Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
41/21.4T8BAO.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
INCOMPATIBILIDADE DE CAUSAS DE PEDIR
Nº do Documento: RP2023010941/21.4T8BAO.P1
Data do Acordão: 01/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇAO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE/DECISAO REVOGADA.
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇAO
Área Temática: .
Sumário: I - Enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites, operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação das referidas estremas.
Ii - Sendo a pretensão principal do autor a de demarcação do seu prédio do prédio dos réus, indicando para tanto, por remissão para uma planta e em função daquilo que considera título para efeitos de demarcação, a linha divisória dos referidos imóveis e pedindo apenas por efeito da procedência da linha divisória que reputa ser a correta a demolição de um muro e de uma garagem situados dentro da referida linha divisória, não existe incompatibilidade substancial de pedidos ou incompatibilidade de causas de pedir geradoras de ineptidão da petição inicial
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 41/21.T8BAO.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 42/21.T8BAO.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:


1. Relatório
Em 01 de março de 2021, no Juízo de Competência Genérica de Baião, Comarca do Porto Este, AA instaurou ação declarativa sob forma comum contra BB e CC pedindo que seja proferida decisão que:
a) Condene os Réus a demolirem o muro e a garagem que construíram na parcela do terreno propriedade do Autor e a repor a dita parcela de terreno no estado em que se encontrava;
b) Condene os Réus a absterem-se, de futuro, de praticar quaisquer atos que perturbem a posse e o direito de propriedade do Autor;
c) Ordene a necessária demarcação entre os dois prédios confinantes da forma indicada no artigo 30.º da P.I.[1], em respeito ao previsto no artigo 1353.º do C. Civil.
Para fundamentar as suas pretensões o autor alegou que se encontra inscrito a seu favor o prédio misto (rústico e urbano) composto por casa de rés do chão e pinhal “...”, sito no lugar de ..., antiga freguesia ... (extinta), atual união de freguesias ... e ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o nº ..., artigos matriciais n.º ... (prédio rústico) e ... (prédio urbano); em 19 de janeiro de 2007, os réus doaram o aludido prédio ao autor e a ré, aproveitando-se da sua relação de parentesco com o autor, do grau de confiança que existia entre ambos, da sua jovem idade, inexperiência de vida, e da circunstância deste auferir um ordenado acima da média a trabalhar no estrangeiro, convenceu-o a obter um financiamento no valor de €80.000,00, junto da “Banco 1..., S.A.”, com o fito de ser paga pela doação; em 08 de junho de 2007, foi outorgado contrato de mútuo com hipoteca e fiança, sendo constituída uma hipoteca voluntária sobre o aludido prédio misto como garantia do empréstimo contraído pelo autor e os réus constituíram-se fiadores da quantia mutuada; não obstante decorrer da cláusula segunda do documento complementar ao referido contrato de mútuo que “O empréstimo destina-se a facultar recursos para o financiamento de investimentos múltiplos, não especificados, em bens imóveis”, a totalidade do valor do empréstimo contraído pelo autor foi entregue à ré BB, a fim de financiar a conclusão das obras da sua casa; no âmbito do processo de financiamento que foi concedido ao autor, a referida instituição bancária levou a cabo uma avaliação patrimonial onde consta a confirmação das áreas correspondentes ao prédio rústico e urbano; os réus, por sua vez, são titulares de um prédio confinante a Nascente e a Norte com o do autor, que ainda estava em construção à data da aludida doação, sito na Rua ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o nº ..., artigo matricial nº ...; o referido imóvel doado ao autor não possuía qualquer licença de habitabilidade, encontrando-se omisso na matriz, não tendo sido o autor a construi-lo, nem tendo efetuado quaisquer obras no edifício; em 31 de janeiro de 2007, o autor apresentou requerimento a solicitar a retificação à matriz nº ..., para aditamento do prédio urbano de 192 m2, participado em 26 de janeiro de 2007, através do modelo ... do IMI nº ...; o prédio misto doado ao autor tem as seguintes áreas: - área total de 850 m2, área coberta de 194 m2 e área descoberta de 656 m2; não existiam quaisquer marcos, demarcações ou linhas provisórias suscetíveis de fixar as extremas entre os prédios confinantes do autor e dos réus; em meados de 2010, aproveitando-se da ausência do autor, pela circunstância de estar a trabalhar no estrangeiro, os réus apoderaram-se de uma parcela de terreno daquele, construindo um muro e uma garagem, demarcando, unilateralmente, o prédio; em meados de 2014, quando o autor tomou conhecimento do sucedido, instou imediatamente os réus para que estes demolissem o que construíram na parcela de terreno de sua propriedade e, embora não existam demarcações visíveis no terreno, retira-se das cadernetas e certidão dos prédios ora juntas que o terreno do autor tem uma área total de 652 m2[2] e o prédio dos réus tem uma área total de 1.800 m2; o autor junta aos presentes autos uma planta, elaborada pelo técnico AA, do gabinete de Arquitetura, Engenharia, Urbanismo e Topografia V..., com uma proposta de limite ao seu terreno (demarcada a vermelho), que respeita as respetivas áreas dos terrenos das partes; nunca houve uma linha (física) divisória entre os prédios confinantes, sendo que a indicada pelo autor é uma linha que permite uma divisão geométrica abstrata do terreno de forma a que fique exatamente com a área descoberta de 652m2.
A ré foi citada por carta registada com aviso de receção e o réu foi citado editalmente.
Com o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, a ré contestou por exceção, arguindo a ilegitimidade do autor por preterição de litisconsórcio necessário em virtude de sendo casado no regime da comunhão de adquiridos e atento o objeto da ação não estar na lide a sua esposa, a ineptidão da petição inicial em virtude de serem na mesma deduzidos pedidos substancialmente incompatíveis, pois que os dois primeiros pedidos deduzidos pelo autor são típicos de ação de reivindicação enquanto o último é um pedido de demarcação; em sede de defesa por impugnação, a ré impugnou alguma da factualidade articulada pelo autor, referindo que a descrição predial do imóvel de que é dona juntamente com o réu e bem assim a inscrição matricial estão desatualizadas, faltando averbar a construção da habitação, entretanto aí edificada e que os prédios do autor e dos réus estão delimitados, pois que transmitiram ao autor uma parcela de terreno delimitada e murada e à data da transmissão já existiam a garagem e o muro e constituíam a linha divisória dos prédios; os réus construíram a casa de habitação, que passaram a habitar, nela pernoitando, tomando refeições e recebendo amigos, construíram e trataram dos acessos e jardins, usando, gozando, tratando, limpando o terreno, utilizando garagem, nela fazendo obras e reparações, efetuando obras em toda a
parcela até ao muro, colhendo e retirando todos os seus frutos e utilidades, tendo sido sempre os réus que trataram, limparam, pintaram e ocuparam o muro, atos que vêm sendo praticados sem hiato ou interrupção, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, convictos de se encontrarem a exercer um direito próprio, sem lesar o de outrem e com intenção de exercer um verdadeiro direito de propriedade.
O réu contestou impugnando muita da matéria alegada pelo autor na petição inicial, pugnando pela total improcedência da ação e, para a eventualidade da procedência do primeiro pedido formulado pelo autor, deduziu reconvenção subsidiária pedindo a condenação do autor a reconhecer que os réus têm o direito a adquirir, mediante o pagamento do preço, a parcela de terreno do prédio do autor e que ocuparam com o prolongamento da construção da garagem e muro erguidos na estrema daquele prédio com o prédio dos réus e, consequentemente, a condenação do autor a reconhecer e respeitar a linha divisória alegada no artigo 16 da contestação-reconvenção[3].
Em síntese, em sede de impugnação, o réu alegou que os réus são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito no Município ..., composto de casa de habitação, de rés do chão, andar, logradouro com garagem e quintal, a confrontar do norte com DD; do sul com caminho público e AA; do nascente com caminho público e do poente com DD e AA, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... da união de freguesias ... e ..., que corresponde ao artigo urbano ... da extinta freguesia ..., e descrito na Conservatória do Registo Predial sob a descrição .../...; por escritura de compra e venda, celebrada em novembro de 1998, os réus adquiriram, como única realidade predial, o prédio inscrito no registo predial a favor do autor e o prédio inscrito no mesmo registo predial a favor dos réus e que se achava descrito sob a descrição predial nº .../...; em janeiro de 2006 os réus, já no estado de casados, destacaram do referido prédio uma parcela de terreno para construção urbana e que deu origem a um novo prédio distinto e separado, e a que correspondeu uma nova inscrição matricial e nova descrição predial, com o nº .../...; nesta parcela de terreno os réus construíram uma casa de habitação, de rés do chão e andar, com logradouro e garagem, bem como construíram um muro a separar a parcela destacada do restante prédio; para efeito de custear a construção desta casa de habitação, os réus pediram, em 22 de janeiro de 2007, um empréstimo à Banco 1..., S.A. no valor de €125.000,00, tendo constituído, para efeitos de garantia do seu pagamento, hipoteca voluntária; o autor, antes de concluída a construção levada a cabo pelos réus, sempre residiu com a mãe, aqui ré, e o seu padrasto, o aqui réu; antes da conclusão da casa de habitação, levada a cabo na referida parcela de terreno, o autor e os réus residiram na mesma casa de habitação, a casa de habitação antiga inscrita na matriz sob o artigo urbano ... da extinta freguesia ..., atual artigo 1835 da união de freguesias ... e de ...; depois da conclusão daquela casa de habitação, o autor ainda residiu algum
tempo com os réus na casa nova; o prédio do autor corresponde ao prédio sobrante, após o destaque da parcela de terreno onde os réus edificaram a casa nova; quando os réus doaram, em 26 de janeiro de 2007, mais de um ano depois de efetuar o destaque daquela parcela, o prédio originário descrito sob o nº .../..., misto, inscrito na matriz sob o artigo ... rústico e artigo urbano ..., em 19 de janeiro de 2007, já o muro a separar/dividir a parcela destacada, estava construído[4]; não existe, nem nunca existiu, qualquer dúvida sobre a linha divisória entre o prédio do autor e o prédio dos réus, linha essa que é feita através de muro que se prolonga em toda a extensão dos prédios confinantes, de altura variável de 1,50 m a 2,00 m, que serve, por sua vez, de divisão entre a garagem do prédio dos réus e o anexo/ou garagem do prédio do autor; assim, desde há mais de 20 anos seguidos, que os réus, por si e por intermédio dos anteriores donos, procedem a limpeza e manutenção do muro que divide o prédio do autor com o prédio dos réus; e, de igual modo e tempo procedem à limpeza e manutenção do logradouro em toda a área até ao limite com o referido muro; como construíram o muro e garagem, plantam, semeiam e colhem, no quintal, produtos agrícolas, como hortaliças, batatas, frutos, etc., fazendo-o até ao limite do seu prédio, isto é, até ao muro; também ocupam a garagem, guardam veículos, máquinas agrícolas e outras coisas, fazendo-o à vista de toda a gente, de forma contínua e ininterrupta, na convicção de que exercem um direito em nome próprio, não ofendendo direito de outras pessoas, assim sendo considerados por todos.
Em sede de contestação-reconvenção subsidiária o réu alegou que a área de terreno da garagem e muro, que na hipótese de vingar a tese do autor se prolongou para o prédio deste, não ultrapassa os 30 m2 e que essa área não vale mais de €300,00.
O autor não contestou a reconvenção deduzida pelo réu.
Ordenou-se a notificação do autor para, querendo, responder à defesa por exceção deduzida pela ré, não tendo o mesmo oferecido qualquer resposta.
Em 30 de abril de 2022 foi proferida a seguinte decisão[5]:
Valor da causa
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 296.º, 299.º, n.ºs 1 a 3, 302.º, n.º 1, 305.º e 306.º do Código de Processo Civil, fixa-se à causa o valor de €5.300,01 (cinco mil e trezentos euros e um cêntimo), correspondente à soma dos valores indicados na petição inicial e na contestação/reconvenção e não colocados em crise pelos demais (no sentido de que o acréscimo ao valor da causa decorrente da formulação de pedido reconvencional ocorre logo após a formulação da reconvenção, não dependendo da prolação de decisão sobre a sua admissibilidade, v.g. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2014.º, 7.ª edição, p. 36, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.2020, proc. n.º 11903/18.6T8LRS-A.L1.4, disponível em www.dgsi.pt).
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Não realização de audiência prévia
Preceitua o art.º 592.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil que “1 - A audiência prévia não se realiza: (…); b) Quando, havendo o processo de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, esta já tenha sido debatida nos articulados”.
In casu, como infra se constatará, os autos irão findar no despacho saneador por via da
procedência de exceção dilatória suscitada pela ré BB – quanto à qual fora dado o respetivo contraditório ao autor (vide ref.ª 88165659) –, pelo que não haverá lugar à realização de audiência prévia.
Ademais, atento o valor da causa, nunca a audiência prévia se apresentaria como obrigatória na lide (cfr. art.º 597.º do Código de Processo Civil).
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Saneamento
O Tribunal é absolutamente competente.
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Da ineptidão da petição inicial
AA intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, peticionando:
a) A condenação dos réus a demolirem o muro e a garagem que construíram na parcela de terreno propriedade do autor e a repor a dita parcela de terreno no estado em que se encontrava;
b) A condenação dos réus a absterem-se, de futuro, de praticar quaisquer atos que perturbem a posse e o direito de propriedade do autor;
c) A demarcação entre os dois prédios confinantes.
Em sede de contestação, veio a ré BB suscitar, de entre o mais, a ineptidão da petição inicial, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, por entender que os pedidos formulados pelo autor sob as alíneas a) e b) são típicos de uma ação de reivindicação, ao passo que o pedido formulado em c) é típico de uma ação de demarcação. Pugnou, a final, pela anulação de todo o processado (art.ºs 186.º, n.ºs 1 e 2, al. c) do Código de Processo Civil).
Dado o contraditório ao autor, este não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
Estatui o art.º 186.º do Código de Processo Civil que é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, acrescentando o seu n.º 2 que “Diz-se inepta a petição: a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Como é consabido, o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende retirar da ação interposta, traduzindo-se na providência que solicita ao tribunal. Já a causa de pedir consiste no conjunto de factos (essenciais) constitutivos da situação jurídica que o autor pretende fazer valer.
Sendo o pedido e a causa de pedir elementos fundamentais para a definição do objeto do processo, deverão apresentar caraterísticas que os tornem inteligíveis, idóneos, determinados e compatíveis, sob pena de ineptidão da petição inicial – cfr. Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, p. 290.
A ineptidão da petição inicial configura, nos termos do disposto no art.º 577.º, b), do Código de Processo Civil, uma exceção dilatória que determina a nulidade de todo o processo e, consequentemente, a absolvição do réu da instância – art.ºs 186.º, n.º 1, e 278.º, n.º 1, b), do mesmo diploma legal.
No caso vertente, releva particularmente a causa de ineptidão plasmada na al. c) do sobredito normativo legal, pelo que nela focaremos a nossa atenção.
Ora, não obstante ser lícito ao autor obter, numa única demanda, a satisfação de diversas pretensões, formulando tantos pedidos quantos os efeitos desejados, exige o legislador que exista uma compatibilidade substancial entre os pedidos formulados (art.º 555.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) , uma vez que a incompatibilidade substancial dos pedidos significa que os mesmos se excluem reciprocamente, pelo que, pretendendo o autor obter, em simultâneo, resultados contraditórios, sem que ao tribunal caiba substituir-se na opção por algum dos pedidos, a solução será decretar a ineptidão – nesse sentido, v.g. Abrantes Geraldes et al, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p. 221-222).
De realçar que a incompatibilidade entre os pedidos não impede que estes sejam formulados no mesmo processo, desde que a título subsidiário, e não cumulativo (art.º 554.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), porquanto, neste caso o autor declara que pretende obter determinado efeito (subsidiário) apenas se o pedido principal não proceder.
Mais se diga que o art.º 186.º, n.º 2, c), aqui em análise, se reporta meramente à incompatibilidade substancial e já não à incompatibilidade formal – cfr. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, p. 131).
No que respeita à cumulação de causas de pedir substancialmente incompatíveis, usando do mesmo raciocínio lógico que antecede quanto à cumulação de pedidos incompatíveis, se o autor invoca, simultaneamente, dois ou mais fundamentos incompatíveis da pretensão deduzida em juízo, eles acabam por se excluir reciprocamente, determinando a ineptidão da petição inicial.
Só assim não será se tais causas de pedir substancialmente incompatíveis forem invocadas subsidiariamente, e não cumulativamente.
No caso sub judice, o autor formula diversos pedidos: a condenação dos réus a demolirem o muro e a garagem que construíram na parcela de terreno propriedade do autor e a repor a dita parcela de terreno no estado em que se encontrava; a condenação dos réus a absterem-se, de futuro, de praticar quaisquer atos que perturbem a posse e o direito de propriedade do autor; a demarcação entre os dois prédios confinantes.
Tratando-se de pedidos cumulativos, cumpre então aferir se os mesmos são substancialmente compatíveis ou, ao invés, incompatíveis (tal como defendido pela ré).
Compulsado o teor da petição inicial constata-se que, efetivamente, existe incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados pelo autor nas als. a) e b) e o pedido formulado em c), por se tratarem de pedidos típicos de ações distintas e incompatíveis: os primeiros de uma ação de reivindicação e o segundo de ação de demarcação.
Ora, embora sejam objeto de confusões constantes, as ações de reivindicação e de demarcação são distintas, não tendo uma identidade de causa de pedir e pedidos – v.g. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.03.2022, proc. n.º 1008/20.5T8PVZ.P1 e Acórdão do Tribunal Guimarães de 05.04.2018, proc. 75/15.8T8TMC.G1, disponíveis em www.dgsi.pt .
Na ação de reivindicação, prevista e regulada no art.º 1311.º do Código Civil, a causa de pedir é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e a lesão desse seu direito de propriedade pelo demandado, e o pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e a restituição desta ao reivindicante. Por sua vez, na ação de demarcação, plasmada no art.º 1353.º do Código Civil, a causa de pedir é constituída pela existência de dois prédios confinantes, propriedade de pessoas diversas e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios, e o pedido é a necessidade de definir a linha divisória entre os prédios confinantes, propriedade de donos distintos – vide António Carvalho Martins, “Demarcação”, 2ª edição, Coimbra Editora, p. 20.
Como ensina Pires de Lima e Antunes Varela, “se as partes discutem o título de aquisição (…) a ação é de reivindicação. (…) Se, pelo contrário, (…) se não se discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação” – “Código Civil Anotado,” Vol. III, 2ª ed. Revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 199.
Estamos, assim, perante efeitos jurídicos que se repelem reciprocamente.
E, como refere Alberto dos Reis, nestes casos de incompatibilidade de pedidos “é claro que o erro praticado compromete todos os pedidos. Se a consequência é a ineptidão da petição inicial, tudo se anula” – cfr. “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2, Coimbra Editora, p. 389.
Em suma, como bem roga o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.07.2021, proc. n.º 500/20.6T8ALB.P1, disponível em www.dgsi.pt, cujo teor sufragamos em pleno:
“II - Na ação de reivindicação, o autor tem o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa de que se arroga titular; donde já sabe bem o que é seu e, por isso, impõe-se que defina, delimite, aquilo que lhe pertence para além de descrever a concreta ofensa feita a esse direito por quem foi demandado.
III - Na ação de demarcação, o autor, de forma bem distinta, requer junto do tribunal que este demarque (delimite) o seu prédio no confronto com aquele que lhe é adjacente; nesta ação será o tribunal, não o autor, que virá finalmente a elucidar a área e os limites do prédio que o autor possui. Aqui visa-se pôr fim a um estado de incerteza sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios, dúvida essa que o autor também partilha.
IV – Este tipo de ações e decorrentes pedidos formulados resultam incompatíveis entre si e, como tal, desembocam na ineptidão da petição inicial que os tenha cumulado por igual”.
Ante o exposto, forçoso é concluir que a petição inicial apresentada pelo autor é inepta nos termos do art.º 186.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil, gerando a nulidade de todo o processado, com a consequente absolvição dos réus da instância (art.ºs 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil).
Nestes termos, e sem necessidade de maiores considerações, julga-se verificada a exceção dilatória de nulidade do processo, por ineptidão da petição inicial apresentada pelo autor AA e, em consequência, absolvem-se os réus BB e CC da instância.
Custas pelo autor (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
Considerando que o pedido reconvencional do réu CC fora formulado a título subsidiário (para o caso de proceder o petitório do autor), resulta prejudicada a apreciação da sua admissibilidade/inadmissibilidade, pelo que, oportunamente arquive.
Em 03 de junho de 2022, inconformado com a decisão que precede na parte em que julgou inepta a petição inicial, AA interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1 – O A. vem apresentar recurso do despacho saneador-sentença que reconheceu uma exceção dilatória de nulidade do processo, por ineptidão da P.I. por si apresentada, absolvendo, em consequência, os RR. da instância.
2 - Visando, a impugnação do direito adotado pelo Tribunal a quo na supra decisão proferida, porquanto, entende o recorrente, estar suportada numa errónea interpretação da Lei aplicável ao caso concreto.
3 – O Tribunal a quo considerou existir incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados nas alíneas a) e b) e o pedido da alínea c) da P.I. apresentada pelo A., por alegadamente se tratarem de pedidos típicos de ações distintas e incompatíveis, sendo os primeiros típicos de uma ação de reivindicação e o segundo de uma ação de demarcação.
4 – O Recorrente não pode concordar com tal conclusão, porquanto, além de entender que não existem pedidos substancialmente incompatíveis, tratam-se de pedidos típicos de uma ação de demarcação, não restando dúvidas sobre os factos essenciais constitutivos da situação jurídica que o A. pretende fazer valer.
5 – Nos termos do direito que lhe assiste, ao abrigo do art.º 1353.º do CC, o recorrente intentou ação de demarcação contra os RR., peticionando a correta demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles.
6 – Ora, o A. não pretende obter a declaração de que é proprietário, nem tampouco discutir a sua amplitude, apenas definir as extremas de dois prédios contíguos, de proprietários distintos, em relação aos quais existe uma indefinição das respectivas extremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de saber onde acaba um prédio e começa o outro.
7– Sendo a efectiva causa de pedir a existência de prédios confinantes, de proprietários distintos, de estremas incertas ou duvidosas e, não o facto que originou o direito de propriedade, ou a sua possível ofensa.
8 – Assim sendo, e como questão controversa que motivou a decisão recorrida, entende o recorrente que não há uma incompatibilidade substancial entre os pedidos formulados nas alíneas a) e b) e o pedido da alínea c).
16 – Nestes termos, aplicando por analogia a tramitação prevista no art.º 38.º do CPC, o Tribunal a quo deveria, de forma clara e fundamentada, ter convidado o A. a esclarecer qual o pedido que pretendia ver apreciado, dispensando a aceitação dos RR. prevista no n.º 1 do art.º 286.º do CPC, quanto à eventual desistência da instância dos pedidos formulados nas alíneas a) e b) da P.I.
17 – Porquanto, entende o recorrente que esta é a solução que melhor se ajusta ao espírito do legislador do atual CPC, em respeito pelos princípios da economia processual, prevalência da substância sob a forma, eficiência do sistema e cooperação mútua.
18 – Contrariando uma decisão que se ancora, essencialmente, em aspetos formais, em desrespeito a toda uma corrente doutrinal e jurisprudencial e, à reforma processual que visou por termo a esses formalismos.
19 – Assim sendo, andou mal o Tribunal a quo ao adotar uma postura de pura legalidade formalista, dando prevalência à substância sob a forma, optando por não fazer prevalecer o aproveitamento da instância e a obtenção da justiça material no caso concreto.
20 – Nestes termos, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 6.º, 193.º, 547.º e 590.º, todos do CPC – o que se requer a este Venerando Tribunal se digne a reconhecer e declarar.
21 – Defende-se que procedendo-se à redução teleológica do n.º 4 do art.º 186.º, conciliado com a aplicação analógica do art.º 38.º, ambos do CPC, o Tribunal ad quem reconhecerá que a nulidade só poderá subsistir, e ser conhecida, se um dos pedidos não for aproveitável por ocorrência de uma situação de incompetência do Tribunal, ou por erro na forma do processo – o que não se verifica no caso em apreço (neste sentido, vide o esclarecedor Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 21/05/2020, Proc. 1032/19.0T8STR-B.E1, disponível em www.dgsi.pt).
22 – Fincando, assim, aberto o caminho para uma decisão contrária à adotada pelo Tribunal a quo, permitindo a regularização objetiva da lide, sem necessidade de preposição de uma nova ação, em absoluto respeito aos mencionados princípios da economia processual e adequação formal, previstos nos artigos 6.º, n.º 2 e 590.º, n.º 2 e 3 do CPC.
23 – Devendo, assim, ser determinado por este Tribunal ad quem, o prosseguimento da ação como ação de demarcação, para apreciação do pedido formulado na alínea c) da P.I., considerando sanada a alegada incompatibilidade entre os pedidos formulados – o que desde já se requer a este Venerando Tribunal se digne a reconhecer e declarar.
BB ofereceu contra-alegações pugnando pela total improcedência do recurso.
Atenta a natureza estritamente jurídica do objeto do recurso e a sua relativa simplicidade, com o acordo dos restantes membros do coletivo dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da inexistência de incompatibilidade substancial entre os pedidos deduzidos em primeiro e segundo lugar e o pedido formulado em último lugar;
2.2 Da sanabilidade da ineptidão da petição inicial por incompatibilidade substancial de pedidos.

3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto necessários e suficientes para o conhecimento do objeto do recurso constam do relatório deste acórdão e resultam dos próprios autos, nesta vertente adjetiva com força probatória plena.

4. Fundamentos de direito
4.1 Da inexistência de incompatibilidade substancial entre os pedidos deduzidos em primeiro e segundo lugar e o pedido formulado em último lugar
O recorrente sustenta inexistir incompatibilidade substancial dos pedidos por si deduzidos em primeiro e segundo lugar com o que foi deduzido em último lugar.
Para tanto argumenta que os dois primeiros pedidos são pedidos típicos de uma ação de demarcação, não restando dúvidas sobre os factos essenciais constitutivos da situação jurídica que o A. pretende fazer valer” e que “não pretende obter a declaração de que é proprietário, nem tampouco discutir a sua amplitude, apenas definir as extremas de dois prédios contíguos, de proprietários distintos, em relação aos quais existe uma indefinição das respectivas extremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de saber onde acaba um prédio e começa o outro.
Cumpre apreciar e decidir.
Retomando, com alterações e correções, o que se escreveu no acórdão proferido em 14 de novembro de 2022, no processo nº 2041/21.6T8PNF.P1, com intervenção deste colectivo, a ação de reivindicação permite ao titular do direito de propriedade ou de outro direito real exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa de que é titular o reconhecimento do seu direito e a consequente restituição da coisa que lhe pertence ou sobre a qual tem outro direito real que não o direito de propriedade (artigos 1311º, nº 1 e 1315º, ambos do Código Civil).
Na eventualidade de ser reconhecido o direito de propriedade ou outro direito real, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei (artigo 1311º, nº 2, do Código Civil), isto é, desde que exista norma legal que permita ao possuidor ou detentor a manutenção da posse ou detenção, não obstante o reconhecimento do direito de propriedade ou outro direito real de gozo ao reivindicante.
No entanto, na realidade diária e, além do mais, dadas as limitações do nosso sistema registral quanto à precisa e inequívoca definição da composição, área e limites dos imóveis descritos[6], é frequente o reconhecimento do direito de propriedade sem a concomitante imposição do dever de restituição da coisa a que respeita o direito reconhecido.
Enquanto meio de defesa de um direito real, a ação de reivindicação pressupõe a precisa identificação e delimitação da coisa reivindicada[7].
Porém, por variadas vicissitudes, como seja a ignorância dos limites dos prédios e a identidade dos confrontantes, seja em consequência do crescente afastamento das pessoas da terra, seja ainda em decorrência de encobertas ações de usurpação, nem sempre a delimitação dos imóveis se acha definida de forma inequívoca e indiscutida, com a existência de marcos respeitados pelos confinantes ou com outros sinais igualmente respeitados, como sejam muros, fragas, ribeiros, etc…
Nesta eventualidade, em ordem a dissipar as dúvidas existentes quanto aos limites dos prédios, o proprietário tem o direito potestativo de exigir aos proprietários confinantes que concorram para a demarcação das estremas entre o seu prédio e os deles (artigo 1353º, do Código Civil).
De forma sintética, pode dizer-se que enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites[8], operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza.
Tem sido jurisprudência constante[9], ao menos à luz da jurisprudência publicada, a afirmação de que existe incompatibilidade substancial de pedidos no caso de cumulação real de pedido de reivindicação e de demarcação[10].
No entanto, recentemente, alguma doutrina tem questionado essa jurisprudência[11], com argumentos ponderosos do ponto de vista dogmático e de uma adequada e eficiente gestão dos instrumentos processuais, sendo de admitir desenvolvimentos futuros na jurisprudência, aderindo ou criticando essas posições doutrinais.
Pela nossa parte, não cremos que exista uma verdadeira incompatibilidade de efeitos jurídicos entre o pedido de reivindicação e de demarcação, pois que também a reivindicação, na sua vertente de restituição, implica a prévia definição precisa dos limites do imóvel a restituir e, por outro lado, da definição das estremas entre os prédios em ação de demarcação pode resultar demonstrada uma violação desses limites, nomeadamente com a realização de construções dentro dos limites determinados em sede de ação de demarcação.
A nosso ver, incompatibilidade existe sim ao nível das causas de pedir pois que enquanto a reivindicação pressupõe a certeza quanto aos limites do imóvel reivindicado, a demarcação envolve necessariamente uma incerteza quanto à definição de uma ou mais confrontações do prédio a demarcar, surgindo a pretensão de demarcação precisamente para pôr termo a tal situação de dúvida.
Importa ainda reter que a incerteza dos limites dos prédios nem sempre é inicial, surgindo amiúde no desenvolvimento da lide, muitas vezes por força das contingências probatórias, o que deve motivar alguma reflexão sobre os meios a adotar para uma mais eficiente utilização dos meios processuais e para uma tanto quanto possível expedita resolução do conflito em que as partes estão envolvidas.
No caso em apreciação importa antes de mais verificar se, como se pressupõe na decisão recorrida, na petição inicial foram efetivamente deduzidos em cumulação real pedidos de reivindicação e de demarcação[12].
Atentando na integralidade da petição inicial e especialmente nos artigos 13, 14, 24, 25, 27 e 30 a 34 da petição inicial, verifica-se que a pretensão principal do autor é a de demarcação do seu prédio do prédio dos réus, indicando para tanto, por remissão para uma planta e em função daquilo que considera título para efeitos de demarcação[13], a linha divisória dos referidos imóveis e apenas por efeito da linha divisória que reputa ser a correta e que indica no artigo 30 da petição inicial, surgem os pedidos de demolição do muro e da garagem.
De facto, há alguma inépcia do autor na “arrumação” dos pedidos que a final deduz, já que, se não se tiver em conta a globalidade da petição inicial e a sua razão de ser, pode ficar-se com a ideia errada a nosso ver, como sucedeu com o tribunal recorrido, que os dois primeiros pedidos correspondem a uma autónoma pretensão reivindicatória, enquanto o terceiro pedido corresponde a uma pretensão de demarcação.
Na realidade, os dois primeiros pedidos acham-se com o terceiro pedido numa espécie de subsidiariedade invertida, se nos é lícita a expressão, na medida em que são para ser conhecidos no caso de procedência do terceiro pedido. Em bom rigor, o primeiro e o segundo pedido formulados nesta ação, olhando ao integral conteúdo da petição inicial, são pedidos dependentes, sendo principal o pedido de demarcação.
Nesta leitura da petição inicial não só não existe qualquer incompatibilidade substancial de pedidos como nem sequer se verificam causas de pedir contraditórias, na medida em que a pretensão de demolição do muro e da garagem e do respeito do direito do autor definido pela linha divisória que o mesmo indica surgem como mera decorrência da procedência da pretensão de demarcação e no pressuposto que a linha divisória vem a ser fixada nos termos indicados pelo autor.
Assim sendo, não se verifica a incompatibilidade substancial de pedidos que o tribunal recorrido entendeu existir, não enfermando deste modo a petição inicial de ineptidão e ficando prejudicado o conhecimento da questão enunciada para ser conhecida em segundo lugar.
Pelo exposto, deve ser revogada a decisão recorrida que julgou verificada a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial e consequentemente absolveu os réus da instância, devendo os autos prosseguir os seus termos, salvo se se verificar algum outro obstáculo processual ainda não conhecido.
As custas do recurso são da responsabilidade da recorrida já que decaiu (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por AA, e, em consequência, em revogar a decisão recorrida proferida em 30 de abril de 2022, devendo os autos prosseguir os seus termos, salvo se se verificar algum outro obstáculo processual ainda não conhecido.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrida já que decaiu (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 09 de janeiro de 2023
Carlos Gil
Mendes Coelho
Joaquim Moura
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[1] O conteúdo do artigo 30º da petição inicial é o seguinte: “Neste sentido, o Autor faz juntar aos presentes autos uma planta, elaborada pelo Técnico AA, do gabinete de Arquitetura, Engenharia, Urbanismo e Topografia V..., com uma proposta de limite ao seu terreno (demarcada a vermelho), que respeita as respetivas áreas dos terrenos das partes – Cfr. Doc. 8”.
[2] Porém, o autor, pouco antes, alegou que o seu prédio tem a área total de 850 m2 e que a área descoberta do seu prédio era de 656 m2. Na realidade, se a área coberta do prédio do autor é de 192 m2 e se a sua área total é de 850 m2, a área descoberta tem de ter 658 m2. Para ter de área descoberta 656 m2, a área coberta terá de ser de 194 m2, como aliás o autor também alegou no artigo 12 da petição inicial em contradição com a área coberta que havia alegado no precedente artigo. A documentação oferecida pelo autor com a sua petição inicial e referente ao artigo matricial urbano nº ... refere uma área coberta de 194 m2.
[3] O conteúdo do artigo 16 da contestação-reconvenção é o seguinte: “Linha essa que é feita através de muro que se prolonga em toda a extensão dos prédios confinantes, de altura variável de 1,50 m a 2,00 m, que serve, por sua vez, de divisão entre a garagem do prédio dos Réus e o anexo/ou garagem do prédio do autor.
[4] Este período é a reprodução integral do artigo 14 da contestação-reconvenção.
[5] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 02 de maio de 2022.
[6] A presunção iuris tantum emergente do artigo 7º do Código do Registo Predial, como é jurisprudencialmente referido de modo quase unânime, não abarca a composição e as confrontações da descrição predial, cingindo-se à existência do direito registado e à sua titularidade, bem como à existência de eventuais ónus registados (Vejam-se os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, todos acessíveis no site da DGSI: de 12 de fevereiro de 2008, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, no processo nº 08A055; de 14 de novembro de 2013, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Serra Baptista, no processo nº 74/07.3TCGMR.G1.S1; de 03 de março de 2015, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Júlio Gomes, no processo nº 210/12.8TBGMR-D.G1.S1 e de 11 de fevereiro de 2016, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Lopes do Rego, no processo nº 6500/07.4TBBRG.G2.S3).
E bem se compreende o alcance limitado de tal presunção, na medida em que aqueles elementos da descrição, não são percecionados pelo Sr. Conservador do Registo Predial que procede ao registo, antes derivam de declarações dos interessados, ainda que documentadas, mas sem a garantia de fiabilidade dos documentos que titulam a realização dos negócios com eficácia real, por falta da intervenção de uma entidade certificadora e dotada de fé pública na recolha e perceção dos dados de factos que vão instruir as declarações dos interessados. Sublinhe-se que este raciocínio também vale para as declarações dos interessados para efeitos de inscrição ou alteração matricial.
Por isso, o que consta da descrição do registo predial quanto à área, composição e confrontações do imóvel de que os autores se afirmam donos, não está abrangido pela presunção legal vertida no artigo 7º do Código do Registo Predial.
[7] É uma decorrência do princípio da especialidade ou da individualização, na terminologia do Professor Orlando de Carvalho (deste autor veja-se Direito das Coisas, Coimbra Editora 2012, páginas 163 a 169).
[8] No caso de reivindicação de bem móvel, a dificuldade da ação reduz-se à precisa identificação da coisa reivindicada na medida em que os bens móveis, ressalvados os casos em que se integrem numa obra, sementeira ou plantação, como sucede nos casos de acessão, são por natureza destacados da superfície terrestre.
[9] Sem preocupações de exaustividade, por ordem cronológica, vejam-se os seguintes acórdãos, todos acessíveis na base de dados da DGSI: acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, processo 02A1029; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09 de outubro de 2008, processo 1192/08-3; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 31 de outubro de 2013, processo 98/11.6TBNIS.E1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de abril de 2018, processo 75/15.8T8TMC.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de janeiro de 2021, relatado pelo Sr. Desembargador segundo-adjunto nestes autos, processo 4029/18.4T8STS.P1; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1 e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de fevereiro de 2022, processo 768/21.0T8CVL.C1.
[10] Se a cumulação não for real, se for subsidiária, a oposição entre os pedidos não constitui qualquer obstáculo à admissão de tal cumulação, como inequivocamente decorre do nº 2 do artigo 555º do Código de Processo Civil.
[11] Referimo-nos aos comentários críticos do Sr. Professor Teixeira de Sousa aos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1 e do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1, publicados no blogue do IPPC, respetivamente, em 25 de outubro de 2021 e em 29 de março de 2022 e ao comentário crítico do Sr. Juiz Conselheiro Urbano Aquiles Dias também publicado no blogue do IPPC em 27 de março de 2022 e intitulado “Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação”.
[12] No estudo antes referido, citando a Sra. Professora Paula Costa e Silva, o Sr. Juiz Conselheiro Urbano Aquiles Dias alerta para a necessidade de uma prévia interpretação dos articulados das partes e mediante os quais o feito é introduzido em juízo em ordem a identificar com a máxima precisão as pretensões deduzidas.
[13] Recorde-se o que a este propósito há já quase um século escreveu Luiz da Cunha Gonçalves, no Volume XII do seu Tratado de Direito Civil em Comentário ao Código Civil, Coimbra Editora 1937, página 128, em anotação ao artigo 2341º do Código Civil de 1867 ao afirmar que “Deve notar-se que os títulos de adquisição e as certidões do registo do domínio ou da posse não conteem [no texto original, “conteem” tem um til no primeiro “e”, sinal que com o atual processador de texto não se consegue colocar sobre tal letra] jamais, nem podem conter a linha divisória, onde os marcos possam ser cravados; porque as descrições dos prédios são feitas, sempre, pela simples indicação dos confinantes na direcção dos quatro pontos cardiais, - norte, sul, leste, oeste, mencionando-se os respectivos nomes, se os teem [reitera-se a observação precedente entre parênteses retos], ou os nomes dos proprietários, que o forem na data da descrição, e podem ser outros ao tempo da demarcação. Por isso, o legislador, determinando que a demarcação se faça em face dos títulos comprobativos do domínio, estabeleceu um preceito ineficaz para a quási totalidade dos casos.