Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3062/18.0T8AVR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CONTRATO DE COMODATO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP202111093062/18.0T8AVR-B.P1
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Compete ao cônjuge/unido de facto que pretenda que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita de ficar a habitar na mesma e que a sua necessidade é mais premente que a do outro cônjuge ou unido de facto.
II – A declaração unilateral da Requerente de resolução de um contrato de comodato da casa de morada de família anteriormente outorgada entre si e o Requerido, com fundamento em violação da lei e pela forma prescrita na mesma, tem de considerar-se válida e eficaz, designadamente para efeitos de lhe atribuir legitimidade para instaurar incidente de atribuição da casa de morada de família. Só assim deixará de se considerar se, no futuro, vier a existir decisão judicial a apreciar e a decidir da invalidade jurídica da mesma e da sua irrelevância jurídica extintiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3062/18.0T8AVR-B.P1
Comarca: [Juízo de Família e Menores de Aveiro (J1); Comarca de Aveiro]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Fernando Vilares Ferreira
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

B…, residente na Rua …, n.º ., Aveiro, instaurou o presente incidente de atribuição de casa de morada de família contra C…, residente na Rua …, n.º .., Bloco ., 6.º andar, Aveiro.
Alega, em síntese, que ela e o Requerido viveram em união de facto entre 06/10/99 e 01/06/18, tendo constituído família.
Expõe que o exercício das responsabilidades parentais referente aos três filhos de ambos foi homologado por sentença proferida no âmbito dos autos principais.
Declara que, desde a indicada data de 01/06/18, o Requerido deixou de residir na casa de morada de família, correspondente ao prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar, sito na Rua …, n.º ., em Aveiro.
Expõe que, deste então, ela tem mantido a sua residência e dos seus filhos (quanto estão consigo) naquele imóvel.
Diz que os menores se sentem felizes nessa habitação, porque gostam dos seus espaços próprios, estão perto das escolas que frequentam e das suas actividades extracurriculares.
Mais expõe que o Requerido passou a residir com os filhos (quando estão com ele) num imóvel que lhe foi disponibilizado pelos seus pais, na Rua …, n.º .., Bloco ., 6.º andar, em Aveiro. Bem como residindo com a sua actual companheira e filha comum de ambos num outro imóvel sito na …, n.º .., 4.º Esquerdo, em Aveiro.
Alega ter mais necessidade da habitação em apreço, não tendo outra para onde ir, ao contrário do Requerido que tem uma habitação disponibilizada pelos seus pais e se encontra a construir uma nova habitação.
Mais alega que, em 04/03/19, ela e o Requerido outorgaram um acordo regulador das regulações patrimoniais decorrentes da sua união de facto, o qual veio a ser fundamentadamente resolvido por si, através de carta registada com Aviso de Recepção e mensagem enviada por whatsapp.
Defende que, não aceitando o Requerido reduzir a escrito o acordo de utilização definitiva da casa de morada de família a seu favor, ocorre necessidade de “judicializar” tal utilização.
Pede que lhe seja atribuída a identificada casa de morada de família, declarada que seja a cessação, em 01/06/18, da união de facto que entre si e o Requerido se iniciara em 06/10/99.
Realizou-se Tentativa de Conciliação, que se revelou infrutífera.
O Requerido veio apresentar Contestação, aceitando expressamente a dinâmica geral e cessação da relação de união de facto invocada no requerimento inicial e impugnando a demais matéria de facto invocada.
Contrapõe, com particular relevo, que, na sequência da cessação da união de facto, em 04/03/19, as partes celebraram um contrato, que denominaram de “Acordo Global”, no âmbito do qual outorgaram um contrato de comodato tendo por objecto o imóvel em referência nos autos.
Afirma que, desde esse dia 04/03/19, a Requerente utiliza aquele prédio para sua habitação própria e permanente, ao abrigo deste contrato, onde designadamente ficou consignado que aquela o poderia utilizar, de forma exclusiva e gratuita, até ao dia 17 de Maio de 2032, que coincide com a data em que a filha comum mais nova atingirá a maioridade.
Acrescenta que a Requerente tem suportado todas as despesas referentes a consumos de serviços e as despesas de conservação e manutenção do prédio, enquanto ele próprio suporta os custos com o reembolso mensal do empréstimo contraído para aquisição do mesmo, bem como os seguros obrigatórios.
Mais declara que, ainda no âmbito do mesmo acordo global, a Requerente prometeu vender-lhe a metade indivisa de que é dona deste mesmo imóvel.
Alega que, tendo procedido à marcação da escritura pública de compra e venda daquela metade indivisa para o dia 16/03/20, a Requerente não compareceu.
Defende não existir casa de morada de família, tendo a partilha e a subsequente utilização daquele prédio já sido acordado entre as partes, nos termos expostos.
Mais alega que, não tendo a Requerente cumprido a promessa a que se obrigou, ele não conseguiu vender aquela moradia e manteve a obrigação de pagamento dos dois empréstimos bancários contraídos para aquisição deste imóvel e do outro pertencente ao casal, sito no …, num valor global mensal de € 2.190,00.
Diz estar sufocado financeiramente, não tendo hipótese de poder construir uma habitação para si e para o seu agregado familiar, mantendo-se a residir neste último referido imóvel, a qual não tem o espaço, o luxo e as características (jardim e piscina) da moradia que está a ser ocupada pela Requerente.
Advoga que a Requerente não tem nenhumas dificuldades financeiras.
Também que ambas as partes têm iguais necessidades de habitação e são ambos comproprietários das mesmas duas habitações.
Defende que, caso se entenda que deve ser atribuído à Requerente o direito de utilizar aquela moradia, a mesma deve proceder ao pagamento de uma renda a seu favor, que não deve ser fixada em valor inferior a 1.500,00€ mensais tendo em conta o valor locativo daquele imóvel (superior a 3.000,00€ mensais).
Mais defende existir abuso de direito da Requerente no pedido que efectua.
Conclui pedindo que seja julgado improcedente o pedido de atribuição à Requerente da moradia dos autos ou, se assim se não entender, que lhe seja fixada uma contrapartida mensal de 1.500,00€, como compensação pela utilização da mesma, igual a metade do seu valor locativo de 3.000,00€ e com a obrigação de no prazo máximo de dois anos transferir para a sua esfera exclusiva a obrigação de reembolso do empréstimo bancário concedido para suportar, em parte, o preço de aquisição daquela moradia.
Este articulado não foi notificado ao Ilustre mandatário da Requerente, nem directamente pelo Requerido nem pelo Tribunal.
Foi proferido despacho com o seguinte teor: “O requerido invocou um facto extintivo da pretensão da requerente, nomeadamente que já celebraram um acordo quanto a casa de morada de família, subscrito por ambos, tendo nesse acordo a requerente ficado a residir na casa de morada de família, até a filha mais nova atingir a maioridade. Assim, notifique a requerente para se pronunciar quanto ao facto extintivo invocado pelo requerido, no prazo de dez dias, nos termos do artigo 3º, nº3, do C.P.C.”
A Requerente apresentou requerimento nos autos, dando conta que não tinha sido notificada da Contestação apresentada, e alegando que, em relação ao prédio dos autos, a pressão do Requerido para a assinatura de um “Acordo Global” se iniciou logo após a ruptura da união de facto.
Afirma que, após a assinatura do “Acordo Global” junto aos autos, se apercebeu de que, nos termos do mesmo, o Requerido poderia alienar o imóvel dos autos em qualquer altura, apenas lhe sendo conferido um direito de preferência; que o prédio em causa passaria a ser exclusivamente do Requerido, não obstante até aí a Requerente ter suportado as obrigações decorrentes do contrato de financiamento para a sua aquisição e que, ainda nos termos do mesmo, o Requerido poderia resolver o contrato de comodato, se para isso invocasse justa causa.
Entende tratarem-se de cláusulas leoninas, por manifestamente excessivas, abusivas ou desproporcionadas, tornando o contrato de comodato nulo.
Reitera ter, em 15/03/20, endereçado carta ao Requerido, invocando que todos os documentos assinados em 04/03/19 eram inválidos e pedindo a resolução dos mesmos. Bem como que, não tendo o Requerido recebido a mesma, enviou a mesma mensagem via whatsapp.
Remata pedindo que o referido “Acordo Global” e na sua íntegra o contrato de comodato ao mesmo anexado ser declarado nulo ou anulado ou, caso assim se não entenda, sempre válida e eficazmente resolvidos pela carta enviada por si ao Requerido, por mensagem de whatsapp, que este leu em 31/03/20, julgando-se, por via disso, procedente o pedido de atribuição da casa de morada de família, e improcedente a pretensão do Requerido, no sentido de lhe ser devida pela Requerente metade do putativo valor locativo do imóvel, por ausência de apoio legal, em tudo o mais se concluindo como no requerimento inicial.
Entretanto, a Requerente foi notificada do teor da Contestação apresentada.
Foi proferida decisão final com o seguinte teor resumido: “(…) Ora, face aos factos provados, verificamos que a requerente e o requerido celebraram um contrato de comodato quanto a esta casa, ficando a requerente a viver nesta com os três filhos, até à filha mais velha atingir a maioridade (vide factos 2 a 7). Este contrato encontra-se em vigor e a ser cumprido por ambas as partes, pois é a requerente que vive na casa com os filhos e suporta o pagamento das despesas de água, luz e gás e o requerido encontra-se a pagar a totalidade do empréstimo para aquisição dessa casa (vide facto 7). Se a requerente, após ter assinado o contrato de comodato, considera que o contrato é nulo, por ter cláusulas abusivas, esta não é a acção adequada para conhecer dessa questão, ou da resolução do “acordo global” ou para ser declarada a união de facto. Como refere o artigo 990.º do C.P.C. de forma clara e inequívoca, esta acção visa apenas a atribuição da casa de morada de família. Neste caso, a requerente não provou o que alegou, nomeadamente que o requerido se nega a celebrar acordo quanto a casa de morada de família, pois o que ficou provado foi que as partes chegaram a acordo e a casa se encontra atribuída à requerente até à filha mais nova atingir a maioridade, pelo contrato de comodato celebrado entre a requerente e o requerido (vide facto 6), por isso, esta acção tem que improceder. Face ao exposto, julgo improcedente a acção, por a casa de morada de família já se encontrar atribuída à requerente, pelo contrato de comodato, celebrado entre a requerente e o requerido.”
Inconformada com esta decisão, a Requerente interpôs o presente recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare desde já que a união de facto entre Requerente e Requerido cessou em 01/06/2018 e determine a reabertura da audiência para produção de prova complementar para apuramento da vigência ou da resolução do contrato de comodato, e da não aceitação do Requerido a reduzir a escrito do acordo de utilização definitiva da casa de morada de família, ao abrigo do disposto nos artigos 410.º e 986.º, n.º 2, do CPC e 341.º e ss. do CC, por tal ser relevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
Admitiu-se o presente recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar o recurso.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
• Revogação da decisão recorrida em face da necessidade de produção de prova para apuramento da vigência do contrato de comodato e, em caso positivo, para apreciação do incidente de atribuição da casa de morada de família.
• Mantendo-se a decisão recorrida, apreciação do vício invocado de nulidade por omissão de pronúncia e modificabilidade da matéria de facto.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram os seguintes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida:

Factos provados:
1) A requerente e o requerido viveram vários anos na mesma casa, como casal, e dessa união nasceram três filhos D…, E… e F…s.
2) O requerido e a requerente deixaram de viver juntos desde 01/06/2018, tendo a requerente ficado a viver na casa sita na rua …, n.º ., inscrita na matriz da união de freguesia …, do concelho de Aveiro, sob o artigo n.º 48, estando descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1534.
3) A casa sita na rua …, n.º ., inscrita na matriz da união de freguesia …, do concelho de Aveiro, sob o artigo n.º 48, e descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1534, foi adquirida por a requerente e o requerido.
4) A requerente e o requerido celebraram um acordo global em 4 de Março de 2019 para regular as relações patrimoniais entre a requerente e o requerido em relação aos dois prédios que são comproprietários, onde se inclui a casa sita na rua …, n.º ., inscrita na matriz da união de freguesia …, do concelho de Aveiro, sob o artigo n.º 48, estando descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1534.
5) No âmbito desse acordo global a requerente prometeu vender ao requerido a sua metade da casa sita na rua …, n.º ., por preço igual ao da sua aquisição, suportando o requerido a prestação total do empréstimo efectuado para aquisição dessa casa.
6) No dia 4 de Março de 2019 a requerente e o requerido celebraram um contrato de comodato, em que o requerido cedia gratuitamente à requerente a casa sita na rua …, n.º ., para que dela se sirva para sua habitação própria e permanente. O presente contrato vigorará até a filha comum mais nova dos outorgantes, a F…, atingir a maioridade, ou seja, até ao dia 17 de Maio de 2032. O fim do contrato é de uso exclusivo para habitação própria e permanente da requerente e dos seus filhos. É da responsabilidade da requerente todas as despesas com consumos de água, energia eléctrica, gás, comunicações e quaisquer outros serviços consumidos no prédio.
7) A requerente encontra-se a viver na casa sita na rua …, n.º ., em Aveiro, com os três filhos, pagando os respectivos consumos de água, energia eléctrica e gás e outros serviços e o requerido encontra-se a pagar a totalidade do empréstimo para aquisição da casa contraído pela requerente e pelo requerido.

Factos não provados:
I. O requerido recusa-se a assinar o acordo de utilização definitiva da casa de morada de família a favor da requerente.
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IV – NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVA PARA APURAMENTO DA VIGÊNCIA DO CONTRATO DE COMODATO E, EVENTUALMENTE, PARA APRECIAÇÃO DO INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA

O tribunal recorrido entendeu que a Requerente e o Requerido celebraram um contrato de comodato quanto à casa em referência nos autos, ficando a Requerente a viver nesta com os três filhos, até à filha mais velha atingir a maioridade (factos 2 a 7) e que tal contrato se encontra em vigor e a ser cumprido por ambas as partes.
Com este fundamento jurídico, julgou improcedente a acção “(…) por a casa de morada de família já se encontrar atribuída à requerente, pelo contrato de comodato, celebrado entre a requerente e o requerido.”
No presente recurso, a Requerente/Recorrente sustenta que resolveu este contrato de comodato, através de carta registada e mensagem de whatsapp e que, face a esta resolução, inexiste acordo de utilização da casa de morada de família.
Defende que os autos não reúnem os elementos para ser proferida decisão final, devendo o tribunal recorrido produzir prova para apurar da vigência ou não do contrato de comodato em causa.
Cumpre decidir.
A noção de casa de morada de família está sedimentada na doutrina e jurisprudência.
Assim, Nuno de Salter Cid adianta que “(…) é o lugar, escolhido ou fixado nos termos do art.º 1673.º do C.C., que funciona como lugar do cumprimento do dever de coabitação que reciprocamente vincula os cônjuges e como lar dos filhos menores.” No mesmo sentido, Tomé d’Almeida Ramião[2] afirma que “A casa de morada de família é aquela que constitui a residência permanente dos cônjuges e dos filhos, a sua residência habitual ou principal.” Na jurisprudência, cita-se, a título meramente exemplificativo, o Acórdão da Relação de Guimarães de 03/12/09, tendo por Relatora Isabel Rocha[3] onde se refere que “A casa de morada de família é o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos, constituindo o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar.”
O art.º 1793.º do Código Civil determina que o Tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum, quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
A Lei n.º 7/2011, de 11/05[4], relativa à protecção das uniões de facto, dispõe – nos respectivos art.º 3.º e 4.º - que as pessoas que vivem em união de facto têm direito a protecção da casa de morada de família, sendo aplicável o disposto nos art.º 1105.º e 1793.º do Código Civil, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto.
Assim sendo, cessando o vínculo conjugal por divórcio ou por separação dos unidos de facto, a casa de morada de família deixa de o ser, em face precisamente da dissolução da união conjugal ou da união de facto. Há, nestes casos, que decidir-se o destino a dar a esta, seja por acordo dos cônjuges, seja por decisão do Tribunal.
À luz deste mesmo regime legal substantivo, o art.º 990.º do CP Civil determina, em termos processuais, que aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, designadamente nos termos do art.º 1793.º do Código Civil, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais deve ser-lhe atribuído o direito.
Compete, pois, ao cônjuge/unido de facto que pretenda que lhe seja atribuída a casa de morada de família alegar e provar que necessita de ficar a habitar na mesma e que a sua necessidade é mais premente que a do outro cônjuge ou unido de facto.
No caso dos autos, a Requerente intentou o presente incidente apresentando como causa de pedir ter mais necessidade da habitação em apreço, não tendo outra para onde ir, ao contrário do Requerido que tem uma habitação disponibilizada pelos seus pais e se encontra a construir uma nova habitação.
Alega complementarmente que, em 04/03/19, ela e o Requerido outorgaram um acordo regulador das regulações patrimoniais decorrentes da sua união de facto, o qual veio a ser resolvido por si, através de carta registada com Aviso de Recepção e mensagem enviada por whatsapp.
Justifica que a pressão do Requerido para a assinatura de um “Acordo Global” se iniciou logo após a ruptura da união de facto e que, após a assinatura do mesmo, se apercebeu de que, nos termos dele constantes, o Requerido poderia alienar o imóvel dos autos em qualquer altura, apenas lhe sendo conferido um direito de preferência; que o prédio em causa passaria a ser exclusivamente do Requerido, não obstante até aí a Requerente ter suportado as obrigações decorrentes do contrato de financiamento para a sua aquisição e que, ainda nos termos do mesmo, o Requerido poderia resolver o contrato de comodato, se para isso invocasse justa causa.
Entende tratarem-se de cláusulas leoninas, por manifestamente excessivas, abusivas ou desproporcionadas, tornando o contrato de comodato nulo.
O Requerido, em sede de Contestação, limitou-se a declarar que a invocada revogação não corresponde à verdade.
O tribunal recorrido entendeu não ter que apreciar esta invocada resolução do contrato de comodato da casa de morada de família, considerando-o em vigor, justificando que “Se a requerente, após ter assinado o contrato de comodato, considera que o contrato é nulo, por ter cláusulas abusivas, esta não é a acção adequada para conhecer dessa questão, ou da resolução do “acordo global”.
Não acompanhamos esta decisão, pelos motivos que passaremos a expor.
Nos termos decorrentes do art.º 432.º do Código Civil a resolução unilateral – enquanto forma de extinção do contrato - é admitida se fundada na lei ou em convenção.
Em termos de efeitos, a resolução segue, em regra, o regime jurídico da invalidade, constante dos art.º 285.º e ss. do Código Civil.
Sendo o seu efeito principal a extinção do vínculo contratual, as partes deixam de estar obrigadas ao cumprimento das obrigações acordadas.
Por outro lado, nos termos do art.º 436.º seguinte, a resolução do contrato pode fazer-se mediante a declaração à outra parte.
Usando as palavras de Joana Farrajota[5]: “Ao declarar que resolve o contrato o declarante não está pois (apenas) a descrever uma acção, mas a fazê-la, isto é, a resolver o contrato. Trata-se de um enunciado performativo, elemento constitutivo da resolução.”
Trata-se, portanto, de uma declaração recipienda, cujos efeitos se produzem logo que seja recebida ou conhecida pelo destinatário (cf. art.º 224.º do Código Civil).
A este respeito, e tal como explica Ana Prata[6], “Entende-se que a chegada ao poder deste (do destinatário) ocorre quando a declaração se encontra na esfera de poder material da pessoa do destinatário: a sua caixa de correio (postal ou electrónico), o seu telemóvel, a sua sede ou domicílio (consoante se trate de uma pessoa colectiva ou singular).”
No caso em apreciação, a Requerente invoca ter procedido à resolução do “Acordo Global” outorgado entre si e o Requerido, com fundamento no mesmo conter cláusulas leoninas, por manifestamente excessivas, abusivas ou desproporcionadas, tornando o contrato de comodato que dele faz parte nulo.
Em termos procedimentais, alega ter procedido a tal resolução através de carta registada com Aviso de Recepção e mensagem enviada por whatsapp.
É, pois, incontestável que a Requerente, pelo menos na aparência, procedeu à resolução do contrato em análise com fundamento em violação da lei e pela forma prescrita na mesma.
Uma vez que o Requerido veio impugnar, por falsidade, o recebimento da comunicação de resolução, bastará à Requerente fazer prova do mesmo para se dever considerar a resolução válida e eficaz, para efeitos de lhe ser atribuída legitimidade para interposição do incidente dos autos.
Esta prova do recebimento e conhecimento da declaração de resolução pode e deve ser feita no âmbito do presente incidente, por se tratar de uma prova simples, susceptível de ser feita através de prova documental e/ou testemunhal.
Se dúvidas houvesse, o princípio da economia processual sempre obviaria à necessidade de interposição de uma outra acção judicial para comprovar tal comunicação eficaz.
Claro está que, tratando-se de uma declaração à contraparte, pode ocorrer – e ocorre com alguma frequências – que a mesma seja emitida em desconformidade com a lei ou com a convenção das partes.
No caso dos autos, caso surjam dúvidas quanto à legalidade do conteúdo da comunicação de resolução em análise, a respectiva apreciação já não será da competência deste Tribunal nem enquadrável na economia do presente incidente.
Contudo, desconhecemos se esta questão atinente à legalidade substantiva da declaração de resolução virá no futuro a ser apreciada em Tribunal. Aliás, nenhum indício existe nos autos que uma tal acção possa vir a ser interposta em Juízo.
Na eventualidade provável de não chegar a ser apreciada judicialmente a legalidade da declaração de resolução da Requerente o entendimento do tribunal recorrido colocava a mesma numa situação injusta e injustificada de não poder nunca recorrer ao presente incidente de atribuição da casa de morada de família.
Conclui-se, portanto, que tal como ficou referido acima, a declaração unilateral da Requerente de resolução do contrato tem de considerar-se válida e eficaz[7], designadamente para efeitos de lhe atribuir legitimidade para instaurar o presente incidente de atribuição da casa de morada de família.
Só assim deixará de ser se, no futuro, vier a existir decisão judicial a apreciar e decidir da invalidade jurídica da mesma e da sua irrelevância jurídica extintiva.
Anote-se que a doutrina e jurisprudência têm vindo a entender, de forma maioritária e desde há largos anos, que mesmo a declaração de resolução injustificada, determina, em muitas situações, a cessação do vínculo contratual[8].
Conclui-se, tal como defende a Recorrente, que os autos não reúnem os elementos para ser proferida decisão final neste momento, devendo o tribunal recorrido produzir prova para apurar da vigência ou não do contrato de comodato em causa.
Consequentemente, impõe-se revogar a decisão recorrida e determinar o prosseguimento dos autos para produção de prova quanto à comunicação e conhecimento por parte do Requerido da declaração de revogação invocada (nos termos acima expostos) e da matéria controvertida do próprio incidente, proferindo-se oportunamente nova decisão final global.
Esta decisão prejudica a apreciação dos demais fundamentos de recurso apresentados.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em revogar a decisão recorrida, determinando-se o prosseguimento dos autos para produção de prova quanto à comunicação e conhecimento por parte do Requerido da declaração de revogação invocada (nos termos acima expostos) e da matéria controvertida do próprio incidente, proferindo-se oportunamente nova decisão final global.
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Custas do presente recurso a serem pagas pela parte vencida a final - art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)

Porto, 09 de Novembro de 2021
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Fernando Vilares Ferreira
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[1] Doravante apenas designado por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Actual, 2011, 3.ª Edição, Quid Juris, pág. 133.
[3] Proferido no Processo n.º 4738/03.2TBVCT.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[4] Na redacção da Lei n.º 717/2018, de 31/12.
[5] In A Resolução do Contrato sem Fundamento, 2015, Colecção Teses, Almedina, pág. 31.
[6] In Código Civil Anotado com coordenação de Ana Prata, 2017, Almedina, pág. 277.
[7] Sendo apenas necessária a prova por parte da Requerente de que a mesma foi recebida e conhecida pelo Requerido.
[8] Ainda que fora dos pressupostos legais como resolução válida, esta deverá sempre ser interpretada no âmbito das regras de cumprimento e não cumprimento do contrato, traduzindo, as mais das vezes, um incumprimento do contrato.