Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4969/17.8T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
JUSTA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201809274969/17.8T8OAZ.P1
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÕES EM PROCESSO COMUM E ESPECIAL
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 146, FLS 24-30)
Área Temática: .
Sumário: I - A expropriação predial, em qualquer das suas modalidades, apenas tem lugar quando ocorra: (i) a previsão legal da expropriação, sendo esta preliminar ao acto expropriativo; (ii) o pagamento de uma justa indemnização, conducente à estabilidade da expropriação.
II - O direito a uma justa indemnização surge com a declaração de utilidade pública, mormente quando esta é seguida da correspondente posse administrativa.
III - Tratando-se de uma expropriação parcial, em que ocorreu o fracionamento ou desmembramento do prédio primitivo, o titular do respectivo direito de propriedade apenas tem o direito a uma justa indemnização por via do acto expropriativo, enquanto relativamente à parcela sobrante mantém o seu domínio jurídico e de facto (direito de propriedade).
IV - Havendo desmembramento do prédio primitivo, os direitos que incidem sobre a parcela expropriada e a parcela sobrante passam a ter plena autonomia. Assim e se depois da declaração de utilidade pública, ocorrer a tradição jurídica, por via negocial ou executiva, da parcela sobrante, o direito de propriedade que incide sobre esta, não abrange o direito a ser indemnizado pela expropriação daquela outra parcela, porquanto o proprietário da parcela sobrante não teve qualquer dano de expropriação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 4969/17.8T8OAZ.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjuntos: José Manuel de Araújo Barros; Filipe Caroço

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
1. No processo n.º 4969/17.8T8OAZ do Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis, J2, da Comarca de Aveiro, em que são:

Recorrente/Requerente: B...

Requeridos: C... e D...
Expropriante: Infraestruturas de Portugal

foi proferida decisão em 19/mar./2018, a fls. 19-23v, que julgou improcedente o incidente de titularidade de indemnização, não reconhecendo o requerente como titular desse direito, sustentando que a transferência do direito de propriedade para o expropriante ocorre com o despacho de adjudicação, só nesse momento se consumando a expropriação, pese embora a DUP constituir um acto essencial ou basilar da expropriação, pelo que o titular do direito de indemnização é o proprietário do prédio à data da adjudicação.
2. O interveniente interpôs recurso em 09/abr./2018, a fls. 25-30 pugnando pelo seu provimento, apresentando conclusões, que se resumem nas seguintes:
1) O recorrente requereu, no processo de expropriação intentado pela Infraestruturas de Portugal, S.A., a abertura do incidente respeitante à titularidade da indemnização por entender que a mesma lhe era devida (1 I parte)
2) Com efeito, ainda que, o despacho de adjudicação da parcela só tenha ocorrido em 14.12.2017, certo é que à data da DUP e da posse administrativa, a qual ocorreu em início de 2007, o aqui recorrente era o proprietário da parcela expropriada (1 II parte, 16)
3) Com a posse administrativa, ocorrida em início do ano de 2007, foi edificada uma rotunda e passeios e o prédio passou a ter uma configuração própria e notoriamente visível resultante dessa delimitação por passeios, como resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida (2, 5, 6)
4) É esse prédio, com essa configuração, delimitado por passeios e servido por uma rotunda, que é publicitado no momento da venda pelo Serviço de Finanças (órgão executivo e entidade exequente) (7)
5) Na venda judicial os bens são vendidos tal qual se apresentam e sem garantias, cabendo aos compradores, antes de qualquer proposta, verificar as condições em que os mesmos se encontram e só excecionalmente, quando as limitações do bem judicialmente vendido excedam os limites normais inerentes a direitos da mesma categoria, é que a venda executiva poderá ser anulável por erro ou dolo (cfr. art. 905º do CC) (7,8)
4) O recorrente entende que, não obstante a inércia da entidade expropriante que fez perdurar um processo de expropriação por mais de 10 anos, não se vislumbra fundamento legal para que a indemnização não lhe seja atribuída, ainda que o prédio, do qual foi destacada a parcela expropriada, tenha sido vendido ao recorrido em processo de execução fiscal em 05.06.2014 (3, 4, 17)
5) Neste caso, o comprador e atual proprietário (recorrido), definiu o seu interesse e formou a sua vontade em adquirir o prédio a partir das características notórias e evidentes que o mesmo em 2014 e desde 2007 apresentava quanto à sua delimitação e configuração, as quais resultaram da construção dos passeios envolventes (10)
6) O recorrente juntou aos autos o anúncio de venda publicado pelo aludido Serviço de Finanças e em momento algum é feita qualquer referência à existência de um crédito por expropriação (razão pela qual, um terreno com cerca de 29.000,00 m2, destinado a construção, foi vendido por menos de €65.000,00, preço que seria completamente desajustado em face da indemnização de cerca de €38.000,00, aqui em causa) (11)
7) Atendendo ao disposto no art. 823º do CC, o que poderia ter sucedido se o Serviço de Finanças, no momento da penhora/venda, tivesse apurado da existência do aludido crédito indemnizatório por expropriação, seria ter procedido à penhora do mesmo como forma de garantia e pagamento da quantia exequenda e nunca ter vendido o prédio com o aludido direito subentendido (12)
8) Neste sentido, importa, ainda, esclarecer, que, conforme decorre da certidão predial junta aos autos, o arresto registado sobre o imóvel em 12.01.2007 a favor da Fazenda Nacional nada tem a ver com a execução fiscal que veio a ser intentada em 2014 e no âmbito da qual o imóvel foi vendido, pois esse arresto respeita a um outro processo executivo, no qual foi deduzida oposição judicial que veio a ser julgada procedente (13)
9) Embora a DUP não transfira a propriedade dos bens para a entidade beneficiária, certo é que ela consiste no facto constitutivo da relação jurídica de expropriação. Tal declaração representa o ato fundamental ou essencial do respetivo processo expropriativo, já que por via dela os direitos do proprietário ficam reduzidos, perdendo ele o direito de disposição, pois fica logo vinculado à obrigação ou dever de transferir os bens para o expropriante (14, 15)
10) No presente caso, o efetivo expropriado foi o aqui recorrente, pois, foi ele quem, em 2007, com a DUP e a posse administrativa, viu os seus direitos de proprietário e legitimo possuidor efetivamente coartados e reduzidos, perdendo logo, naquela altura, o direito de dispor sobre a parcela expropriada (17)
11) O atual proprietário só depois de ter comprado o prédio em execução fiscal e de ter liquidado o preço que reputou por justo e conveniente é que foi surpreendido com um crédito do valor de cerca de €38.000,00 (o qual representa mais de metade do preço que pagou pela totalidade dos 29.000m2 do imóvel) (18)
12) O recebimento deste valor pelo atual proprietário não tem qualquer fundamento ou causa justificativa, pois este nunca foi coartado ou privado em quaisquer direitos. Com efeito, o seu direito de propriedade sobre o aludido imóvel já foi adquirido nos precisos termos em que se mantém (ou seja, sem a parcela expropriada de 300 m2) (19)
13) Foi o recorrente e não o atual proprietário do prédio quem sofreu o sacrifício inerente ao ato da declaração de utilidade pública, pelo que o recebimento da quantia indemnizatória por parte deste constituiria um locupletamento injustificado e um verdadeiro abuso de direito, manifestamente adverso ao princípio da boa-fé, dos bons costumes e da ordem pública (20)
14) Com efeito, ao arrogar-se como titular do direito de indemnização, por efeitos da adjudicação expropriativa ter sido realizada em data na qual era já o proprietário legal do imóvel do qual foi destacada a parcela expropriada, o recorrido exerce um direito que, sendo válido em tese geral aparece, todavia, exercitado em termos claramente ofensivos da justiça e dos bons costumes, pelo que a atribuição da indemnização ao novo proprietário constituiria um abuso de direito (5, 21)
15) O recorrente entende que a sentença recorrida não está conforme as normas e os princípios de direito e viola os artigos 334º, 823º e 905º do Código Civil e o artigo 53º do Código das Expropriações (22).
3.1 O interveniente tinha deduzido o incidente respeitante à titularidade da indemnização decorrente da expropriação da parcele do terreno em causa, com base no artigo 53.º, n.º 2 do Código das Expropriações e sustentando a factualidade anteriormente referenciada.
3.2 Os actuais proprietários e recorridos contestaram invocando, em suma, que adquiriram o terreno em causa em 14 de abril de 2014 no âmbito do processo de execução fiscal, mais precisamente o prédio inscrito na matriz predial urbana n.º 1540, com a área de 20.000 m2, tendo sido em 28 de dezembro de 2017 adjudicado à Infraestruturas de Portugal 300 m2 desse mesmo terreno, de que o mesmo tinha pago nessa execução, sendo ele o seu proprietário, mais acrescentando que o valor desse prédio foi fixado de acordo com o artigo 250.º, n.º 1, al. a) e n.º 4 do Código de Procedimento e Processo Tributário, invocando ainda o disposto nos artigos 823.º e 824.º do Código Civil.
4. Os recorridos não apresentaram contra-alegações, tendo o recurso sido autuado em 28/jun./2018, não existindo questões prévias ou incidentais que obstem ao seu conhecimento, tendo-se cumprido os vistos legais.
*
A questão suscitada em recurso diz respeito à determinação da titularidade pela indemnização da expropriação aqui em causa (a) e se esta for atribuída aos agora identificados como expropriados, se tal configura uma situação de abuso de direito (b).
*
* *
II. FUNDAMENTOS
1. Factos a considerar
1) Por despacho n.º 4205-M/2006, publicado no Diário da República n.º 37, II Série, de 21/02/2006, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de uma parcela com a área de 734 m2, a destacar do prédio urbano, com a área de 29.000m2, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Oliveira de Azeméis, inscrito na respectiva matriz rústica sob o artigo 244.º (actual artigo 1540.º) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis com o n.º 151, por ser necessária à execução da obra da EN... – construção de rotunda ao quilómetro ....
2) Em 17/01/2007, a expropriante desistiu parcialmente da expropriação, reduzindo a área a expropriar para 300m2.
3) O processo de expropriação foi remetido a tribunal em 14/12/2017.
4) O despacho de adjudicação da parcela expropriada – descrita em 1) e 2) - à expropriante foi proferido em 18/12/2017.
5) À data da DUP B... figurava no registo predial como proprietário do prédio.
6) No início do ano de 2007, a entidade expropriante tomou posse administrativa da parcela de terreno identificada em 1) e 2).
7) Nessa data construiu uma rotunda e edificou passeios.
8) O ora requerente interveio na fase amigável do processo de expropriação.
9) Em 12/01/2007, foi registado um arresto sobre o dito prédio a favor da Fazenda Nacional.
10) Mediante a Ap. 1202 de 2014/04/15, o prédio em causa encontra-se descrito a favor de D..., por adjudicação em processo de execução fiscal n.º 0132200901018329, que correu termos no Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis.
11) Mediante a Ap. 575 de 2014/06/05, encontra-se descrita a aquisição de ½ do prédio a favor de C..., por compra a D....
12) Aquando da aquisição do prédio por D... o mesmo apresentava-se com a configuração e área que em 2007 resultaram da tomada de posse administrativa.
13) D... adquiriu o prédio descrito em 1) e o prédio com o artigo matricial n.º 475, no âmbito da mesma execução fiscal, pelo preço de €61.501,01.
*
2. Fundamentos do recurso
Tratando-se de um incidente sobre as dúvidas da titularidade de direitos contemplado no artigo 53.º, do Códigos das Expropriações, consideramos, como tem sido entendido pela jurisprudência, tratar-se de um procedimento sumário, cuja decisão tem um carácter provisório (Ac. STJ de 14/11/2006, Cons. Salreta Pereira, www.dgsi.pt). Apesar dessa marca descerimoniosa e transitória na averiguação da titularidade do direito de propriedade, não pode o tribunal cair ou deixar-se arrastar para uma decisão non liquet, porquanto está obrigado a julgar (8.º, n.º 1 Código Civil). E isto apesar da questão aqui em apreço revelar-se de alguma complexidade, que não podemos ignorar, mas que não podemos deixar de enfrentar.
a) Determinação da titularidade pela indemnização da expropriação
A Constituição estabelece no seu artigo 62.º, n.º 1 que “A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição”, acrescentando-se no seu n.º 2 que “A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”. Daqui decorre o reconhecimento constitucional do direito de propriedade privada, no âmbito dos direitos económicos, assumindo o mesmo uma nítida função social (62.º, n.º 2 Const.), proporcionando ainda a iniciativa económica privada (61.º, n.º 1 Const.). Daqui decorre que a expropriação, apenas tem lugar quando ocorram dois pressupostos: (i) a previsão legal da expropriação, sendo esta preliminar ao acto expropriativo; (ii) o pagamento de uma justa indemnização, conducente à estabilidade da expropriação.
Por sua vez, aos direitos fundamentais sociais em sentido amplo, abrangendo o direito à propriedade privada, e desde que o mesmo tenha uma natureza análoga aos direitos liberdades e garantias, sejam os pessoais, de participação política ou dos trabalhadores, como aqui sucede, aplica-se o regime jurídico-constitucional destes últimos (17.º Const.). Neste regime, no que concerne à sua força jurídica, através da sua vinculação, estipula-se que os direitos fundamentais são directamente aplicáveis, vinculando as entidades públicas e privadas (n.º 1). Por sua vez e no que concerne à preservação do seu conteúdo, estipula-se nesse mesmo artigo 17.º da Constituição, que os direitos fundamentais apenas podem ser restringidos por lei, devendo esta “limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (n.º 2), revestindo-se de carácter geral e abstracto, não podendo ter efeito retroactivo, “nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (n.º 3). Para o efeito, no âmbito dos direito fundamentais e de modo a manter essa sua “dimensão necessária e essencial”, podemos sustentar uma aproximação absoluta (i), de modo a preservar o seu núcleo central, podendo limitar-se a sua envolvente acessória, relativa (ii), onde se procura a ponderação das colisões, recorrendo-se usualmente a um teste de proporcionalidade para se aferir os limites da restrição ou do sacrifício desse direito em confronto com o direito concorrente. Mas também podemos ter uma aproximação mista ou híbrida, mediante a qual muito embora se reconheça uma esfera essencial e outra acessória, sujeita-se a restrição ou mesmo a supressão a uma valoração ponderativa, sendo mais exigente quando nos aproximamos da sua centralidade, sendo neste sentido que a Constituição parece apontar através deste mesmo artigo 17.º, mormente o seu n.º 2 e 3.
Deste modo, a leitura do regime legal do direito de propriedade, regulado pelos artigos 1302.º e ss. do Código Civil, deve enquadrar-se naquele quadro constitucional. Por sua vez, tal direito tem as características de absoluto (1311.º Código Civil), pleno (1305.º Código Civil), tendencialmente perpétuo (1313.º Código Civil), face à propriedade espácio-temporal e à multi-propriedade (v.g. Decreto-Lei 257/93, de 05/ago. – direito real de habitação periódica) e elástico, ainda que sujeito a um numerus clausus (1306.º Código Civil). Afigura-se-nos, no entanto, que temos ainda de atender a outras características, como a mutabilidade, como sucede, como precisaremos mais à frente, com as operações de reestruturação da propriedade, através do seu fraccionamento, emparcelamento e reparcelamento, desde logo previsto no Código Civil para os prédios rústicos (1376.º), mas também noutros diplomas (162.º do Decreto-Lei 80/2015, de 14/mai.), e da reversão (5.º Cod. Expropriações), em que, neste último caso, o direito de propriedade renasce das cinzas. No que concerne ao seu conteúdo destaca-se que confere ao seu titular poderes de uso (ius utendi), fruição (ius fruendi) e de disposição (ius abutendi), sempre dentro dos parâmetros da legalidade (1305.º Código Civil). Deste modo, a noção legal do direito de propriedade do Código Civil tem uma raiz nitidamente subjectiva, porquanto parte exclusivamente dos poderes ou faculdades atribuído ao seu titular em relação ao bem que é objecto desse direito.
O mesmo Código Civil, no seu artigo 1308.º sob a epigrafe Expropriações, estabelece que “Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados por lei”, acrescentando no seu artigo 1310.º que “Havendo expropriação por utilidade pública ou particular ou requisição de bens, é sempre devida indemnização adequada ao proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afectados”.
O instituto das expropriações encontra-se essencialmente regulado no Código das Expropriações (Lei 168/99, de 18 set., sendo a última alteração com a Lei 56/2008, de 04/set., integrando a sua republicação – DR I, n.º 171). Mas também surge contemplado noutros regimes, como no Regulamento Geral das Edificações Urbanas (Decreto-Lei n.º 38.382, de 07/ago./1951 – DG I, n.º 166) nos casos de reconstrução, remodelação, beneficiação ou demolição (artigo 11.º), na Lei de bases gerais da política de solos, de ordenamento do território e de urbanismo, instituída pela Lei n.º 31/2014, de 30/mai. (DR I, n.º 104), para a prossecução dessas finalidade públicas (artigo 34.º), bem como, no desenvolvimento destas políticas, nos instrumento de execução dos planos (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14/mai. – DR I, n.º 93), mais precisamente para a execução dos programas e planos territoriais, realização de intervenções públicas e instalações de infraestruturas, equipamentos de utilidade púbica (artigo 159.º). A expropriação, atenta as suas consequências legais, é um acto de supressão (1.º e 3.º Código Expropriações), que pode ser integral (expropriação plena) ou fragmentária (expropriação parcial), ou de limitação (8.º Código Expropriações – servidões administrativas), mediante contrição (expropriação sacrifício ou expropriação particularmente gravosa) do direito de propriedade, eliminando ou restringindo o seu conteúdo essencial, tanto ao nível do respectivo domínio jurídico, como no correspondente domínio de facto.
Deste modo, o acto expropriativo conduz a que o titular do direito de propriedade deixe integralmente de dispor das suas faculdades de uso, fruição e disposição, o que tanto sucede em relação à expropriação total, como parcial. No entanto, no caso desta última, na sequência do fraccionamento ou desmembramento do prédio primitivo, por via daquele acto administrativo, o proprietário da parcela não expropriada mantém, quanto a esta, o domínio jurídico e de facto desse prédio. Por sua vez, em relação ao prédio expropriado e como contrapartida, confere-se ao titular do direito de propriedade atingido com a expropriação, o direito a ser indemnizado ou compensado, que será assegurado pela entidade expropriante e garantido pelo Estado (23.º, n.º 1 e 6 do Código das Expropriações). Esta indemnização ou compensação não deixa de ter subjacente a ideia da responsabilidade civil por acto lícito e da existência de um dano lícito.
O Código das Expropriações, através do seu artigo 9.º, n.º 1, tem um conceito abrangente de interessado, considerando como tal, para “além do expropriado, os titulares de qualquer direito real ou ónus sobre o bem a expropriar e os arrendatários de prédios rústicos ou urbanos”, acrescentando no seu n.º 3 que “São tidos por interessados os que no registo predial, na matriz ou em títulos bastante de prova que exibam figurem como titulares dos direitos a que se referem os números anteriores ou, sempre que se trate de prédios omissos ou haja manifesta desactualização dos registos e das inscrições, aqueles que pública e notoriamente forem tidos como tais”. E confere legitimidade processual para intervir no processo à entidade expropriante, ao expropriado e demais interessados (40.º, n.º 1 Código das Expropriações). Assim, em regra, a relação jurídica expropriativa (substantiva) é triangular, porquanto para além do expropriado e da entidade expropriante ou beneficiária, temos o Estado, enquanto a relação processual da expropriação pode ser plural.
*
Depois desta breve itinerário sobre o quadro jurídico constitucional e legal do direito de propriedade e a sua constrição total ou parcial mediante a expropriação, importa perguntar quando é que o proprietário perde o domínio jurídico e de facto da sua “propriedade”, ficando as suas faculdades de uso, fruição e disposição completamente vazias (i), e surge na sua esfera jurídica o direito a ser indemnizado, pois só assim podemos saber quem é o interessado a ser ressarcido (ii).
No delineamento seguido pelo Código das Expropriações podemos constatar que o início da resolução de expropriar surge com a declaração de utilidade pública, senda esta fundamentada (10.º Código das Expropriações), possibilitando, se existir carácter de urgência para obras de interesse público, a posse administrativa dos bens expropriados (15.º, n.º 1 e 2; 19.º a 22.º Códigos das Expropriações). Por sua vez, a data da publicação da declaração de utilidade pública marca também temporalmente o critério da justa indemnização (23.º, n.º 1, 24.º, n.º 1 Códigos das Expropriações).
O processo de expropriação comporta um procedimento com carácter amigável ou de auto-composição (33.º e ss. Código das Expropriações) e outro litigioso ou de hetero-composição (38.º Código das Expropriações). Neste último, só depois da decisão arbitral finda a fase administrativa (49.º Códigos das Expropriações), remetendo-se o processo para tribunal (51.º Códigos das Expropriações), iniciando-se então a fase judicial. Uma das primeiras medidas a tomar pelo tribunal é notificar a entidade expropriante para proceder ao depósito da indemnização (51.º, n.º 3 Códigos das Expropriações) e só depois deste efectuado é que “o juiz, no prazo de 10 dias, adjudica à entidade expropriante a propriedade e a posse, salvo, quanto a esta, se já houver posse administrativa e ordena simultaneamente a notificação do seu despacho, da decisão arbitral e de todos os elementos apresentados pelos árbitros, à entidade expropriante e aos expropriados e demais interessados, com indicação, quanto a estes, do montante depositado e da faculdade de interposição de recurso a que se refere o artigo 52.º” (51.º, n.º 5 Códigos das Expropriações). A tramitação do recurso sobre a decisão arbitral, ou seja sobre o quantum indemnizatório, está regulada neste artigo 52.º.
Deste bloco legal decorre que, no caso de estar controvertido o respectivo quantum indemnizatório, a adjudicação judicial mantém-se, ficando apenas aquele por apurar. Seguindo o posicionamento da jurisprudência “Na fase de expropriação litigiosa, calcula-se e fixa-se a justa indemnização, não sendo afectado o acto administrativo da expropriação” (Ac. TRC 23/01/2007, Des. Alexandre Reis, www.dgsi.pt). Destarte, a função dos tribunais judiciais na fase judicial é essencialmente de controlo da regularidade formal do procedimento expropriativo, assim como do deferimento da posse administrativa (Ac. STJ de 24/02/1999, Cons. Pereira da Graça, www.dgsi.pt).
A propósito da declaração de utilidade pública, não tem havido uma convergência quanto ao seu significado, muito embora também não se possa dizer que haja posicionamentos contraditórios. Assim, não podemos ignorar o entendimento de que “O acto de declaração de utilidade pública não transfere a propriedade dos bens para a entidade beneficiária” (Ac. STJ de 18/01/1996, Cons. Miranda Gusmão; 14/12/2006, Cons. Oliveira Rocha, www.dgsi.pt). Mas, saliente-se, na sustentação deste posicionamento está o pressuposto de que não ocorreu a posse administrativa do prédio expropriado, porquanto aqui existe a transferência do domínio de facto e nisso não pode haver o mínimo de dúvidas. Mas também se afirma que “é a própria declaração de utilidade pública a criar o carácter forçado da transferência do procedimento expropriatório aí decorrente” (Ac. STJ 27/05/2008, Cons. Alberto Sobrinho, www.dgsi.pt).
A sentença recorrida numa sustentada argumentação, temos de o reconhecer, parte do entendimento de que a transferência do direito de propriedade para o expropriante ocorre com o despacho de adjudicação, pois só nesse momento existe a consumação da expropriação, ainda que a DUP constitua um acto essencial ou basilar da expropriação, de modo que o titular do direito à justa indemnização é o proprietário do prédio à data da adjudicação. Para o efeito cita doutrina e jurisprudência, como o Ac. TRP de 13/10/2005, (correcção de áreas dos prédios expropriados), Ac. TRC de 14/03/2006 (desistência da expropriação), Ac. TRL (caducidade da DUP), Ac. TRG 26/03/2009 (correcção das áreas de expropriação), Ac. TRP 19/05/2010 (ausência de qualquer título do reclamante), os quais vão efectivamente no sentido de a transferência da propriedade do prédio expropriado se consolidar com o trânsito em julgado do despacho judicial de adjudicação. Realmente assim sucede, sem prejuízo de, por exemplo, mais tarde existir a reversão da propriedade, pelo que apenas podemos dizer que essa consolidação é apenas tendencial. Mas não é isso que está em causa neste incidente, mas algo que está a montante e não a jusante da adjudicação judicial da propriedade do prédio expropriado, que é a determinação do titular do direito à justa indemnização, que, por exigência constitucional, é prévia à consumação da expropriação (61.º, n.º 2 da Constituição). Aliás, com a redacção introduzida pela Lei n.º 56/2008 no artigo 88.º do Código das Expropriações, referente à desistência das expropriações, passou a existir uma distinção consequencial entre os casos de investidura da propriedade (n.º 1), em que é lícita essa desistência até esse momento, mantendo o direito a ser indemnizados (n.º 2), dos casos em que já ocorreu a investidura na posse (n.º 3), que foi aditado, pois aqui pode ter lugar a reversão.
Nesta conformidade, podemos dizer que o direito a uma justa indemnização surge com a declaração de utilidade pública, mormente quando esta é seguida da correspondente posse administrativa, pois o expropriado fica sem o domínio jurídico e de facto do prédio expropriado. Tratando-se, no entanto, de uma expropriação parcial, em que ocorreu o fracionamento ou desmembramento do prédio primitivo, o titular do respectivo direito de propriedade tem apenas o direito a uma justa indemnização por via do acto expropriativo, enquanto relativamente à parcela sobrante mantém o seu domínio jurídico e de facto (direito de propriedade). Havendo esse desmembramento do prédio primitivo, os direitos incidentes sobre a parcela expropriada e a parcela sobrante passam a ter plena autonomia. Assim e se depois da declaração de utilidade pública, ocorrer a tradição jurídica, por via negocial ou executiva, da parcela sobrante, o direito de propriedade que incide sobre esta, não abrange o direito a ser indemnizado pela expropriação daquela outra parcela, porquanto o último proprietário da parcela sobrante não teve qualquer dano de expropriação.
*
No caso em apreço a declaração de utilidade pública (DUP), foi divulgada no DR de 21/02/2006, conferindo-se carácter de urgência, abrangendo inicialmente uma área de 734 m2, que depois em 17/01/2007 foi reduzido para 300m2, a destacar do prédio urbano, com a área de 29.000m2 melhor identificado em 1) e 2) dos factos provados. À data dessa DUP o recorrente B... figurava no registo predial como proprietário desse prédio. No início do ano de 2007, a entidade expropriante tomou posse administrativa da identificada parcela de terreno, construindo aí uma rotunda e edificando passeios. Por sua vez, em 12/01/2007 foi registado um arresto sobre o dito prédio a favor da Fazenda Nacional, que tinha a configuração à tomada de posse administrativa da parcela expropriada. Só em 15/04/2014 o respectivo direito de propriedade foi registado a favor do recorrido D... e em 05/06/2014 inscrito ½ a favor de C.... Por sua vez, o processo de expropriação apenas foi remetido a tribunal em 14/12/2017, sendo proferido despacho de adjudicação da parcela expropriada em 18/12/2017.
Nesta conformidade e pelo que foi anteriormente considerado, o recorrente é que aparenta ser o titular do direito a ser indemnizado pela parcela expropriada, porquanto foi o mesmo que sofreu o dano de expropriação. Na procedência do recurso nesta parte, fica prejudicada o conhecimento da segunda questão.
*
* *
Tratando-se de questão incidental e provisória as custas deste recurso, deverão ser ponderadas a final – 527.º, n.º 1 e 2 do NCPC.
*
No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
..........................................................................
..........................................................................
..........................................................................
*
* *
III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso interposto por B... e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, reconhecendo provisoriamente o mesmo como titular do direito a ser indemnizado pela expropriação aqui em causa

Custas da apelação a ser atendida no final.

Notifique

Porto, 27 de setembro de 2018
Joaquim Correia Gomes
José Manuel de Araújo Barros
Filipe Caroço