Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
11226/16.5T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: PETIÇÃO INSUFICIENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DESPACHO VINCULADO
CONSEQUÊNCIAS DA OMISSÃO DO CONVITE
CONHECIMENTO DO VÍCIO NA APELAÇÃO
Nº do Documento: RP2019091011226/16.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA A DECISÃO RECORRIDA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 905, FLS 204-215)
Área Temática: .
Sumário: I – Perante a alegação deficiente ou incompleta dos factos que constituem a causa de pedir, o art. 590º, nº 4 do CPC estabelece um dever legal do juiz, sob a forma de um “despacho de aperfeiçoamento vinculado”, no sentido de identificar os aspectos merecedores de complementação ou correcção.
II -Tal dever não tende à recuperação de petições ineptas, mas impõe-se para o aproveitamento de articulados minimamente aptos, mau grado insuficientes, deficientes ou imprecisos, de forma a prevenir que o curso do processo venha, sem alteração do seu conteúdo fáctico, a inviabilizar ulteriormente a completa identificação da fattispecie do instituto jurídico previamente apontado em sede de causa de pedir.
III – A omissão daquele despacho de aperfeiçoamento vinculado constitui uma vício que se projecta na sentença, por nesta se deixarem por conhecer factos que seriam essenciais para a decisão da causa e que, a ter sido proferido oportunamente aquele despacho, para a mesma teriam sido importados, determinando a anulação da sentença e a devolução do processo ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto, sem prejuízo da prévia prática dos actos processuais tidos por adequados para esse efeito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N. 11226/16.5T8PRT-A

Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto - Juiz 9

REL. N.º 555
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 – RELATÓRIO

B…, Lda, por apenso à execução que move contra C…, veio deduzir incidente de comunicabilidade da divida, contra o marido desta, D….
Alegou, a esse propósito, que a executada é casada com o requerido D… sob o regime da comunhão de adquiridos e que ambos continuam a viver na mesma habitação; que a dívida exequenda foi contraída pela executada em 9 de Janeiro de 2012, quando já era casada com o requerido; e que os bens adquiridos pela executada foram móveis de cozinha, pelo que se destinaram à satisfação de interesses e proveito comum do casal, enriquecendo, dessa forma, o património de ambos.
Citado, o requerido contestou, começando por afirmar não terem sido “alegados quaisquer factos susceptíveis de consubstanciar situação de comunicabilidade da dívida”. Mais alegou que desde o início do ano de 2015 vive uma relação conturbada com a executada, sua mulher; que nunca teve conhecimento, até à citação para o presente incidente, que a Executada tivesse contraído uma dívida relativa à aquisição de móveis de cozinha, divida esta contraída sem o seu consentimento. Afirmou ainda que “a dívida em apreço, resultante da aquisição de móveis de cozinha, além de ter sido contraída, conforme referido, sem o seu consentimento, radica numa relação extraconjugal da sua cônjuge, Executada nos presentes autos, sendo, como tal, da sua inteira e exclusiva responsabilidade.”
Concluiu que a divida exequenda não deve considerar-se da responsabilidade de ambos os cônjuges.
Foi designada data para a inquirição das testemunhas na sequência do que veio a ser proferida sentença (cfr. art. 152º, nº 2 do CPC, de onde resulta tal qualificação) que indeferiu o incidente com fundamentos que, na essência, se contêm no seguinte excerto: “Ora, a requerente não logrou provar, nem alegou cabalmente, os factos tendentes à qualificação da divida em causa, como divida comum, pois desde logo, não invocou a qualidade de cônjuge administrador da executada, nem factos tendentes a considerar que a mesma divida foi adquirida em proveito comum do casal.”
É contra esta sentença que vem interposto o presente recurso pela requerente, defendendo a necessidade de anulação do julgamento para ampliação da matéria de facto. Terminou o recurso alinhando as seguintes conclusões:
“1-----A improcedência do presente incidente, salvaguardando o respeito que é todo, resulta de uma errónea interpretação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, tendo sido violado quanto dispõe o nº 5 do artigo 607º do CPC;
2-----Prova essa que aquilatada pelo M.mo Juiz a quo no seio de depoimentos contraditórios e, apesar de tudo, pouco credíveis. Por isso que,
3-----Não colha aceitação a tese de que o requerido estaria separado de facto um ano, justamente antes, ao casal contrair a divida, nem tão pouco que a desconhecia;
4-----O requerido e a executada são casados há 40 e a executada nunca teve possibilidades de fazer a administração da casa sozinha, atentos os seus, por demais demonstrados, parcos recursos;
5-----Não se tendo produzido qualquer prova de que o requerido não vivia com a executada,
6-----Muito menos se fez, de que o proveito da instalação da cozinha, não foi comum ou estaria afastado;
7-----Nenhuma das duas testemunhas poderia estar em posição de afirmar ou jurar sobre qualquer tipo de consentimento, uma vez que tal matéria só ao próprio requerido diz respeito, ninguém podendo fazer prova por ele. Aliás,
8-----O interesse comum do casal pode não ser só um interesse material ou económico, mas ele é também de natureza moral ou intelectual;
9-----Das regras de experiência da vida comum e da vida em sociedade, a instalação de uma cozinha nova num lar, beneficia qualquer pessoa que nele possa habitar.
Desse modo,
10-----Deverá também o lapso de escrita decorrente da não indicação do ano em causa no início do ponto 4 da matéria considerada provada ser rectificado;
11-----Num esforço digno de nota a Recorrente transcreveu a audiência de julgamento anexando-a ao diante para facilidade de demonstração que quanto supra por si vem alegado.
12-----Crê a Recorrente que só a anulação do julgamento tendo em vista a ampliação da matéria de facto - na parte da decisão viciada - sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, pode evitar contradições (Cfr. artigo 662º, nº 2, als. a) e b) e nº 3, al. c) do CPC).
Termos em que, nos melhores de direito e nos sobretudo doutamente supridos por Vossas Excelências, deve a douta sentença ser revogada por um acórdão, igualmente douto, que ordene a anulação do julgamento tendo em vista a ampliação da matéria de facto - na parte da decisão viciada - tal como vem pedido e, assim decretando, fareis, como sempre, a melhor e a mais sã J U S T I Ç A.”
Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo.
Foi recebido nesta Relação, onde cabe apreciá-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Assim, cumprirá decidir se, nas concretas circunstâncias da causa, se deve anular o julgamento para ampliação da matéria de facto e, bem assim, determinar o complemento do facto enunciado sob o item 4 dos factos provados, onde parece faltar a enunciação de uma data.
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Para a apreciação da questão, além do já referido no relatório que antecede, cumpre atentar nos factos dados por provados na sentença recorrida. Afirmou o tribunal em 1ª instância:
“Estão provados os seguintes factos:
1. A execução a que este incidente corre por apenso, tem como título executivo um requerimento de injunção com o número 12577/16.0YIPRT, ao qual foi aposta fórmula executória em 19.5.2016, instaurada contra a executada ali identificada, nos termos constantes do requerimento executivo de fls. 2 e documento de fls. 4 e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
2. A divida exequenda provém da aquisição de moveis de cozinha, moveis estes adquiridos pela executada à exequente em 9.1.2012.
3. A executada e o requerido contraíram casamento, sem convenção antenupcial no dia 3.11.1979.
4. Desde o ano de que a executada e o requerido vivem uma relação conturbada e intermitente, e neste período o requerido viveu com a filha de ambos.
5. Reconciliaram-se no mês de Fevereiro do ano de 2018.”
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Começa a apelante por apontar uma necessidade de rectificação da redacção conferida pelo tribunal a quo ao item 4 dos factos provados.
Basta ler a frase correspondente (Desde o ano de que a executada e o requerido vivem uma relação conturbada e intermitente, e neste período o requerido viveu com a filha de ambos) para se concluir – tal como aponta a apelante – que falta ali a indicação do ano relativamente ao qual é apontado o início de uma fase conturbada e intermitente no relacionamento entre a executada e o requerido.
De resto, a esse respeito, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto, o tribunal recorrido declarou desvalorizar o depoimento da filha do requerido, que fixara esse ano em 2011, mas não evidenciou qual a sua conclusão sobre o ano em falta, nada permitindo extrapolar que com isso pressupunha a comprovação da alegação do requerente, nos termos da qual a perturbação da relação conjugal se teria desenvolvido desde o início de 2015, com o que justificaria nenhum conhecimento ter sobre esta dívida e procedimentos para a sua cobrança.
Esta circunstância, de per si, sempre teria de conduzir à devolução do processo à primeira instância, pelo menos para rectificação do lapso.
Porém, como veremos, a anulação da decisão recorrida, que desde já se adianta entendermos impor-se, prejudica a utilidade de uma tal rectificação, a qual deverá ocorrer naturalmente, no âmbito de uma nova decisão.
Atente-se em que o tribunal recorrido, depois de se pronunciar sobre a factualidade controvertida e que declarou provada, afirmou o seguinte, como justificação para a improcedência do incidente: “(…) a requerente não logrou provar, nem alegou cabalmente, os factos tendentes à qualificação da divida em causa, como divida comum, pois desde logo, não invocou a qualidade de cônjuge administrador da executada, nem factos tendentes a considerar que a mesma divida foi adquirida em proveito comum do casal.”
Dando por adquirido que não está em causa uma hipotética qualidade da executada enquanto cônjuge administrador, pois é absolutamente certo que nada foi alegado que justificasse qualquer discussão a esse respeito, o cerne da questão prende-se com a afirmação do tribunal segundo a qual a requerente não logrou provar, nem alegou cabalmente, factos tendentes à qualificação da dívida exequenda como comum, por ter sido contraída em proveito comum do casal.
Aqui chegados, cumpre verificar sucessivamente que a questão não se reconduz a uma eventual falta de comprovação de tais factos (tendentes à qualificação da dívida exequenda como comum), pois que o tribunal não deu por “não provado” qualquer facto que tivesse sido discutido, como resulta da análise da decisão recorrida. E a isso estava sujeito, atenta a aplicabilidade do disposto no nº 4 do art. 607º do CPC, por remissão sucessiva dos arts. 741º, nº 1 e 295º do CPC.
Somos, então, conduzidos à conclusão de que o incidente faleceu porque a requerente não havia alegado factos tendentes à qualificação da dívida exequenda como comum, o que, em verdade, é de ordem a prejudicar a ulterior qualificação de tal ordem de factos como provados ou não provados.
Porém, cumpre reconhecer que esta conclusão é incongruente com a tramitação deste incidente até à fase de julgamento, pois que a ausência de tais factos, a verificar-se, sempre deveria ter determinado o indeferimento liminar do incidente, por ineptidão, designadamente por falta de causa de pedir (cfr. arts.552º, nº 1, al d), 186º, nºs 1 e 2 al. a) do CPC, 577º, al. b), 590º, nº 1 e 551º, de onde resulta a remissão, em sede de acção executiva, para o regime da acção declarativa, designadamente os elementos referidos nas normas citadas).
Em suma, perante a verificação de que o requerimento inicial não apresentava a descrição dos factos de onde pudesse inferir-se que a dívida exequenda fora contraída em proveito comum do casal, ou qualquer outra circunstância subsumível ao disposto no art. 1691º do C.Civil (onde se enunciam as dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges), a conclusão deveria ter sido imediatamente a da falta de causa de pedir, em ordem a motivar o indeferimento liminar do incidente sob apreciação.
Note-se, aliás, que nem isso haveria de ter passado despercebido ao tribunal a quo, pois que logo na contestação o requerido havia apontado expressamente esse problema.
Porém, tal como então ao tribunal a quo, não nos parece que, perante o requerimento inicial deste incidente, se devesse concluir pela arguida ausência de factos integradores da causa de pedir da comunicabilidade desta dívida.
Com efeito, a requerente alegou: “Os bens adquiridos pela executada foram móveis de cozinha (…), pelo que o destino dos bens adquiridos foi e é a satisfação de interesses e proveito comum do casal, enriquecendo, dessa forma, o património de ambos.”
Esta alegação, podendo não estar completa e carecer de aperfeiçoamento, compreende já o que deve ser tido por nuclear, quanto à caracterização da causa de pedir do incidente em causa, isto é, inclui os factos essenciais nucleares para fundar a pretensão de comunicação da dívida da executada ao seu cônjuge, aqui requerido.
A este propósito, cumpre recordar o que se tem por pressuposto nos conceitos de factos essenciais “que constituem a causa de pedir” e de factos complementares ou concretizadores, estabelecidos no art. 5º do CPC.
Dispõe esta norma (Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal):
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) (…);
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) (…).
Paulo Pimenta, na sua comunicação “Temas de Prova” (disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Texto_comunicacao_Paulo_Pimenta.pdf), expõe o que está pressuposto em tais conceitos: “No âmbito dos factos essenciais, é possível distinguir dois planos, isto é, factos essenciais nucleares e factos essenciais complementares e concretizadores.
Os “nucleares” constituem o núcleo primordial da causa de pedir ou da excepção, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respectiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção. Já os “complementares” e os “concretizadores”, embora também integrem a causa de pedir ou a excepção, não têm já uma função individualizadora. Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir (ou de uma excepção) complexa, ou seja, uma causa de pedir (ou uma excepção) aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por sua vez, os factos concretizadores têm por função pormenorizar a questão fáctica exposta sendo, exactamente, essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da acção (ou da excepção).”
Explicitando a mesma matéria, refere o Ac. do STJ de 24/4/2013, embora ainda no âmbito da vigência do art. 264º, nº 3 do CPC, (proc. nº 03/08.2TBFAF.G1.S1, em dgsi.pt; relator Cons Lopes do Rego) “(…) Assim, os factos complementares serão aqueles que, na economia de uma fattispecie normativa complexa, desempenham claramente uma função secundária ou acessória relativamente ao núcleo essencial da causa de pedir ou da defesa – podendo, por exemplo, tratar-se de factos circunstanciais negativos (…) ou de factos que, na normalidade das situações da vida e segundo as regras de experiência, já fluem de outros (estando, por isso, de algum modo implícitos na alegação dos primeiros (…).
Por seu lado, os factos concretizadores conexionam-se antes com a ideia-base de que a matéria de facto alegada não ficou suficientemente preenchida através da alegação pela parte onerada de meros conceitos ou conclusões: só que as dificuldades práticas de distinguir, acção a acção, conforme o objecto litigioso e a pluralidade de entendimentos possíveis, o que são ainda realidades apreensíveis da vida social ou, pelo contrário, meras conclusões ou conceitos de direito, insuficientes para uma densificação mínima da factualidade alegada, conduziram exactamente a uma idêntica atenuação no funcionamento da regra da preclusão (…).”
Rui Pinto (Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pgs. 19-25) em anotação ao art. 5º do CPC actual, designando por “principais” aqueles factos referidos como “essenciais”, propõe um entendimento em tudo semelhante aos que antes se enunciaram, admitindo que estes caibam na al. b), mas apenas desde que sejam complementares ou concretizadores de outros.
Uma tal compreensão dos conceitos em causa tem, de resto, vindo a ser acolhida sem reservas pela jurisprudência mais actual, como pode ver-se, entre muitos outros, no Ac. do TRP de 8/1/2018 (proc. nº 1676/16.2T8OAZ.P1) ou do TRL de 26/3/2019 (proc. nº 42401/17.4YIPRT.L1-7).
No caso sub judice, da alegação da requerente, extrai-se com clareza o núcleo essencial da razão pela qual entende que o requerido também deve ser responsável pela satisfação da dívida exequenda: esta resulta do fornecimento de móveis de cozinha; pela sua natureza, estes destinam-se a servir interesses do casal, ou seja, constituem um encargo normal da vida em família, e a sua aquisição contribuiu para a construção do seu património familiar, resultando em proveito comum do casal. Tal é suficiente para se identificar uma hipótese fáctica de subsunção ao disposto nas als. b) ou c) do art. 1691º do C. Civil. Ou seja, a causa de pedir está suficientemente identificada, prevenindo que o requerimento inicial se pudesse ter por inepto.
E assim bem o entendeu o requerido, que logo o contestou, alegando que a dívida fora contraída no âmbito da dinâmica de uma relação extra-conjugal da executada e que jamais consentira na respectiva criação.
Nestas circunstâncias, admite-se que logo então se verificasse algum deficit de alegação, tornando-se útil a importação, para a causa, de factos concretizadores daquilo que meramente se indiciava, designadamente a razão pela qual a aquisição dos móveis corresponderia à satisfação de um encargo normal da vida familiar, e/ou a concretização sobre os termos em que esse negócio resultaria num proveito comum do casal (cfr. als b) e c) do nº 1 do art. 1691º do C. Civil). Acresce, a este respeito, que a enunciação deste último conceito não deve interpretar-se como mera conclusão jurídica e ser ignorada enquanto tal; pelo contrário, tem em si mesma uma carga factual que deve ser atendida, sem prejuízo de dever ser concretizada (sobre esta matéria, cfr. Abrantes Geraldes, P. Pimenta e Pires de Sousa, CPC Anot. Vol. I, Almedina, 2018, pgs. 24 a 27, em anotação ao art. 5º).
Porém, a constatação de um tal deficit jamais poderia conviver com a tramitação do incidente até à sua fase final, para só então se concluir pela sua improcedência, perante a ausência ab initio de uma alegação fáctica “cabal” ou suficiente.
Com relevo para a situação em análise, dispõe o art. 590º, nos seus nºs 2 e 4:
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a: (…) b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
(…)
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”
Como se refere no CPC Anotado supra citado, sob a 25ª anotação ao art. 590º, o regime que acaba de se descrever estabelece um dever legal do juiz, sob a forma de um “despacho de aperfeiçoamento vinculado”, no sentido de identificar os aspectos merecedores de complementação ou correcção. Tal dever não tende à recuperação de petições ineptas. Mas impõe-se para o aproveitamento de articulados minimamente aptos, mau grado insuficientes, deficientes ou imprecisos, de forma a prevenir que o curso do processo venha, sem alteração do seu conteúdo fáctico, a inviabilizar ulteriormente a completa identificação da fattispecie do instituto jurídico previamente apontado em sede de causa de pedir.
No caso em apreço, a não observância de um tal dever pelo tribunal a quo, em momento oportuno, i. é, findos os articulados previstos, teve precisamente o resultado que importava prevenir: o requerimento inicial não foi indeferido liminarmente, por ineptidão, por ser suficiente para nele se divisar a causa de pedir; mas, julgados os factos alegados (e mesmo perante a ausência de matéria não provada) foram eles tidos por insuficientes para o preenchimento dos pressupostos normativos correspondentes à verificação da causa de pedir de que dependia a tutela jurídica pretendida.
Nestes circunstâncias, só pode concluir-se que a omissão de um tal despacho de aperfeiçoamento vinculado, que se impunha como dever processual ao tribunal, foi determinante para a decisão da causa, pois permitiu que o processo prosseguisse sem ter por objecto um leque completo de factos apto a permitir, em sede de julgamento, a conclusão pela verificação, ou pela não verificação, dos pressupostos de que dependia a responsabilização do requerido, a par da executada, pela satisfação da dívida exequenda.
Conclui-se, em suma, que a sentença sob recurso, que julgou improcedente o presente incidente à luz da não verificação dos pressupostos de actuação do instituto da comunicabilidade da dívida da executada ao seu cônjuge, nos termos do art. 1691º, nº 1, als. b) e/ou c) do C. Civil, procede do incumprimento de um dever processual do tribunal, que não garantiu, como se lhe impunha, que na causa viessem a ser discutidos e ajuizados os factos a tal necessários.
Importa, então, discutir as consequências de um tal incumprimento.
Sobre esta questão, a jurisprudência tem ensaiado vários caminhos.
Um deles corresponde ao reconhecimento de uma nulidade processual, consubstanciada pela omissão de um acto que a lei impunha – o despacho de aperfeiçoamento – com influência na decisão da causa (art. 195º, nº 1 do CPC) e acarretando a nulidade da sentença, como acto subsequente a tal omissão (art. 195º, nº 2 do CPC). Assim se decidiu no Ac. do TRP de 8/1/2018, cit. supra, bem como noutro Ac do TRP, de 15/12/2016 (proc. nº 4158/08.2TBMTS.P1, também disponível em dgsi.pt).
Outro identifica uma nulidade na própria sentença, com fundamento no art. 662º, nº 1, al. c) do CPC, por obscuridade e deficiência dos fundamentos constantes da sentença, por referência aos que dela poderiam constar caso tivesse sido proferido aquele despacho omitido. É o caso do Ac. do TRL de 26/3/2019, alicerçado no artigo de Miguel Teixeira de Sousa “A proibição da oneração da parte pela Relação com o risco da improcedência: um novo princípio processual?”, disponível no blog IPPC (https://blogippc.blogspot.com/2014/01/a-proibicao-da-oneracao-da-parte-pela.html), que defende que “a solução é a anulação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância com base na deficiência do julgamento da matéria de facto (art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC), desde que essa deficiência seja entendida, não por referência à matéria de facto constante da causa, mas por referência à matéria de facto que podia constar da causa se a parte tivesse seguido o convite que lhe deveria ter sido dirigido pela 1.ª instância.”
A qualificação do incumprimento daquele dever vinculado de convite ao aperfeiçoamento como uma nulidade processual, nos termos do nº 1 do art. 195º do CPC, tem por efeito que a mesma devia ter sido arguida no prazo previsto no nº 1 do art. 199º do CPC o que, no limite, corresponde ao prazo de 10 dias (art. 149º, nº 1do CPC) após o conhecimento da sentença (neste sentido, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, pgs. 230-232 e 250-252). Nesta hipótese, estaria precludido o conhecimento oficioso da nulidade, ou a sua apreciação quando arguida só em sede do recurso interposto depois daquele prazo.
Entendemos, assim, ser preferível acompanhar Miguel Teixeira de Sousa, na compreensão de que o vício deve ter-se como verificado na própria sentença, por omissão da factualidade ab initio necessária à completa discussão da causa e que, por não ter sido proferido aquele despacho que era devido, acabou por ali não poder ser inscrita como provada ou como não provada. Entende-se, assim, que a omissão daquele despacho de aperfeiçoamento vinculado se projecta na sentença por nesta se deixarem por conhecer factos que seriam essenciais para a decisão da causa e que, a ter sido proferido oportunamente aquele despacho, para a mesma teriam sido importados.
Esta conclusão implica que se anule a sentença recorrida, nos termos do art. 662º, al c) do CPC, cabendo devolver o processo ao tribunal a quo para que, nos termos da al. c) do nº 3 desse mesmo preceito, amplie o julgamento aos factos que entenda deverem ser discutidos como complemento ou concretização dos alegados enquanto causa de pedir do presente incidente, adequando os actos processuais a praticar previamente à reabertura do julgamento àquilo que tiver por conveniente, nos termos do art. 547º do CPC, eventualmente convidando a requerente a alegar os factos que, como referido na sentença, afirmou não terem sido previamente alegados de forma cabal.
Ficam, por consequência, prejudicadas as demais questões suscitadas.
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Cabe, em suma, concluir pela procedência da presente apelação e anular a decisão recorrida, designadamente para que os autos prossigam nos termos antes determinados.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a presente apelação, com o que decretam a anulação da decisão recorrida e determinam a devolução do processo ao tribunal a quo para que, nos termos da al. c) do nº 3 do art. 662º do CPC, amplie o julgamento aos factos que entenda deverem ser discutidos como complemento dos alegados enquanto causa de pedir do presente incidente, adequando os actos processuais a praticar previamente à reabertura do julgamento àquilo que tiver por conveniente.
Custas pela parte vencida a final.
Registe e notifique.

Porto, 10/9/2019
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro