Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3933/12.8TBPRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DIFERIMENTO DO PAGAMENTO DE CUSTAS
APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP201904113933/12.8TBPRD.P1
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 887, FLS 15-20)
Área Temática: .
Sumário: I - Não parece lógico que se preveja nas disposições dos nºs 1 e 4 do art.º 248º do CIRE um regime especial de apoio judiciário, antes sim uma regulação específica do instituto da exoneração do passivo restante que se aplica a todos os que nele se enquadrem, independentemente de terem ou não benefício do apoio judiciário.
II - Não existe nenhum verdadeiro conflito normativo, desde logo porque não há uma disputa lógica ou teleológica.
São distintos pela natureza e pela finalidade os dois institutos em relevo.
III - O regime do apoio judiciário é emanação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, segundo o qual a insuficiência de meios económicos não deve impedir o acesso de todos à justiça e ao Direito.
IV - A instituição da exoneração do passivo restante apresenta-se como um benefício concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente e pretende conciliar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim permitir-lhes a sua reabilitação económica.
V - Logo não existe aqui qualquer incongruência normativa a solucionar pelo princípio hermenêutico: lex specialis derogat legi generali (a lei especial derroga a lei geral).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3933/12.8TBPRD.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3

Acordam no Tribunal Da Relação do Porto

I - Relatório
Nos autos epigrafados foi proferido o seguinte despacho:
Os Insolventes vieram requerer a dispensa do pagamento das custas para que foram notificados, invocando que beneficiam do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxas de justiça e demais encargos com o processo.
Com vista nos autos o Digno Magistrado do Ministério Público na sua douta promoção que antecede defende que o benefício de exoneração do passivo restante concedido aos Insolventes afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários a patrono, nos termos previstos no artigo 248.º, n.º 4, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, sem prejuízo de os devedores de custas requererem o seu pagamento em prestações e de o Ministério Público ponderar da instauração ou não da execução para cobrança coerciva
das custas, caso se verifique o seu não pagamento, consoante os bens e rendimentos apurados da devedora no momento em que se verifica o não pagamento das custas.
Cumpre decidir.
Sobre esta matéria dispõe o artigo 248.º, n.º 1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas: “O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.”
Acrescentando o seu n.º 2: “Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.”
Enquanto o n.º 3 desta norma estipula que “Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.”
E, ainda dispõe o n.º 4 da mesma norma que “O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.”
Em defesa da tese dos devedores foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 10-05-2018, publicado em www.dgsi.pt, que é relatado pela Exma. Sr.ª Desembargadora Margarida Almeida Fernandes, onde foi decidido: tendo o devedor na petição requerido a exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto no artigo 248.º, n.º 1, do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas, ficou aquele dispensado do pagamento das custas até à prolação da decisão final do pedido de exoneração e, proferida esta decisão, não obstante haver sido elaborada a conta, encontra-se o insolvente dispensado do pagamento das custas uma vez que beneficia de apoio judiciário.
Para além deste, num outro Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 06.02.2018, publicado em www.dgsi.pt, que é relatado pela Exma. Sr.ª Desembargadora Lina Batista, foi também decidido que “Estando o devedor, nesta situação específica, impedido de apresentar incidente do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, ter-se-á que lhe conceder essa possibilidade no momento em que essa impossibilidade desaparece. Ou seja, no momento de indeferimento
liminar do incidente ou no momento da revogação da exoneração. Apenas com esta interpretação fica assegurado o fim do apoio judiciário, de proteger que o requerente não fique impedido de litigar por insuficiência económica.”
Por fim, foi mais recentemente proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, em 11.09.2018, publicado em www.dgsi.pt, que é relatado pelo Exmo. Sr. Desembargador José Igreja Matos, onde, além do mais se escreveu: “A partir de agora, tudo se passa como sempre ocorreria no regime geral; ao cidadão a quem foi conferido o dito “fresch start” caberá cumprir com os seus deveres tributários como qualquer outro. Dessa obrigação apenas estará eximido caso, como ocorreria com qualquer outra pessoa, lhe tenha sido concedido pela segurança social o benefício de apoio judiciário.”
Esta tese tem tido acolhimento amplamente maioritário na jurisprudência, designadamente, do Tribunal da Relação do Porto (conhecendo-se, em sentido contrário, o douto Ac. da R.P. de 24-09-2018 in www.dgsi.pt., proc. nº 944/12.7TBAMT.P1), pelo que agora se adere á mesma.
No caso concreto, aos requerentes foi efectivamente concedido tal benefício na modalidade de dispensa total de pagamento de custas e demais encargos com o processo (cfr. fls. 24 e ss.).
Termos em que, se defere a pretensão dos insolventes de serem dispensados do pagamento das custas do processo já que lhes foi oportunamente concedido o beneficio do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas processuais.
Notifique.”

O Ministério Publico veio interpor recurso, concluindo:
1. Nos termos do artigo 233.º, n.º1, al. d), do CIRE, encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência, os credores da massa insolvente podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos;
2. Ou seja, no presente caso, com o encerramento do processo de insolvência sem que tenha sido apreendida qualquer quantia para a massa insolvente, o montante de custas da responsabilidade da massa insolvente passou a ser uma dívida dos devedores;
3. Por outro lado, também a remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo dos devedores, nos termos do artigo 240.º, n.º1, do CIRE;
4. Por passarem a ser uma dívida dos devedores, as custas do processo e os reembolsos ao IGFEJ das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que tenha suportado, figuram no artigo 241.º, n.º1, do CIRE (antes dos credores da insolvência), para pagamento com os rendimentos entregues ao fiduciário no período da cessão, sendo que no caso em apreço os rendimentos cedidos não permitiram pagar as custas em dívida.
5. Os devedores, por terem apresentado pedido de exoneração do passivo restante, beneficiaram do diferimento do pagamento das custas e do reembolso ao IGFEJ até à decisão final desse pedido, nos termos do artigo 248.º, n.º1, do CIRE.
6. Porém, por essa razão, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, ficou afastada a concessão aos mesmos de qualquer outra forma de apoio judiciário, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono, nos termos do artigo 248.º, n.º4, do CIRE.
7. Ou seja, deixaram os mesmos de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo que lhes tinha sido concedido.
8. Na verdade, o regime de apoio judiciário previsto no artigo 248.º do CIRE é especial e prevalece sobre o regime geral previsto na lei geral do apoio judiciário (Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho), tal como se decidiu no Acórdão do STJ de 15-11-2012 e no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2018, ambos publicados em www.dgsi.pt.
9. Ou seja, o legislador criou com o artigo 248.º do CIRE um regime especial de apoio judiciário que afasta a aplicação do regime geral previsto na Lei do Apoio Judiciário, retirando-se do disposto no referido artigo que o devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante fica impedido de beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, sendo que se já for beneficiário desse apoio no momento em que apresenta o pedido de exoneração do passivo restante, tal apoio deixa de ser eficaz no processo onde foi apresentado o pedido de exoneração, só voltando a produzir efeitos se existir indeferimento liminar do pedido de exoneração ou revogação da exoneração.
10. No caso em apreço, os devedores apresentaram-se à insolvência e pediram a exoneração do passivo beneficiando de apoio judiciário, além do mais, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
11. Assim, tal apoio, nessa modalidade, deixou de ser eficaz no processo de insolvência no momento em que foi apresentado tal pedido e não voltou a ter eficácia no processo, porquanto o pedido de exoneração foi admitido e, no termo dos cinco anos da cessão, foi concedida a exoneração.
12. O legislador entendeu que tal como os créditos por alimentos, os créditos tributários, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações, e as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos, também as dívidas de custas na parte em que não sejam pagas pela massa insolvente e pelo rendimento disponível durante o período da cessão deveriam ser suportadas pelo devedor beneficiário da exoneração do passivo restante;
13. Acresce que o artigo 248.º, n.º 2, do CIRE, permite o pagamento das custas em prestações, nos termos previstos no RCP e, caso não tenha possibilidades de pagamento mesmo em prestações e se veja confrontado com uma acção executiva, o devedor poderá ainda beneficiar das regras de impenhorabilidade previstas no Código de Processo Civil;
14. Em nosso entendimento, esta interpretação do artigo 248.º, n.º 4, do CIRE, não padece de qualquer inconstitucionalidade, nomeadamente por violação do artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) da Constituição da República Portuguesa;
15. Desde logo, a aplicação do regime especial de apoio judiciário prevista no artigo 248.º não afasta o apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono, prevista na Lei Geral do Apoio Judiciário.
16. Por outro lado, o espírito do artigo 20.º, n.º1, da CRP, ao dizer que “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”, não é o de dispensar as pessoas de pagar custas em termos genéricos ou de lhes perdoar, mas apenas garantir que ninguém, por carência de meios se veja impedido de exercer ou defender os seus direitos.
17. Ora, no caso do regime especial previsto no artigo 248.º do CIRE, o devedor pode ser beneficiário de apoio judiciário na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono e não é obrigado a pagar custas até existir decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, ou seja, só é chamado a pagar custas num momento em que já exerceu e/ou defendeu todos os seus direitos, quer no âmbito do processo de insolvência quer no âmbito do procedimento de exoneração do passivo restante, e num momento em que tais processos já estão findos, pelo que a dívida de custas será apenas mais uma dívida a par das dívidas previstas no artigo 245.º, n.º 2, do CIRE, que não foram extintas com a concessão da exoneração do passivo restante.
Face ao exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente e revogada
a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que declare que os devedores deixaram de ser beneficiários de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e são responsáveis pelo pagamento das custas do processo de insolvência que não foram pagas pela massa insolvente e pelo seu rendimento disponível durante o período da cessão.
Porém, Vossas Excelências, farão, como sempre, JUSTIÇA.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em apurar se os devedores deixaram de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo que lhes tinha sido concedido porque o regime de apoio judiciário previsto no artigo 248.º do CIRE é especial e prevalece sobre o regime geral previsto na lei geral do apoio judiciário.

II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.

III – Fundamentação de direito
Contrariamente ao decidido, entende o recorrente que os devedores, por terem apresentado pedido de exoneração do passivo restante, beneficiaram do diferimento do pagamento das custas e do reembolso ao IGFEJ até à decisão final desse pedido, nos termos do artigo 248.º, n.º1, do CIRE.
Por essa razão, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, ficou afastada a concessão aos mesmos de qualquer outra forma de apoio judiciário, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono, nos termos do artigo 248.º, n.º4, do CIRE.
Ou seja, deixaram os mesmos de beneficiar do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo que lhes tinha sido concedido pois o regime de apoio judiciário previsto no artigo 248.º do CIRE é especial e prevalece sobre o regime geral previsto na lei geral do apoio judiciário (Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho).
Atentemos.
No processo de insolvência, de acordo com o disposto no artigo 304º CIRE as custas são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.
E com pedido de exoneração do passivo restante, a responsabilidade do devedor pelas custas da acção fica sujeita ao regime do art. 248º CIRE, o qual dispõe:
“1. O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período de cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2. Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3. Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no nº 1 não tivesse sido concedido, à taxa previstas no nº 1 do artigo 33º do Regulamento das Custas Processuais.
4. O benefício previsto no nº 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.”
Assim, no período compreendido entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final desse pedido, o insolvente está dispensado do pagamento das custas cujo pagamento se difere para depois deste momento.
É que com a declaração de insolvência o devedor fica privado dos poderes de administração dos bens integrantes da massa insolvente, passando esta administração a ser assegurada pelo administrador de insolvência (artigo. 81º nº 1 e 4), a quem compete o pagamento das dívidas, designadamente as custas (artigo 55º nº 1 a), 241º nº 1 a)) e quando deferido o beneficio de exoneração do passivo restante, estas funções passam a ser exercidas pelo fiduciário (artigo 239º, 241º/1 a) CIRE).
Foi entendido na jurisprudência, designadamente nos acórdãos citados pelo recorrente, que, considerando o elemento literal da interpretação, o artigo 248.º do CIRE afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor – que não a nomeação e pagamento de honorários a patrono (n.º 4).
Cremos, porém, que a jurisprudência se tem-se desenvolvido no sentido de que depois de encerrado o incidente de exoneração do passivo restante, o devedor pode beneficiar do regime geral do apoio judiciário relativo à dispensa de pagamento de custas, caso a mesma lhe tenha sido concedida e se mantenha nessa altura. - V. g. Acórdãos desta Relação do Porto de 06-02-2018, Proc. 749/16.6T8OAZ.P2, de 13 de Junho de 2018, Proc. 1525/12.0TBPRD.P1, de 25-09-2018, Proc. 2075/12.0TBFLG.P1, de 15-11-2018, 1741/11.2TBLSD-C.P1 e do Tribunal da Relação de Guimarães de 10 de Maio de 2018, Proc. 2676/10.1TBGMR.G1, todos em www.dgsi.pt..
Nesta perspectiva há que perceber como se deve encarar esta disciplina introduzido no CIRE com o regime geral do apoio judiciário.
As normas em apreço do CIRE conferem ao insolvente uma dispensa temporária de suportar os encargos tributários inerentes ao processo.
Assim, independentemente de beneficiar de apoio judiciário, todo o requerente de exoneração do passivo restante goza do diferimento do pagamento de custas no período em que decorre o incidente de exoneração de passivo restante desde a sua dedução e admissão liminar até à decisão final de exoneração.
Portanto, no período compreendido entre a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final desse pedido, o insolvente está dispensado do pagamento das custas cujo pagamento se difere para depois deste momento. Proferida a decisão final é então chamado a pagar as custas que não tenham sido pagas pela massa e pelo rendimento disponibilizado ao abrigo da cessão feita ao fiduciário.
Este regime aplica-se a todas e quaisquer custas do processo de insolvência que devam ser pagas ou adiantadas pelo devedor.
Sobre este ponto parece não haver divergência: as custas que admitem o diferimento não podem deixar de englobar as que já forem devidas, envolvendo designadamente a taxa de justiça devida pela apresentação da petição de insolvência. Estas custas não podem restringir-se às que correspondam especificamente à tramitação do pedido de exoneração do passivo restante pois que este processamento não é configurado como um incidente susceptível de gerar custas autónomas.
O instituto da exoneração do passivo restante, como é sobejamente defendido, é um regime introduzido pelo actual Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) específico da insolvência das pessoas singulares. Caracteriza-se pela possibilidade de conceder aos devedores pessoas singulares a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no respectivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. Visa-se com esta medida conceder ao devedor arranque novo, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior. Trata-se de uma solução inspirada no modelo da fresh start, amplamente difundido nos EUA (discharge do Bankruptcy Code) e acolhido no Código da Insolvência Alemão (Rechtsschulbefreiung da InsolvenzOrdnung).
Em coerência o disposto no artigo 248º do CIRE aposta na protecção do devedor de molde a não dificultar ou agravar a sua situação durante aquele lapso de tempo em que decorre o procedimento, o qual tem como principais fases o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial, a cessão, a cessação antecipada do procedimento e o despacho (final) de exoneração.
Nesta medida, ultrapassadas as razões que justificam o diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração, deixa de fazer sentido a aplicação do regime dos nºs 1 e 4 do art.º 248º, não podendo o devedor ficar impossibilitado de fazer valer o apoio judiciário que tenha requerido e que lhe tenha sido concedido, caso seja responsável pelo pagamento de custas e deva responder pela remuneração e pelas despesas pagas ao Administrador da Insolvência e ao Fiduciário
Decorrentemente destas considerações não parece lógico que se preveja nestas disposições um regime especial de apoio judiciário, antes sim a configuração do instituto com todas as suas abrangências, nomeadamente as custas. Quer dizer, não se trata de uma limitação ou derrogação da normatividade do apoio judiciário mas de uma regulação específica do instituto da exoneração do passivo restante que se aplica a todos os que nele se enquadrem, independentemente de terem ou não benefício do apoio judiciário.
Enquanto o direito comum se destina a regular a realidade jurídica e social considerada em sua totalidade, o direito especial forma-se de normas que se destinam a determinadas relações.
Não se destrinçam diferenças formais entre leis gerais e leis especiais: o conceito de norma especial é sempre um resultado de uma interpretação. O atributo da especialidade é compatível com qualquer tipo de norma, sendo o intérprete que, diante de cada situação concreta, vai dizer se uma norma é geral ou especial. Num mesmo corpo normativo podemos encontrar as duas categorias.
Esta relação de especialidade importa nomeadamente nas antinomias em que se estabelece o critério de que a lei especial derroga lei geral.
As antinomias existem quando duas ou mais normas, que se proponham resolver “a mesma questão de direito” no domínio da mesma legislação e dentro do mesmo contexto teleológico, estabeleçam para casos idênticos ou para casos juridicamente equiparáveis consequências jurídicas diferentes. A contradição pode ser uma contradição lógica ou uma contradição teleológica ou valorativa. Em qualquer dos casos, temos que assentar em que o postulado da “unidade da ordem jurídica” exige que não se verifiquem contradições entre as suas normas (pela mesma razão que exige o preenchimento das respectivas lacunas). Se uma contradição for descoberta e não for de todo possível eliminá-la pelos critérios doutrinalmente assentes ou pela via interpretativa, teremos de partir da ideia de que as normas em contradição se anulam uma à outra e dar por verificada uma “lacuna de colisão”- Vide. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, pág. 170.
Na situação que nos ocupa não existe nenhum verdadeiro conflito normativo, desde logo porque não há uma disputa lógica ou teleológica.
São distintos pela natureza e pela finalidade os dois institutos em relevo.
O regime do apoio judiciário é emanação do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, segundo o qual a insuficiência de meios económicos não deve impedir o acesso de todos à justiça e ao Direito.
A instituição da exoneração do passivo restante apresenta-se como um benefício concedido ao devedor pessoa singular declarado insolvente e pretende conciliar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim permitir-lhes a sua reabilitação económica.
Podemos, pois, concluir que as disposições em análise não se destinam a regular uma especificidade de apoio judiciário, mas antes se destinam a configurar todo um novo regime com uma diferente lógica e teleologia.
Logo não existe aqui qualquer incongruência normativa a solucionar pelo princípio hermenêutico: lex specialis derogat legi generali (a lei especial derroga a lei geral).
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Sem custas (artigo 4º, nº 1 al. a) do RCP).

Porto, 11 de Abril de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
Maria Cecília Agante