Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4985/17.0T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: FIXAÇÃO DA INCAPACIDADE
PROVA PERICIAL
EXAME POR JUNTA MÉDICA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RP202001204985/17.0T8MAI.P1
Data do Acordão: 01/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O exame por junta médica tem em vista a percepção ou apreciação relativamente a factos para os quais o Juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos. São os peritos médicos que dispõem desse conhecimento especializado, por isso cabendo-lhe emitirem ”o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem”.
II - Contudo, tratando-se de um meio de prova pericial, as considerações e as conclusões do exame, mesmo quando alcançadas por unanimidade não vinculam o juiz, uma vez que estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova (art.º 389.º do CC e 607.º do Cód. Proc. Civil).
III - Na prolação da decisão para fixação da incapacidade, o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais, mas poderá afastar-se do laudo médico, ainda que unânime.
IV - Mas quer adira ou quer se desvie do laudo médico maioritário ou unânime, é necessário que o juiz conte com um resultado do exame pericial fundamentado, pois é a partir daí que desenvolverá toda a apreciação com vista à formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador.
V - Dispondo o Tribunal a quo de todos os dados factuais essenciais, em especial, um resultado do exame médico claro e devidamente fundamentado, para estar habilitado a formular o juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador e consequente decisão sobre a fixação da incapacidade, que só a ele compete, não existe “(..) fundamento que permita um entendimento diverso do sufragado pela maioria dos senhores peritos médicos, entre os quais o indicado pelo Instituto Português do Desporto, que oferece maiores garantias e isenção e equidistância”, para fazer prevalecer o parecer minoritário do Senhor Perito médico da recorrente ou, como também pretende a recorrente, o resultado do exame médico singular, sobre aquele laudo maioritário, devidamente fundamentado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 4985/17.0T8MAI.P1
SECÇÃO SOCIAL
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
I.1 Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho, na qual é sinistrado / autor B… e entidade responsável /Ré, C… – Companhia de Seguros, S.A., que correu os seus termos na Comarca do Porto – Juízo do Trabalho da Mais – J1, realizada a tentativa de conciliação não foi possível alcançar o acordo entre as partes em razão do sinistrado não aceitar a Incapacidade Permanente Parcial de 4,8%, arbitrada no exame médico singular realizado pelo INMLCF.
No prazo previsto no n.º 1 do artigo 119º do CPT, o sinistrado apresentou requerimento nos termos do art.º 117 n.º1, b), do mesmo diploma legal, a solicitar a realização de exame por junta médica, requerendo que a mesma fosse da especialidade de Medicina Desportiva, atenta a especificidade da sua profissão e as lesões que o afectam. Apresentou quesitos.
O tribunal a quo acolheu o requerido, vindo a junta médica da especialidade de Medicina Desportiva a realizar-se, tendo os senhores peritos emitido laudo por maioria.
Notificados do resultado do exame por junta médica, quer a seguradora quer o sinistrado nada requereram.
I.2 Subsequentemente o Tribunal a quo proferiu sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
Assim, reconhecendo-se que o sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho do qual lhe resultou uma invalidez permanente específica de 13,821% desde 31 de julho de 2017, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, condena-se a entidade responsável a pagar-lhe:
1 – a pensão anual, vitalícia e atualizável de €73.699,39, devida desde o dia 01 de agosto de 2017, a ser paga mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no seu domicilio, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano, respetivamente, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a data de vencimento de casa uma das prestações e até efetivo e integral pagamento.
Sem prejuízo das atualizações anuais, tal valor de pensão manter-se-á até à data em que o sinistrado complete 35 anos de idade, sendo que a partir dessa data a pensão anual e vitalícia devida será calculada com base na IPP que lhe foi atribuída e terá como limite máximo o valor de 14 vezes o montante correspondente a 5 vezes a remuneração mínima mensal garantida em vigor nessa data (dia em que completar 35 anos);
2 – a quantia de €4.122,59, a título de subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde 01 de agosto de 2017 e até efetivo e integral pagamento.
3 - a quantia de €8,00, a título de deslocações obrigatórias a tribunal, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, desde 14 de maio de 2018 e até efetivo e integral pagamento.
***
Remuneração aos Srs. Peritos Médicos nos termos da Portaria n.º 685/2005, de 18 de agosto, ex vi artigo 17.º/7 do RCP (1 UC).
Fixo o valor de processo em €1.241.838,15 - artigo 120.º do Código de Processo do Trabalho.
Custas pela seguradora.
Registe e notifique.».
I.3 Inconformada com a sentença, a Ré seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
I. A obrigatoriedade de fundamentação dos resultados dos exames médicos decorre do disposto no n.º 8 das Instruções Gerais anexas à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais (TNI);
II. No caso dos autos, a fundamentação deveria ser particularmente exigente, considerando que a Junta Médica agravou a incapacidade atribuída pelo perito do Tribunal em exame singular, e lhe atribuiu uma incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH);
III. Desde a data do exame por perito singular, em 02-02-2018, até à data do exame por junta médica, realizado em 28-11-2018, nenhum exame novo apontou para a existência de IPATH;
IV. Decorre do Auto do Exame por Junta Médica que o sinistrado deixou de jogar futebol por força de atrofia na perna direita, sequela do acidente, o que não corresponde à verdade;
V. O sinistrado deixou de jogar futebol porque não foi contratado por nenhum clube de futebol nas épocas de 2017/2018 e de 2018/2019;
VI. Não tendo contrato não treina e, não treinando, perde capacidade muscular, o que pode gerar atrofia nos tecidos recuperados;
VII. O quesito 5.2 do sinistrado é constituído por uma pergunta que pressupõe que os guarda-redes treinam com uma intensidade igual, ou até superior, à dos outros jogadores, e mais não é que uma afirmação feita pelo sinistrado, sem qualquer respaldo em qualquer outro elemento de prova constante dos autos;
VIII. Em resposta ao quesito 6 do sinistrado, os peritos atribuíram IPATH ao sinistrado, por maioria.
IX. Não encontramos no auto de exame de junta médica uma única linha que fundamente a razão pela qual os peritos entendem porque é que o sinistrado não pode continuar a exercer a sua profissão;
X. A fundamentação da atribuição de IPATH é não só necessária como particularmente exigente.
XI. Nem no relatório da Junta Médica, nem na própria sentença, se pode encontrar uma linha em que se afirme que o sinistrado ficou impedido de desempenhar as funções nucleares da sua profissão, nem sequer que apenas está em condições de realizar tarefas meramente residuais;
XII. A fundamentação do auto da junta médica sobre a incapacidade permanente para o trabalho habitual é importante, ainda, porque dela depende a aplicação do fator de bonificação de 1,5% previsto na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI.
XIII. Não estando fundamentada a impossibilidade de o sinistrado continuar a desempenhar, em pleno, as funções que desempenhava, não há necessidade de aferir se o sinistrado é reconvertível em relação ao lugar;
XIV. A recorrente tomou conhecimento, através de notícia publicada no jornal “E…”, edição de 1 de julho p.p., intitulada “B… a caminho do D…”, de que o sinistrado vai recomeçar a sua atividade de guarda-redes no D…;
XV. O facto de o sinistrado voltar a jogar futebol, como guarda-redes, impede a atribuição da bonificação da al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, conforme acórdão de unificação de jurisprudência do STJ, de 28-05-2014;
XVI. A douta sentença recorrida limitou-se a aderiu à fixação de incapacidade a que a Junta Médica procedeu, bem como à deliberação de atribuição de IPATH ao sinistrado, não tendo fundamentado autonomamente tal decisão;
XVII. A sentença, que se funde em laudo pericial emitido por junta médica não fundamentado de modo coerente, no que respeita à questão da determinação e fixação do grau da incapacidade de que o sinistrado se mostra afetado, é uma sentença, ela mesma, insuficientemente fundamentada.
XVIII. Conclui a recorrente pela existência de erro de julgamento da douta sentença recorrida, em virtude de ter concordado com a atribuição, pela Junta Médica de uma incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH) ao sinistrado, em consequência do acidente de trabalho de 11-01-2017, e,
XIX. Pelo facto de ter atribuído a bonificação de 1,5%, prevista na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, à incapacidade permanente que foi atribuída ao sinistrado pelos peritos, visto nada haver, no relatório da junta médica, que sustente a impossibilidade de o sinistrado continuar a desempenhar a sua atividade profissional.
XX. Deve a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por acórdão, que revogue o agravamento da incapacidade, a atribuição de IPATH ao sinistrado e a aplicação da bonificação de 1,5% prevista na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, e as substitua pela incapacidade previamente definida na perícia médica singular, OU,
XXI. Caso assim se não entenda, deve a douta sentença recorrida ser anulada, nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPCivil, de modo a ser corrigida a insuficiência da matéria de facto, se necessário, com novas diligências de prova.
Conclui pedindo que o recurso seja julgado procedente e a sentença recorrida revogada e substituída por acórdão, que revogue o agravamento da incapacidade, a atribuição de IPATH ao sinistrado e a aplicação da bonificação de 1,5% prevista na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, e as substitua pela incapacidade previamente definida na perícia médica singular; ou, caso assim não se entenda, deve a sentença recorrida ser anulada e os autos mandados baixar para correção da insuficiência da matéria de facto.
I.4 O Recorrido apresentou contra alegações, mas não as sintetizou com conclusões.
Contrapõe que o recurso deve improceder, por um lado em razão da recorrente pretender produzir prova (falsa e não sujeita ao contraditório) na sua alegação que instrui a Apelação; por outro, dado a decisão da 1.ª Instância estar devidamente fundamentada em prova pericial.
No essencial refere que a notícia é falsa, porque conforme se pode constatar nos sítios da Internet dedicados, o Sinistrado não consta do plantel do D…, nem de qualquer outro clube, nem poderia constar por estar incapacitado para o exercício da profissão de jogador profissional de futebol. Sublinha que a seguradora notificada do Auto de Junta Médica nada requereu, nem pediu esclarecimentos ou solicitou uma maior fundamentação das respostas. A sentença mostra-se devidamente fundamentada com apoio na prova pericial produzida, sendo que o relatório do exame pericial encontra-se completo e bem fundamentado, tendo as respostas aos quesitos sido obtidas de forma unânime pelos 3 peritos, apenas tendo havido divergência quanto ao grau e natureza da incapacidade.
I.5 O Ministério Público junto desta Relação emitiu parecer nos termos do art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
I.6 Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil, determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do NCPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas pelo recorrente para apreciação consistem em saber pela existência se o Tribunal a quo errou o julgamento “em virtude de ter concordado com a atribuição, pela Junta Médica de uma incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH) ao sinistrado, em consequência do acidente de trabalho de 11-01-2017” e por “ter atribuído a bonificação de 1,5 prevista na al.a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI” [conclusões XVIII e XIX]. Refere, ainda, ter tomado conhecimento que o sinistrado retomou a atividade de guarda-redes, facto que impede a atribuição da bonificação da al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI.
Porém, previamente, importa que nos pronunciemos sobre a junção de documento relacionada com o fundamento invocado nas conclusões XIV e XV.
I.8 Junção de documento
Com as alegações, a recorrente veio requerer a junção de um documento, em concreto, cópia de notícia publicada no jornal “E…”, edição de 1 de julho de 2019, intitulada “B… a caminho do D…”. Invoca que “Tal como os demais leitores do jornal, a ora recorrente só tomou conhecimento deste facto no dia 1 de julho p.p., data da publicação da edição daquele jornal desportivo em que a notícia figurava, nessa base alegando o facto nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 651.º/1 e 425.º, ambos do CPC.
O recorrido não se opôs à junção do documento, embora impugne o seu conteúdo que reputa de falso.
Impõe-se que nos pronunciemos sobre a admissibilidade do documento.
Em princípio a junção de documentos deve ser feita com o articulado em que se alegam os factos que constituem fundamento da acção ou da defesa (art.ºs 63.º/1 do CPT e 423.º/1 do CPC).
A lei permite também que a junção seja feita até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que não os pode oferecer com o articulado (n.º 2, do mesmo artigo 423.º).
Para além disso, a junção documentos é ainda possível após o limite temporal estabelecido naquele n.º2, mas restringida àqueles cuja “apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior” (n.º3, do mesmo art.º 423.º)
Por seu turno, o art.º 425.º dispõe que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.
Finalmente, sobre a junção de documentos com as alegações e recurso, dispõe o n.º 1 do art.º 651.º que ”[A]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o art.º 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido a 1.ª instância”.
Da conjugação destas disposições resulta, pois, que a regra é a junção de documentos na 1.ª instância, com a amplitude permitida no art.º 423.º. A apresentação de documentos em sede de recurso assume natureza excepcional, dependendo de não ter sido possível a sua apresentação até esse momento (superveniência objectiva ou subjectiva) ou, numa segunda ordem de casos, quando a sua junção se tenha revelado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Como é pacificamente entendido, pretendendo a parte juntar documentos com o recurso, é-lhe exigível que justifique e deixe demonstrado por que razão faz essa apresentação excepcional, isto é: i) se não lhe foi possível antes do encerramento da discussão, qual a razão dessa impossibilidade; ii) se a junção se tornou necessária em virtude do julgamento em 1:º instância, qual o fundamento dessa necessidade.
Com efeito, só desse modo pode o Tribunal ad quem ajuizar e decidir sobre a admissibilidade ou rejeição dos documentos.
No caso, o recorrente cumpriu esse ónus ao invocar que tendo a notícia sido publicada a 1 de julho de 2019, só nesse dia teve conhecimento dela.
Compulsado o documento verifica-se que efectivamente reproduz uma notícia publicada no jornal E…, no dia 1 de Julho de 2019. Por conseguinte, não suscita dúvida que a mesma só poderia ser do conhecimento da recorrente a partir nessa data ou posteriormente, sendo que entretanto já fora realizado o julgamento e inclusive proferida a sentença, esta em 24-04-2019.
Assim, admite-se a junção documento.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
II.1.1 O tribunal a quo considerou assentes os factos que seguem:
1 - O sinistrado sofreu um acidente no dia 11 de janeiro de 2017.
2 - Quando, sob as ordens, direção e fiscalização de “F…, S.A.D.”, desempenhava as funções de jogador de futebol profissional (guarda - redes).
3 - Mediante o salário anual de €9.976,92x14, num total de €139.676,88.
4 - A responsabilidade infortunística laboral encontrava - se transferida para a seguradora pelo referido salário anual.
5 - A consolidação médico-legal das lesões ocorreu no dia 31 de julho de 2017.
6 - O sinistrado despendeu em deslocações obrigatórias a tribunal e ao INMLCF, IP a quantia de €8,00.
7 - No processo n.º 1161/12.1TTLRA foi fixada ao sinistrado uma IPP de 4%.
8 - O sinistrado nasceu no dia 18 de outubro de 1985.
II.1.2 Com relevo para a apreciação do recurso, reproduzem-se os quesitos apresentados à junta médica e as respectivas respostas dadas pelos senhores peritos médicos (aqui em itálico), com o conteúdo que consta do auto de exame médico, conforme segue:
Q1- Quais as lesões decorrentes do acidente participado?
R1 - Ruptura total Tendão Aquiles à Dta
Q2 - Para tratamento de tais lesões, a que cirurgia(s) foi o Sinistrado submetido?
R2 - Tenorrafia do Tendão de Aquiles
Q3 - O sinistrado apresenta cicatrizes resultantes de tal cirurgia?
R3 - Sim
Q3.1 - Se sim, com que medidas?
R3.1 - Cerca de 12 cm
Q3.2- E sofre de alterações da sensibilidade na região das cicatrizes?
R3.2 - Sim
Q4- Em virtude das lesões sofridas, e do tratamento cirúrgico a que foi submetido, que sequelas permanentes apresenta o Sinistrado?
R4 - Atrofia muscular( gémeos), cicatriz direita, ligeira rigidez do tornozelo (flexão plantar e dorsal)
Q5 - Considerando que o Sinistrado abandonou a prática do futebol profissional em consequência deste acidente, e que desde então não pratica qualquer outro desporto, pergunta-se:
5.1. Qual a repercussão, para a sua antiga profissão de jogador profissional, da conclusão do relatório de ELECTROMIOGRAFIA realizada em 02.02.2018 (que se junta como doc. n.º 1), onde se lê: “... atrofia por desuso do músculo gémeo interno direito”?
R5.1 Deixou de jogar Futebol
Q5.2. O Sinistrado teria condições para realizar e suportar cargas de treino bi-diárias, de 2 horas cada, realizando centenas de saltos em cada um desses treinos?
R5.2 - Não
Q6- Finalmente, digam os Sr.s Peritos, se as sequelas determinadas permitem a continuação da sua actividade profissional de jogador profissional de futebol, com cargas de treino bi-diárias?
R6 - Não, considera-se c/ IPATH
Q7- Justifica-se a atribuição do factor de bonificação 1,5, atendendo a que não se verificou qualquer reconversão na sua actividade profissional e deste modo abrangido pela legislação em vigor, concretamente pela alínea a) do nº 5 e alínea b) do nº 6, das Instruções Gerais da TNI?
R7 - Sim
Q8- Há lugar à atribuição de I.P.P.? Qual o seu valor conforme a T.N.I.?
8 - Sim IPP 7%
Pelo perito Médico de Seguradora foi dito:
Não concorda com o ponto 5.1, por considerar que o jogador ainda tem condições para jogar futebol como guarda-redes e também discordo com a IPATH
Pelo Perito do Sinistrado: discorda com a IPP de 7 % considerando que devia ser 12%.
Mais se consigna constar do auto do exame médico, no quadro com o título “Rubrica de Tabelas a que correspondem as doenças”, a menção seguinte: “Capítulo I 13.1.c”.
II.2 MOTIVAÇÃO de DIREITO
Insurge-se a recorrente contra a sentença, defendendo que o Tribunal a quo errou o julgamento “em virtude de ter concordado com a atribuição, pela Junta Médica de uma incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH) ao sinistrado, em consequência do acidente de trabalho de 11-01-2017” e por “ter atribuído a bonificação de 1,5 prevista na al.a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI” [conclusões XVIII e XIX].
Por um lado, sustenta que a sentença está insuficientemente fundamentada, na medida em que acolhe um laudo pericial “não fundamentado de modo coerente, no que respeita à questão da determinação e fixação do grau da incapacidade de que o sinistrado se mostra afetado”.
Por outro, servindo-se da junção do documento que foi admitido, vem o recorrente defender que tomou conhecimento, através de notícia publicada no jornal “E…”, edição de 1 de julho p.p., intitulada “B… a caminho do D…”, de que o sinistrado vai recomeçar a sua atividade de guarda-redes no D…, facto que impede a atribuição da bonificação da al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, conforme acórdão de unificação de jurisprudência do STJ, de 28-05-2014 (conclusões XIV e XV).
II.2.1 A última das questões acima enunciadas, pelos efeitos pretendidos pela recorrente, assume-se como prejudicial relativamente às demais colocadas no recurso.
Recorrendo às alegações de recurso, defende a recorrente que os senhores peritos do tribunal e do sinistrado, ao entenderem estar aquele afectado de IPATH, para além de não fundamentarem o seu laudo, dado nada existir «(..) que fundamente a impossibilidade de o sinistrado continuar a desempenhar, em pleno, as funções que desempenhava”, “estavam enganados”, tanto mais «que através de notícia publicada no jornal “E…”, edição de 1 de julho p.p., intitulada “B… a caminho do D…”, foi tornado público o seguinte: “O guarda-redes B…, de 33 anos, está a caminho do D…. O brasileiro disputou o último jogo oficial a 11 de janeiro de 2017 diante do G…, com a camisola do F…, devido a uma rotura do tendão de Aquiles.(…)”».
O documento cuja junção se admitiu reproduz uma notícia publicada no jornal “E…”, edição de 1 de julho de 2019, intitulada “B… a caminho do D…”, onde se lê o seguinte:
-“O guarda-redes B…, de 33 anos, está a caminho do D…. O brasileiro disputou o último jogo oficial a 11 de janeiro de 2017 diante do G…, com a camisola do F…, devido a uma rotura do tendão de Aquiles. Além dos tricolores, em Portugal envergou também as camisolas de H… e I….
Com larga experiência na 1ª Liga (143 jogos), B… deve concorrer com J… (ex-K…) pela baliza já que L…, guardião que defendeu os postes ribatejanos rumo à subida, deve sair”.
Argumenta, ainda, que não há dúvida que se trata de facto público e notório.
Com base nesta construção defende não ser possível a atribuição da bonificação da al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, fazendo apelo ao acórdão do STJ de 28-05-2014 [proc.º n.º 1051/11.5TTSTB.E1.S1, Conselheiro António Leones Dantas, disponível em www.dgsi.pt], em cujo sumário se lê o seguinte:
- «1 - A expressão “se a vítima não for reconvertível em relação ao posto de trabalho” contida na alínea a) do n.º 5 das Instruções Gerais da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho ou Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, refere-se às situações em que o sinistrado, por virtude das lesões sofridas, não pode retomar o exercício das funções correspondentes ao concreto posto de trabalho que ocupava antes do acidente;
2 – Não é possível bonificar, nos termos da alínea a) do n.º 5 daquelas Instruções Gerais, o coeficiente de incapacidade geral de um profissional de futebol decorrente de acidente de trabalho, de 22 anos à data do acidente, e que retomou, logo após a alta, as tarefas correspondentes ao posto profissional que ocupava antes do acidente».
Com o devido respeito, a recorrente incorre num erro de raciocínio, desde logo em razão da notícia apenas anunciar uma situação hipotética, isto é, a eventual possibilidade do sinistrado “(estar) a caminho do D…”, que é coisa bem diferente de se referir a um facto já concretizado, como seria se noticiasse que treinou ou jogou ao serviço daquele clube.
Mas ainda que assim fosse, também não lhe assistia razão ao pretender estar-se perante um facto notório.
Diz-nos o n.º1 do art.º 412.º do CPC, que “Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo entender-se como tais os factos que são do conhecimento geral”.
Segundo o ensinamento do Professor Alberto dos Reis, que se mantém inteiramente válido, sendo um facto notório, por definição, um facto conhecido, não basta qualquer conhecimento, “(..) é indispensável um conhecimento de tal modo extenso, isto é, elevado a tal grau de difusão que o facto apareça, por assim dizer, revestido de carácter de certeza”, não podendo qualificar-se de “(..) notório um facto unicamente conhecido pelo juiz ou por um círculo restrito ou particular de pessoas”. Prosseguindo, o autor classifica os factos notórios em duas grandes categorias: a) acontecimentos de que todos se aperceberam directamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc.); b) factos que adquirem o carácter de notórios por via indirecta, isto é, mediante raciocínios, formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos”, para depois concluir, que se quanto aos primeiros não pode haver dúvidas, já quanto aos segundos, “o juiz só deve considera-los notórios se adquirir a convicção de que o facto originário foi percebido pela generalidade dos portugueses e de que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média” [Código de Processo Civil anotado, vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 259 a 262].
Nenhuma dúvida pode haver de que o alegado facto jamais poderá ser um facto notório. Se é possível aceitar que parte, ou mesmo a maioria, dos leitores daquela edição do jornal E… atentaram na notícia acima transcrita, o que se traduzirá numas poucas dezenas de milhares de leitores, tal não atinge manifestamente a dimensão suficiente para se poder falar num facto notório.
Mais acresce, como contrapõe o recorrido socorrendo-se de dados divulgados na internet em sítios da especialidade, que nem tão pouco houve qualquer transferência do sinistrado para qualquer clube de futebol. Com efeito, consultando o sítio da Federação Portuguesa de Futebol, fonte que tem seguramente mais validade que a invocada pela recorrente, verifica-se que a situação profissional publicada relativamente ao sinistrado refere que a sua última época como contrato foi a de 2016-2017, ao serviço do clube de futebol F… [disponível em https://www.fpf.pt/Jogadores/Ficha-de-Jogador/playerId/1195018], ou seja, na época e quando jogava pelo quando sofreu o acidente de trabalho (factos provados 1 e 2).
Aliás, facto que a própria recorrente não ignora, dado que na conclusão V afirma que “[O] sinistrado deixou de jogar futebol porque não foi contratado por nenhum clube de futebol nas épocas de 2017/2018 e de 2018/2019”.Portanto, no rigor das coisas, a recorrente veio esgrimir um argumento sobre uma hipotética contratação do sinistrado, quando afinal sabe que assim não aconteceu, fazendo uma construção que raia os limites da má fé processual.
Por conseguinte, inexistindo o fundamento invocado, sucumbem as conclusões XIV e XV.
II.2.2 Numa outra linha de argumentação, defende a recorrente, no essencial, que há erro de julgamento do tribunal a quo em virtude de ter concordado com a atribuição, pela Junta Médica de uma incapacidade permanente para o trabalho habitual (IPATH) ao sinistrado, em consequência do acidente de trabalho de 11-01-2017, e pelo facto de ter atribuído a bonificação de 1,5%, prevista na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, “visto nada haver, no relatório da junta médica, que sustente a impossibilidade de o sinistrado continuar a desempenhar a sua atividade profissional”.
Para sustentar esta posição, defende que o auto de exame médico consigna que o sinistrado deixou de jogar futebol por força de atrofia na perna direita, sequela do acidente, o que não corresponde à verdade, pois deixou de jogar futebol porque não foi contratado por nenhum clube de futebol nas épocas de 2017/2018 e de 2018/2019; não tendo contrato não treina e, não treinando, perde capacidade muscular, o que pode gerar atrofia nos tecidos recuperados.
Refere, ainda, que o quesito 5.2 do sinistrado é constituído por uma pergunta que pressupõe que os guarda-redes treinam com uma intensidade igual, ou até superior, à dos outros jogadores, e mais não é que uma afirmação feita pelo sinistrado, sem qualquer respaldo em qualquer outro elemento de prova constante dos autos.
Por último, alega que o auto de exame de junta médica não fundamente a razão pela qual os peritos entendem porque é que o sinistrado não pode continuar a exercer a sua profissão, nem a sentença refere que o sinistrado ficou impedido de desempenhar as funções nucleares da sua profissão.
Conclui que a sentença adere à fixação de incapacidade a que a Junta Médica procedeu, bem como à deliberação de atribuição de IPATH ao sinistrado, mas não estando o auto devidamente fundamentado, ela mesma, é insuficientemente fundamentada.
Nesta base, pretende que a sentença seja revogada e substituída por acórdão, que revogue o agravamento da incapacidade, a atribuição de IPATH ao sinistrado e a aplicação da bonificação de 1,5% prevista na al. a) do n.º 5 das Instruções Gerais da TNI, substituindo-as pela incapacidade previamente definida na perícia médica singular. Caso assim se não entenda, que se anule a sentença, nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. c) do CPCivil, de modo a ser corrigida a insuficiência da matéria de facto, se necessário, com novas diligências de prova.
Por sua banda, o recorrido contrapõe que a seguradora notificada do Auto de Junta Médica nada requereu, nem pediu esclarecimentos ou solicitou uma maior fundamentação das respostas. A sentença mostra-se devidamente fundamentada com apoio na prova pericial produzida, sendo que o relatório do exame pericial encontra-se completo e bem fundamentado, tendo as respostas aos quesitos sido obtidas de forma unânime pelos 3 peritos, apenas tendo havido divergência quanto ao grau e natureza da incapacidade.
II.2.3 Comecemos por apreciar a crítica dirigida ao quesito 5.2, apresentado pelo sinistrado, confrontando os senhores peritos médicos com a questão de saber se “[O] Sinistrado teria condições para realizar e suportar cargas de treino bi-diárias, de 2 horas cada, realizando centenas de saltos em cada um desses treinos?”.
Em primeiro lugar, não é despiciendo assinalar que a recorrente foi notificada dos quesitos apresentados pelo sinistrado e nada veio opor. Só agora, face à reposta negativa dada pelos senhores peritos médicos é que a questão, tal como formulada pelo sinistrado, lhe coloca dúvidas, designadamente, procurando sugerir que o treino de um jogador de futebol que desempenha a função de guarda-redes não é idêntico, ou seja, tão exigente, quanto aos dos demais futebolistas que assumem outras posições em campo.
Ademais, note-se, esquece que a junta médica foi realizada por peritos médicos da especialidade de medicina desportiva, sendo pressuposto que essa especialização os habilita a dar resposta a tal questão, nomeadamente, por terem conhecimento científico adequado e suficiente para saberem quais as exigências físicas a que um profissional de futebol está sujeito para desempenhas as suas funções, quer em situação de treino quer em competição. De resto, se não tivessem esse conhecimento, sendo profissionais idóneos, como seguramente o são, certamente teriam rejeitado dar resposta ao quesito.
Não vimos, pois, que se perfile qualquer razão válida para atender esta crítica tardia.
Para além disso, deve também referir-se que a recorrente optou por não apresentar qualquer quesito, quando bem o poderia fazer, designadamente, para questionar, como o vem fazer agora numa mera afirmação própria, esta sim sem qualquer respaldo no relatório do auto de exame médico, que a atrofia muscular assinalada no exame de ELECTROMIOGRAFIA realizado em 02.02.2018 - junto com o requerimento em que foi requerido o exame por junta médica e apresentados os quesitos e para o qual remete o quesito 5.1 - se deve simplesmente ao facto do sinistrado ter deixado de treinar (cfr. conclusão 6).
Aliás, refira-se, de acordo com a tese da recorrente, tendo havido a recuperação e devendo-se a atrofia muscular à falta de treino, como defende, então, em termos lógicos, esse mesmo efeito da falta de treino reflectir-se-ia de igual modo na perna esquerda e, logo, deveria verificar-se igualmente atrofia muscular por desuso do gémeo interno esquerdo.
Porém, assim não acontece. O exame de diagnóstico em causa consistiu num Electromiograma, referindo-se nele “EMG (face externa da perna + tornozelo) comparativa entre os 2 membros”, significando isso que a afirmação na conclusão final, referindo “Atrofia por desuso do músculo gémeo interno direito”, é feita também numa perspectiva de comparação relativamente ao outro membro.
E, se assim é, essa atrofia, que se verifica apenas nesse membro, não é resultante da falta de treino, mas antes uma sequela da lesão e de todo o processo de recuperação, designadamente, a cirurgia e o período de recuperação até à data da alta. De resto, os senhores peritos médicos dispuseram deste exame complementar e para responderem aos quesitos tiveram que o levar em conta, tanto mais que remetem para o exame.
Improcedem, assim, as conclusões IV a VII.
II.2.4 Prosseguindo, cabe agora apreciar a questão relativa às alegadas incoerência ou falta de fundamentação do auto de exame médico e, por consequência, insuficiência da fundamentação da sentença.
Em jeito de enquadramento, começaremos por deixar algumas considerações essenciais sobre o exame por junta médica.
O exame pericial por junta médica tem em vista a percepção ou apreciação relativamente a factos para os quais o Juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos. São os peritos médicos que dispõem desse conhecimento especializado, por isso cabendo-lhe emitirem ”o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” [Alberto dos Reis, Op. Cit.171], auxiliando o Tribunal no julgamento da causa.
Contudo, tratando-se de um meio de prova pericial, as considerações e as conclusões do exame, mesmo quando alcançadas por unanimidade não vinculam o juiz, uma vez que estão sujeitas ao princípio da livre apreciação da prova (art.º 389.º do CC e 607.º do Cód. Proc. Civil ).
Como observam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora “(..) apesar de a resposta do perito assentar, por via de regra, em conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, é ao tribunal, de harmonia com o prudente arbítrio dos juízes, que se reconhece o poder de decidir sobre a realidade do facto a que a perícia se refere. Parte-se do princípio que aos juízes não é inacessível o controlo do raciocínio que conduz o perito à formulação do seu laudo e de que lhes é de igual modo possível optar por um dos laudos ou por afastar-se mesmo de todos eles, no caso de frequente divergência entre os peritos” [op. cit. pp. 583].
A aplicação do princípio da livre apreciação da prova à prova pericial, foi igualmente objecto de exaustiva apreciação por parte do Professor Alberto dos Reis, para concluir “(..) É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas. Pode realmente, num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo (..); mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar, também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.” [op. cit., pp.. 185/186]
Em suma, na prolação da decisão para fixação da incapacidade o juiz não pode deixar de servir-se da prova obtida por meios periciais. Poderá afastar-se do laudo médico, ainda que unânime, mas nesse caso será necessário que esteja sustentado em fundamentos bem precisos e concretos, que tenha entendido serem decisivos para a formação da sua convicção nesse sentido, os quais devem ser expressos na fundamentação.
Certo é, que num caso ou noutro, isso é, quer adira ou quer se desvie do laudo médico maioritário ou unânime, é necessário que o juiz conte com um resultado do exame pericial fundamentado, pois é a partir daí que desenvolverá toda a apreciação com vista à formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador.
Justamente por isso, o n.º8, das Instruções Gerais, constantes do Anexo I, da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho ou Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, impõe aos senhores peritos o dever de fundamentarem “todas as suas conclusões”.
Naturalmente que as exigências de uma fundamentação mais ou menos profunda variam consoante as questões suscitadas em cada caso concreto, devendo ter-se presente que no exame por junta médica as mesmas emergem, em primeira linha, dos quesitos que forem colocados à junta médica para se pronunciar. Por outro lado, em segunda linha, se houver uma divergência entre os senhores peritos nas respostas a esses quesitos, necessariamente que a fundamentação deve ser mais detalhada do que, em regra, se mostra necessário nos casos em que há unanimidade de entendimentos.
Importa é que em face das questões que se colocam em cada caso concreto, o resultado do exame por junta médica se apresente perante o Juiz com a clareza necessária para o habilitar a decidir.
Mas se assim não acontecer, a lei processual proporciona meios para as partes reagirem.
O primeiro deles consiste na faculdade que assiste às partes de reclamarem do relatório pericial, se “entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas” [art.º 485.º 1 e 2, CPC].
O segundo respeita ao direito de arguirem a nulidade do exame médico por falta de fundamentação do resultado, que se verificará quando tal se verifique e seja susceptível de “influir no exame ou na decisão da causa” (art.º 195.º 1 do CPC).
Para além disso, cabe também ter presente que igualmente é atribuído ao Juiz, quando se aperceba que não encontra no relatório do exame médico o apoio suficiente e necessário para proferir a sentença, o poder de fazer uso do disposto no n.º4, do artigo 485.º d CPC, que lhe permite “mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores”, isto é, quando exista “(..) qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas».
Revertendo ao caso, deve assinalar-se que a recorrente não fez uso da faculdade de apresentar reclamação do relatório médico, nos termos do art.º 485º 1 e 2, do CPC, como podia e seria adequado face à posição que agora vem assumir no recurso, pondo em causa a suficiência e a coerência da respectiva fundamentação.
Por outro lado, se na verdade a recorrente entende que o auto de exame médico enferma daquelas deficiências com a gravidade que aponta, então, em coerência com essa posição, poderia ter arguido a nulidade do auto de notícia, não devendo esquecer-se que tratando-se duma nulidade secundária dela só pode conhecer-se mediante arguição ou reclamação dos interessados, posto que o tribunal só pode conhecer oficiosamente das nulidades principais (art.ºs 196.º e 197.º n.º1, do CPC). Acontece, porém, que também não o fez.
Assim, pese embora as severas críticas que dirige à fundamentação do auto de exame médico, a questão fulcral colocada no recurso consiste em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento ao ter acolhido a posição maioritária dos senhores peritos, “visto nada haver, no relatório da junta médica, que sustente a impossibilidade de o sinistrado continuar a desempenhar a sua atividade profissional”.
Diremos desde já que não se reconhece razão à recorrente. Passamos a justificar esta asserção.
Os quesitos apresentados pelo sinistrado são claros, precisos e mostram-se devidamente estruturados numa sequência lógica que culmina confrontando-os com as questões de saber se as sequelas verificadas permitem a continuação da actividade profissional de jogador de futebol e qual o grau de incapacidade.
Por outro lado, relembra-se, o exame por junta médica foi realizado por especialistas em Medicina Desportiva, ou seja, particularmente habilitados para se pronunciarem não só sobre a lesão em si, mas também sobre as limitações decorrentes das sequelas verificadas para a prática desportiva de jogador de futebol ao nível competitivo profissional.
Cabe também assinalar, que para além dos elementos clínicos que foram juntos pela seguradora aos autos e tidos em consideração no exame médico singular, designadamente, conforme referido no respectivo relatório, uma ecografia datada de 17-04-2017, no exame por junta médica os senhores peritos dispunham ainda do Electromiograma, realizado em 02 -02-2018, junto pelo sinistrado.
A Senhora Juíza admitiu os quesitos apresentados e não entendeu necessária a formulação de outros quesitos (art.º 139.º 6, CPT), o que bem se compreende posto que aqueles colocam as questões pertinentes e com objectividade e clareza.
Realizada a perícia, os Senhores Peritos responderam com clareza, suficiência e precisão aos quesitos, numa parte dos matérias por unanimidade, noutra por maioria. Assim, o Senhor Perito da recorrente seguradora, deixou expresso “Não concorda com o ponto 5.1, por considerar que o jogador ainda tem condições para jogar futebol como guarda-redes e também discordo com a IPATH”; e, o senhor perito do sinistrado discordou “com a IPP de 7 % considerando que devia ser 12%.”.
As respostas dadas aos quesitos, que cuidámos de trazer aos factos assentes, foram complementadas com o enquadramento legal em conformidade com a TNI, constando do auto do exame médico, no quadro com o título “Rubrica de Tabelas a que correspondem as doenças”, a menção seguinte: “Capítulo I 13.1.c”. Para que melhor se perceba, o Capítulo I respeita às sequelas verificadas no “Aparelho locomotor; o ponto 13 refere-se à “Perna”; o ponto 13.1, às “Partes Moles”; e, na alínea c), consta “Rotura do tendão de Aquiles com insuficiência do tricípite sural (a incapacidade é graduada de acordo com a hipotrofia muscular, a mobilidade do tornozelo e a dificuldade da marcha) ... 0,05-0,20”.
Assim, contrariamente ao que vem sustentar a recorrente, os senhores peritos observaram o n.º8, das Instruções Gerais, do Anexo I, da TNI, uma vez que as respostas aos quesitos, tal como foram formulados, e o enquadramento legal que consignaram, constituem fundamentação suficiente para justificar os laudos afirmados.
Mais, releva também deixar assinalado que o tribunal a quo, após a realização da perícia colegial e da notificação do respectivo resultado às partes, em despacho de 20-11-2018, determinou a notificação das partes, nos termos do art.º3.º n.º3, do CPC, para se pronunciarem sobre a questão da eventual aplicação do factor de bonificação 1.5, previsto na alínea a), das Instruções Gerais da TNI, por entender, com apoio na jurisprudência do STJ citada na decisão, que “caso o tribunal venha a concluir que o sinistrado se encontra absolutamente incapaz para o exercício da sua profissão habitual, poder-se-á levantar a questão da aplicação do fator de bonificação de 1,5 previsto na alínea a) das Instruções Gerais de TNI, por a vítima não ser for reconvertível em relação ao posto de trabalho”.
A recorrente, notificada desse despacho veio pronunciar-se, sustentando “(..) não tendo sido suscitada pelas partes a questão da atribuição do factor de bonificação 1.5 nos quesitos que determinaram o objecto da junta médica entretanto realizada, não deve, agora, ser considerada, independentemente daquele que venha a ser o entendimento do Tribunal sobre a incapacidade do sinistrado para o exercício da sua profissão habitual”. Embora a recorrente não coloque qualquer questão a este propósito, apenas para repor o rigor das coisas, dir-se-á ainda que aquele argumento não tinha correspondência na realidade, dado que o sinistrado colocou essa questão no quesito 7, com o conteúdo seguinte: “Justifica-se a atribuição do factor de bonificação 1,5, atendendo a que não se verificou qualquer reconversão na sua actividade profissional e deste modo abrangido pela legislação em vigor, concretamente pela alínea a) do nº 5 e alínea b) do nº 6, das Instruções Gerais da TNI?”
Neste contexto, cremos, pois, que a Senhora Juíza dispunha de todos os dados factuais essenciais, incluindo um resultado do exame médico claro e devidamente fundamentado, para estar habilitada a formular o juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador e consequente decisão sobre a fixação da incapacidade que, como se disse, só ao juiz compete. Assim, a esse propósito e na parte que aqui interessa, na sentença lê-se o seguinte:
- «(..)
Realizado o exame pericial por junta médica da especialidade de medicina desportiva, os senhores peritos médicos atribuíram ao sinistrado por maioria, uma IPP de 7% (peritos indicados pelo Instituto Português do Desporto e pela seguradora), com IPATH (peritos indicados pelo Instituto Português do Desporto e pelo sinistrado).
Como é sabido, e resulta do disposto no artigo 388.º do Código Civil, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
No âmbito de acidente de trabalho, estando em causa a perceção das lesões sofridas pelo sinistrado em consequência do acidente e o apuramento do grau de incapacidade que essas lesões e respetivas sequelas lhe acarretam, a lei manda ao tribunal recorrer a peritos (prevendo a realização de exames médicos), dado que a perceção das lesões e a incapacidade delas decorrentes envolve conhecimentos médicos que o julgador não possui.
Ora, no caso presente, os senhores peritos médicos, na junta médica realizada, fixaram, embora por maioria, uma IPP 7%.
Assim, tendo em conta este parecer maioritário e, bem assim, as informações clínicas constantes dos autos sobre a natureza das lesões, a gravidade destas, as suas sequelas, o estado geral, a idade e a profissão do sinistrado (jogador profissional de futebol que necessita para o exercício da sua profissão, de correr, saltar, agachar-se, etc. a um nível, qualidade e intensidade exigível a essa profissão), sendo certo que inexiste fundamento que permita um entendimento diverso do sufragado pela maioria dos senhores peritos médicos, entre os quais o indicado pelo Instituto Português do Desporto, que oferece maiores garantias e isenção e equidistância, porquanto não é designado pelas partes interessadas, nos termos do disposto no artigo 140.º do Código de Processo do Trabalho, considero que o sinistrado em consequência do acidente de trabalho ficou afetado de 7% de IPP.
Sucede que se encontra demonstrado nos autos que o sinistrado já havia sido vítima, em 10 de janeiro de 2012, de um outro acidente de trabalho, do qual resultou uma IPP de 4%.
Nos termos da al. d) do n.º5 das Instruções Gerais da TNI, «no caso de lesões múltiplas, o coeficiente global de incapacidade será obtido pela soma dos coeficientes parciais, segundo o princípio da capacidade restante, calculando-se o primeiro coeficiente por referência à capacidade do individuo anterior ao acidente ou doença profissional e os demais à capacidade restante, fazendo-se a dedução sucessiva do coeficiente ou coeficientes já tomados em conta no mesmo cálculo».
Assim, e atento o princípio da capacidade restante, a incapacidade permanente parcial que afeta o sinistrado é de 6,72% [100-4 = 96 (capacidade restante) x7% = 6,72%].
Considerando que o sinistrado é jogador profissional de futebol, importa agora entrar em linha de conta com a Lei n.º 27/2011, de 16 de junho, que estabelece o regime relativo à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho dos praticantes desportivos profissionais.
(..)
Está, pois, o sinistrado afetado de uma IPE de 9,214%, com IPATH.
De referir ainda que tal como vem unanimemente entendendo o Supremo Tribunal de Justiça [cfr., entre outros, AC 28.01.2015, www.dgsi.pt], «… não há qualquer incompatibilidade entre a bonificação do coeficiente de incapacidade decorrente da alínea a) do n.º5 das Instruções Gerais da TNI e a caracterização da incapacidade sofrida pelo sinistrado como incapacidade permanente para a trabalho habitual», sendo que «… na linha da jurisprudência definida nesta secção, os casos de IPATH são situações típicas de não convertibilidade do sinistrado ao seu posto de trabalho», pois que «na verdade, a bonificação incide sobre o coeficiente global de incapacidade apurado e decorre do facto de o sinistrado, por força das sequelas do acidente sofrido, não ser reconvertível ao posto de trabalho. Esta não reconversão em relação ao posto de trabalho reflete-se na caracterização da incapacidade como permanente e absoluta para o trabalho habitual».
Deste modo, por tudo quanto se expôs e tendo-se em consideração todos os elementos constantes dos autos, conclui este Tribunal que o sinistrado, em consequência do acidente de trabalho sofrido, se encontra afetado de uma IPP de 13,821% (9,214%x1,5), com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
(..)».
O entendimento afirmado pelo Tribunal a quo, diga-se, com fundamentação suficiente e clara, merece a nossa concordância. Como bem se refere, não existe “(..) fundamento que permita um entendimento diverso do sufragado pela maioria dos senhores peritos médicos, entre os quais o indicado pelo Instituto Português do Desporto, que oferece maiores garantias e isenção e equidistância”, para fazer prevalecer o parecer minoritário do Senhor Perito médico da recorrente ou, como também pretende a recorrente, o resultado do exame médico singular, sobre aquele laudo maioritário, devidamente fundamentado.
Concluindo, não se reconhece razão à recorrente, improcedendo o recurso e, logo, devendo ser mantida a sentença.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC).

Porto, 20 de Janeiro de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira