exposto, nos termos das disposições legais supra citadas, decide-se:
- Julgar verificado e reconhecido o crédito do credor D… S.A. no valor global de €373.817,11, assumindo o mesmo natureza comum.
- Reconhecer os demais créditos referidos da lista elaborada pelo Sr. Administrador, que consta do requerimento refª 30146684;
- Graduar os créditos verificados nos seguintes termos:
- Os créditos comuns serão pagos de forma rateada, na proporção dos respectivos valores – cfr. art. 176º do C.I.R.E.
- Os rendimentos eventualmente cedidos nos termos do art. 239º do CIRE serão a ratear da forma supra referida.
As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência/Fiduciário, saem precípuas do produto da liquidação dos bens apreendidos ou a apreender/ceder.
Sem tributação autónoma – cfr. artigos 304º e 303º, ambos do C.I.R.E.
Valor da causa: o dos créditos reconhecidos.»
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Inconformada com a decisão sentenciada, a credora D…, S.A., dela interpôs recurso de apelação, concluindo assim as suas alegações:
«1. O presente recurso vem interposto da Douta Sentença que reconheceu o crédito da Credora D…, S.A. no valor global de €373.817,11, mas atribui-lhe a natureza de crédito comum, com fundamento de que o credor hipotecário não beneficia de um crédito garantido sobre a insolvência quando é apreendido um quinhão hereditário do insolvente numa herança indivisa do qual faz parte um imóvel hipotecado.
2. Nos presentes autos foi apreendido 1/6 indiviso do prédio urbano, composto por casa de habitação, situada em …, freguesia de …, do concelho de Oliveira de Azeméis, descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1344.º.
3. A 25 de julho de 2018, a Credora D…, S.A. propôs ao AI que a venda judicial do 1/3 do imóvel apreendido nos presentes autos fosse efetuada em conjunto com a venda dos 2/3 pertencentes aos comproprietários E… e F…, os quais se encontram penhorados no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ, pelo valor base de €215.000,00 e na modalidade de propostas em carta fechada, sendo o valor a anunciar correspondente a 85% do valor base.
4. Por despacho proferido a 18 de setembro de 2018, foi determinado o prosseguimento dos autos para a liquidação nos termos do artigo 158.º do CIRE.
5. Na lista de créditos reconhecidos, foi reconhecido o crédito da D…, S.A. no valor de €368.387,79, proveniente de um contrato de mútuo com hipoteca, o qual foi qualificado como crédito garantido sobre a verba única do inventário.
6. A Credora D…, S.A. impugnou a lista definitiva de credores, nomeadamente, quanto aos valores reconhecidos, dos quais não constavam os juros que se foram vencendo entre o processo especial de revitalização e a sentença de declaração de insolvência, razão pela qual devia ser reconhecida a quantia de €373.817,11, como crédito garantido.
7. A 25 de janeiro de 2019, o Senhor Administrador de Insolvência enviou a seguinte comunicação à Senhora Agente de Execução nomeada no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ: “No seguimento do registo da declaração de insolvência no prédio que tem penhorado no processo n.º 510/14.2TBOAZ, e de acordo com a solicitação do credor hipotecário D…, S.A., venho informar que nada tenho a opor à venda em conjunto do imóvel no processo de execução, através da modalidade que V.ª Ex.ª venha a definir, pelo valor base de 215.000,00 (correspondente à globalidade). Mais informo que o valor que caberá à Massa Insolvente pelo produto da venda, deverá ser transferido para a respetiva conta bancária com o IBAN PT.. …. …. …. ….. …..”.
8. O bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199 e inscrito na matriz sob o artigo 1.344.º, da freguesia de …, tem três hipotecas voluntárias registadas a favor do G…, transmitidas à D…, bem assim como uma penhora registada a favor da D… no âmbito do processo n.º 510/14.2TBOAZ.
9. Na sentença de verificação e graduação de créditos, foi reconhecido à D… um crédito no valor de €373.817,11, mas foi o mesmo classificado como crédito comum.
10. Salvo o devido respeito e melhor entendimento, a Credora Reclamante não pode deixar de discordar com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, razão pela qual interpõe o presente recurso, uma vez que a mesma olvida a garantia real relativa às hipotecas constituídas a favor do G…, S.A., as quais foram transmitidas à Recorrente, impossibilitando o ressarcimento, com a preferência inerente à classificação de crédito garantido, pelo produto da venda do bem apreendido nos presentes autos.
11. Nos presentes autos encontra-se apreendido 1/6 indiviso do bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199, enquanto no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ foi penhorada a totalidade do referido bem imóvel, sobre o qual a Recorrente tem 3 hipotecas voluntárias registadas a seu favor.
12. Não obstante ter sido apreendido nos presentes autos o direito e ação à herança indivisa da Insolvente C… e marido, o bem imóvel que compõe a referida herança e sobre o qual a Recorrente tem hipoteca registada a seu favor, vai ser vendido na totalidade no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ.
13. Em 25 de janeiro de 2019, o Senhor Administrador de Insolvência concordou que fosse efetuada a venda conjunta do bem imóvel com a descrição 199/Oliveira de Azeméis com o processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ, onde o mesmo se encontra penhorado na totalidade, tendo indicado o respetivo IBAN para o qual deve reverter o produto da venda do referido bem imóvel correspondente à parte apreendida nos presentes autos de 1/6.
14. Uma parte do produto da venda do bem imóvel com a descrição 199/Oliveira de Azeméis, sobre o qual a Recorrente tem hipoteca registada a seu favor, vai reverter para os presentes autos de insolvência.
15. Com a venda da totalidade do bem imóvel e posterior repartição do produto da venda entre os presentes autos e o processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ, vão ser cancelados todos os ónus e encargos.
16. Ao contrário do que resulta da Sentença em crise, a hipoteca voluntária registada a favor da Recorrente D…, S.A. não se vai manter, uma vez que vai ser vendida a totalidade do bem imóvel hipotecado no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ, sendo apreendido 1/6 do produto da venda para os presentes autos.
17. Sobre a parte de 1/6 do produto da venda do bem imóvel que irá ser apreendida nos presentes autos, a Recorrente tem uma garantia real consistente na hipoteca voluntária registada sobre o bem imóvel com a descrição 199/Oliveira de Azeméis.
18. O direito ao quinhão hereditário da Insolvente C… é um direito cuja génese é distinta, por exemplo, do direito à meação conjugal, uma vez que já se encontra definida uma quota ideal no direito comum ao contrário do que sucede no caso do direito à meação, razão pela qual ambas as hipóteses ficam sujeitas a soluções distintas.
19. Embora normalmente a hipoteca voluntária incida sobre a totalidade de uma coisa, nada obsta a que a mesma incida sobre uma quota-ideal da coisa nos termos do disposto no artigo 689.º, n.º 1 do CC.
20. Se a hipoteca pode ser constituída sobre uma quota-ideal num direito comum, também poderá ser objeto de penhora em processo executivo ou de apreensão em processo de insolvência apenas uma quota da coisa ou do direito comum hipotecado, como sucedeu no caso do quinhão hereditário da Insolvente F… e marido.
21. No que respeita à apreensão do quinhão hereditário da Insolvente C… e marido, do qual faz parte um bem imóvel, estamos perante uma apreensão de uma quota parte indivisa.
22. Por um lado, a venda judicial de qualquer bem onerado com uma garantia real é feita livre das garantias reais que o oneram, designadamente a hipoteca, e, por outro, que a indivisibilidade da hipoteca significa que pela totalidade do crédito responde sempre todo o bem e qualquer uma das suas partes.
23. A indivisibilidade da hipoteca significa que o credor hipotecário pode reclamar a totalidade do seu crédito para ser pago pelo produto da venda da quota da coisa ou do direito onerado, pois que, feita esta venda, a hipoteca extingue-se em relação a essa quota e a respetiva garantia transfere-se para o produto da venda.
24. Sendo apreendida uma quota parte indivisa, o crédito reclamado pelo credor hipotecário deve ser admitido e graduado em primeiro lugar quanto ao produto da venda dessa quota: “I – A existência de uma hipoteca não impede a alienação voluntária ou coerciva do bem hipotecado nem, tratando-se de bem comum, de uma sua quota-parte indivisa. II - Tal como pode ser constituída hipoteca sobre uma quota de uma coisa ou direito comum, também pode ser objecto de penhora em processo executivo apenas uma quota da coisa ou direito comum hipotecado. III - A venda judicial de qualquer bem onerado com uma garantia real é feita livre das garantias reais que o oneram, designadamente a hipoteca. IV - A indivisibilidade da hipoteca é respeitada permitindo-se ao credor hipotecário reclamar a totalidade do seu crédito para ser pago pelo produto da venda dessa quota da coisa ou direito onerado. V - Feita a venda judicial de uma quota da coisa ou direito onerado, a hipoteca extingue-se em relação a essa quota e a garantia que ela representava transfere-se para o produto da venda.” – Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31 de janeiro de 2013.
25. Considerando que foi apreendido o quinhão hereditário dos Insolventes, o qual consubstancia uma quota parte indivisa no bem imóvel sobre o qual a Recorrente tem hipoteca registada a seu favor, o respetivo crédito reclamado tem de ser necessariamente reconhecido como crédito garantido.
26. Sendo vendida a totalidade do imóvel, no qual se inclui a referida quota parte de 1/6 – devidamente definida –, bem assim como os restantes 5/6, no âmbito do processo n.º 510/14.2TBOAZ, vai ser extinta a hipoteca em relação à totalidade do imóvel, transferindo-se a garantia para o produto da venda.
27. Como o produto da venda de 1/6 vai ser apreendido nos presentes autos de insolvência, o crédito reclamado pela D… tem de ser necessariamente reconhecido como crédito garantido.» (sic)
Pugna pela revogação da sentença, com todas as consequências legais.
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Não foram oferecidas contra - alegações.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão delimitadas pelas conclusões da apelação da credora recorrente (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[2]).
Impõe-se apreciar e decidir se o credor hipotecário beneficia da garantia da hipoteca quando esta recai sobre um imóvel que integra uma herança indivisa de que foi apreendido o quinhão hereditário do insolvente.
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III.
Conhecendo…
Reconhece-se na sentença de verificação e graduação de créditos agora em crise que “foi apreendido o direito e acção à herança indivisa (na parte de 1/6) onde consta o prédio urbano, composto por casa de habitação, situada em …, freguesia de …, do concelho de Oliveira de Azeméis, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1344º”. Mais se considera ali que “o Sr. Administrador reconheceu ao credor D…, S.A. um direito de crédito garantido, atribuindo aos demais créditos reconhecidos natureza comum”, mas que, “ao contrário do referido pelo Sr. A.I., o crédito reconhecido à D…, S.A. não pode ser considerado como garantido”, por o que se encontra apreendido a favor da massa insolvente ser o direito e ação à herança indivisa, da qual faz parte o imóvel hipotecado, sendo que “o objeto de liquidação (…) é o quinhão hereditário do insolvente na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu pai, do qual o referido imóvel faz parte, sobre o qual, desnecessário seria repeti-lo, não incide a garantia que a recorrente pretende fazer e daqui que não se veja como lhe dar razão.” (sic)
Com estes e outros argumentos, concluiu a sentença que o crédito da D…, S.A., como todos os demais créditos reconhecidos nos autos, assume natureza comum, “devendo ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos, sendo, por isso, pagos com rateio entre eles”. (sic)
Vejamos.
Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência (art.º 47º, nº 1).
É pelo produto da venda dos bens ou direitos apreendidos que, na medida do possível, serão satisfeitos os créditos reconhecidos, considerando as garantias de pagamento de que cada um deles beneficia nos termos gerais (art.ºs 601º, 604º e 656º e seg.s do Código Civil), considerando-se agora também as especialidades que emergem do CIRE, designadamente dos art.ºs 46º e seg.s e 172º e seg.s. Deduzidos da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta e abatidas as despesas correspondentes à liquidação dos bens onerados com garantia real, o Administrador da Insolvência dá início ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, começando imediatamente com o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes caiba.
A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art.º 686º, nº 1, do Código Civil). O crédito sobre a insolvência assim garantido (garantia real) está protegido até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes (art.º 47º, nºs 1, 2 e 4, al. a)).

No relatório apresentado ao abrigo do art.º 155º (em 24.7.2018), o Senhor Administrador de Insolvência propôs a liquidação do ativo dos Insolventes B… e C…, tendo juntado o inventário, do qual consta a seguinte verba única: “1/3 indiviso do prédio urbano, composto por casa de habitação, situada em …, freguesia de …, do concelho de Oliveira de Azeméis, descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1344.º, com o valor patrimonial de 12.734,90€”.
A 25 de julho de 2018, a credora D…, S.A. propôs que a venda judicial de 1/3 do imóvel apreendido nos presentes autos fosse efetuada em conjunto com a venda dos 2/3 pertencentes aos comproprietários E… e F…, os quais se encontram penhorados no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ, pelo valor base de €215.000,00 e na modalidade de propostas em carta fechada, sendo o valor a anunciar correspondente a 85% do valor base.
A 1 de agosto de 2018, os Insolventes B… e C… requereram a retificação do inventário, do qual devia constar 1/6, e não 1/3, do bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199, no que foi atendido.
A 25 de janeiro de 2019, o Senhor Administrador de Insolvência enviou a seguinte comunicação à Senhora Agente de Execução nomeada no processo executivo n.º 510/14.2TBOAZ:
No seguimento do registo da declaração de insolvência no prédio que tem penhorado no processo n.º 510/14.2TBOAZ, e de acordo com a solicitação do credor hipotecário D…, S.A., venho informar que nada tenho a opor à venda em conjunto do imóvel no processo de execução, através da modalidade que V.ª Ex.ª venha a definir, pelo valor base de 215.000,00 (correspondente à globalidade). Mais informo que o valor que caberá à Massa Insolvente pelo produto da venda, deverá ser transferido para a respetiva conta bancária com o IBAN PT.. …. …. ….. ….. …. .”.
Está apreendido nestes autos de insolvência 1/6 indiviso do bem imóvel descrito na Conservatória de Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 199.
Porém, no processo de execução nº 510/14.2TBOAZ, instaurado pela recorrente, foi penhorada a totalidade desse mesmo bem imóvel sobre o qual a Recorrente tem hipotecas voluntárias constituídas, registadas, a seu favor.
Não obstante o referido direito e ação à herança indivisa estar apreendido à ordem deste processo de insolvência, o imóvel em que está integrado e sobre o qual a recorrente tem a seu favor a hipoteca registada, vai ser vendido na totalidade no citado processo de execução. Após essa venda, ainda por determinação do Administrador da Insolvência, o respetivo produto deverá reverter, na quantia correspondente ao direito apreendido (1/6 do valor do imóvel) a favor dos credores da insolvência.
No dia 19 de março de 2019, no apenso de liquidação, o Administrador da Insolvência informou o Tribunal de que “o direito à herança indivisa (parte 1/6) será liquidado no processo executivo nº 510/14.2TBOAZ que corre termos no Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, onde se encontra penhorado o imóvel, único bem da herança”. Mais informou ali que “a decisão de venda já foi tomada pela Exma. Agente de Execução, correndo prazo para reclamação. Não existindo oposição o bem será vendido através de leilão eletrónico publicado na plataforma www.eleiloes.pt com o preço mínimo de 183.345,00€, cabendo à Massa Insolvente a parte correspondente”. O valor base de venda ali previsto é de €215.700,00.
Estes factos têm natureza processual e resultam do apenso de liquidação. Por isso são acessíveis ao tribunal e deveriam ter sido levados em consideração na decisão de verificação e graduação de créditos, dado que o juiz deve considerar os factos de que tenha conhecimento por virtude do exercício das suas funções, cumprindo-lhe ainda dirigir ativamente o processo e promover oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, adotando mecanismos que garantam a justa composição do litígio (art.ºs 5º, nº 2, al. c) e 6º do Código de Processo Civil).
Na sucessão hereditária impera a doutrina da propriedade coletiva que é a mais divulgada entre nós. Como defendem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[3], o património coletivo “pertence em comum a várias pessoas, mas sem se repartir entre elas por quotas ideais, como na compropriedade. Enquanto esta é uma comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas. Os vários titulares do património colectivo são sujeitos de um único direito, e de um direito uno, o qual não comporta divisão, mesmo ideal. Não tem, pois, cada um deles algum direito de que possa dispor ou que lhe seja permitido realizar através da divisão do património comum”.
Até à partilha, existe uma massa patrimonial, com um certo grau de autonomia, na qual os herdeiros têm uma fração ideal do conjunto, aspirando apenas a exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar. Só depois da partilha desse acervo patrimonial é que cada um deles poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de um bem determinado que pertenceu à herança; assim, um pouco à semelhança do que acontece com o património comum do casal após o divórcio e antes da partilha dos respetivos bens.
Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
Se é certo que a quota de coisa ou direito comum é suscetível de hipoteca (art.º 689º, nº 1, do Código Civil), a lei não admite que se constitua hipoteca sobre a “meação de bens comuns do casal” (estão afetos a um fim que seria comprometido se aquela hipoteca se admitisse) ou sobre a “quota de herança indivisa” (art.º 690º do Código Civil). Assim o aconselha, neste último caso, a necessidade de serem certas e determinadas as coisas hipotecadas (art.º 686º do Código Civil)[4] a impossibilidade de o consorte dispor de parte especificada da coisa comum ou de a onerar (art.ºs 1408º e 2124º do Código Civil), assim como a nulidade das hipotecas gerais (art.º 716º do Código Civil).
Mas pode ser constituída hipoteca sobre uma quota-parte de um bem determinado (de que é exemplo a compropriedade), ainda que de um bem indivisível se trate. A hipoteca da quota não prejudica o direito dos consortes de requererem ou procederem à divisão da coisa (art.ºs 1412º e 1413º do Código Civil). Vendida, pois, judicialmente a quota em execução, ela continua, neste caso, em regime de condomínio indivisível com o adquirente, se os consortes não exercerem, o seu direito de preferência.[5]
A fortiori ratione, é admissível a constituição de hipoteca sobre a totalidade de uma coisa determinada por todos os consortes para garantir a dívida de cada um deles, de todos ou de terceiros.
Volvendo ao caso sub judice, foi regular e validamente constituída, com registo, um a hipoteca voluntária (art.ºs 686º e 687º do Código Civil) sobre um certo e determinado bem de herança ilíquida e indivisa, mas relativamente à qual foi apreendida para a massa insolvente o direito a 1/6 correspondente a uma sua quota ideal.
Com toda a evidência, o direito apreendido não coincide com o bem hipotecado, pelo que, numa visão mais perfunctória, somos levados a entender que a hipoteca não pode garantir o crédito da D…, S.A. na insolvência. A hipoteca recai sobre uma coisa determinada e na execução universal que se visa com o processo de insolvência o que está apreendido é um direito incidente sobre um acervo patrimonial que inclui o bem hipotecado. Compreende-se que assim seja. Se está apreendido (apenas) o direito a 1/6 de um universo patrimonial, não pode, sem mais, designadamente sem prévia partilha de bens, ficcionar-se que o bem hipotecado pertence aos insolventes e, como tal, responde pelas suas dívidas.
Acontece, no entanto, que a herança é composta apenas pelo bem hipotecado e que esse mesmo bem determinado vai ser vendido, na totalidade, num processo de execução onde se liquidará o quinhão de cada herdeiro, sabendo-se que à insolvente assiste o direito a 1/6 do seu valor.
Não se coloca, por isso, qualquer problema relacionado com a indivisibilidade da hipoteca (art.º 696º do Código Civil).
A hipoteca, enquanto direito real de garantia, está ao serviço de um crédito, que assegura, sendo um direito acessório deste. Por isso, em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário, através do recurso, necessário, à ação executiva, poderá satisfazer o seu crédito pelo produto da venda (executiva) do bem com preferência sobre os outros credores, exceto se os créditos destes beneficiarem de privilégio imobiliário especial ou de direito de retenção.
Nos termos do art.º 824º, nº 2, do Código Civil, a venda de bens na ação executiva é feita livre dos direitos de garantia que os onerarem (bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo).
Dispõe o nº 3 do mesmo artigo, “os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”. Os direitos reais de garantia que oneravam o bem penhorado e vendido no processo executivo extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus, e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
Com a venda executiva do bem hipotecado, a que a D…, S.A. não se opôs, extinguem-se as hipotecas que sobre ele recaem, mas não pode deixar de assistir àquela credora a garantia da hipoteca constituída a seu favor, agora convertida numa garantia de pagamento incidente sobre o produto da venda na parte correspondente a 1/6 do mesmo. Tudo se passando, para o efeito, como se o bem fosse vendido no processo de insolvência. O produto da venda do bem onerado não pode deixar de ser afeto à satisfação coerciva do direito de crédito da D…, S.A., na insolvência, com a força da garantia dada pela hipoteca.
Com efeito, o crédito da D…, S.A. não pode ser qualificado como um crédito comum e, na graduação, prevalece sobre os demais créditos da insolvência (comuns) até ao valor equivalente a 1/6 da venda do imóvel no processo de execução, que vier a ser transferido para a insolvência.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, altera-se a sentença recorrida em conformidade com o que ficou exposto, graduando-se em primeiro lugar o crédito da D…, S.A., por força da garantia especial de que beneficia sobre o produto da venda do bem hipotecado, à frente dos demais créditos da insolvência, sendo estes de natureza comum.
No mais mantém-se a sentença recorrida.
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Custas pela massa insolvente.
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Porto, 10 de julho de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Curso de Direito da Família, vol. I, 2ª edição, pág. 507, que, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de abril de 2009, Colectânea de Jurisprudência Sup., II, p. 35, acompanha. Cf. ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.1.2013, proc. 6735/09.5YIPRT-B.G1.S1, e acórdão da Relação de Coimbra de 8.11.2001, proc. 4931/10.1TBLRA.C1, in www.dgsi.pt.
[4] Luís Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, pág. 216; Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina 2016, 2ª edição, pág. 208.
[5] P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 635 (anot. ao art.º 689º).