Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2139/19.0JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: HOMICÍDIO
TENTATIVA
DOLO EVENTUAL
Nº do Documento: RP202010282139/19.0JAPRT.P1
Data do Acordão: 10/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se alguém, estando a um metro de distância da vítima, utilizando uma faca de cozinha com cerca de vinte centímetros de lámina, lhe desfere quatro golpes sucessivos e profundos no tórax e no abdómen, e mesmo que alguém se tenha interposto entre ambos, actua, objectivamente e segundo as regras da experiência comum, admitindo como possível, pelo menos, que poderia tirar-lhe a vida, com isso se conformando.
II – A jurisprudência vem considerando que são compatíveis a tentativa e a actuação com dolo eventual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2139/19.0JAPRT.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I –
O Ministério Público vem interpor recurso do douto acórdão do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia (Juiz 2) do tribunal Judicial da Comarca do Porto que absolveu B… do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º; 132.º, n.º 1 e 2, e) e h); 22.º e 23.º do Código Penal, por que vinha acusado.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
1- A fundamentação do acórdão recorrido mostra-se insuficiente, no que concerne à matéria de facto dada como não provada, para sustentar a conclusão a que os Mmos. Juízes do Tribunal a quo chegaram, de que o arguido não agiu com intenção de matar.
2- O Recorrente considera que a factualidade dada como provada nos pontos 1 a 7 permite concluir que o arguido teve intenção de tirar a vida ao Ofendido e, como tal, impunha-se a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 14º nº 3, 22º, 23º e 131º do Código Penal.
3- A fundamentação da factualidade dada como não provada nas alíneas d) e e) do acórdão é manifestamente insuficiente para que o Tribunal a quo pudesse concluir que o arguido não agiu com intenção de matar, pois que se mostra apenas alicerçada em três motivos: na probabilidade que o arguido teria de não deslumbrar as zonas do corpo onde atingiu o ofendido, por a companheira deste se encontrar interposta entre os dois a gesticular; no facto de o exame médico-legal a que foi sujeito o Ofendido concluir, pelos boletins clínicos, que o Ofendido não esteve em situação de perigo concreto para a vida e no facto de o arguido ter negado a intenção de matar o ofendido.
4- Em relação ao primeiro motivo- probabilidade que o arguido teria de não deslumbrar as zonas do corpo onde atingiu o ofendido por a companheira deste se encontrar interposta entre os dois a gesticular- jamais poderá a convicção do Julgador assentar numa mera probabilidade do arguido poder, em face da dinâmica dos acontecimentos, não ter vislumbrado as zonas do corpo onde de facto atingiu o Ofendido, por na ocasião a companheira deste se encontrar interposta entre os dois.
5- O Tribunal não pode alicerçar em meras conjunturas ou probabilidades uma decisão de não condenação do arguido pela prática do aludido crime de homicídio, até porque, essa probabilidade aventada pelo Tribunal a quo não resulta alicerçada em qualquer elemento probatório, mormente, nas declarações que o próprio arguido prestou em audiência de julgamento.
6- Da transcrição das declarações prestadas pelo arguido na sessão de julgamento de 3/4/2020- citadas na motivação deste recurso e que damos por integralmente reproduzidas- resulta inequívoco que o arguido viu quantos golpes desferiu no ofendido- quatro num total- como também viu as regiões do corpo onde atingiu o ofendido- tórax e abdómen.
7- Mesmo que em abstrato se admitisse como possível que o arguido pudesse não ter visualizado com clareza em que zonas do corpo atingiu o Ofendido- pela interposição da esposa do Ofendido entre ambos-, o certo é que, sempre teria o arguido que admitir como possível que, estando munido de uma faca de cozinha e investindo-a na direção do Ofendido, a um palmo de distância do Ofendido e este voltado de frente para si, ao desferi-lhe vários golpes, o pudesse atingir em algum órgão vital, conformando-se com o resultado que pudesse advir dessa conduta, mormente com a morte do Ofendido. Deste modo, sempre seria possível equacionar o cometimento do aludido crime de homicídio simples, na forma tentada, pelo menos, a título de dolo eventual.
8- A fundamentação usada pelo Tribunal a quo, para explanar o raciocínio a que chegou quanto à ausência de intenção de matar, não assenta em elementos probatórios que pudessem sustentar essa convicção, mas em meras suposições, probabilidades, hipóteses quanto àquilo que no entender do Tribunal a quo poderia ter ocorrido no local.
9- Também o segundo argumento invocado- por o ofendido, em face do exame médico-legal, não ter estado em situação de perigo concreto para a vida- demonstra que o raciocínio explanado pelo Tribunal a quo é falacioso.
10- Na verdade, dos registos clínicos e do exame médico-legal do Ofendido, conclui-se que o Ofendido, só não ficou numa situação de perigo concreto para a vida, porque foi medicamente assistido, com rapidez e de modo adequado- com a atribuição de prioridade vermelha no atendimento médico e com a cirurgia urgente a que foi submetido- e que logrou evitar a sua morte.
11- Os elementos clínicos juntos aos autos permitem concluir que o Ofendido, por via da perfuração abdominal que sofreu corria perigo para a vida, tanto assim, que foi de imediato naquele dia intervencionado cirurgicamente. E foi essa assistência médica que lhe foi prestada que evitou a sua morte, pois que, as lesões que lhe foram infligidas pelo arguido eram adequadas a causar esse resultado.
12- A conclusão médica a que chegaram os peritos médicos- de que o ofendido não ficou em situação de perigo concreto para a vida- não permite, sem mais, afastar a intenção que o arguido tinha de tirar a vida ao Ofendido.
13- Relevante para o preenchimento do crime de homicídio simples, na forma tentada, é que a morte não ocorra por razões alheias à vontade do arguido- como efetivamente sucedeu nos presentes autos-, sendo inócuo que, no caso em apreço, o Ofendido não tenha estado em perigo de vida.
14- Só poderíamos concluir pela não verificação do aludido crime se a conduta do arguido estivesse abrangida pelo n.º 3, do artigo 23.º, do Código Penal, que determina que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objeto essencial à consumação do crime.
15- No caso dos autos, nenhuma dessas razões se verificou, pois que, a faca usada pelo arguido é um meio idóneo, pela sua perigosidade, a causar a morte- tanto mais, que no caso em apreço foi usada a parte da lâmina para atingir o Ofendido- as zonas corporais atingidas- alojando órgãos vitais-, eram idóneas a causar a morte e existia o objeto essencial à consumação do aludido crime, pois que, à data dos factos, o Ofendido estava vivo.
16- Também o terceiro argumento invocado- inexistência de confissão por parte do arguido quanto à intenção de matar- não é suficiente para afastar a punição do arguido pelo crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual.
17- Não tendo o arguido reconhecido, nas declarações que prestou em audiência, ter tido a intenção de matar o Ofendido, esta intencionalidade terá forçosamente que ser extraída da conduta objetiva que o arguido adotou e que, analisada à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, nos permite concluir que o mesmo agiu, representando como possível vir a causar a morte do Ofendido, com o que se conformou, resultado que só não veio a ocorrer por circunstâncias alheias à sua vontade.
18- Á luz das regras da experiência comum é inequívoco que o arguido conhecia a perigosidade do instrumento com que se muniu e da sua adequabilidade para causar lesões e inclusive tirar a vida; sabia a curta distância que o separava do Ofendido; sabia que os golpes que desferisse a essa distância, pelo comprimento da lâmina, poderiam ter profundidade bastante para perfurar órgãos vitais e sabia que desferindo mais do que um golpe a potencialidade de causar a morte ao Ofendido, por poder acertar num órgão vital, seria maior.
19- Resultando provado que o arguido desferiu os golpes no Ofendido no momento em que tinha uma pessoa interposta entre ele e a vítima a gesticular teria, ainda assim, que inevitavelmente admitir, pela perigosidade da faca usada, pela curta distância em que se encontrava da vítima e pelo posicionamento frontal dessa vítima em relação a si, que pudesse atingir o Ofendido em algum órgão vital e causar-lhe a morte, resultado com o qual se conformou, pois que não cessou a sua conduta com o primeiro golpe que lhe desferiu.
20- Em face das regras de experiência e dos critérios lógicos, não se descortina qual o substrato racional que conduziu a que o Tribunal a quo formulasse a sua convicção quanto à mera intenção do arguido agredir o Ofendido, pois que, a prova produzida, que sustentou a factualidade dada como provada, impunha conclusão diversa, sendo a fundamentação do acórdão insuficiente para sustentar a decisão absolutória do arguido, quanto ao crime de homicídio simples, na forma tentada.
21- No entender do Recorrente, o acórdão recorrido padece do vício de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, previsto no art.º 410º nº 2 al. b) do C.P.P., impondo-se a sua revogação, pois que, a factualidade dada como provada nos pontos 3 a 7 mostra-se contraditória com a factualidade dada como provada no ponto 8 e, bem assim, com a factualidade dada como não provada na alínea d) dos factos não provados.
22- Perante a factualidade dada como provada nos pontos 3 a 7, impunha-se que o Tribunal a quo, no ponto 8 dos factos provados, viesse a concluir que o arguido ao agir do modo descrito admitiu como possível que com a sua conduta viesse a atingir o Ofendido na sua vida e conformou-se com o resultado da sua atuação, só não logrando a morte ocorrer por motivos alheios à sua vontade.
23- Toda a atuação levada a cabo pelo arguido e dada como provada nos pontos 3 a 7 descreve uma atuação levada a cabo com o intuito de causar a outrem a morte e não apenas lesões na sua integridade física.
24- Impunha-se que no facto provado 8, o Tribunal a quo concluísse que, em face da distância que separava o Ofendido do arguido- menos de um metro; estando o arguido munido de uma faca de cozinha- enquanto a vitima estava desarmada e agarrada pela esposa; estando o Ofendido posicionado de frente para o arguido; que ao desferir-lhe quatro golpes no momento em que a esposa do Ofendido se interpôs entre os dois e que vieram a atingir o Ofendido na região do tórax e do abdómen, o arguido admitiu como possível vir a atingir regiões do corpo do Ofendido que alojam órgãos vitais, representando como possível a morte do Ofendido, com o que se conformou, resultado que só não aconteceu por motivos alheios à sua vontade.
25- A conduta típica elencada na factualidade dada como provada nos pontos 3 a 7 integra os elementos objetivos do crime de homicídio simples, na forma tentada, sendo que essa factualidade contradiz a factualidade dada como provada no ponto 8 e não provada na alínea d) no que respeita ao elemento subjetivo típico daquele ilícito penal.
26- Considera o Recorrente padecer ainda o acórdão recorrido do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410º nº 1 al. c) do C.P.P., porquanto, a prova produzida em audiência, mormente as declarações prestadas pelo arguido; o depoimento prestado pelo Ofendido; os elementos clínicos juntos aos autos e o exame médico-legal, impunha que o Tribunal a quo concluísse que, ao atuar do modo que deu como provado nos pontos 3 a 7, o arguido admitiu como possível que pudesse vir a causar a morte ao Ofendido, conformando-se com tal resultado, que só não logrou concretizar-se por motivos alheios à sua vontade.
27- A factualidade dada como provada demonstra claramente que tendo a dada altura cessado as agressões físicas em que o Ofendido e o arguido se envolveram e tendo tido o arguido oportunidade de pôr termo à contenda, este, em vez de adotar essa conduta, decidiu perpetuar a mencionada contenda, intensificando-a, ao munir-se de uma faca de cozinha e ao regressar novamente ao hall de entrada onde se encontrava o Ofendido, formulando nessa ocasião uma nova resolução criminosa.
28- Nada justificava que naquele circunstancialismo, estando os interlocutores da contenda inicial já separados, o arguido recuasse para o interior da sua residência e dela voltasse a sair munido de uma faca reatando essa contenda. A decisão de retomar a contenda foi exclusivamente tomada pelo arguido que, naquele circunstancialismo, podia ter tomado outra opção- pura e simplesmente entrar na sua residência e fechar a porta da entrada pondo fim à contenda ou, na sua versão, não conseguindo fechar a porta, porque a sua esposa estava a impedir, refugiar-se num dos quartos da sua habitação e assim levar a que o Ofendido acabasse por se afastar. As lesões que o arguido causou no Ofendido não foram fruto de uma situação inevitável, com a qual o arguido foi confrontado e em relação à qual nada pôde fazer, mas antes, resultou de uma conduta que o próprio decidiu, no seu livre arbítrio, praticar.
29- Decidindo retomar a contenda, o arguido, sabendo que se encontrava numa posição de superioridade de meios em relação ao Ofendido- pelo uso de uma faca e por o Ofendido se encontrar impossibilitado de se defender, por ter a esposa interposta entre ele e o arguido- acabou por se aproveitar da posição passiva que o Ofendido assumiu, para investir contra ele a aludida faca e assim o golpear por quatro vezes indiferente ao local do seu corpo onde o viesse a atingir.
30- O Tribunal errou na apreciação que fez da prova produzida, mormente das declarações prestadas pelo arguido e do depoimento do Ofendido, pois que das mesmas é possível extrair a conclusão de que o arguido agiu, prevendo a morte do Ofendido e conformando-se com esse resultado típico, que só não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, e não apenas com a mera intenção de causar ferimentos na integridade física do ofendido.
31- Á luz das regras da experiência comum, dificilmente alguém que pretende apenas causar uma lesão na integridade física de outrem utiliza uma faca de cozinha para esse fim, tanto mais, que momentos antes tinha já estado envolvido em agressões físicas com a vítima e nada no circunstancialismo em que os factos ocorreram justificava que o arguido se munisse de um instrumento dotado dessa perigosidade, pois que, o Ofendido estava desarmado e a contenda física já tinha cessado; também não reitera a sua atuação desferindo vários golpes, bastando-se habitualmente com apenas um, e ditam essas regras que direciona esse instrumento para regiões corporais que sabe não alojarem órgãos vitais, escolhendo zonas corporais menos letais.
32- Os elementos clínicos e o exame médico-legal a que o Ofendido foi submetido, permitem concluir que as lesões sofridas pelo Ofendido foram profundas e dolorosas e determinaram uma intervenção cirúrgica urgente, com um período de internamento hospitalar de cerca de uma semana e demandaram no Ofendido pelo menos 82 dias de doença, com igual período de incapacidade profissional. Assim, até pelos dias de doença e de incapacidade que tais lesões causaram no Ofendido, teremos de concluir não se tratarem de lesões físicas superficiais, sem quaisquer consequências dolorosas, facilmente tratáveis sem assistência médica, mas antes, de lesões que demandaram urgência na assistência médica do Ofendido, de modo a não se consumar a sua morte.
33- O acórdão recorrido padece de erro de julgamento na matéria de facto dada como provada nos pontos 8 e 9 e não provada na alínea d), nos termos do art.º 412º, nº 3 e 4 do C.P.P., pois que, os elementos probatórios juntos aos autos e os produzidos em audiência, mormente, as declarações prestadas pelo arguido; o depoimento prestado pelo Ofendido; a prova documental e pericial junta aos autos, crítica e conjugadamente analisados, permitem concluir pela prática pelo arguido do mencionado crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual.
34- Nos termos do disposto no art.º 412º, nº 3 e 4 do C.P.P. consideram-se incorretamente julgados o ponto 8 dos factos provados: “Ao desferir os golpes com a faca da forma acima relatada, agiu o arguido com o propósito, concretizado, de agredir C…, afectando-o na sua integridade física”; o ponto 9 dos factos provados: “Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram punida pela lei penal” e a alínea d) dos factos não provados: “Ao desferir os golpes com a faca no corpo de C… o arguido elegeu as zonas que o atingiu – tórax e abdómen –, agindo o arguido com o propósito de causar a morte do mesmo, bem sabendo que a sua acção era adequada a produzir tal resultado, que apenas não ocorreu, por circunstâncias alheias à sua vontade”.
35- Assim, deverá ser corrigida a decisão proferida, de modo a que seja excluída da matéria de facto não provada a alínea d) e incluída na matéria de facto dada como provada o facto 8 com a seguinte redação: “Ao desferir quatro golpes com a faca, nos moldes dados como provados em 3 a 7, admitiu o arguido como possível que, estando a menos de um metro de distância do ofendido, e estando a esposa deste interposta entre ambos e a gesticular, viesse a atingir o Ofendido C… na região do tórax e abdómen, que alojam órgãos vitais suscetíveis de, uma vez atingidos, vir a causar a morte, e fê-lo através de um instrumento corto-perfurante que sabia ser igualmente adequado a causar a morte daquele Ofendido, resultado com o qual se conformou e que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultante da assistência médica prestada ao ofendido” e o facto 9, com a seguinte redação: “Ao atuar do modo descrito sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei”.
36- As declarações prestadas pelo arguido na sessão de julgamento de 3/4/2020- transcritas na motivação e que damos por integralmente reproduzidas- permitem concluir que o arguido ao atuar nos moldes descritos no ponto 3 dos factos provados formulou uma nova resolução criminosa, pois que, tendo recuando para o interior da sua residência, num momento em que já estava separado do Ofendido, teve a oportunidade de fechar a porta da sua residência ou, pelo menos, refugiar-se num dos quartos da sua habitação até o Ofendido se ausentar do local e cessar de vez a discussão. Todavia, decidiu adotar conduta diversa e munir-se de uma faca da cozinha, com cerca de 20 cm de lâmina, sair novamente da sua residência e dirigir-se ao Ofendido com o intuito de o atingir com esse instrumento.
37- Tais declarações permitem concluir que o arguido admitiu como possível que estando a uma curta distância do ofendido- a um “palmo”; com superioridade de meios- pois que sabia ter na sua posse um instrumento perigoso, enquanto o Ofendido estava desarmado e a ser agarrado pela esposa; estando o Ofendido posicionado de frente para si - expondo órgãos vitais do seu corpo; ao desferir no Ofendido quatro golpes num momento em que a esposa deste estava já interposta entre ambos, o podia atingir em algum órgão vital e de lhe vir a causar a morte, conformando-se com essa atuação.
38- E, tanto assim, que o Ofendido foi atingido na região do tórax e abdómen, o que obrigou a que fosse submetido a cirurgia de urgência, vindo a sofrer os ferimentos melhor descritos em 6 dos factos provados, lesões que determinaram 82 dias para a consolidação médico-legal, com igual período de afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.
39- Pese embora o arguido, nas declarações que prestou, não tenha admitido a intenção de matar o Ofendido, cremos, todavia, que das suas declarações resulta que teve o discernimento de entrar dentro da sua habitação e dela retirar uma faca e voltar a dirigir-se ao Ofendido com esse instrumento- instrumento que sabia ser perigoso, tanto assim, que era uma faca que habitualmente usava, não se tratando pois de um instrumento que o mesmo no decurso de uma contenda tivesse agarrado, sem sequer se aperceber das suas características letais ou de perigosidade; teve clara perceção da distância que o separava do Ofendido quando lhe desferiu os golpes- ou seja, com forte probabilidade iria atingi-lo com esse instrumento; teve noção da posição de inferioridade em que se encontrava o Ofendido quando avançou na direção deste- pois que o viu desarmado e a ser manietado pela esposa, o que associado a outras lesões que havia sofrido na sua integridade física, momentos antes, não deixariam de diminuir a sua capacidade de reação e de defesa; teve perfeita noção da posição em que se encontrava o Ofendido quando se aproximou deste com a faca- de frente para si, expondo desse modo o seu corpo e órgãos vitais e do número de golpes que desferiu no Ofendido- quatro, que se mostram manifestamente excessivos para se concluir por uma mera intenção de agredir fisicamente o Ofendido.
40- Todos esses fatores permitem-nos concluir que o arguido agiu admitindo como possível que viesse a causar a morte do ofendido, conformando-se com esse resultado típico, que só não ocorreu por motivos alheios à sua vontade e resultantes da assistência médica prestada ao Ofendido.
41- Também o depoimento prestado em audiência pelo Ofendido- cuja transcrição consta da motivação e que damos por integralmente reproduzido- confirma todo o contexto em que os factos ocorreram e mormente que este não adotou qualquer conduta que potenciasse, provocasse ou motivasse a resolução criminosa que o arguido tomou; corroborou que as lesões que lhe foram causadas na sequência da atuação do arguido foram graves, em face até do período de doença e de incapacidade para o trabalho- tanto assim, que a dor que sentiu o impediu de ser ele a providenciar o seu próprio socorro- depoimento que permite excluir a ligeireza e leveza dessas lesões, de modo a que a conduta do arguido se enquadrasse apenas no mero crime de ofensa à integridade física simples.
42- Também a prova documental, alicerçada nos registos clínicos do Ofendido, permite concluir pela profundidade dos golpes deferidos pelo arguido no Ofendido, em regiões corporais que alojam órgãos vitais, que determinaram a necessidade de uma intervenção cirúrgica urgente, que colmatasse a perfuração que o ofendido sofreu no abdómen, de modo a evitar hemorragias que lhe poderiam vir a causar a morte.
43- O presente recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127º do C.P.P. Todavia, afigura-se-nos que o Julgador não realizou uma análise ponderada da prova que foi produzida em audiência, mormente, no que respeita à prova documental, pericial e resultante das declarações prestadas pelo arguido e pelo ofendido, na formação da sua convicção quanto à intenção com que o arguido agiu, razão pela qual, se impõe-se a correção da matéria de facto dada como provada e não provada, nos moldes que acima deixamos explanados na conclusão 35, pois que, mostra-se incorretamente julgada nos pontos ali indicados.
44- Mantendo-se a factualidade dada como provada nos pontos 1 a 7 do aludido acórdão- que não nos merece qualquer reparo- e corrigindo-se apenas os pontos 8 e 9 dessa matéria de facto - nos moldes que acima deixamos propugnado- afigura-se-nos que a conduta do arguido deverá subsumir-se no crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 14º nº 3, 22º, 23º, 131º do Código Penal.
45- Em face da factualidade dada como provada, resulta que o arguido praticou atos de execução do mencionado crime de homicídio simples pois que levou a cabo atos que preenchem elementos constitutivos deste tipo legal de crime- golpeou o Ofendido em zonas corporais que alojam órgãos vitais passíveis, caso sejam alcançados, de provocar a morte e praticou atos idóneos a produzir o resultado típico morte- pois que se muniu de um instrumento que pela sua perigosidade de lamina era adequado a causar aquele resultado típico; desferiu mais do que um golpe na vítima, aproveitando o facto de a mesma estar de frente para si e a curta distância e admitiu que ao desferir os golpes, nos moldes em que o fez, viesse a atingir regiões corporais, como o tórax e o abdómen, que alojam órgãos vitais, suscetíveis, caso alcançados, de provocar a morte.
46- No caso em apreço, a morte não ocorreu e, portanto, não se verificou o resultado típico admitido pelo arguido. Todavia, esse resultado não foi alcançado, por o meio adotado pelo agente não ser idóneo a provocá-lo; porque o objeto da consumação do ilícito fosse inexistente ou porque o arguido praticou atos tendentes a evitar a consumação, mas antes, por motivos alheios à vontade do arguido e resultantes da assistência médica urgente prestada ao Ofendido.
47- Tendo o arguido representado a possibilidade de atingir o Ofendido na sua vida com os golpes que lhe desferiu e que apenas lhe causaram lesões físicas, pela pronta assistência que o ofendido recebeu, e tendo-se conformado com as consequências (o resultado produzido), porque se não absteve de agir, apesar da representação das consequências possíveis, forçosamente teremos de concluir que o arguido agiu, nas descritas circunstâncias dadas como provadas, com dolo eventual.
48- Em face dos factos provados é forçoso concluir que os mesmos permitem integrar a conduta do arguido no mencionado crime de homicídio simples, na forma tentada, com dolo eventual, e não apenas um mero crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º do Código Penal, porquanto o propósito do arguido não se limitava a atingir o Ofendido na sua integridade física, mas antes, agiu com dolo eventual relativamente ao possível homicídio que viesse a ocorrer e que só não se consumou, por circunstâncias externas à sua vontade, pugnando-se pela condenação do arguido em conformidade com esta subsunção jurídica dos factos ao direito.
49- Admitindo-se a procedência do recurso e a condenação do arguido pelo eventual crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelo arts. 22º, 23º e 131º do Código Penal, impõe-se forçosamente a sua condenação em pena de prisão, já que o mencionado crime não admite outra pena em alternativa.
50- O grau de culpa do arguido mostra-se elevado, pois que, embora não lograsse consumar o crime de homicídio, o arguido violou o bem jurídico mais importante do elenco dos direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto - o direito à vida.
51- No caso sub judice, as exigências de prevenção geral são elevadas considerando que o crime de homicídio, na forma tentada, atenta contra um dos bens jurídicos primordiais do nosso ordenamento jurídico, sendo altamente gerador de grande intranquilidade e insegurança públicas e alarme social, sobretudo, junto de meios pequenos como aqueles onde vivem o arguido e o Ofendido.
52- O acentuado acréscimo do cometimento de crimes que atentam contra bens jurídicos iminentemente pessoais, como foi o caso, sobretudo em contexto de relações de vizinhança, impõe que os tribunais adotem uma intervenção vigorosa no sentido da sua punição, por constituírem um dos crimes mais graves do nosso ordenamento jurídico-penal, sobretudo quando cometidos com recurso a instrumentos perigosos, como foi o caso do uso de uma faca - pelos efeitos devastadores que poderão ter muitas vezes na vida e integridade física de terceiros.
53- No caso em apreço, as exigências de prevenção especial mostram-se atenuadas considerando a ausência de antecedentes criminais do arguido; o arrependimento demonstrado e sobretudo o facto de atualmente o Ofendido e o arguido já não viverem no mesmo imóvel e não estabelecerem relações de vizinhança.
54- Por fim, ponderando as circunstâncias previstas no art.º 71º nº 2 do Código Penal não podemos esquecer o elevado grau de ilicitude com que o arguido pautou a sua atuação, considerando o meio empregue no seu cometimento- pois que, o arguido muniu-se de um instrumento particularmente perigoso como uma faca para atentar contra a vida do Ofendido; o número de golpes que lhe desferiu-quatro; o desequilíbrio de meios- pois que, o Ofendido estava totalmente desarmado quando foi atingido pelo arguido; as concretas lesões físicas e psicológicas que da conduta do arguido advieram para o Ofendido- considerando a necessidade de ser submetido a rápida intervenção cirúrgica para remover a perfuração sofrida no abdómen e assim evitar a sua morte e o período de doença e de incapacidade para o trabalho.
55- Ainda como circunstâncias a ponderar, temos o dolo com que atuou, na modalidade mais leve de dolo eventual e a conduta do arguido posteriormente à prática do mencionado ilícito, que se nos afigura ser reveladora da interiorização do mal causado, considerando a postura de arrependimento revelada em julgamento e a sua inserção familiar e social.
56- Considerando a moldura penal do crime de homicídio simples na forma tentada- pena de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 4 meses de prisão; o elevado grau de culpa do arguido; as fortes exigências de prevenção geral; as circunstâncias enunciadas pelo art.º 71º do Código Penal; mas sem esquecer também as atenuadas exigências de prevenção especial, motivadas pela postura de arrependimento demonstrada em julgamento pelo arguido, pela ausência de antecedentes criminais e pela sua boa inserção familiar, social e profissional, afigura-se-nos ser de pugnar por uma condenação do arguido em pena aproximada dos cinco anos de prisão.
57- Consequentemente, em face dessa pena, que entendemos por justa, adequada e necessária à satisfação das exigências da culpa e das necessidades de prevenção geral e especial, não nos repugna que possa ser equacionada uma eventual suspensão da execução da pena, por igual período, sujeitando-se o arguido ao cumprimento de um regime de prova e ao pagamento de uma quantia indemnizatória ao ofendido, nos termos do art.º 50º do Código Penal»

O arguido apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o acórdão recorrido padece de nulidade, por insuficiente fundamentação, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal;
- saber se o acórdão recorrido padece de contradição insanável da fundamentação, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, b), do mesmo Código;
- saber se o acórdão recorrido padece de erro notório da fundamentação, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do mesmo Código, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 14.º, b), 22.º e 23.º do Código Penal;
- caso se deve verificar tal condenação, qual a pena, e sua medida, a aplicar ao arguido.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(...)
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA

Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos (com exclusão das conclusões, das argumentações, das inocuidades, do direito, das menções aos meios de prova e das repetições de factos):
1) O arguido B… e a sua companheira D… eram vizinhos do casal E… e C…, todos residindo no edifício situado no n.º … da Rua …, Vila Nova de Gaia, aqueles na casa 1, no rés-do-chão, e estes na casa 3, no 1.º andar.
2) No dia 23 de Maio de 2019, pelas 21h25m, no hall de entrada daquele prédio e em frente à porta da habitação do arguido B…, este e C… envolveram-se numa troca de palavras e em agressões mútuas, por causa de problemas de vizinhança.
3) No decurso dessa contenda o arguido B… que se encontrava no hall de entrada, no exterior da sua habitação, afastou-se do ofendido C… recuando para o interior da sua habitação, de onde se muniu de uma faca de cozinha com cerca de 20 cm de lâmina, que se encontrava imediatamente ao lado da porta de entrada da sua habitação e regressou novamente ao hall de entrada.
4) De imediato avançou para o ofendido C…, que se encontrava desarmado, desferindo-lhe pelo menos quatro golpes, atingindo-o no abdómen, nos ombros e na zona lombar, enquanto simultaneamente a companheira do ofendido, E…, se interpunha entre os dois a gesticular com o intuito de impedir o arguido de continuar com as agressões, tendo o arguido provocado no ofendido C…: - um ferimento corto-perfurante com entrada no flanco esquerdo junto ao tórax com direcção para o centro, que originou a perfuração da parede do estômago; - dois ferimentos cortantes na zona posterior, um em cada ombro; - um ferimento corto-perfurante na zona lombar esquerda, com 3 cm de profundidade e com atingimento do plano muscular.
5) Durante o momento em que o arguido desferia os golpes com a faca em direcção ao ofendido C…, E… que se havia interposto entre os dois e a gesticular, em circunstâncias concretamente não apuradas, acabou por ficar ferida com um corte e fractura de um dedo da mão esquerda que lhe provocaram dores.
6) Em consequência da conduta do arguido, resultaram dores e as seguintes lesões no corpo de C…:
- no tórax: na face lateral do hemitórax esquerdo, ao nível da linha axilar anterior e do 9.º espaço intercostal, uma cicatriz rosada praticamente horizontal, com 2,5 cm de comprimento e com marcas de sutura equidistantes 1,5 cm, sem queloide; na face posterior do terço superior do hemitórax esquerdo, na transição para o membro superior esquerdo, uma cicatriz de 1 cm, rosada, sem queloide, obliqua, de orientação inferolateral;
- no abdómen: ao nível da linha alba, acima do umbigo, uma cicatriz rosada, vertical, com 11 cm de comprimento e 0,5 cm de maior largura, com ligeiro queloide e com marcas de sutura equidistantes 2 cm; na região lombar, à esquerda da linha média, uma cicatriz nacarada, oblíqua, com orientação supero-medial, com 2 cm de comprimento e com marca de sutura equidistantes 1,5cm;
- no membro superior direito: na face lateral do terço superior do braço, uma cicatriz rosada, sem queloide, com 1,5 cm de comprimento, marcas de sutura equidistantes 2 cm e orientação inferoposterior;
- no membro superior esquerdo: nos 2/3 superiores da face lateral do braço, três cicatrizes lineares, hipocrómicas e sem queloide, a mais superior com 1,5 cm de comprimento oblíqua infero-lateralmente, a outra mais abaixo com 1 cm de comprimento oblíqua infero-lateralmente e a mais inferior com 1 cm de comprimento, praticamente vertical. Sem limitações da mobilidade do ombro, com queixas dolorosas nos últimos graus de abdução e flexão. Tais lesões determinaram 82 dias para a consolidação médico-legal: 82 dias com afectação da capacidade de trabalho geral, dos quais 7 dias com afectação total e 82 dias com afectação da capacidade de trabalho profissional, dos quais 30 dias com afectação total.
7) Os ferimentos abdominais que o arguido causou a C… obrigaram a que o mesmo fosse sujeito a cirurgia de urgência.
8) Ao desferir os golpes com a faca da forma acima relatada, agiu o arguido com o propósito, concretizado, de agredir C…, afectando-o na sua integridade física.
9) Agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua condutas era punida pela lei penal.
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10) O arguido confessou parcialmente a sua apurada conduta, tendo manifestado arrependimento.
11) O arguido aos 18 anos concluiu no Brasil o segundo grau, equivalente ao ensino secundário no nosso país.
Entre os 18 e os 20 anos o arguido efectuou vários cursos na área da informática, que lhe deu acesso ao ensino superior no curso de enfermagem, tendo frequentado este curso 2/3 anos, que não concluiu.
Entretanto abandonou o curso superior e passou a trabalhar a tempo inteiro numa papelaria.
Em 2010 o arguido iniciou relação afectiva de namoro com a actual companheira e, em 2011, passou a viver em união de facto. Desta união têm uma descendente actualmente com 8 anos de idade.
Em Agosto de 2015 no âmbito do programa Erasmus a companheira do arguido veio para Portugal, inicialmente por um período de 6 meses, permanecendo o arguido e a descendente no Brasil.
Os progenitores do arguido faleceram em 2015.
Em Novembro de 2015 o arguido e a sua descendente vieram para Portugal passando desde então a residir em Portugal.
Em 2017 a irmã do arguido veio residir para Portugal, passando a integrar o agregado familiar do arguido.
Desde que se encontra em Portugal, o arguido tem desenvolvido várias actividades profissionais de forma irregular e sem qualquer vínculo contratual.
À data dos factos o arguido vivia com a companheira e a filha de ambos actualmente com 8 anos de idade e a sua irmã.
À data dos factos o agregado familiar do arguido subsistia com o valor de € 650 provenientes da actividade profissional da companheira na área da restauração, com a pensão no valor de € 1000 atribuída à irmã e com o montante mensal de € 1.200 provenientes de renda de dois apartamentos pertencentes ao arguido e à sua irmã. Entretanto, a pensão da irmã do arguido foi suspensa, mantendo-se os demais rendimentos até à presente data.
O agregado familiar do arguido tem como despesas mensais com a habitação cerca de € 600,00.
O arguido verbaliza a intenção de retomar os estudos e ingressar no mercado laboral na área da geriatria.
12) O arguido não tem antecedentes criminais.
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2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se provaram todos os demais factos constantes da acusação, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Deste modo, não se provou nomeadamente que:
a) As companheiras do arguido e de C…, E… e D…, intervieram e separaram-nos, pondo fim àquela contenda;
b) Ao ver que o arguido desferia golpes com a faca no seu marido, E… voltou a correr na direcção de ambos;
c) Apercebendo-se de tal intervenção e que E… se havia interposto entre os dois, o arguido desferiu-lhe um golpe na mão esquerda com a faca que consigo trazia, provocando-lhe fractura e ferimentos;
d) Ao desferir os golpes com a faca no corpo de C… o arguido elegeu as zonas que o atingiu – tórax e abdómen –, agindo o arguido com o propósito de causar a morte do mesmo, bem sabendo que a sua acção era adequada a produzir tal resultado, que apenas não ocorreu, por circunstâncias alheias à sua vontade; e) Ao fazer uso de tal instrumento, o arguido agiu com motivos fúteis e revelou frieza e crueldade;
f) O arguido agiu com o propósito alcançado de ofender o corpo e a saúde de E….
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3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
I- Dos Factos Provados
No que concerne aos factos provados o tribunal alicerçou-se nas regras de experiência comum, em conjugação com o conjunto da prova produzida, nomeadamente:
A) Nas declarações prestadas em audiência pelo arguido B… que confessou parcialmente os factos de que vinha acusado, designadamente, admitiu a discussão e o confronto físico com o ofendido C…, as agressões perpetradas por si com uma faca na pessoa de C…, tendo manifestado arrependimento dos seus actos.
De referir que as declarações prestadas pelo arguido quanto à autoria da primeira agressão não foram valoradas pelo tribunal. Com efeito, segundo a versão do arguido e da sua companheira, C… foi quem agrediu o arguido em primeiro lugar com um soco na face. Por seu turno, na versão de C… e da sua companheira aquele apenas desferiu um soco na face do arguido após este o ter empurrado e encurralado no hall de entrada contra a parede. Perante tais discrepâncias e não havendo qualquer outro meio de prova que permita corroborar alguma destas versões o Tribunal ficou com dúvidas sobre a autoria da primeira agressão, ou seja, quem iniciou a agressão física entre o arguido e C….
Quanto ao alegado golpe no pescoço do arguido desferido pelo C… o arguido referiu que quando este o abordou o mesmo não estava munido de qualquer instrumento e durante a contenda e já depois de ter sido agredido no pescoço apercebeu-se que C… trazia numa das mãos um objecto que não soube precisar em concreto de que instrumento se tratava. Porém, tais declarações do arguido não se mostram corroboradas por qualquer meio de prova quanto à autoria desse ferimento. De facto, dos registos clínicos de fls. 47, da fotografia de fls. 73 e do exame médico-legal de fls. 254-256 apenas resulta que o arguido apresentava um ferimento no pescoço, desconhecendo-se em que circunstâncias ocorreu tal ferimento. Por sua vez, C… apenas admitiu ter desferido um soco que atingiu o arguido, tendo negado estar munido de qualquer objecto. Acresce que, as testemunhas D… e E… não viram C… a agredir o arguido no pescoço e nem viram aquele munido com qualquer objecto.
Por seu turno, nem o arguido nem as testemunhas C…, D…. e E… reconheceram a faca de cabo preto encontrada no local como sendo de sua propriedade e também não foi vista por nenhum deles a ser utilizada aquando da contenda entre o arguido e C…. Assim, o tribunal não logrou apurar a origem da dita faca e quem ali colocou tal instrumento, sendo que do exame de fls. 228-229 apenas se conclui que de acordo com a análise de ADN obteve-se um perfil de maior contribuidor idêntico ao perfil do arguido.
Refira-se que a faca de cabo verde utilizada pelo arguido apresentava vestígios de sangue do arguido (cfr. exame pericial de fls. 228-229), pelo que, atenta a confusão gerada aquando da contenda entre o arguido e C… a dita faca de cabo verde poderia eventualmente ser responsável pelo ferimento no pescoço do arguido.
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B) Nos esclarecimentos prestados pelo perito F…, subscritor do relatório pericial de fls. 227-229, quanto à natureza dos vestígios detectados, ao local concreto onde foram recolhidos esses vestígios (cabo e lâmina da faca) e à explicação das expressões “perfil único idêntico” e “perfil de maior contribuidor idêntico” constantes no dito relatório.
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C) Nas declarações das seguintes testemunhas:
1) G…, inspector da P.J. que se deslocou ao local após os factos, tendo descrito de forma isenta, livre, pormenorizada e convincente o que viu no local – manchas hemáticas no interior e no exterior da habitação do arguido e duas facas. Mais esclareceu ter visto um ferimento no pescoço do arguido e um ferimento na mão da companheira de C… e descreveu fisicamente o local – hall de entrada e habitação do arguido.
2) C…, que de forma livre, consistente e credível relatou o confronto físico ocorrido com o arguido, as circunstâncias em que ocorreram as agressões perpetradas pelo arguido, as zonas do corpo atingidas com os golpes da faca desferidos pelo arguido e as lesões de que foi vitima.
De referir que o depoimento prestado pela testemunha C… quanto ao modo como se iniciou o confronto físico entre eles não foi valorado pelo tribunal. Com efeito, segundo a versão do arguido e da sua companheira, C… foi quem agrediu o arguido em primeiro lugar com um soco na face. Por seu turno, na versão de C… e da sua companheira aquele apenas desferiu um soco na face do arguido após este o ter encurralado no hall de entrada contra a parede. Perante tais discrepâncias e não havendo qualquer outro meio de prova que permita corroborar alguma destas versões o Tribunal ficou com dúvidas sobre a autoria primeira agressão, ou seja, quem iniciou a agressão física entre o arguido e C….
No que concerne ao local onde se encontrava a faca de que o arguido se muniu descrito pela testemunha C… – interior de uma gaveta do balcão da cozinha – o Tribunal também não valorou o depoimento da referida testemunha. De facto, o depoimento da referida testemunha, nesta parte, não se mostra corroborado por qualquer outro meio de prova: o arguido refere ter-se munido da faca que estava em cima do balcão, a companheira do arguido confirma a versão do arguido e a companheira de C… (que segundo C… se encontrava na altura atrás dele) não viu o local de onde o arguido retirou a dita faca. Perante tais discrepâncias o tribunal apenas logrou apurar com certeza que o arguido se muniu de uma faca que que se encontrava imediatamente ao lado da porta de entrada da sua habitação.
3) E…, companheira de C…, que de forma livre, consistente e credível relatou o confronto físico ocorrido entre o seu companheiro e o arguido, as circunstâncias em que ocorreram as agressões perpetradas pelo arguido e esclareceu de que modo ficou ferida durante a contenda entre o arguido e C….
De referir que o depoimento prestado pela testemunha E… quanto ao modo como se iniciou o confronto físico entre eles não foi valorado pelo tribunal. Com efeito, segundo a versão do arguido e da sua companheira, C… foi quem agrediu o arguido em primeiro lugar com um soco na face. Por seu turno, na versão de C… e da testemunha E… aquele apenas desferiu um soco na face do arguido após este o ter encurralado no hall de entrada contra a parede. Perante tais discrepâncias e não havendo qualquer outro meio de prova que permita corroborar alguma destas versões o Tribunal ficou com dúvidas sobre a autoria da primeira agressão, ou seja, quem iniciou a agressão física entre o arguido e C….
3) D…, companheira do arguido B…, que de forma livre e convincente relatou o confronto físico ocorrido entre o seu companheiro e C… e as circunstâncias em que ocorreram as agressões perpetradas pelo arguido.
De referir que o depoimento prestado pela testemunha D… quanto ao modo como se iniciou o confronto físico entre eles não foi valorado pelo tribunal. Com efeito, segundo a versão do arguido e da testemunha D…, C… foi quem agrediu o arguido em primeiro lugar com um soco na face. Por seu turno, na versão de C… e da sua companheira aquele apenas desferiu um soco na face do arguido após este o ter encurralado no hall de entrada contra a parede. Perante tais discrepâncias e não havendo qualquer outro meio de prova que permita corroborar alguma destas versões o Tribunal ficou com dúvidas sobre a autora da primeira agressão, ou seja, quem iniciou a agressão física entre o arguido e C….
4) H…, irmã do arguido, que prestou depoimento de forma isenta e credível quanto à personalidade do arguido.
5) I…, amigo do arguido que prestou depoimento de forma livre e convincente quanto à personalidade do arguido.
6) J…, amiga do arguido que prestou depoimento de forma isenta e credível quanto à personalidade do arguido.
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D) No teor dos seguintes documentos:
1) No documento de fls. 34 – relatório de episódio de urgência datado de 23.05.2019 respeitante a E….
2) No documento de fls. 35 – relatório de episódio de urgência datado de 23.05.2019 relativo a C….
3) No documento de fls. 36 – relatório de episódio de urgência datado de 23.05.2019 referente a B….
4) Nos registos clínicos de fls. 47 que descreve as lesões sofridas por B….
5) Nos registos clínicos de fls. 48-50 e 318-346 que descreve as lesões sofridas por C….
6) Nas fotografias tiradas a B…: - a fls. 73 que retrata uma lesão no pescoço; - a fls. 74 que retrata uma lesão no nariz; - a fls. 75 que retrata o lábio inferior interno e as mãos; - a fls. 76 que retrata as mãos.
7) No certificado de registo criminal de fls. 259 no que concerne à ausência de antecedentes criminais do arguido.
8) No relatório social de fls. 460-462 quanto às condições pessoais do arguido.
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E) No teor dos seguintes autos e relatórios periciais:
1) No relatório do exame pericial de fls. 12-31 que descreve o local dos factos como sendo um “pequeno hall de entrada com acesso às casas 1 e 2 sitas no r/c e uma escadaria de acesso à casa 3 no piso superior”.
No hall de entrada foram detectados.
- uma faca de cozinha de cabo preto no canteiro por baixo das escadas de acesso ao piso superior (cfr. fotografia de fls. 15, 18 e 21);
- salpicos hemáticos no chão, no centro do hall de entrada (cfr. fotografias de fls. 15 e 17);
- salpicos hemáticos na parede interior, do lado esquerdo da porta de entrada (cfr. fotografias de fls. 15 e 17);
- salpicos hemáticos no chão, em vários degraus da escada de acesso ao piso superior (cfr. fotografias de fls. 15, 18 e 19).
No interior da casa 1 foram detectados:
- um guardanapo de papel com vestígios hemáticos que se encontrava no balcão da cozinha junto ao lava-louça (cfr. fotografia de fls. 23);
- salpico hemático que se encontrava no chão à entrada da casa de banho (cfr. fotografia de fls. 24).
Foram ainda detectados:
- manchas hemáticas nos puxadores, interior e exterior, da porta da rua (cfr. fotografia de fls. 20);
- salpico hemático que se encontrava na parede do canteiro (cfr. fotografia de fls. 21);
- salpico hemático que se encontrava na parede do lado direito, junto à ombreira da porta, no inicio da escadaria (cfr. fotografia de fls. 22).
Nesse relatório consta ainda as seguintes fotografias:
- a fls. 25 que retratam uma faca de cozinha, de cabo plástico de cor verde e com lâmina com cerca de 20 cm;
- a fls. 26 que retratam uma faca de cozinha com cabo plástico de cor preta e com lâmina com cerca de 9 cm.
- a fls. 27 que retratam um blusão com capuz com manchas hemáticas de C…;
- a fls. 28 que retratam uma camisola tipo t-shirt com manchas hemáticas e cortes na zona frontal, inferior esquerda, e na zona traseira nas mangas e face inferior esquerda de C…;
- a fls. 29 que retratam um par de calças com manchas hemáticas na face frontal de C…;
- a fls. 30 que retrata um par de meias de C…;
- a fls. 31 que retrata um par de calçado de C….
2) No auto de apreensão de fls. 32 quanto à apreensão a C… de uma tshirt, um casaco com capuz, um par de sapatilhas, um par de meias e um par de calças.
3) No auto de apreensão de fls. 33 quanto à apreensão da faca com cabo verde e da faca com cabo preto.
4) No relatório pericial de fls. 228-229 que concluiu:
- no lenço de papel e na faca com cabo verde foram detectados vestígios de sangue;
- no lenço de papel e na faca, de acordo com a análise de ADN, obteve-se um perfil único idêntico ao perfil do arguido B…;
- na faca de cabo preto, de acordo com a análise de ADN, obteve-se um perfil de maior contribuidor idêntico ao perfil do arguido B…;
- no par de ténis, no par de calças e na t-shirt apreendidos, de acordo com a análise de ADN, obteve-se um perfil único idêntico ao perfil de C….
5) No relatório médico-legal de fls. 254-256 quanto à lesões sofridas pelo arguido B….
6) Nos relatórios médico-legal de fls. 264-267 e 405-408 quanto às lesões sofridas pelo ofendido C….
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II- Dos Factos Não Provados
a) No que concerne aos factos não provados sob as als. a) e b) ficou provado circunstancialismo diverso atentas as declarações do arguido em conjugação com os depoimentos das testemunhas supra identificadas, não tendo sido produzido qualquer meio de prova capaz de corroborar a factualidade em causa.
b) Quanto aos factos não provados sob as als. c) e f) o arguido C… negou ter agredido E…. Por seu lado, a testemunha C… explicou que E… estava entre ele o arguido e estes estavam quase corpo a corpo com a companheira entre os dois, tendo esta sido atingida por estar a tentar afastar o arguido para evitar que fosse agredido. Por sua vez, a testemunha E… confirmou que ficou entre o seu companheiro e o arguido e gesticulava por forma a evitar que o seu companheiro fosse agredido pelo arguido tendo nessas circunstâncias sido atingida num dedo da mão esquerda. Por seu turno, a testemunha D… referiu não ter visto E… a ser agredida pelo arguido.
Perante tais versões resulta de forma inequívoca que E… ficou efectivamente ferida durante a contenda física entre o companheiro e o arguido numa altura em que se encontrava entre os dois e o arguido desferia vários golpes com uma faca com o propósito de atingir fisicamente o C…. Porém, o Tribunal não logrou apurar com certeza as circunstâncias concretas em que E… foi agredida e que o arguido pretendia de facto molestar fisicamente E….
c) Relativamente aos factos não provados sob as als. d) e e) o tribunal teve em consideração desde logo as circunstâncias em que ocorreram as agressões perpetradas pelo arguido – arguido e ofendido estavam quase corpo a corpo e a companheira encontrava-se interposta entre os dois aquando dos golpes desferidos pelo arguido a gesticular por forma a evitar que C… fosse agredido pelo arguido; atenta a dinâmica dos acontecimentos o arguido provavelmente não conseguia deslumbrar as zonas do corpo onde de facto atingiu o ofendido por a companheira deste se encontrar interposta entre os dois e a gesticular; o ofendido C… não esteve em situação de perigo em concreto para a vida (veja-se relatório de exame médico-legal de fls. 405-408); o arguido negou ter a intenção de tirar a vida ao ofendido C….
Tudo ponderado e, à luz das regras de experiência comum, o tribunal concluiu de forma inequívoca que o arguido B… quando golpeou o ofendido C…, por várias vezes, tinha o propósito de o molestar fisicamente, mas não a intenção de o matar.
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IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o recorrente alegar que o acórdão recorrido padece de nulidade, por insuficiente fundamentação, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, a), e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e de contradição insanável da fundamentação, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, b), do mesmo Código.
No entanto, parece claro que o que é suscitado na motivação do recurso não tem a ver com alguma insuficiência ou contradição da fundamentação, mas com uma discordância em relação a tal fundamentação e, portanto, à decisão quanto à prova.
É essa discordância que será de seguida apreciada.
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso quanto a estas aspetos.

IV 2. –
Vem o recorrente alegar que o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do mesmo Código, devendo o arguido ser condenado pela prática de um crime de homicídio simples, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 14.º, b), 22.º e 23.º do Código Penal.
Alega o recorrente que não procedem as razões invocadas no acórdão recorrido para afastar a prova de que o arguido agiu com intenção de tirar a vida ao ofendido (ou admitiu tal possibilidade, conformando-se com ela): seria improvável que aquele tivesse vislumbrado as zonas do corpo do ofendido que atingiu, por a companheira deste se ter interposto entre os dois gesticulando; o ofendido não esteve numa situação de perigo concreto para a sua vida; o arguido negou a intenção de matar. Alega que o arguido afirmou (conforme declarações gravadas transcritas na motivação do recurso) ter visto as zonas do corpo do ofendido que atingiu e que, de qualquer modo, seria sempre de considerar que o arguido, ao desferir quatro golpes com uma faca de cozinha e a um metro de distância do ofendido, admitiu como possível (conformando-se com tal possibilidade) atingir zonas vitais do corpo do ofendido (tórax e abdómen) e, assim, causar a morte deste. Alega que o ofendido só não perdeu a vida porque, com uma perfusão abdominal, foi de imediato submetido a intervenção cirúrgica. Alega que a ausência de confissão do arguido é irrelevante para a prova da sua atuação dolosa quando esta se pode deduzir de dados objetivos e inequívocos como os que foram neste caso provados.
Vejamos.
Afigura-se-nos que assiste inteira razão ao recorrente.
A circunstância de a companheira do ofendido se ter interposto entre este e o arguido gesticulando não impede que este, a um metro de distância, tenha, pelo menos, admitido como possível atingir as zonas do corpo que atingiu (o tórax e o abdómen), conformando-se com tal possibilidade. Na verdade, não foi certamente por acaso que foram essas as zonas do corpo atingidas.
Estamos perante zonas do corpo vitais (o tórax e o abdómen). O instrumento utilizado (uma faca de cozinha com cerca de 20 cm de lâmina) propicia golpes profundos. Os ferimentos causados exigiram uma intervenção cirúrgica urgente sem a qual seria provável a morte do ofendido. De tudo isto não poderá ter deixado de se aperceber o arguido.
Acresce que o arguido não se limitou a desferir um único golpe, mas desferiu quatro golpes sucessivos. Este facto revela, por um lado, que era amplo o leque de possibilidades de serem atingidas zonas do corpo vitais (e dessas possibilidades não poderá o arguido ter deixado de se aperceber). E tal facto é, por outro lado, sinal mais evidente de conformidade com a possibilidade de serem atingidas essas zonas do corpo e, desse modo, ser causada a morte do ofendido
Perante estes dados objetivos, as regras da lógica e da experiência comum, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõem a conclusão de que o arguido, ao desferir os quatro golpes que desferiu, admitiu como possível que eles viessem a causar a morte do ofendido, conformando-se com tal resultado.
Assim, e na linha do que é sugerido pelo recorrente, o ponto 8 do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido deverá passar a ter a seguinte redação:
«Ao desferir os quatro golpes acima referidos, admitiu o arguido como possível que viesse a atingir C… na região do tórax e abdómen e que, dessa forma, viesse a causar a morte deste, resultado com o qual se conformou e que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultantes da assistência médica que a este foi de imediato prestada».
A factualidade provada integra, assim, a prática, pelo arguido, de um crime de homicídio simples, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 14.º, b), 22.º e 23.º do Código Penal.
Pelas razões já indicadas no acórdão recorrido, não se verificam factos integradores das alíneas e) e h) do n.º 2, do Código Penal, pelo que não deverá ser o arguido condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º; 132.º, n.º 1 e 2, e) e h); 22.º e 23.º do Código Penal, por que vinha acusado: Não se tendo apurado com exatidão os motivos da atuação do arguido, não pode dizer-se que tenha atuado por motivo torpe ou fútil (alínea e)). O instrumento utilizado não será particularmente perigoso (alínea h)), no sentido em que será mais perigoso do que os que são habitualmente utilizados para a prática do crime de homicídio (mas o mesmo não poderá dizer-se em relação aos instrumentos habitualmente utilizados para a prática de crimes de ofensa à integridade física, pelo que, ainda que não se considerasse estarmos perante uma tentativa de homicídio, sempre estaríamos, ao contrário do que se sustenta no acórdão recorrido, perante um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 145.º, n.ºs 1 e 2, e 132.º, n.º 2, e), do Código Penal, crime de natureza pública).
Há que salientar que a jurisprudência vem considerando (na esteira de Figueiredo Dias e contra a opinião da Faria Costa) que são compatíveis a tentativa e a atuação com dolo eventual (ver, neste sentido, entre outros, os acórdãos do Supremo tribunal de Justiça de 10 de novembro de 1993, in C.J.-S.T.J. 1993. III, pgs. 228 e segs, e de 2 de abril de 2009, proc. n.º 08P3277, relatado por Souto Moura, in dgsi.pt, e os acórdãos desta Relação de 25 de fevereiro de 2004, proc. n.º 0344749, relatado por Isabel Pais Martins, de 20 de outubro de 2004, proc. n.º 0413680, relatado por Élia São Pedro, e de 2 de junho de 2013, proc. n.º 267/05.5GBMBR.P2, relatado por Maria dos Prazeres Silva). Na verdade, a “decisão” de cometer o crime, a que se reporta o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal quando define a tentativa, é compatível com qualquer das modalidades de dolo e, portanto, também com a decisão de se conformar com o resultado própria do dolo eventual; este também implica, como as outras modalidades de dolo, representação e vontade, mesmo que esbatidas ou enfraquecidas.
Deve, assim, ser dado provimento ao recurso.

IV 3. –
Tendo em conta o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2016, há que determinar nesta sede a pena a aplicar ao arguido.
Alega o recorrente que o arguido deverá ser condenado em pena próxima (mas não superior) a cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova e obrigação de pagar ao ofendido uma indemnização.
O crime por que o arguido vai condenado, de homicídio simples na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 22.º, 23.º e 73.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de um ano, sete meses e seis dias de prisão a dez anos e quatro meses de prisão.
À luz do que dispõe o artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, considerando, como circunstâncias agravantes, a gravidade das lesões sofridas pelo ofendido, os períodos de doença e incapacidade para o trabalho também por este sofridos, a perigosidade do instrumento utilizado, o desequilíbrio de meios (o ofendido estava desarmado) e o facto de arguido ter desferido quatro golpes; e, como circunstâncias atenuantes, o contexto conflitual em que surge a conduta do arguido (depois da prática de agressões recíprocas), a atuação com dolo eventual, o arrependimento (apesar de o arguido não confessar a atuação dolosa quanto ao homicídio, não deixou de manifestar arrependimento pela sua atuação enquanto ofensa à integridade física), a ausência de antecedentes criminais e a inserção familiar e social, entende-se adequado fixar a pena a aplicar ao arguido em cinco anos de prisão.
Considerando, em especial, o arrependimento manifestado pelo arguido e a ausência de antecedentes criminais, pode considerar-se que a censura do facto e ameaça de tal pena serão suficientes para afastar o arguido da prática de futuros crimes. Não se nos afigura que as exigências de prevenção especial justifiquem a sujeição do arguido a regime de prova. Afigura-se-nos, porém, que as exigências de prevenção geral exigem que a suspensão da execução da pena seja condicionada ao pagamento ao ofendido de uma indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes da prática do crime, na fixação de cujo montante se tem em conta a algo precária situação económica do arguido. Assim, deverá a pena a aplicar ao arguido ser suspensa na sua execução, com a condição de pagamento ao ofendido, no prazo de três anos, a título de indemnização de danos não patrimoniais, da quantia de cinco mil euros (artigos 50.º, n.ºs 1 e 2, e 51.º, n.º 1, do Código Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público
Determinam que o ponto 8.º do elenco dos factos provados constante do acórdão recorrido passe a ter a seguinte redação:
«Ao desferir os quatro golpes acima referidos, admitiu o arguido como possível que viesse a atingir C… na região do tórax e abdómen e que, dessa forma, viesse a causar a morte deste, resultado com o qual se conformou e que só não ocorreu por circunstâncias alheias à sua vontade resultantes da assistência médica que a este foi de imediato prestada».
Condenam o arguido B…, pela prática de um crime de homicídio simples, com dolo eventual, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 14.º, b), 22.º, 23.º e 73.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de cinco (5) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de este pagar ao ofendido C…, no prazo de três (3) anos, a título de indemnização de danos não patrimoniais, a quantia de cinco mil euros (5.000 €).

Notifique.

Porto, 28/10/2020
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo (não assina por não estar presente. Atesta o seu voto em conformidade nos termos do artigo 15º-A do Decreto Lei nº 20/2020 de 1/5)