Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2425/12.0TACBR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: CORREÇÃO DA SENTENÇA
MODIFICAÇÃO ESSENCIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
NULIDADE
Nº do Documento: RP201511042425/12.0TACBR.P1
Data do Acordão: 11/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O mecanismo de correção da sentença previsto no artº 380º 1 b) CPP, não pode ser utilizado para suprir a omissão de pronuncia, como provado ou não provado, em relação a um facto constante da acusação e que não consta da sentença.
II – Tal acrescento constitui, em maior ou menor grau, uma modificação essencial do decidido, extravasando o âmbito de aplicação do artº 380º 1 b) CPP.
III – Aquela falta de pronúncia sobre facto alegado na acusação, constitui a nulidade da sentença prevista nos artºs 374º2 e 379º1ª) CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 2425/12.0TACBR.P1
1ª Secção

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
1. RELATÓRIO

A – Decisão Recorrida

No processo comum singular nº 2425/12.0TACTR, que correu termos na Comarca do Baixo Vouga, Aveiro, Juízo de Média Instância Criminal, J2, o M.P. deduziu acusação contra o arguido B…, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência, p.p. pelos Artsº 137 nº1 e 69 nº1 al. a), ambos do C. Penal.

C… e D… deduziram pedido de indemnização cível contra E…, SA, pela condenação no valor global de € 160.000,00 a título de danos não patrimoniais.
Também o Instituto da Segurança Social, I.P., deduziu pedido de reembolso contra E…, SA, pela sua condenação na importância de € 213,86.

Efectuado julgamento, veio o arguido a ser absolvido da prática do crime que lhe era imputado.

Em sede de indemnização cível, foi julgado improcedente o pedido deduzido pelo Instituto da Segurança Social, I.P. e parcialmente procedente o formulado por C… e D…, tendo, em consequência, sido a E…, SA, condenada a pagar-lhes a quantia de € 106.500,00, acrescida de juros de mora.

Após a prolação da sentença, veio a Mmª juiz a quo proferir despacho, no qual, ao abrigo do Artº 380 do CPP, aditava à matéria de facto constante da sentença em causa, o Artº 15 da acusação.

B – Recursos

Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., quer da sentença, quer do referido despacho.

B.1. – Recurso do despacho

Neste domínio, apresentou as seguintes conclusões (transcrições):
1)
Nos presentes autos foi proferida douta sentença em 16/09/2014 na qual o arguido B… foi absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 137º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que lhe havia sido imputado na acusação pública proferida nos autos.
2)
O Ministério Público recorreu da douta sentença proferida, pugnado pela sua nulidade.
3)
Em 18/09/2014 foi proferido pela Mma. Juiz a quo despacho no qual adita um facto (correspondente ao facto 15 da acusação pública) ao elenco dos factos dados como provados na sentença, ao abrigo do disposto no artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
4)
Salvo melhor entendimento, o mecanismo da correcção da sentença previsto no artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, tem um âmbito limitado, uma vez que as correcções que o mesmo permite não podem acarretar modificação essencial do decidido, consubstanciando um meio expedito de corrigir determinados aspectos da decisão – lapsos, obscuridade ou ambiguidade, sendo que para os demais aspectos terá de se lançar mão de outros meios processuais.
5)
Sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, no caso de um facto constante da acusação pública não constar do elenco dos factos dados como provados nem do factos dados como não provados na sentença tal não pode ser corrigido pelo mecanismo previsto no artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, em virtude de tal correcção acarretar uma modificação essência do decidido e consubstanciar causa da nulidade da sentença nos termos dos artigos 379º, n.º 1, alínea a), 374º, n.º 2 e 368º, do Código de Processo Penal.
6)
Aplicando-se ao Processo Penal o princípio estabelecido no artigo 613º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sendo proferida a sentença ficar imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, ficando desta forma vedado ao Juiz após o proferimento da sentença, suprir nulidades da sentença ou proceder a correcções que importem modificação essencial do decido.
7)
Analisada a douta sentença proferida nos autos, salvo melhor entendimento somos de opinião que a sentença não padece de lapso, obscuridade ou nulidade, mas sim de nulidade, em virtude de não constar do elenco dos factos dados como provados o facto que a Mma. Juiz a quo agora pretende aditar à douta sentença proferida (correspondente ao ponto 15 da acusação pública deduzida), bem como os factos descritos nos pontos 16 a 20 da acusação, conforme se explana no recurso interposto da sentença proferida.
8)
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se nulo o decidido pela Mma. Juiz a quo no seu douto despacho de 18/09/2014.

B.2. – Recurso da sentença

Nesta, são as seguintes, as conclusões recursivas (transcrições):
1)
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B… imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, previstos e punidos pelos artigos 137º, n.º 1 e 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
2)
Por douta sentença proferida em 16/09/2014 a Mma. Juiz a quo julgou improcedente a acusação pública deduzida contra o arguido.
3)
A douta sentença ora recorrida não se pronunciou sobre parte dos factos imputados ao arguido, não constando da sentença qualquer referência aos mesmos nem tendo os mesmos sido elencados como provados ou não provados de acordo com a convicção do tribunal.
4)
Concretamente, a douta sentença não se pronuncia sobre a parte do libelo acusatório elencada de 15º a 20º, designadamente que:
“15º: Tais lesões traumáticas crânio-cervicais, encefálicas e pélvicas causaram directa e necessariamente a morte de F…, ocorrida no dia 24 de Novembro de 2012, às 9h50m.
16º: O arguido encontra-se habilitado para conduzir veículos ligeiros de passageiros desde 06-01-1971, circulando com regularidade na Estrada Nacional n.º …, sendo conhecedor das suas específicas características.
17º: O arguido actuou sabendo que nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas podia e devia circular a uma velocidade inferior a 50 quilómetros horários, a uma distância da berma direita que lhe permitisse evitar o embate em F…, a qual avistou quando se encontrava a uma distância de 50 metros da mesma.
18º: Não obstante, o arguido manteve a velocidade a que seguia e a circulação junto à berma direita, admitindo como possível que a sua conduta criava perigo para a vida e a integridade física dos demais utentes da via, nomeadamente para os aludidos peões, e que podia vir a causar-lhes lesões ou mesmo a morte, o que veio a suceder.
19º: O arguido podia e devia ter adoptado o comportamento adequado a evitar os factos supra descritos, circulando com a atenção e a prudência que deve ser dispensada a uma actividade perigosa como é a condução, tanto mais que se encontra habilitado a conduzir veículos ligeiros de passageiros há 42 anos e circula com frequência na Estrada Nacional n.º …, sendo, por isso, conhecedor das suas específicas características.
20º: O arguido agiu, pois, com acentuada falta de atenção e de cautela, sabendo que o exercício da condução nas referidas circunstância era proibido e punido por lei.”.
5)
O facto de na douta sentença ora recorrida não terem sido analisados os pontos 15º a 20º da acusação pública implica, salvo melhor entendimento, a sua nulidade nos termos dos artigos 379º, n.º 1, alínea a), 374º, n.º 2 e 368º, do Código de Processo Penal.
6)
A douta sentença proferida, salvo melhor entendimento, é nula por não conter as menções referidas no n.º 2 do artigo 374º, do Código de Processo Penal, nomeadamente por não se pronunciar relativamente a parte da acusação pública proferida – artigos 15º a 20º.
7)
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se a nulidade da douta sentença recorrida e determinando-se a devolução do processo ao tribunal recorrido para ser proferida nova decisão.

C – Resposta ao Recursos

Não foram apresentadas quaisquer respostas aos referidos recurso.
D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmª Procuradora Geral Adjunta, que pugnou pela procedência dos dois recursos.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foram formuladas respostas.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Na verdade e apesar do recorrente delimitar, com as conclusões que retira das suas motivações de recurso, o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, este contudo, como se afirma no citado aresto de fixação de jurisprudência, deve apreciar oficiosamente da eventual existência dos vícios previstos no nº2 do Artº 410 do CPP, mesmo que o recurso se atenha a questões de direito.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem, assim, da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no nº 2 do Artº 410 do CPP, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no nº1 do Artº 379 do mesmo diploma legal.
Tendo em conta as conclusões dos recursos em causa, são as seguintes as questões sujeitas à apreciação deste tribunal:

1) Nulidade do despacho;
2) Nulidade da sentença;

B – Apreciação

Definidas as questões a tratar, importa começar a aferição jurídica, em termos sistemáticos, pelo recurso do despacho proferido após a decisão e depois, por aquele que versa sobre esta.

B.1. Recurso do despacho

Como atrás se disse, nos autos foi lavrada, em 16/09/14, sentença absolutória, em relação ao arguido, pela prática do crime que lhe era imputado, de homicídio por negligência, sendo que, dois dias depois, em 18/09/14, foi proferido despacho, que gera o presente recurso e que reza assim (transcrição):

Constata-se que a sentença proferida no pretérito dia 16 de Setembro enferma de inexactidão, que se extrai do próprio cotejo do seu conteúdo, e que leva a concluir pela existência de manifesto lapso de escrita proveniente do processamento informático, que desde já e nos termos permitidos pelo artigo 380º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal, se corrige, para os legais efeitos.
De facto, constatou o tribunal que na matéria dada como provada não conta o ponto 15 da douta acusação:
Tais lesões traumáticas crânio-cervicais, encefálicas e pélvicas causaram directa e necessariamente a morte de F…, ocorrida no dia 24 de Novembro de 2012, à 9h50m”.
Ora, analisando a sentença em causa, facilmente se constata que tal se deve a um lapso informático.
Senão vejamos:
- Do próprio texto da sentença podemos verificar que no ponto 13 da matéria dada como provada se encontram descritas as lesões que a F… sofreu em consequência do embate no veículo conduzido pelo arguido;
- No ponto 14 da matéria dada como provada quanto ao pedido de indemnização civil consta que a menor F… faleceu no dia 24 de Novembro de 2012, pelas 9 horas e 50 minutos, no Hospital Pediátrico de Coimbra;
- Na parte respeitante à motivação é feita referência aos vários documentos clínicos que constam nos autos como seja o relatório de autópsia médico-legal de fls. 280 a 283, o relatório histopatológico de fls. 284 e elementos clínicos de fls. 1 a 7, fls. 20 a 56 e fls. 60 a 110.
- Também na motivação, na parte respeitante ao pedido de indemnização civil, consta que “a mãe da menor falecida esteve sempre junto da mesma o que sucedeu cinco minutos após a ocorrência do sinistro até ao seu decesso”.
- O mesmo resulta claramente na parte é que é apreciada o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes e na decisão que é proferida sobre o mesmo.
*
Dispõe o artigo 380º do Código de Processo Penal que “O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
(…) b) A sentença contiver erro, lapso ou obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”.
No presente caso, estamos perante um vício que não diz respeito ao mérito da sentença e cuja eliminação não importa modificação essencial da sentença.
Assim sendo, por decorrer de mero “lapso calami”, e nos termos do referido normativo legal, procede-se à correcção da sentença nos seguintes termos:
A seguir ao ponto 13 da matéria dada como provada da acuação (fls. 5 da sentença) passa a constar o seguinte:
13-A – “Tais lesões traumáticas crânio-cervicais, encefálicas e pélvicas causaram directa e necessariamente a morte de F…, ocorrida no dia 24 de Novembro de 2012, à 09h50m”.
Proceda-se à correcção no local próprio, lavrando-se cota com menção ao presente despacho.
Notifique.”

Ora, com o devido respeito por opinião contrária, este despacho é nulo e de nenhum efeito, na medida em que ao proceder ao aditamento de um facto como provado e sobre o qual a sentença anteriormente produzida nada havia referido, a Mmª Juiz a quo foi para além do seu poder jurisdicional, nesse momento, já esgotado, com a prolacção da sentença.
Como bem assinala o recorrente «…o mecanismo da correcção da sentença previsto no artigo 380º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, tem um âmbito limitado, uma vez que as correcções que o mesmo permite não podem acarretar modificação essencial do decidido, consubstanciando um meio expedito de corrigir determinados aspectos da decisão – lapsos, obscuridade ou ambiguidade, sendo que para os demais aspectos terá de se lançar mão de outros meios processuais»
Ora, se assim é, e esta parece ser uma asserção indiscutível, não se pode aceitar que a não inclusão de um facto constante da acusação, quer no elenco dos factos provados, quer dos não provados, possa ser corrigida pelo mecanismo previsto no Artº 380 nº1 al. b) do CPP, pensado, apenas, para lapsos, obscuridades ou ambiguidades, que sendo meramente de pormenor, assim possam ser reparados, sem que se afecte, minimamente que seja, o sentido e a essência do antes decidido.
Daí que não se possa aceitar que se aproveite a faculdade decorrente dessa norma para suprir um vício de sentença, consubstanciado na omissão de pronúncia em relação a um facto constante da acusação e que não consta do desenho factual plasmado na sentença, provado ou não provado, pois essa acrescento factual constituirá sempre – em maior ou menor grau, consoante a importância e a dimensão do facto em causa – uma modificação essencial do que anteriormente se decidira, extravasando-se por isso, de forma evidente e manifesta, o âmbito de aplicação do Artº 380 nº1 al. b) do CPP.
Na verdade, a não pronúncia em relação à matéria factual que é imputada ao arguido – isto é, a sua não inclusão, seja nos factos provados, ou nos não provados – constitui uma nulidade da decisão, por o tribunal não se ter pronunciado sobre matéria à qual estava obrigado, nos termos combinados dos Artsº 374 nº2 e 379 nº1 al. a), ambos do CPP.
Ora, as nulidades de decisão, como se sabe, apenas podem ser supridas ou anuladas, por via do competente recurso.
Isto mesmo resulta do Artº 613 do CPC, aplicável por força da remissão do Artº 4 do CPP, segundo o qual, com a prolacção da sentença, esgota-se o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, sendo-lhe por isso vedado suprir nulidades da sentença ou proceder a correcções, que importem modificação essencial do decidido.
Ao actuar como acima descrito e salvo melhor entendimento, a Mmª Juiz a quo usou um poder jurisdicional que já não possuía – desde a prolacção da sentença – corrigindo uma nulidade ao abrigo de uma norma, o aludido Artº 380, que não lhe permitia que assim tivesse agido.
É pois, tal despacho nulo, não devendo produzir efeitos, o que leva, inevitavelmente, à procedência do recurso.

B.2. Recurso da sentença

Relaciona-se este recurso, de algum modo, com o anterior, na medida em que está apenas em causa a circunstância de, na sentença recorrida, na qual recorde-se, se absolveu o arguido da prática de um crime de homicídio por negligência, a Mmª Juiz a quo não se ter pronunciado relativamente aos pontos 15º a 20º da acusação, onde se dizia o seguinte:
“15º: Tais lesões traumáticas crânio-cervicais, encefálicas e pélvicas causaram directa e necessariamente a morte de F…, ocorrida no dia 24 de Novembro de 2012, às 9h50m.
16º: O arguido encontra-se habilitado para conduzir veículos ligeiros de passageiros desde 06-01-1971, circulando com regularidade na Estrada Nacional n.º …, sendo conhecedor das suas específicas características.
17º: O arguido actuou sabendo que nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas podia e devia circular a uma velocidade inferior a 50 quilómetros horários, a uma distância da berma direita que lhe permitisse evitar o embate em F…, a qual avistou quando se encontrava a uma distância de 50 metros da mesma.
18º: Não obstante, o arguido manteve a velocidade a que seguia e a circulação junto à berma direita, admitindo como possível que a sua conduta criava perigo para a vida e a integridade física dos demais utentes da via, nomeadamente para os aludidos peões, e que podia vir a causar-lhes lesões ou mesmo a morte, o que veio a suceder.
19º: O arguido podia e devia ter adoptado o comportamento adequado a evitar os factos supra descritos, circulando com a atenção e a prudência que deve ser dispensada a uma actividade perigosa como é a condução, tanto mais que se encontra habilitado a conduzir veículos ligeiros de passageiros há 42 anos e circula com frequência na Estrada Nacional n.º …, sendo, por isso, conhecedor das suas específicas características.
20º: O arguido agiu, pois, com acentuada falta de atenção e de cautela, sabendo que o exercício da condução nas referidas circunstância era proibido e punido por lei.”.

Como se sabe, a decisão proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo.
A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar, expõe os motivos de facto e de direito que a fundamentam e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para basear a decisão do tribunal.
O esqueleto factual de uma decisão judicial – provado ou não provado - mais não deve ser, do que a narração, metódica e sequencial, dos factos que resultaram provados e dos que assim não se traduziram, tendo por referência, como é evidente, os que constavam das peças processuais em discussão em audiência, acusação ou pronúncia, contestação, pedido de indemnização, bem como, de quaisquer outros que tenham resultado da discussão da causa e que para esta sejam relevantes.
Na verdade, como resulta do Artº 339 nº4 do CPP, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que, resultando da prova produzida em audiência, se mostrem importantes para todas as soluções jurídicas pertinentes, o que quer dizer que quando se afirma que o tribunal deve conhecer de todas as questões de facto que constituem o objecto de processo, implica que se pronuncie sobre todos os factos que constam daquelas peças processuais, ou resultem da discussão da causa, enumerando-os um a um, excluindo, naturalmente, as meras conclusões ou alegações de direito.
Só desta forma, aliás, é que a actividade de fiscalização e controle por parte dos tribunais superiores, relativamente às decisões proferidas em 1.ª instância, se desenhará como válida e eficaz.
Cabe assim ao tribunal de julgamento, individualizar os factos provados e não provados – para além, como é óbvio, de justificar tais motivações – sendo certo que a não inclusão de todos os factos constantes da acusação na fundamentação da decisão, valorados como provados ou não provados, gera a nulidade da sentença, nos termos combinados dos Artsº 368, 374 nº2 e 379 nº1 al. a), todos do CPP.
In casu, é isso que se verifica, na medida em que a instância sindicada omitiu a pronúncia factual em relação aos Artsº 15º a 20 da acusação pública, não os incluindo, quer nos factos provados, quer nos não provados.
Atento o teor do decidido – absolvição do arguido – é de prever que o tribunal os elencasse como não provados, excluindo o Artº 15 da acusação que tentou corrigir, por via do Artº 380 do CPP, incorporando-o, à posteriori na sentença, matéria já atrás apreciada.
Todavia, sempre assim teria de actuar, considerando-os, expressamente, como não assentes, como fez, aliás, relativamente a outros factos também exarados na acusação do M.P., sob pena de cometer, como cometeu, o apontado vício da nulidade, deste modo qualificado, como se disse, ao abrigo das disposições conjugadas dos Artsº 374 nº2 e 379 nº1 al. a), ambos do CPP.
Caberá assim ao tribunal recorrido suprir esta nulidade, proferindo nova decisão, onde se faça incluir na factualidade em causa, provada ou não provada, a matéria descrita nos Artsº 15 a 20 da acusação pública.
Procede, pois, o recurso.
3. DECISÃO

Nestes termos, julgam-se procedentes os recursos interpostos pelo M.P. e em consequência:
- Declara-se nulo o despacho recorrido, não produzindo o mesmo qualquer efeito;
- Declara-se a nulidade da sentença recorrida, a qual deve ser suprida pelo tribunal a quo, proferindo-se nova decisão, que se pronuncie, factualmente, sobre os Artsº 15 a 20 da acusação pública.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.
xxx
Porto, 04 de Novembro de 2015
Renato Barroso
Vítor Morgado