Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
150/10.5PBCBR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
CRIME DE AMEAÇA
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP20140709150/10.5PBCBR.P2
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos de pronúncia, segundo Figueiredo Dias, “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
II - O crime de ameaça tutela a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação
individual (liberdade de acção e de decisão), que são postas em causa mediante o constrangimento exercido sobre a vítima para que esta faça ou deixe de fazer algo, ou
suporte uma actividade que não deseja.
III - Com a reforma do Código Penal de 1995, deixou de ser um crime material ou de resultado, passando a ter a natureza de crime formal, de mera actividade.
IV – É um crime de perigo porque não se exige, como nos crimes de dano ou de resultado, uma efectiva lesão, mediante a destruição ou diminuição do bem jurídico, bastando o perigo de lesão, o dano provável, a potencialidade da acção para ocasionar a perda ou diminuição do bem, o sacrifício ou restrição de um interesse.
V - Exige-se que a acção ameaçadora seja idónea a lesar ou afectar, de modo relevante, a tranquilidade individual ou a liberdade de determinação do sujeito passivo, não sendo necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, sendo pacificamente aceite que o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objectivo-individual, devendo considerar-se “a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do(s) ameaçante(s) e do(s) ameaçado(s)”, por referência ao homem comum, ao cidadão normal que não menospreza uma ameaça verbal de morte, mas também é capaz de relativizar e de distinguir entre o que é uma ameaça séria e uma fanfarronice.
VI – A ameaça há-de consistir numa mensagem a um destinatário com significado da prática futura de um mal a este ou a um terceiro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 150/10.5 PBCBR.P2
1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Porto
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 150/10.5 PBCBR, correu termos pelo DIAP do Porto, o Ministério Público deduziu acusação contra B… por factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punível pelo art.º 143.º, n.º 1, do Código Penal, mas determinou o arquivamento dos autos relativamente a factos que poderiam subsumir-se à previsão incriminadora do artigo 153.º, n.º 1, do mesmo Compêndio normativo.
C…[1], admitido a intervir nos autos como assistente, não se conformou com esse despacho de arquivamento e requereu a abertura de instrução, no termo da qual foi proferida decisão instrutória de não pronúncia relativamente àqueles factos (eventualmente integradores do crime de ameaça), por se ter entendido que o assistente não exerceu, oportunamente, o direito de queixa, condição indispensável para que o Ministério Público pudesse exercer a acção penal, atenta a natureza semi-pública desse ilícito penal.
O assistente interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação que, por acórdão de 16.10.2013 (fls. 512 e segs.), concedeu provimento ao recurso e determinou que, reconhecida a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal, se conhecesse do mérito do requerimento instrutório, ou seja, se apreciasse e decidisse se havia razões, de facto e de direito, para pronunciar o arguido B… pelo aludido crime de ameaça.
Em cumprimento do ordenado, a Sra. Juiz de instrução proferiu nova decisão instrutória, ainda de não pronúncia.
Ainda inconformado, o assistente C… interpôs, novamente, recurso dessa decisão de não pronúncia para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que “condensou” nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
1. “Como assinala a decisão sub judice, resulta quer do inquérito (a fls. 58) quer da instrução (fls. 400 e ss e a fls. 414 e ss) que o arguido dirigiu ao assistente, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar descritos no requerimento de abertura de instrução a seguinte expressão: “ó filho da puta queres levar mais nos cornos”.
2. O crime de ameaça previsto no artigo 153.º n.º 1 do CP, na redacção aplicável, deixou de constituir um crime de dano; verifica-se actualmente com a simples ameaça de um crime, de forma adequada a provocar medo ou inquietação, na situação em concreto;
3. De acordo com o constante dos autos (nomeadamente no que se refere aos indícios recolhidos relativamente ao crime de ofensas à integridade física, previamente praticado, e aos indícios recolhidos relativamente ao crime de injúrias, praticado contemporaneamente) é óbvio que a dita expressão «é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado», tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente.
4. Pelo que devia o tribunal “a quo” ter pronunciado o arguido pelo crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.º nº 1 do CP, uma vez que foram recolhidos indícios suficientes da prática do referido ilícito criminal.
5. Ao não fazê-lo, a decisão “sub judice” postergou o artigo 153º nº 1 do CP e ainda os artigos 308º do CPP; conj. com os nºs 1 e 2 do 283º do mesmo diploma legal”.
*
Admitido o recurso e notificado o Ministério Público, veio este responder à respectiva motivação, resposta culminada com o seguinte quadro conclusivo (transcrição integral):
1- “A expressão “ó filho da puta queres levar mais nos cornos”, é incontroversamente injuriosa, intimidatória e provocatória, atenazando e incomodando o destinatário - que desde logo é traduzido na ida à esquadra policial.

2- Todavia, não se revela adequada e idónea, a provocar o medo ou a inquietação, isto é, não tem potencialidade de o condicionar, manipular e/ou de o inibir, pressupostas pelo tipo legal art. 153º nº 1, do C. Penal.

3- De outro modo, quaisquer expressões que não constituíssem elegâncias, elogios ou reconhecimento da parte mais bela de terceiro visado, proferidas em ambiente de intensa conflitualidade, poderia sempre ser apreciados à luz de uma conduta adequada a provocar atentado à liberdade de formação da vontade ou da segurança e tranquilidade da pessoa visada.

4- Por outro lado, tal expressão não anuncia a prática de um mal futuro, elemento fundamental do tipo objetivo de ilícito, como sustenta a maioria da jurisprudência: Acs. da RC de 13.11.2013 (proc. n.º 268/11.7TATNV); de 30.05.2012 (proc. nº 366/10.4GCTND); da RP de 28.05.2008 (proc. nº 0841544); de 16.04.2008 (proc. nº 0717222); de 02.05.2012 (proc. nº576/10.4PAVFR.P1), de 13.07.2011 (proc. nº 416/10.4TAOAZ); de 09.10.2013 (proc. nº 300/10.1GACNF.P1); de 23.11.2011 (proc. nº 664/08.GBPNF.P1); de 16.04.2008 (proc. nº0717222); de 25-01-2006 (proc. 0544124); Acs. da RE de 14.01.2014 (proc nº 1509/09.6GBLLE) e de 27.03.2012 – proc. nº 49/08.5GCFAR.E1; na doutrina, Dr. Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, pg. 343).

5- Por isso, até na esteira do Ac. da RP de 07.03.2012 -proc. nº 625/10.6GBVNG-P1- que enunciou que “Não consubstancia a prática de um crime de ameaça a conduta de quem se desloca até junto da residência de outrem, bloqueia-lhe a entrada com um camião e, em tom elevado de voz, diz-lhe: “Anda cá fora, que eu estou à tua espera, cabrão”, a expressão “ó filho da puta queres levar mais nos cornos”, não ultrapassa a mera vociferação, fanfarronice, insolência fátua, que conquanto digna de um obsceno mal-querer, não pode elevar-se à categoria de crime, designadamente o p. p. pelo art. 153.º nº 1, do C. Penal.

6- Além disso, como tem sido sustentado, a decisão de pronúncia basta-se, em conformidade com o preceituado pelo art. 308.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, com a prova meramente indiciária, e, nessa medida, completamente distinta do grau de convicção em termos probatórios exigido na fase do julgamento. Nas palavras de Germano Marques da Silva, são suficientes “sinais da prática de um crime” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 111 Volume, Verbo, 1 994, 1 83), enquanto fundamentadores de uma possibilidade razoável de ter, efetivamente, sido o arguido quem praticou a factualidade em apreço. Donde, estamos em face de juízos de probabilidade, e não de certeza.

7- Não obstante, exige-se uma apreciação crítica da totalidade da prova recolhida, não apenas na instrução, mas igualmente em sede de inquérito, tendo em vista a prolação de decisão final - de pronúncia ou não pronúncia - conforme se conclua pela existência, ou não, de indícios suficientes, que permitam a submissão do arguido a audiência de julgamento.

8- No caso em análise, a versão do assistente mostra-se inconclusiva, no que atina aos factos que historicamente terão ocorrido no dia 3 de fevereiro de 2010, já que as versões são, por um lado, diferentes quanto a devir de acontecimentos, e, por outro, opostas quanto aos factos suscetíveis de responsabilidade criminal.
Na verdade, conquanto exista prova testemunhal confirmadora de que o arguido disse ao assistente “ó filho da puta queres levar mais nos cornos”, também existe prova testemunhal no sentido de que o arguido não só não proferiu a predita expressão mas, ao invés, foi ele o “injuriado e agredido” pelo assistente.

9- Na senda do impressivo enunciado do Ac. da RC de 14.07.2010 (proc. nº 108/09.7JAAVR.C1) “A dúvida legitimadora do princípio in dubio pro reo não é uma qualquer dúvida lançada em abstracto, mas uma dúvida argumentada que, em concreto - após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais – deixa o julgador - objectivo e distanciado do objecto do processo – num estado em que permanece como razoavelmente possível mais do que uma versão do mesmo facto”, é duvidoso que o arguido tenha dirigido ao assistente a expressão “ó filho da puta queres levar mais nos cornos”, independentemente de a mesma caracterizar ou não a realização típica do art. 153.º nº 1, do C. Penal.

10- Termos em que, entendendo que o despacho recorrido não vulnerou as normas legais indicadas no recurso, designadamente a do art. 153º nº 1, do C. Penal e 308º, em conjugação com os nºs 1 e 2 do 283º, ambos do CPP, deve ser confirmado, na improcedência do recurso”.
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Também o arguido apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência.
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Já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, secundando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, pronunciou-se pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas só o arguido veio responder, manifestando a sua concordância com o parecer emitido pelo Ex.mo PGA.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II - Fundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
A afirmação “ó filho da puta, queres levar mais nos cornos?”, em abstracto, é susceptível de fundamentar a imputação de um crime de injúria e, eventualmente, um crime de ameaça.
No entanto, importa deixar bem claro que está, liminarmente, afastada qualquer hipótese de pronúncia sobre a verificação de um crime de injúria. Isto, pela simples e óbvia razão de que, quando está em causa um crime de natureza particular (como é o caso do crime de injúria[2]), a sua verificação só poderá ser objecto de conhecimento pelo juiz de instrução quando a instrução é requerida pelo arguido contra o qual o assistente deduziu acusação particular.
Não é o que aqui acontece e por isso só iremos pronunciar-nos sobre a eventual ocorrência do crime de ameaça, cujo suporte factual, de acordo com o teor do requerimento de abertura de instrução, é a afirmação “…queres levar mais nos cornos?”, atribuída pelo assistente/recorrente ao arguido.
Neste enquadramento, importa começar por ponderar se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve o arguido a julgamento por esse facto.
Se a resposta for positiva, caberá, então, analisar se aquela afirmação preenche o tipo objectivo do crime de ameaça.
São estas as questões que constituem o objecto do recurso que aqui se julga.
*
Tal como acontece com o encerramento do inquérito[3], a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Saber quando é que os indícios são suficientes para esse efeito é questão que tem dividido a doutrina e a jurisprudência.
Os contornos da controvérsia doutrinária e as divergências que, neste âmbito (sobretudo o que deve entender-se por “possibilidade razoável” de condenação) se manifestam são bem conhecidos, pelo que não há necessidade de nos determos sobre este ponto.
Diremos, apenas, que a posição que recolhe os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação[4], ou ainda em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.
Nessa linha de orientação se posiciona o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indíci0s só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
Assim também o acórdão do STJ de 18.0.2005, www.dgsi.pt/jstj (Relator: Cons. Pereira Madeira), onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Na decisão recorrida, sobre esta concreta questão, podemos ler o seguinte:
“Da participação não se retiram quaisquer factos susceptíveis de consubstanciarem tal crime, apenas no aditamento de fls. 58, o ofendido refere que o arguido lhe dirigiu a seguinte expressão: “ó filho da puta, queres levar mais nos cornos”;
Tal matéria não foi corroborada por nenhuma das testemunhas ouvidas em fase de inquérito (fls. 85 e 118).
No que concerne à prova carreada em instrução (fls. 400 e ss. e 414 e ss), ambas as testemunhas confirmam que no decorrer da contenda entre o assistente e o arguido, terão ouvido este, a proferir aquela expressão”.
A Sra. Juiz de instrução não formulou qualquer juízo sobre a suficiência dos indícios do facto eventualmente punível, passando, de imediato, a pronunciar-se sobre a valoração jurídico-penal desse facto e concluindo nos seguintes termos:
«Tendo em conta estas premissas, a expressão que o arguido terá dirigido ao Assistente, chamando-o de “filho da puta” e dizendo, “queres levar mais nos cornos”, não pode entender-se como uma situação de ameaça, nos termos ali prescritos, nem adequada a causar-lhe medo e inquietação e de lhe criar receio, de molde a impedi-lo de se movimentar e prejudica-lo na sua liberdade de determinação e movimentação, tão só, como uma expressão injuriosa, e de confirmação, de o já ter eventualmente agredido, anteriormente».
O que se colhe dos autos é que, além da denúncia apresentada por C… imputando ao arguido B… aquela afirmação que considerou ameaçadora, há duas testemunhas (D… e E…) que prestaram depoimento na fase de instrução (fls. 400 e 414) e confirmaram o conteúdo daquela denúncia.
Ora, se é certo que uma das referidas testemunhas é familiar (pai) do assistente, essa circunstância, por si só, não faz com que sejam desmerecedoras de crédito, como reconhece o Ministério Público (que, não obstante, se pronuncia pela insuficiência dos indícios).
Além dos depoimentos testemunhais a corroborar a denúncia feita pelo assistente, não podemos deixar de ter em conta o contexto em que aquela afirmação terá sido proferida: alguns dias após o arguido, confessadamente, ter agredido fisicamente o assistente.
Tendo ocorrido, em momento anterior, uma acção violenta do arguido sobre o C…, apresenta-se como perfeitamente verosímil que, no dia 03.02.2010, aquele tenha voltado a importuná-lo, dirigindo-lhe aquelas palavras.
Assim, ao contrário do que entendeu o Ministério Público, temos para nós que há indícios bastantes de que o arguido teve o comportamento que o assistente/recorrente lhe imputa, ou seja, que, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no auto/aditamento de fls. 58, se lhe dirigiu dizendo “oh filho da puta, queres levar mais nos cornos?”.
Resta saber se isso é suficiente para lhe imputar a prática de um crime de ameaça.
*
Na organização sistemática do Código Penal, o crime de ameaça abre o capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal.
É um tipo legal que tutela a tranquilidade e a liberdade de autodeterminação individual (liberdade de acção e de decisão), que são postas em causa mediante o constrangimento exercido sobre a vítima para que esta faça ou deixe de fazer algo, ou suporte uma actividade que não deseja.
Liberdade pessoal que, nas palavras de Nelson Hungria (citado por Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos in “Código Penal Anotado”, 2.º vol., Rei dos Livros, 1996, pág. 184) “compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à sua tranquila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa”.
Com a reforma do Código Penal de 1995, deixou de ser um crime material ou de resultado, passando a ter a natureza de crime formal, de mera actividade (ou de mera acção), não sendo, pois, necessário para a tipicidade que a conduta do agente cause um dano, ou seja, da estrutura do tipo não faz parte a lesão de qualquer bem jurídico concreto e individualizado. É um crime de perigo porque não se exige, como nos crimes de dano ou de resultado, uma efectiva lesão, mediante a destruição ou diminuição do bem jurídico, bastando o perigo de lesão, o dano provável, a potencialidade da acção para ocasionar a perda ou diminuição do bem, o sacrifício ou restrição de um interesse.
Exige-se que a acção ameaçadora seja susceptível de, idónea a lesar ou afectar, de modo relevante, a tranquilidade individual ou a liberdade de determinação do sujeito passivo, não sendo necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado.
É pacificamente aceite que o critério para aferir da adequação da ameaça para provocar medo e inquietação, ou para prejudicar a liberdade de determinação, deverá ser objectivo-individual[5]. Objectivo, na medida em que a concreta acção (executada oralmente ou por escrito, que tanto pode traduzir-se num gesto, numa atitude, como em palavras ditas ou escritas ou por outro meio simbólico), de acordo com a normalidade das coisas e a experiência comum, há-de ter a virtualidade de ser tomada a sério pelo sujeito passivo (o ameaçado, que pode não ser o sujeito passivo do crime prometido), independentemente de este ficar, ou não, intimidado[6]. Há que não perder de vista o modo e o contexto em que foi produzida e, ainda, que o objecto da ameaça tem de constituir um dos crimes do catálogo legal (crimes contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor). Individual, porquanto não podem deixar de ser ponderadas as características físicas e psicológicas do ameaçado (pense-se, v.g., na criança vítima de abuso sexual que é ameaçada pelo abusador), a sua sensibilidade e a sua personalidade, de tal modo que poderá ter de concluir-se pela idoneidade de um meio que, via de regra, é incapaz de afectar a generalidade das pessoas. O que não é dizer que se deva contar com o carácter exasperadamente medroso e tolhido, ou com uma hipersensibilidade, do ameaçado.
Neste conspecto, afigura-se-nos pertinente o paralelo estabelecido no acórdão desta Relação, de 07.12.2011, acessível em www.dgsi.pt (Des. José Piedade), entre a potencialidade intimidatória das expressões utilizadas quando a ameaça é verbal e a idoneidade ofensiva da honra e da consideração das palavras e dos juízos de valor nos crimes de injúrias e de difamação. Tal como o carácter difamatório ou injurioso de certas palavras ou juízos é fortemente tributário do lugar ou ambiente em que ocorrem, das pessoas entre quem ocorrem, do modo como ocorrem[7], também no crime de ameaça se deve considerar “a conduta na sua globalidade, o contexto em que a mesma acontece, e a idiossincrasia e modos de ser e estar do(s) ameaçante(s) e do(s) ameaçado(s)”.
O que pode ser uma conduta fortemente intimidatória em certas circunstâncias (de tempo, lugar, meio, etc.) ou para certas pessoas, pode não o ser noutras circunstâncias ou para outras pessoas.
Isto sem esquecer que a referência há-de ser sempre o homem comum, o cidadão normal que não menospreza uma ameaça verbal de morte, mas também é capaz de relativizar e de distinguir entre o que é uma ameaça séria e uma fanfarronice.
Volvendo ao caso concreto, importa recordar novamente que a afirmação em causa foi proferida pelo arguido poucos dias depois de este ter agredido fisicamente o ofendido C…. Por conseguinte, não se tratou de uma fanfarronice, de atitude típica do rufia, que “ladra, mas não morde”.
As referidas palavras, traduzindo-se em anúncio de agressão física, eram adequadas a intimidar o denunciante, prejudicando a sua liberdade pessoal, pelo que, também neste ponto, não podemos concordar com a posição do Ministério Público.
Coisa diversa é saber se as palavras proferidas pelo arguido (“oh filho da puta, queres levar mais nos cornos”) configuram o elemento do tipo objectivo do crime de ameaça que pacificamente se aceita consistir no “anúncio de um mal futuro”.
Elemento objectivo que, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código Penal”, 2.ª edição actualizada”, UCE, 473), “consiste na comunicação de uma mensagem a um destinatário com significado da prática futura de um mal ao destinatário ou a um terceiro”.
Américo Taipa de Carvalho (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, 1999, p. 343) explica que “o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal”.
Mal iminente é aquele que está em vias de, ou prestes a, ser infligido.
No crime de ameaça, o agente promete vir a cometer um crime num tempo que não aquele em que faz o anúncio (e, provavelmente, em circunstâncias outras que não aquelas que se verificam no momento do prenúncio do mal).
É a característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que distingue a ameaça da concretização do mal anunciado.
Como se frisa no acórdão desta Relação, de 02.05.2012 (Des. Lígia Figueiredo)[8], o mal integrador do crime de ameaça tem de “constituir o anúncio intimador de uma acção futura”.
As dificuldades surgem quando se trata de densificar ou concretizar o conceito de “mal futuro” e as decisões jurisprudenciais ilustram bem essa dificuldade.
Por exemplo, no acórdão da Relação de Lisboa de 03.11.2009 (Des. Luís Gominho) considerou-se que “se a afirmação «eu de ti não me esqueço» tem um sentido que se pretende projectar no futuro, sendo ela acompanhada de outras como «desfaço-te» e «enfio-te um tiro nos cornos» ao mesmo tempo que o agente parte uma garrafa e, empunhando-a pelo gargalo faz menção de atingir o ofendido, conclui-se que aquela referida afirmação mais não foi do que o acompanhamento e complemento verbal da acção física daí decorrendo a ausência de elementos constitutivos, de natureza objectiva, do crime de ameaça”.
Identicamente, no acórdão da Relação de Coimbra, de 30.05.2012 (Des. Jorge Dias), entendeu-se que “quando o arguido, de forma súbita, pega numa sachola e dirige à ofendida as expressões «eu mato-te, eu mato-te» e «não há-de comer mais pão que Deus crie», não está a anunciar um mal futuro”.
No entanto, no acórdão da Relação de Guimarães, de 18.05.2009 (Des. Cruz Bucho) foi decidido que “aquele que, com o propósito de causar temor no ofendido, exclama «vou-te acabar com a vida filho da puta» ao mesmo tempo que lhe aponta uma arma à cabeça, comete um crime de ameaças p. e p. pelo artigo 153.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal”, argumentando-se que “o mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer. Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer”.
Temos para nós que, para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coarctar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal, é fundamental a contextualização da situação.
Afirmações como «limpo-te o sebo», «é hoje que te vou matar», «enfio-te um tiro nos cornos», «vou-te acabar com a vida filho da puta» ou outras do mesmo jaez tanto podem ser entendidas como anúncio de mal futuro como a manifestação de violência que está prestes a concretizar-se.
Depende do contexto, do circunstancialismo em que as afirmações são proferidas.
Ora, no nosso caso, cremos não existir margem para dúvidas de que o mal anunciado pelo arguido com aquelas palavras (“queres levar nos cornos”) seria infligido naquele exacto momento e não no futuro, ainda que próximo.
Por tudo isto, propendemos para considerar, tal como se considerou na decisão recorrida, que não está verificado o elemento do tipo objectivo do crime de ameaça «anúncio de um mal futuro».

III – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Por ter decaído, pagará o recorrente taxa de justiça que se fixa em quatro UC´s (artigos 515.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Proc. Penal, 1.º, n.º 2, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 09-07-2014
Neto de Moura
Vítor Morgado
______________
[1] E não “C1…”, como, por lapso, se escreveu no anterior acórdão.
[2] Salvo quando os ofendidos são as pessoas e entidades referidas nos artigos 184.º e 187.º do Código Penal.
[3] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[4] Assim, Jorge Gaspar (“Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, Revista do Ministério Público, n.º 88, 101 e segs.), Carlos Adérito Teixeira (“Indícios Suficientes”: Parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação”, Revista do CEJ, n.º 1, 160) e Paulo Dá Mesquita “(“Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária”, 2003, 90 e segs.).
[5] É, geralmente, seguido o ensinamento de Américo Taipa de Carvalho in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 348.
[6] Bem elucidativo é o exemplo dado pelo Professor Figueiredo Dias no âmbito da Comissão Revisora do Código Penal (de 1995): preenche o tipo o indivíduo que ameaça outro com uma arma, embora este último esteja no interior de uma casa perfeitamente defendido da acção, pois tal acção é normalmente adequada quer do ponto de vista do agente, quer do que é geralmente reconhecido.
[7] Isto, é claro, para além daquele mínimo de dignidade cujo respeito é exigência comum a todos os meios e países.
[8] Acessível em www.dgsi.pt