Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
611/13.4TBFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
POSSE
REGISTO
PRESUNÇÕES
Nº do Documento: RP20170123611/13.4TBFLG.P1
Data do Acordão: 01/23/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º 641, FLS. 492-514)
Área Temática: .
Sumário: I - O registo da propriedade respeita a factos jurídicos causais dos direitos reais, mas já não à materialidade física dos prédios, razão porque a presunção que decorre da previsão do art. 7º do Código do Registo Predial não abrange os seus elementos descritivos, tais como àreas, limites e confrontações dos prédios.
II - Invocando o autor a propriedade sobre uma determinada parcela ou faixa de terreno, alegadamente parte integrante do seu prédio (inscrito a seu favor no respectivo registo), compete-lhe, assim, o ónus de prova dos factos que possam conduzir à sua aquisição originária, por usucapião, ocupação ou acessão.
III - Esta regra sofre, no entanto, duas excepções, sendo a primeira decorrente da presunção registral não ilidida (art. 7º do Código do Registo Predial) e a segunda decorrente da presunção de titularidade do direito a favor do possuidor (art. 1268º, n.º 1 do Código Civil).
IV - A presunção prevista no artigo 1268º, n.º 1 do Cód. Civil pode constituir fundamento para a acção de reivindicação, desde que o reivindicante demonstre a prática, reiterada e exteriorizada, de actos de posse (actuação material sobre a coisa correspondente ao exercício do direito de propriedade), sobre a coisa reivindicada.
V - O mero recebimento de uma indemnização, ainda que sob a qualidade de «proprietário», devida pela instalação por terceiro numa faixa de terreno (cuja propriedade é discutida nos autos) de uma servidão de aqueduto, não se reveste, sem mais, das características antes assinaladas e indispensáveis para efeitos de funcionamento da presunção de titularidade do direito de propriedade prevista no art. 1286º, n.º 1 do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 611/13.4TBFLG.P1 - Apelação
Origem: Comarca do Porto Este – Felgueiras – Instância Local – Secção Cível – J2.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Sousa Lameira.
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
* *
Sumário:
I. O registo da propriedade respeita a factos jurídicos causais dos direitos reais, mas já não à materialidade física dos prédios, razão porque a presunção que decorre da previsão do art. 7º do Código do Registo Predial não abrange os seus elementos descritivos, tais como àreas, limites e confrontações dos prédios.
II. Invocando o autor a propriedade sobre uma determinada parcela ou faixa de terreno, alegadamente parte integrante do seu prédio (inscrito a seu favor no respectivo registo), compete-lhe, assim, o ónus de prova dos factos que possam conduzir à sua aquisição originária, por usucapião, ocupação ou acessão.
III. Esta regra sofre, no entanto, duas excepções, sendo a primeira decorrente da presunção registral não ilidida (art. 7º do Código do Registo Predial) e a segunda decorrente da presunção de titularidade do direito a favor do possuidor (art. 1268º, n.º 1 do Código Civil).
IV. A presunção prevista no artigo 1268º, n.º 1 do Cód. Civil pode constituir fundamento para a acção de reivindicação, desde que o reivindicante demonstre a prática, reiterada e exteriorizada, de actos de posse (actuação material sobre a coisa correspondente ao exercício do direito de propriedade), sobre a coisa reivindicada.
V. O mero recebimento de uma indemnização, ainda que sob a qualidade de «proprietário», devida pela instalação por terceiro numa faixa de terreno (cuja propriedade é discutida nos autos) de uma servidão de aqueduto, não se reveste, sem mais, das características antes assinaladas e indispensáveis para efeitos de funcionamento da presunção de titularidade do direito de propriedade prevista no art. 1286º, n.º 1 do Código Civil.
* *
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO:
1.B…, SA” com sede em Rua …, …, Vizela, intentou a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo sumário, contra C… e mulher D…, residentes na …, …, …, Vizela, pedindo, a final, que sejam os RR. condenados a reconhecerem que a Autora é dona e legítima possuidora do prédio rústico, sito no Lugar de …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrito na CRP de Vizela sob o n.º 113 e inscrito na matriz sob o art.º 371 urbano, a restituírem as áreas de terreno que abusiva e ilegalmente vêm ocupando, designadamente a resultante da abertura do caminho de acesso automóvel ao prédio dos réus, com cerca de 3 m de largura por 30 de m de comprimento, a área ocupada pela ampliação do velho moinho, com a construção de uns anexos pelos réus, e a área aproximada de 50 m2 de terreno, situada defronte do prédio dos réus, por eles usada como estacionamento, assim como a demolirem os anexos por eles edificados no seu descrito terreno, deixando de circular, a pé e/ou com viaturas automóveis pelo “chão” do dito caminho aberto no mesmo terreno da autora, a não mais estacionarem viaturas automóveis na faixa de terreno situada defronte do seu prédio urbano e a pagarem à autora uma indemnização pela violação do seu direito em montante que cifram em 3.000€;
Para tanto, alega, e no que aos autos interessa, que é ela dona do citado prédio rústico, que os réus, por seu turno, são donos do prédio urbano sito na Rua …, da dita freguesia de …, descrito na CRP de Vizela sob o n.º 586 e inscrito na respetiva matriz sob o art. 170.º, que a única forma de aceder ao dito prédio era a pé e por um caminho que atravessa o seu prédio (da Autora), assim se tendo constituído, por usucapião, uma servidão de passagem a pé, a onerar o seu prédio e a favor do prédio dos Réus.
Sucede, porém que os mesmos Réus, após a aquisição do seu prédio, em meados de 2009, procederam a obras de ampliação do mesmo (alterando a área coberta com a construção de uns anexos), procederam à abertura do caminho de servidão/acesso ao seu prédio (com a largura de 3 m e o comprimento de 30 m, partindo do final de um velho caminho público existente no local e prolongando-o até ao prédio urbano de que são proprietários.
Deste modo, segundo a Autora, as aludidas obras de ampliação do prédio urbano dos RR. (um velho moinho), com o aumento da sua área coberta e descoberta (zona de estacionamento de viaturas) e de abertura do «novo» caminho de acesso tiveram lugar em prédio alheio (dela Autora), sem o seu consentimento e/ou autorização, em razão do que são ilegais, devendo os réus repor a situação anterior a esta sua conduta, assim como responder pelos danos causados com tal ocupação indevida.
*
2. Citados, os Réus apresentaram contestação onde impugnaram, de uma forma geral a factualidade alegada pela Autora, sustentando, no essencial, que o caminho descrito pela Autora não se insere ou situa no seu prédio (que termina, precisamente, na arribada existente junto desse caminho), antes constituindo um caminho público, sendo, ainda, certo que não efectuaram eles uma qualquer obra de ampliação do seu prédio urbano, mantendo-se este inalterado e com as dimensões que já possuía quando o adquiriram, tendo apenas reparado a varanda existente no mesmo e, quanto ao caminho (público) efectuado a respectiva limpeza das suas bermas.
Acresce que, a existir ampliação do prédio dos RR., essa ampliação verificar-se-ia sobre o aludido caminho público e nunca sobre o prédio da Autora, sendo certo que este último confronta a nascente com caminho e não com qualquer terreno contíguo, designadamente o prédio dos RR.
Por último, e a título subsidiário - «sem prescindir e por uma questão de mero patrocínio» -, no caso de se entender que o aludido caminho não é público e se insere no prédio da Autora, sempre sobre o mesmo incidiria uma servidão de passagem, de pé e de automóvel, com início na Rua … e até ao prédio dos RR., com a largura de 2, 40 m, pois que assim o utilizam, por si e ante possuidores, há mais de 20 e 30 aos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e com conhecimento de todos.
Mais, ainda, sustentaram que a actuação da Autora lhes causou enorme desgosto e tristeza, vendo-se envolvidos no presente processo judicial, o que lhes causou sofrimento, desalento e vergonha, deixando de conseguir dormir, andando exaltados e alterados, o que os afectou na sua saúde.
Concluíram, assim, os RR. pela improcedência da presente acção e, em reconvenção, concluíram peticionando que seja a Autora condenada a reconhecer que o caminho que dá acesso ao seu prédio é um caminho público, ou, se assim [s]e não entender e sem prescindir, ser a Autora condenada a reconhecer a servidão de passagem alegada e sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR, ser condenada a reconhecer que o terreno junto ao rio, imediatamente a seguir ao caminho é público, numa extensão de 10 m em relação à respectiva margem do rio, ser condenada a reconhecer que os RR. são proprietários do prédio descrito no art. 2º da petição inicial e com a área total de 81, m2 e, ainda, ser condenada no pagamento da quantia de €3.500,00, a título de danos morais, a favor de cada um dos RR.

3. A Autora apresentou articulado de resposta impugnando a matéria reconvencional e, a final, pugnando pela respectiva improcedência, mantendo o peticionado.
*
4. Procedeu-se à elaboração de despacho saneador em termos tabelares, tendo sido dispensada a seleção da matéria de facto, e admitido o pedido reconvencional deduzido.
*
5. Concluído o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, reconheceu que a autora é dona do prédio rústico situado no lugar de …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrito na CRP de Vizela sob o n.º 113 e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 371º, a confrontar do Norte com caminho e E…, do Sul com F…, Nascente com caminho e poente com rego de consortes, absolvendo no mais os RR. e, ainda, julgou improcedente a reconvenção, absolvendo a Autora dos pedidos contra si formulados.
*
6. Não se conformando com o assim decidido, veio a autora interpor recurso de apelação, deduzindo as seguintes
CONCLUSÕES
1ª - "I - A acção de reivindicação, para proceder, comporta: a) Dois requisitos subjetivos — que o autor prove ser proprietário da coisa que reivindica e que o réu possua tal coisa; e, B) Um pressuposto objetivo — a identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelo demandado, II — Reconhecido o direito de propriedade do demandante, o pedido de restituição procederá, como sequela do direito real, e só poderá ser recusado nos casos previstos na lei (art. 1311, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil (REI 26-1-1989, BMJ, 3840 664, in CC anotado, Abílio Neto, pág. 1235, 65.)
2ª - A prova da propriedade da Autora sobre o prédio descrito em II. A) A) está feita, já que beneficia da presunção, não ilidida, do registo predial de inscrição de transmissão da propriedade a seu favor.
3ª – Acresce que este seu direito de propriedade sobre o caminho acaba até por ser reconhecido pelos RR, embora implicitamente, quando eles pedem, em reconvenção, que a Autora seja condenada a reconhecer existir sobre o seu prédio e a favor do prédio dos RR uma servidão de passagem pelo dito caminho; como é evidente, tal só poderia acontecer se a Autora fosse, como efetivamente o é, proprietária do leito do mesmo caminho, pelo que são os próprios RR que aceitam e reconhecem este seu direito de propriedade.
4ª – Mais, a própria situação e configuração do caminho indicam que o mesmo pertence ao prédio da A, já que é ladeado pelo rio e pela parte restante do prédio da apelante, não sendo nem público nem pertença dos RR; a reforçar esta conclusão, o facto, da maior importância para o caso, de a “´G…” ter colocado caixas de visita no mesmo, com autorização da apelante, a quem pagou a respetiva indemnização, sem qualquer oposição ou reação por parte dos RR, que a tudo assistiram sem nada reclamar, o que constitui um ato de posse por parte da apelante sobre o caminho que faz presumir a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo, atento o previsto no art. 1268º do CCivil.
5ª – Os documentos juntos pela apelante na audiência de julgamento de 23/02/2016 (fotografias Google) e de 09/03/2016 (certidão camarária e carta da “G…”), o levantamento topográfico feito pelo perito nomeado pelo tribunal e o auto de inspeção ao local, devidamente analisados, permitem-nos fixar um quadro fáctico, que deve ser complementado através da formulação de presunções judiciais ou naturais, assentes nas regras ou máximas de experiência, do qual se deve concluir que a resposta de não provados dada aos pontos 1) a 8) foi incorreta, devendo tais factos ser considerados provados, procedendo-se ao seu aditamento, sequencial, aos factos provados.
6ª - Da mesma forma, a A/apelante considera que o facto constante de II – A) G) na sentença foi incorretamente julgado como provado, devendo assim ser o mesmo eliminado dos factos provados.
7ª – O levantamento topográfico e a inspeção ao local comprovam inequivocamente a existência de caixas de visita colocadas pela empresa “G…” no leito do caminho e bem assim a ampliação da construção/moinho feita pelos RR, com a construção de um anexo, assim ficando patente a má-fé processual destes ao negarem, na sua contestação, em 24º, e 25º e 45º, respetivamente, os factos supra.
8ª – Reconhecido que está o direito de propriedade da apelante sobre o prédio rústico em causa, deve entender-se que este abrange toda a área assinalada no levantamento topográfico, já que são os próprios RR que reconhecem ter o seu (deles, RR) apenas a área de 81 m2, como confessaram em 45º da contestação/reconvenção, não havendo qualquer outro prédio pertencente a terceiros no espaço em causa, como resulta do mesmo levantamento.
9ª - Não sendo o caminho público nem tendo sido provada pelos RR a invocada servidão de passagem, não há qualquer razão para que seja recusada a restituição do prédio ao seu legitimo proprietário, in casu a apelante, pelo que deveria ter sido a ação julgada totalmente procedente, com a consequente condenação dos RR nos pedidos contra eles deduzidos pela apelante da sua p.i.
10ª - Por último e sem prescindir, para a hipótese, que não se aceita, de a presente apelação ser julgada improcedente e se manter a decisão de 1ª instância, sempre a condenação em custas deveria ser alterada, fixando-se a mesma na proporção de 20% para a apelante e 80% para os RR.
11º - Foram assim violadas as normas legais previstas no art. 1311º do CC, no art. 7º do CRPredial e ainda no art. 527º do CPC.
Termos em deve a apelação ser julgada procedente por provada, revogando-se a sentença em recurso e substituindo-se por outra decisão que julgue a ação totalmente procedente por provada e condene os RR nos pedidos contra eles deduzidos em b) a e) da pi, com as legais consequências.
Caso assim se não entenda, sempre deverá a decisão proferida quanto a custas ser alterada, substituindo-se por outra que fixa as custas na proporção de 20% para a apelante e 80% para os RR.
*
7. Foram cumpridos os vistos legais.
* *
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso -cfr. cfr. arts. 635º, nº 3, e 639º, nsº 1 e 2, do Código de Processo Civil [aprovado pela Lei n.º 41/2013 de 26.06 – aplicável aos presentes autos e à presente apelação por força do preceituado nos arts. 5º, n.º 1 e 7º, n.º 1, ambos do preâmbulo ao citado diploma legal].
Neste pressuposto, as questões essenciais a decidir no presente recurso são as seguintes:
a)- alteração da facticidade julgada provada e não provada à luz dos meios probatórios convocados pela apelante;
b)- propriedade da Autora sobre o prédio rústico reivindicado, dele fazendo parte a área do caminho e a área adjacente ao prédio dos RR. [onde estes construíram uns anexos e onde instalaram uma «zona de estacionamento automóvel»], propriedade que decorrerá da presunção contida no art. 7º do Código do Registo Predial ou, ainda, da presunção de titularidade do direito de propriedade prevista no art. 1268º do Cód. Civil;
c)- sem prescindir, mesmo a manter-se a decisão recorrida, reavaliação do critério de repartição de custas constante da decisão recorrida.
* *
III. FUNDAMENTAÇÃO:
III.I. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O tribunal de 1ª instância julgou provada a seguinte facticidade:
A) A Autora é dona e legítima possuidora de um prédio rústico situado no lugar de …, freguesia de …, concelho de Vizela, nesta comarca, descrito na CRPredial de Vizela sob o n.º 113 e inscrito na respetiva matriz urbana sob o art. 371.º, a confrontar de Norte com caminho e E…, Sul com F…, Nascente com caminho e poente com rego de consortes.
B) Os réus são donos do prédio urbano sito na Rua …, dita freguesia de …, descrito na CRPredial de Vizela sob o n.º 586 e inscrito na respetiva matriz sob o art. 170.º, a confrontar de Norte e Poente com E…, Sul com herdeiros de H… e Nascente com Rio ….
C) Há cerca de 3 anos, a empresa “G…” realizou trabalhos no local – intercetor do Rio … – tendo instalado várias caixas de visita com o acordo da autora, pagando-lhe a respetiva indemnização.
D) O velho moinho funciona como um estabelecimento de restauração, vulgo “tasca” com a denominação “I…”, servindo refeições e petiscos vários aos clientes que lá se deslocam, quer à semana quer aos fins de semana.
E) Para lá chegarem, os réus, clientes e amigos, circulam em viaturas automóveis pelo caminho que depois estacionam num terreno defronte da “tasca”,
F) A autora apresentou na Câmara Municipal de Vizela um pedido de fiscalização da obra, denunciando os factos ocorridos.
G) O caminho referido em E) é utilizado não só pelos Réus mas também por outros proprietários de terrenos contíguos ao prédio dos Réus.
H) O prédio da autora situa-se a mais de 4 metros de altura em relação à cota do caminho referido em E).
I) Em 24/12/1998 J… pagou 50.000$00 à Junta de Freguesia de … pela colocação de um bocado de calceta em parte do caminho referido em E).
*
III.II. FUNDAMENTAÇÃO de DIREITO:
A. Como resulta da delimitação do objecto da presente apelação, a primeira questão que importa dirimir reporta-se à impugnação da matéria de facto por parte da apelante.
Nesta sede é de dizer que, como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos concretos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, no ver do Recorrente, deve ser encontrada para os pontos de facto objecto da impugnação, oferecendo a sua (própria) apreciação crítica da prova.
Neste sentido, preceitua, o art. 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil [doravante designado apenas por CPC] que «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Por outro lado, ainda, dispõe o n.º 2 do mesmo art. 640º que «a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.»
À luz do regime exposto, e seguindo a lição de A. ABRANTES GERALDES, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
- em quaisquer circunstâncias, o recorrente tem de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles meios de prova que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados;
- relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
- o recorrente deve ainda deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos. [1]
Com efeito, tendo por referência a comparação entre a primitiva redacção do art. 712º do anterior CPC e o actual art. 662º, a possibilidade de alteração da matéria de facto, que era antes excepcional, acabou por ser assumida, como função normal da Relação, verificados os requisitos que a lei consagra.
No entanto, como adverte ainda o mesmo Autor, ao impor ao recorrente o cumprimento dos aludidos ónus, nesta sede, visou o legislador afastar «soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.» [2] [sublinhados nossos].
Deve, assim, o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, «como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova, na linha do reforço do ónus de alegação, de forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão de facto;»
Com efeito, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo «impunham decisão diversa da recorrida» constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC, acentuando-se que o exercício do princípio do contraditório pela parte contrária e o exercício de reapreciação da matéria de facto pelo tribunal superior, enquanto garantia do segundo grau de jurisdição, impõem que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante.
Na verdade, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4 do CPC), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respectivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal «a quo».
Como assim, como salienta ANA LUÍSA GERALDES, o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, «deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente.» [3]
Neste contexto, é compreensível que se exija da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, «ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.» [sublinhado nosso] [4]
Nesta perspectiva, «não cumprem as exigências legais de especificação a mera indicação, sem mais de um determinado meio de prova (salvo casos excepcionais em que o mesmo deixe dúvidas quanto ao desacerto da decisão proferida pela 1ª instância), e também se revela insuficiente no que respeita à prova testemunhal, o extracto de uma simples declaração da testemunha, sem correspondência com o sentido global do depoimento produzido de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca de matéria controvertida.» [5]
Neste sentido, é de ressaltar que o objectivo do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) a pura e simples repetição das audiências perante a Relação mas a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de o Tribunal superior, na apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição, formar ele próprio a sua convicção (autónoma) sobre a materialidade impugnada, sujeito às mesmas regras de direito probatório adjectivo e material a que se encontra adstrito o tribunal de 1ª instância.
Como assim, a jurisprudência tem vindo a considerar que o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto terá de alegar, especificar e esclarecer o porquê da discordância, isto é, como e qual a razão por que é que determinados meios probatórios indicados e especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância, expondo a sua própria apreciação crítica dos meios probatórios por si convocados e revelando em que medida ela imporia uma decisão diversa da acolhida pelo tribunal recorrido.
Neste sentido, refere-se que o recorrente terá de «apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele, ou seja, obrigado está o recorrente a concretizar e a apreciar criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; (…) é exatamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida.» [6]
Feitas estas considerações prévias e tendo-as por critério orientador, cumpre decidir do caso concreto sob análise e da impugnação da decisão de facto invocada pela apelante.
Vejamos.
Nesta matéria, como resulta do teor das conclusões do recurso, discorda a apelante da facticidade julgada como provada sob a alínea G) dos factos provados na sentença recorrida – que deveria antes ter sido julgada não provada -, assim como da facticidade julgada não provada sob os n.ºs 1 a 8 da mesma sentença recorrida – que, em seu entender, deveria antes ter sido julgada provada.
Em abono desta sua discordância quanto à motivação invocada pelo tribunal recorrido e enquanto meios probatórios de suporte à mesma, invoca a apelante, nos termos do art. 640º, n.º 1 al. b)- do CPC, o auto de diligência de inspecção ao local, o levantamento topográfico efectuado nos autos por perito nomeado pelo tribunal, os documentos juntos em audiência de julgamento, quer na sessão de 23.02.2016 (fotografias Google), quer na sessão de 9.03.2016 (certidão camarária da CM de Vizela, carta das “K…“), complementados ainda pelas declarações de parte do legal representante da Autora, L…, e pela testemunha L…, «ouvidas em audiência de julgamento no dia 23.02.2016 (registo gravado no sistema citius das 10.38 às 11.16.00, o declarante e das 11.32.42 às 11.44.37, a testemunha).»
A matéria de facto posta em causa é a seguinte:
- O caminho referido em E) é utilizado não só pelos Réus mas também por outros proprietários de terrenos contíguos ao prédio dos Réus. (alínea G dos factos provados)
- O prédio referido em B), tem a área de 71 m2, era, originalmente, uma casa de azenha, construída de pedra, coberta de telha, tendo no r/c uma divisão com 2 pedras de mós, destinada a indústria de moagem e no andar 5 divisões para habitação. (n.º 1 dos factos não provados da sentença recorrida)
- A única forma de aceder a este velho moinho era a pé, por um caminho que atravessa o prédio da autora supra identificado, a quem pertence o “chão” do dito caminho. (n.º 2 dos factos não provados da sentença recorrida)
- O referido em C) tenha ocorrido no ano de 2008 em terreno pertença da autora. (n.º 3 dos factos não provados da sentença recorrida)
- Em meados de 2009, os Réus procederam a obras de ampliação no mesmo, alterando, para mais, a área coberta do mesmo, com a construção de uns anexos cobertos. (n.º 4 dos factos não provados da sentença recorrida)
- Na mesma altura, em terreno pertencente à autora, os réus procederam à abertura de um caminho de acesso ao seu prédio, com a largura de cerca de 3 m e o comprimento aproximado de 30 m, que, partindo do final de um caminho público existente no local, prolongaram até ao velho moinho de que são proprietários. (n.º 5 dos factos não provados da sentença recorrida)
- O único acesso ao prédio dos réus era o caminho de servidão que atravessa o prédio da autora, e pelo qual passavam apenas pessoas a pé, acompanhadas ou não de um burrinho para transporte de cereais de e para o velho moinho, quando o mesmo ainda funcionava como tal. (n.º 6 dos factos não provados da sentença recorrida)
- Quer as obras de ampliação do moinho quer a abertura do “novo” caminho de acesso à “tasca” foram obras novas, feitas pelos réus em terrenos da autora, sem que tenham obtido desta qualquer autorização ou consentimento para o efeito. (n.º 7 dos factos não provados da sentença recorrida)
- O espaço referido em E) tem uma área de cerca de 50 m2, que é pertença da autora, já que parte integrante do seu prédio rústico melhor identificado em A). (n.º 8 dos factos não provados da sentença recorrida)
Decidindo.
Relativamente à aludida matéria factual julgada provada e não provada, e estando em crise a correcção ou acerto do julgamento de facto levado pela 1ª instância, importa revelar a apreciação crítica dos meios de prova convocados pelo tribunal recorrido e para a formação da sua convicção, no sentido de detectar se existem, como alega a apelante, razões para dela divergir.
Assim, neste conspecto, o tribunal de 1ª instância fez consignar a seguinte fundamentação/motivação quanto à decisão de facto (sic):
«O tribunal fundou a sua convicção no acordo das partes expresso nos respetivos articulados e, ainda, na prova por declarações de parte e testemunhal produzida em audiência final, devidamente conjugada com o teor dos documentos juntos aos autos, valorando tais elementos probatórios de forma livre, crítica e conjugada, de harmonia com as regras de distribuição do ónus da prova elencadas nos artigos 342.º e seguintes, do Código Civil e com o princípio consagrado no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, sem olvidar o preceituado nos artigos 410.º, 413.º e 415.º, todos do mesmo diploma.
Concretizando:
Da diligência de inspeção judicial ao local, verificou-se que:
“1 - O acesso à construção dos Réus, nos autos designada por moinho, é feita através de um caminho em terra batida com inicio em estrada camarária e cuja largura é variável sendo que junto à referida construção tem a largura de 9,20m.
2 - Este acesso situa-se ao nível do rio e é ladeado por este no seu lado nascente, estando a poente uma parcela de terreno situada a uma cota superior numa altura variável e que, em face não só da vegetação existente como da altura da mesma, se mostra inviável aferir, sendo que a olho nu e na extremidade junto à construção/moinho, a referida cota do prédio da Autora situar-se-á a 8m de altura, relativamente ao caminho.
3 - Mais se visualiza no local, que o caminho permite o trânsito de veículos com e sem motor, estando o seu trilho devidamente marcado.
4 - Neste trilho visualiza-se uma caixa com os dizeres "G…, Saneamento", caixa esta situada a 9,40m da extremidade da construção/moinho.
5 - Visualiza-se no local que o caminho que se inicia na estrada camarária não se prolonga para lá da construção/moinho nos moldes mencionados, ou seja, em largura e características referidas, existindo no lado oposto daquela construção marcas de passagem a pé e que permitiam o acesso desta construção à estrada camarária, contornando o prédio da Autora a Norte.
6 - No limite Sul do prédio da Autora, a acesso mencionado em 1) tem a largura de 2,50m.
7 - Percorrendo este acesso desde esta extremidade e no sentido da construção/moinho, existe no leito do mesmo e a cerca de 10,80m uma outra caixa com a designação "G…, Saneamento".
8 - Na extremidade Sul do prédio da Autora, junto ao acesso ao referido moinho, é visível a existência de rochas de dimensão considerável, situação que se repete no restante percurso.
9 - Visualizada a construção existente, retira-se que o rés-do-chão da mesma é feito em pedra sendo o 1º andar revestido, na zona da varanda, em cimento, sendo o acesso a este feito por escadaria exterior com 12 degraus.
10 - Visualiza-se ainda um anexo na confrontação Sul da construção composto por pedra junto ao solo e prolongada essa construção em blocos de cimento encimadas por telha”.
Da prova por declarações de parte resultou o seguinte:
L…, legal representante da autora, declarou que:
Numa visita ao seu prédio verificou que os réus tinham aberto um caminho de acesso ao moinho e procedido à ampliação deste.
Referiu que o acesso a tal moinho sempre foi pedonal e pela parte de cima do seu prédio (referindo-se à confrontação sul), e que o caminho que atualmente dá acesso a tal moinho foi feito no seu prédio.
Disse que as caixas de visita instaladas no dito caminho pela empresa “G…” foram autorizadas por si e que recebeu indemnização por esse facto.
Mais disse que aquando da instalação do sistema de despoluição do M… a empresa abriu o tal caminho e a partir desse momento os réus passaram a usá-lo para acederem ao moinho onde funciona atualmente uma tasca, que este caminho tem largura que permite o trânsito de automóveis, que o mesmo se inicia no seu terreno e tem no mesmo cerca de 50 metros de comprimento.
Por fim, disse que o seu prédio é em declive e que confronta com o rio.
Confrontado com documento de fls. 13 referiu que foi na data nele aposta que apresentou a queixa junto da Câmara Municipal de Vizela e como tal reporta o seu conhecimento dos factos referentes à ocupação que reportou aquela data.
Este depoimento tem de ser analisado, desde logo, com a premissa que se trata de “parte” que, naturalmente, tem interesse na causa. Por outro lado, e como se refere no Ac. do Tribunal da Relação do Porto datado de 15/09/2014, disponível in www.dgsi.pt, “ As declarações de parte [artigo 466º do novo CPC] - que divergem do depoimento de parte – devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas, como meio probatório, não podem olvidar que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção. Seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos”.
Em face do exposto, importa apreciar se as declarações de parte proferidas se mostram corroboradas por demais prova.
Desde já, e no que se reporta quer ao facto do caminho estar inserto em prédio da autora, referimos que não.
Senão, vejamos:
Da prova testemunhal ouvida, resultou o seguinte:
A testemunha L…, amigo do gerente da autora, referiu que o terreno desta fica junto ao rio e que desde criança que conhece o local por ir para ali nadar.
Disse que o acesso ao moinho era feito através de um caminho estreito a Sul do mesmo, e que junto a este não havia qualquer espaço, sendo que agora existe no local um parque de estacionamento.
Mais disse que antigamente era impossível ir até ao moinho de carro e que o caminho que existe atualmente já permite esse acesso.
Situou o caminho a cerca de 2/3 metros de desnível do prédio da autora.
Referiu que a última vez que esteve no local verificou a existência de umas caixas de saneamento.
N…, vizinho dos réus, referiu que o caminho agora reivindicado pela autora sempre existiu, uma vez que o acesso a partir de cima nunca foi até ao rio. Disse que tal acesso sempre foi pelo caminho onde atualmente existem tampas de saneamento, sendo que as máquinas que efetuaram tal saneamento procederam a um alargamento do mesmo.
Afirmou que o seu sogro moía naquele moinho e deslocava-se para o mesmo através de tal caminho e mediante o uso do carro de bois.
Por fim, disse que o anterior proprietário do moinho deslocava-se para o mesmo de carro e que, inclusive, chegou a deitar saibro no leito do mesmo.
J…, anterior proprietário do prédio dos réus referiu ter adquirido tal prédio numa altura em que o mesmo estava abandonado e todo cheio de silvas, o que acontecia também com o caminho de acesso ao mesmo, e que se situa entre o rio e a arribada, não se passando no local, factos ocorreram há mais de 10 anos.
Mais disse que só existia aquele acesso ao moinho e que nessa altura pediu a um amigo para lhe levar terra para o leito do mesmo o que este fez mediante a utilização de um carro com caixa aberta.
Adiantou que a partir do momento em que limpou o caminho, as pessoas começaram a passar por ali.
Confrontado com a escritura de fls. 38 e 39 declarou que a mesma se reporta à compra que fez. No que se refere ao documento de fls. 36, denominado de guia de receita referiu que tal documento reflete a sua contribuição para a calceta do caminho.
Considerou-se o levantamento topográfico de fls. 106 que retrata o local, nomeadamente as áreas e características do mesmo.
De tal documento infere-se a localização do rio, do moinho, do prédio da autora e a área reivindicada por esta.
De igual modo se infere do levantamento efetuado a existência de um talude entre o prédio da autora e o espaço reivindicado.
Por fim, extrai-se de tal levantamento a área do prédio da autora (que é superior à constante do registo predial) e a área de superfície concreta do prédio dos réus (que é superior à área do registo predial).
A inscrição do prédio a favor da autora resulta da certidão predial de fls. 9 e 10 de onde se extrai a composição do imóvel da autora, nomeadamente as confrontações do mesmo, bem como a área.
Infere-se, ainda, de tal certidão que foi constituída uma servidão sobre tal prédio para colocação de caixas de visita.
Salienta-se desta descrição predial o facto do prédio da autora confrontar a Nascente com caminho (o que contraria a versão da autora que afirma que a nascente o seu prédio confina com o rio). Mais se salienta o facto de a autora ter registado uma área inferior àquela que consta do levantamento topográfico (3.490m2 na certidão e 4.285m2 no levantamento), facto que desabona a sua tese de que também a área ocupada pelo caminho pertencente a tal prédio.
As fotografias de fls. 41 e ss. retratam o local e a escritura de fls. 37 a 40 retrata a aquisição do prédio agora dos réus por parte do anterior proprietário.
Desta escritura infere-se que a área coberta do mesmo é de 71m2, não havendo referência a qualquer área descoberta, factos que coincidem com a área constante da certidão predial e matricial.
A este propósito e não obstante o registo predial atestar que o prédio dos réus não tem área descoberta, a verdade é que, como bem refere o Ac. do STJ datado de 14/11/2013 disponível in www.dgsi.pt “A presunção resultante da inscrição do direito de propriedade no registo predial, não abrange a área, limites ou confrontações dos prédios descritos, não tendo o registo a finalidade de garantir os elementos de identificação do prédio”.
Posto isto:
Analisando a prova supra mencionada teremos de concluir que a autora não fez prova do direito que se arroga. E a si cabia tal ónus.
Com efeito, e pese embora o seu legal representante tenha vindo alegar que o caminho está inserto no seu prédio a verdade é que a sua afirmação mostra-se desenraizada de qualquer outra prova, nomeadamente testemunhal e documental. De facto, a testemunha por si arrolada veio afirmar que inexistia o caminho que existe atualmente mas nada refere ao facto da área que o mesmo ocupa ser do prédio da autora. Aliás, muito dificilmente tal assim seria atento o desnível de cota entre o caminho e o prédio da autora, que, como resultou da inspeção judicial ao local é em alguns locais de cerca de 8 metros de desnível.
Acresce que, é a própria descrição predial do prédio da autora, efetuada no ano de 1987 que atesta que este prédio confronta a nascente com caminho. Em face de tal afirmação, e se fosse verdade que o caminho foi aberto cerca de 3 anos antes da entrada da ação, a saber no ano de 2010, não poderia aquela descrição predial fazer constar aquela confrontação, dado que necessariamente teria de fazer constar que o prédio confrontaria com o rio.
De resto, nenhuma explicação apresenta a autora para tal facto.
Por outro lado, e pese embora a testemunha J… tenha vindo afirmar que há cerca de 10 anos atrás o caminho estava cheio de silvas impedindo a passagem, tal facto apenas demonstra que o mesmo não era usado, o que é diferente de não existir.
Por sua vez, a testemunha N…, vizinho dos réus, atestou a existência de tal caminho para serventia dos prédios quer do prédio dos réus quer de outros.
Por fim, na inspeção judicial feita pelo Tribunal nenhum acesso do moinho à estrada se vislumbrou, para além do que está aqui em discussão, e ainda que a Autora tenha recebido uma indemnização pela instalação de caixas de visita no leito do caminho tal facto, por si só, não confere à autora a propriedade do espaço.
No que se reporta aos danos que as partes alegadamente sofreram, nenhuma prova foi produzida.»
* *
Feita, assim, a descrição da motivação exposta pelo tribunal recorrido, cumpre analisar das razões de discordância invocadas pelo apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade julgada como provada e não provada, nos moldes por si invocados.
Desde logo, quanto às declarações de parte do legal representante da Autora e depoimento da testemunha L…, não obstante a apelante as invoque enquanto sustento da sua discordância em face do decidido pelo tribunal recorrido, compulsado o corpo das alegações e/ou as conclusões do recurso, rigorosamente nenhuma referência, nenhuma consideração ou explanação do seu conteúdo (parcial ou total) se mostra elencado, e, em particular, nada é dito quanto à apreciação crítica, racional ou lógica de tais meios probatórios, seja quanto aos mesmos, individualmente considerados, seja quanto à sua conjugação ou compatibilização com os demais meios probatórios convocados, nomeadamente os que se mostram invocados, em sede de motivação, pelo tribunal recorrido.
Como assim, à luz de tais meios probatórios e na ausência absoluta de qualquer referência ao respectivo conteúdo e à sua apreciação crítica (pois que a apelante se limita, sem mais, a citar a produção de tais meios probatórios por referência ao período temporal em que os mesmos foram produzidos na audiência de julgamento), seguro é, a nosso ver, e segundo as premissas já expostas em sede de impugnação da decisão de facto, que nenhum erro de valoração por parte do tribunal recorrido, a partir de tais meios probatórios, é possível extrair da sua cómoda, singela e acrítica menção por parte da apelante.
Nesta sede, como já se salientou, não fazendo a apelante a mais ínfima menção (no corpo alegatório e/ou nas conclusões do recurso) ao teor das declarações ou depoimentos – por transcrição total ou parcial dos mesmos ou por menção de qualquer passagem exacta da respectiva gravação -, não é viável a este tribunal superior (que não tem por missão efectuar, perante si, como já salientado, a pura repetição do julgamento) extrair uma qualquer conclusão que infirme ou divirja da convicção do próprio tribunal recorrido.
E, mais ainda, quando, como é o caso, este último efectuou, com rigor e exactidão, a explanação do teor do depoimento/declarações em apreço e procedeu à sua análise crítica, seja ponderando o valor intrínseco dos meios probatórios, seja ponderando da sua compatibilidade lógica com os demais meios probatórios produzidos, concretamente o acervo de prova documental junta aos autos.
Destarte, os ditos meios probatórios convocados não podem constituir fundamento bastante para a impugnação da facticidade em causa.
Todavia, para além dos citados meios probatórios, invoca, ainda, a apelante, em abono da sua discordância face ao decidido, o auto de inspecção no local (constante de fls. 243-244), o levantamento topográfico efectuado nos autos por perito nomeado pelo tribunal (a fls. 106 dos autos), as fotos juntas a fls. 215-217 (na sessão de julgamento de 23.02.2016), a certidão camarária emitida pela CM de Vizela a fls. 230/231 e, ainda, a carta a fls. 232-237, emitida e enviada à Autora, com data de 2.06.2015 (na qualidade de proprietária da parcela …), propondo uma indemnização pela constituição de «servidão administrativa do interceptor de Vizela/… – … – …».
Vejamos.
Como resulta dos termos do litígio, é indiscutido que a Autora é proprietária do prédio rústico referido em A) dos factos provados [prédio rústico sito em …, freguesia de …, concelho de Vizela, descrito na CRP de Vizela sob o n.º 113 e inscrito na matriz sob o art. 371º], ao passo que os RR. são proprietários do prédio urbano referido em B) dos factos provados [prédio urbano sito na Rua …, da mesma freguesia de …, concelho de Vizela, descrito na CRP de Vizela sob o n.º 586 e inscrito na matriz sob o art. 170º].
Como assim, o litígio não se reporta à propriedade dos ditos prédios, pois que ambas as partes partem desse pressuposto, isto é dão por indiscutida a propriedade sobre tais unidades prediais.
A questão ou o objecto do litígio não é, portanto, este, mas antes a de saber, em particular, na perspectiva da ora apelante, se fazem parte integrante do seu prédio referido
em A) um caminho que serve de acesso ao prédio dos RR. referido em B) [caminho esse com cerca de 3 m de largura e 30 de comprimento, a partir do final de um caminho público existente], assim como uma área de terreno com cerca de 50 m2 [situado defronte do prédio dos RR. e utilizado como zona de estacionamento] e, ainda, uma outra área de terreno [não especificada ou delimitada] correspondente à área ocupada pelos mesmos RR. no decurso da construção de uns anexos em ampliação do moinho que constituía o prédio dos RR., sendo certo que estes últimos sustentam que o caminho descrito é público e que as demais áreas de terreno invocadas pela Autora não se inserem/integram no seu prédio.
Que assim é, resulta, com linear clareza, dos articulados oferecidos pelas partes, em particular da petição inicial [cfr., «inter alia», os arts. 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 11º e 13º] e da contestação/reconvenção [cfr., «inter alia», os arts. 3º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 20º, 31º, 33º e 35º].
É este o cerne factual do litígio e é sobre ele que versam os factos não provados em 1. a 8. da sentença recorrida e contra cujo julgamento ora se insurge a apelante.
Porém, deve dizer-se, sem razão ou, pelo menos, razão que encontre suporte bastante nos meios probatórios por si convocados para discordar do decidido.
Desde logo, as fotografias a fls. 215-217 nada esclarecem ou demonstram quanto à propriedade do caminho e das áreas em dissídio; Tratam-se de fotos publicamente acessíveis no «Google Maps», não se discernindo o que tais fotos possam demonstrar quanto à propriedade das discutidas áreas de terreno.
Da mesma forma, o auto de diligência/inspecção judicial, retratado a fls. 243 [e que foi, aliás, transcrito na íntegra na fundamentação da sentença recorrida], não permite alcançar a demonstração de que as discutidas áreas fazem parte de qualquer prédio ou da sua natureza – pública ou particular -, sendo certo que, como se aduziu, na sentença recorrida, a dita inspecção poderia até, mais facilmente, conduzir à conclusão inversa, qual seja a de que o caminho e as áreas de terreno em discussão não fazem parte do prédio da Autora.
Para tal apontam o claro desnível físico existente entre ambos os prédios, desnível que, na zona próxima ao prédio dos RR., se cifra em cerca de 8 metros de altura.
Um tal facto, é certo, não sendo, em absoluto, excludente da tese sustentada pela Autora, não deixa, no entanto, de a colocar sobre significativas dúvidas.
Como assim, a inspecção ao local e os seus resultados expressos no respectivo auto, sem prejuízo do relevo que, em tese geral, a mesma pode assumir no esclarecimento de litígios com características similares ao presente, no caso concreto em apreço, a dita inspecção não permite alcançar, com a segurança e consistência exigíveis, uma qualquer conclusão sobre a pertença das áreas de terreno em disputa e, no que ora releva, não permite seguramente alcançar que as ditas áreas fazem parte integrante do prédio da Autora, como esta sustenta.
No mesmo sentido é, ainda, de interpretar o levantamento topográfico efectuado nos autos (a fls. 106 dos autos), pois que o mesmo apenas atesta a posição dos prédios em apreço e a sua composição/dimensão, segundo a versão de cada uma das partes no presente litígio.
Como assim, não constitui, a todas as luzes, base bastante para a prova almejada pela Autora [e que lhe incumbia fazer] quanto à matéria factual em apreço.
Do mesmo passo, também a certidão camarária a fls. 230/231 não comprova, minimamente, a facticidade em apreço. Com efeito, da dita certidão não se evidencia uma qualquer resposta – qualquer que ela seja – à questão de saber se o caminho em disputa é público ou não [conforme, aliás, peticionado expressamente pelo Il. Mandatário da Autora no requerimento em que solicitava tal informação junto da Câmara Municipal], antes se limitando a referir que o dito caminho «não tem topónimo».
Ora, com o devido respeito, para o cerne do litígio acima exposto e seu esclarecimento cabal, uma tal resposta, é, de todo, insuficiente ou irrelevante.
Sendo assim, também deste outro meio probatório não emerge, à luz das regras da experiência e da lógica, uma qualquer prova da propriedade em disputa.
No que se refere, por último, à carta de fls. 232-237, a mesma surge endereçada à aqui apelante e propondo-lhe, na qualidade de proprietária da parcela …, uma indemnização pela constituição de uma servidão administrativa (servidão de aqueduto público subterrâneo) sobre o dito prédio no âmbito do projecto de execução do interceptor de Vizela/…, servidão esta cuja constituição mereceu o assentimento da autora, que recebeu, no âmbito desse procedimento, a respectiva indemnização. [vide facto provado sob a alínea C) da sentença recorrida].
Sucede que, uma tal carta, por si só, desacompanhada de qualquer outro meio probatório credível, consistente e seguro – que não se vislumbra que tenha sido produzido nos autos – não pode constituir sustento probatório para a facticidade em apreço.
Com efeito, ignorando este tribunal (e o tribunal recorrido) o circunstancialismo que conduziu à emissão e envio da aludida missiva à aqui Autora, os concretos elementos documentais ou de outra natureza que serviram de suporte ao «reconhecimento» perante a Autora (que não perante terceiros…) da sua arrogada qualidade proprietária do terreno em causa e sendo certo que não existem quaisquer evidências probatórias de que a parcela … ali em referência corresponde ao prédio da Autora com a exacta configuração e área por si invocada nestes autos), um tal documento atinente ao procedimento não constitui, a nosso ver, desacompanhado de outros elementos probatórios bastantes e adequados, prova da propriedade do caminho por parte da Autora ou da sua integração no seu prédio ora reivindicado.
O dito documento, analisado de forma objectiva e equidistante, demonstra que, perante a entidade em causa - “G…“ -, a Autora foi considerada e reconhecida como proprietária da parcela … [qualidade em que foi indemnizada pela aludida servidão de aqueduto subterrânea ali instalada], o que não constitui prova absoluta de que, de facto, assim o seja, pelo menos no que aos terrenos em disputa nos autos se refere.
Para tal era suposto que a Autora lograsse aportar aos autos outros meios de prova, consistentes e objectivos, susceptíveis de, a partir de uma avaliação cuidada, aprofundada, ponderada e lógica, permitir o estabelecimento de uma convicção segura, conscienciosa e dotada de um muito forte grau de probabilidade, quanto ao acervo factual por si alegado.
Não o tendo feito, como se evidencia da ponderação crítica dos meios de prova convocados pela apelante e produzidos nos autos – e da sua análise exaustiva, aprofundada e crítica já efectuada pela 1ª instância e por nós aqui secundada-, não poderia a facticidade em apreço merecer resposta diversa da que obteve, não ocorrendo, por isso, razões para divergir do decidido pelo tribunal recorrido.
Aliás, é de referi-lo, que a fundamentação empreendida pelo tribunal de 1ª instância revela um especial cuidado na ponderação de todos os meios de prova, no cruzamento dos vários elementos disponibilizados pelos meios de prova testemunhais, documentais e declarações de parte, tudo numa análise crítica, à luz das regras da experiência comum e da lógica, aplicáveis ao caso.
Como assim, tudo ponderado e à luz da própria convicção que os ditos elementos probatórios convocados nos merecem enquanto tribunal superior, não se vêm razões para divergir do julgamento de facto empreendido pelo tribunal recorrido, julgamento que é, assim, de manter.
*
B. Determinado o quadro factual relevante, cumpre-nos fazer a sua subsunção jurídica.
É indiscutido que a presente acção, à luz da causa de pedir e pedidos formulados pela Autora, se configura como uma acção de reivindicação.
A propósito deste tipo de acção, ensinam A. VARELA, P. LIMA, que a mesma se caracteriza por dela fazerem parte dois pedidos: «o reconhecimento do direito de propriedade («pronuntiatio»), por um lado, e a restituição da coisa («condemnatio»), por outro. Só através destas duas finalidades, previstas no n.º 1, se preenche o esquema da acção de reivindicação», sendo certo que, ainda que o reivindicante se limite a pedir a restituição da coisa, não formulando pedido expresso de reconhecimento do seu direito de propriedade, este pedido deve ser considerado como implícito naquele. [7]
A acção de reivindicação mostra-se consagrada no art. 1311º, n.º 1 do Cód. Civil, e dela decorre, generalizando o seu conteúdo, ao abrigo do art. 1315º, que o titular de um direito real (que atribua a posse da coisa, v.g., propriedade) pode exigir do possuidor ou detentor da coisa sobre que o seu direito incide o reconhecimento desse direito e a restituição da coisa.
Desta premissa, decorrem duas consequências, sendo uma relativa à legitimidade na acção de reivindicação e outra à conformação do pedido.
Quanto ao primeiro aspecto, a legitimidade activa e passiva, nesta acção, estabelece-se em termos simples. Tem nela a posição de autor quem se intitula titular do direito reivindicado; por outro lado, ocupa a posição de réu quem tenha a posse ou a detenção da coisa (art. 1311º, n.º 1).
Relativamente à conformação do pedido a dirigir ao tribunal, como já referido, existirá um pedido principal e um outro pedido secundário. O principal é o do reconhecimento da titularidade do direito; o secundário, o de restituição da coisa reivindicada. Na verdade, a condenação do réu constitui, na própria letra da lei, uma consequência da procedência daquele pedido. Assim, se explica o regime do n.º 2 do art. 1311º, segundo o qual, sendo reconhecido o direito, «a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei».
Como assim, «a recusa da restituição, uma vez demonstrada a titularidade do direito reivindicado, só pode justificar-se se o possuidor ou detentor for titular de algum direito que legitime a posse ou a detenção, nomeadamente algum direito real ou pessoal sobre a coisa, oponível ao reivindicante.» [8]
Neste contexto, conforme cremos ser pacífico, à luz da regra geral contida no art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil, recai sobre o autor na acção de reivindicação o ónus de prova relativamente ao direito por si invocado qual seja o direito de propriedade sobre uma determinada realidade física predial e nos precisos termos por si reivindicados.
É de notar, no entanto, como, aliás, logo se alcança do antes exposto, que a obrigação de restituição do detentor ou possuidor (desprovido de um direito real ou pessoal sobre a coisa e oponível ao reivindicante) só tem lugar se, previa ou concomitantemente, o próprio reivindicante demonstrar a sua titularidade sobre a coisa possuída ou detida pelo réu, assim constituída como pressuposto ou requisito essencial da procedência da reivindicação.
De facto, sendo a acção de reivindicação a que incumbe ao proprietário não possuidor (ou não detentor) contra o detentor ou possuidor não proprietário, nela exige-se que o reivindicante, ou seja, o autor, prove, além dos dois apontados pressupostos subjectivos, um pressuposto objectivo, que é o da identidade da coisa que se reclama com a que é possuída pelos Réus.
Neste contexto e quanto à prova da titularidade do direito de propriedade por parte do reivindicante, como é consabido, a prova da propriedade não se basta pela mera demonstração da aquisição derivada do direito, uma vez que nada garante que o autor adquiriu a coisa ao seu legítimo proprietário.
Neste sentido, é ensino pacífico da doutrina que «… se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, como a ocupação, a usucapião ou a acessão, apenas precisará de provar os factos de que emerge o seu direito.
Mas, se a aquisição é derivada, não basta provar, por exemplo, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada. Nem a compra e venda nem a doação se podem considerar constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito (nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse habet). É preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris), o que se torna, em muitos casos, difícil de conseguir. Probatio diabolica lhe chamam os autores.» [9]
Neste sentido, refere-se no Acórdão desta Relação de 24.01.2012, cuja lição aqui se perfilha, que, à luz do preceituado no art. 1316º do Cód. Civil, o direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei.
Destes modos legítimos de aquisição, uns são meros actos translativos do direito, também designados de «modos de aquisição derivada», como são os casos do contrato e da sucessão «mortis causa», enquanto outros são actos constitutivos do próprio direito e, por isso, designados de «modos de aquisição originária», como acontece na usucapião (art. 1287º), na ocupação (arts. 1318º e segs.) e na acessão (arts. 1325º e segs.).
A prova do direito de propriedade é feita através de factos que demonstrem a aquisição originária do domínio, por parte de quem quer ver declarado tal direito ou de qualquer dos seus antepossuidores. Se o «reivindicante» invoca como fonte do seu direito uma das formas de aquisição derivada, porque não constitutiva mas meramente translativa do direito, não lhe basta provar este modo aquisitivo para que possa ser considerado o titular do direito; por força do princípio «nemo plus juris ad alium transferre potest, quam ipse habet» (ninguém pode transferir para outrem mais direitos do que aqueles que possui), terá ainda que demonstrar que esse direito já existia na titularidade do seu transmitente e, bem assim, as sucessivas aquisições dos seus antecessores até atingir a aquisição originária em algum deles.
Ressalvam-se, porém, os casos em que existe presunção legal da propriedade, como a resultante do registo (art. 7º do Código do Registo Predial) ou a decorrente da posse (art. 1268º), em que, por força do preceituado nos arts. 344º, n.º 1 e 350º, n.º 2 do Cód. Civil, cabe à parte contrária afastar, ilidindo, tais presunções, mediante prova em contrário.[10]
Tratando, ainda, deste tema de prova das transmissões sucessivas, e em sentido coincidente, ensina L. CARVALHO FERNANDES, que a necessidade de prova sucessiva sofre, porém, duas relevantes atenuações, decorrentes do regime da usucapião e das presunções possessória e registral. [11]
Relativamente à aquisição do direito de propriedade sobre imóveis, por usucapião, como é consabido, depende ela verificação de determinados condicionalismos mínimos de posse, como seja o exercício reiterado de poderes de facto sobre o bem ao longo de um período mínimo de tempo, variável conforme as caraterísticas da posse, de forma ininterrupta ou contínua, sem oposição de ninguém, à vista de toda a gente ou de modo público (posse pública, contínua e pacífica), sempre na convicção de agir como dono. Tais conceitos constitutivos dos requisitos objetivos e subjetivos, necessários à aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, hão de ser preenchidos por elementos de facto, assim, o «corpus» e o «animus» da posse nos termos daquele direito real, impostos pela lei – cfr. arts. 1251º, 1258º, 1261º, 1262º, 1263º, al. a) e 1287º e segs… do Código Civil.
Quanto à posse é ela, na concepçcão subjectivista [oriunda do ensino de Savigny] consagrada pelo nosso Código Civil [12], integrada pelos elementos antes referidos - o «corpus» e o «animus» -, o primeiro a constituir o domínio de facto sobre a coisa e, o segundo, a significar a intenção de exercer sobre a coisa o direito real correspondente àquele domínio de facto, sendo que a prova daquele último elemento pode resultar de presunção legal, qual seja, a existência do «corpus» - cfr. art. 1252º do Cód. Civil.
Com vista à referida prescrição aquisitiva, o possuidor actual pode juntar à sua a posse do seu antecessor (art. 1256º do Cód. Civil), sendo que esta se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar, presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1257º do Cód. Civil).
De todo o modo, seguro é que a usucapião não opera automaticamente: tem de ser invocada por aquele a quem aproveita. – cfr. arts. 1287º e 1288º do Cód. Civil [13]
Descendo, agora, ao caso dos autos, a aquisição do direito de propriedade por parte da Autora quanto ao seu prédio e, sobretudo, quanto às áreas de terreno alegadamente integradas no mesmo [e que constituem, como se disse, o objecto do dissídio entre as partes], não pode, obviamente, ser dirimida nesta sede pois que, como se vê da causa de pedir formulada pela ora apelante na petição inicial, em nenhum momento a mesma apelante invocou a aquisição originária, por usucapião, do seu prédio e das áreas de terreno que dele, alegadamente, fazem parte integrante.
Aliás, também em sede de alegações perante este Tribunal, a questão não se mostra colocada nesses termos.
Neste conspecto, é de referir que, de acordo com o preceituado no art. 581º, n.º 4, 2ª parte do CPC [cuja redacção é exactamente igual ao anterior art. 498º, n.º 4 do CPC 1961 – vigente, ainda, à data da propositura da presente acção], «nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real
Ora, nesta sede, e como já se referiu, a Autora fundou a aquisição do seu direito de propriedade sobre o prédio reivindicado (e dele fazendo parte as zonas ora em disputa, ocupadas/detidas pelos RR.) a partir da inscrição predial do prédio rústico em apreço a seu favor, sem invocar quaisquer actos materiais possessórios praticados sobre o mesmo e, muito menos, pelo período temporal que como é consabido é exigido em termos de aquisição por usucapião (independentemente da concreta modalidade de posse que esteja em jogo).
Sendo assim, como se antevê, à luz do instituto da usucapião, não pode colher a pretensão da Autora, desde logo porque a mesma não lhe faz uma qualquer referência factual (na petição inicial, sede própria para o efeito) enquanto facto jurídico constitutivo (originariamente) do seu arrogado direito de propriedade.
Todavia, para além da aquisição por usucapião (antes afastada), ainda se coloca a questão do registo predial e dos seus efeitos.
Nesta sede, e segundo bem entendemos as suas alegações, persiste (não obstante a explanação já constante da sentença recorrida nesta matéria) a apelante em pretender extrair a demonstração do direito de propriedade sobre as áreas de terreno em disputa a partir da inscrição registral do prédio em seu favor.
Como é consabido (e já foi salientado na sentença recorrida), é pacífica a jurisprudência de que a presunção que decorre do registo predial se limita à titularidade do direito inscrito, mas não abrange as respectivas áreas, limites ou confrontações.[14]
De facto, como bem se sabe, as referências atinentes à área, limites e confrontações feitas constar das certidões registrais são efectuadas ou invocadas pelos próprios declarantes /interessados ou seus representantes, sendo tais declarações lavradas ou consignadas nos assentos ou nos livros de notas a que dizem respeito, sem que o oficial público averigue, investigue, percepcione e, portanto, ateste a sua autenticidade intrínseca.

Como assim, a descrição predial, por princípio, não poderia servir de prova plena (a favor do próprio interessado) dos limites, áreas e confrontações do prédio inscrito no registo predial, sob pena de assim criar o mesmo uma realidade registral oponível a terceiros que pode não ter qualquer correspondência com a realidade factual por provir ela da mera elaboração/declaração do próprio interessado, sem confronto com outros reais interessados.
Acresce, ainda, que, como é consabido, o registo predial no nosso sistema jurídico [fruto das circunstâncias em que o mesmo é constituído – antes expostas] não tem eficácia constitutiva (não atribui nem tira direitos), servindo apenas fins de declaração ou publicidade perante terceiros.
Digamos, portanto, que a inscrição no registo predial faz prova (sem prejuízo de prova em contrário - art. 350º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil) de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registe o define. É essa a presunção que dele decorre, não sendo possível afirmar, sem mais, a partir do registo, qual área global do prédio, as suas confrontações e se uma determinada área em disputa (como é o caso dos autos) dele faz parte integrante ou não.
Aliás, no caso particular dos autos, em que como já se deixou exposto, não é objecto do dissídio a titularidade dos prédios em causa (o prédio da Autora e o prédio dos RR.), mas antes a exacta delimitação física do prédio da Autora, a sua área e, concretamente, se dele fazem parte as áreas de terreno concretamente reivindicadas perante os RR., mais se evidencia que não pode colher a pretensão da Autora e apelante mesmo à luz do registo e da descrição predial do prédio em apreço.
Com efeito, ainda que fosse (e não é, como já deixámos claro) possível extrair do registo predial uma qualquer conclusão quanto à área global do prédio, das suas confrontações e limites, no caso concreto dos autos, como, aliás, já se assinalou devidamente na sentença recorrida (vide a respectiva motivação de facto), de acordo com a própria certidão do registo predial de que se arroga a apelante para demonstrar a propriedade do caminho e demais terreno, o seu prédio tem no registo predial uma área global inferior àquela que consta do levantamento topográfico e de que a mesma se intitula proprietária nos autos (3.490 m2, segundo a certidão do registo predial a fls. 9/10 dos autos; 4.285 m2, segundo o dito levantamento topográfico e a versão transmitida ao Perito pelo legal representante da Autora/Apelante – vide fls. 106 dos autos) e, ainda, à luz do mesmo registo, o seu prédio não confronta a nascente com o rio ou o leito do rio (como seria suposto se o caminho reivindicado fizesse parte do seu prédio), mas antes confronta a nascente com o caminho ora em causa, o que, no mínimo, sugere a ideia de que o caminho em apreço, de facto, não fará parte integrante do prédio da Autora, situando-se para lá do seus limites registrais.
O que vale por dizer que, mesmo considerando o registo predial em apreço, dele não decorre a demonstração da versão da Autora, antes pelo contrário.
De todo o modo, como já salientado na sentença recorrida e ora se repete, não pode a Autora colher a partir do registo predial a demonstração plena da propriedade sobre as áreas de terreno em apreço, pois que, mostrando-se controvertida entre as partes, a exacta definição dos limites dos prédios em causa e a respectiva linha de confrontação, nesse contexto, da presunção de titularidade do direito não emerge ou decorre a prova da titularidade do direito de propriedade sobre a(s) ditas área(s).
Destarte, do preceituado no art. 7º do Código do Registo Predial e da presunção legal que dele decorre, não se colhe fundamento bastante para a pretensão reivindicativa da Autora quanto às aludidas áreas de terreno. [15]
Todavia, sustenta, ainda, a apelante que o seu direito de propriedade sobre o prédio em apreço, nele incluindo as áreas de terreno em disputa, deveria ter merecido deferimento por força da presunção de titularidade do direito de propriedade a partir da posse sobre as mesmas.
Vejamos.
Segundo preceitua o art.º 1268º, n.º 1 do Cód. Civil «o possuidor goza da presunção de titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse
Por via do preceito em causa, o legislador, em sede de protecção dos interesses do possuidor [e no âmbito mais amplo da protecção jurídica que merece a posse enquanto aparência exterior correspondente ao exercício do direito real [16], consagra a regra de que, não ocorrendo a circunstância excepcional acautelada pelo próprio preceito (a existência de registo com data anterior ao início da posse), ao facto de alguém estar na posse de determinada coisa corresponde a presunção de que é igualmente titular do direito correspondente aos actos que se praticam sobre ela. [17]
Trata-se de uma presunção baseada na experiência comum, pois que quem exerce os poderes de facto, quem está em contacto com a coisa, v.g. detendo, explorando e fruindo da mesma, de forma reiterada e pública (exteriorizando essa sua actuação) é, por via de regra, o seu proprietário.
Neste sentido, refere C. MOTA PINTO, que a protecção da posse (aquilo a que o Il. Professor chama o «valor probatório da posse») permite facilitar aos autênticos titulares dos direitos a continuação do exercício dos poderes de facto correspondentes, sem necessidade de estarem a invocar e a provar a existência do seu direito. A aparência, a visibilidade exterior, que é o facto de as pessoas estarem a ocupar o prédio ou a comportar-se em face dele como proprietário, leva a que, presuntivamente, sejam tratados como proprietários e, estatisticamente, são-no na maior parte dos casos. [18]
Em suma, resumindo, segundo o aludido art. 1268º, presume-se pois que quem está na posse de uma coisa é o titular do direito correspondente aos actos que sobre ela pratica.
E esta presunção, como é bom de ver, pode, de facto, vir a revelar-se muito importante pois que «através dela pode ser atribuída a propriedade ao possuidor, não propriamente porque o possuidor conseguiu provar que era proprietário, mas antes porque não foi provado que ele não o era.» [19]
Neste sentido, refere-se de forma lapidar no AC STJ de 21.06.2016, já citado, que «àquele que quer ver reconhecido o seu direito de propriedade contra terceiro, e eventualmente obter a restituição da coisa, cabe sem dúvida o ónus de provar esse direito de propriedade (como é sabido e consabido, nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito) e que a coisa se encontra na posse ou é detida pelo demandado. Contudo, não lhe basta provar que adquiriu derivadamente do seu transmitente (…), antes terá que provar que o direito já existia na pessoa deste e antecessores adquirentes, até se chegar á formação originária do direito. Isto será frequentemente difícil ou mesmo impossível de fazer (trata-se da probatio diabolica de que se fala frequentemente). Esta necessidade de prova sucessiva é facilitada pelo regime decorrente ora do usucapião ora das presunções conferidas pelo registo (art. 7º do CRPredial) e pela posse (art. 1268º nº 1 do CCivil). No primeiro caso, feita a prova da posse boa para a usucapião (facilitada pelo regime da acessão e da sucessão na posse) e da correspondente aquisição, fica provada a titularidade do direito (é sabido que a usucapião é uma forma de aquisição originária que destrói quaisquer direitos em contrário). Temos aqui um fenómeno constitutivo do direito, que leva então à demonstração efetiva do direito de propriedade. A presunção possessória (e a registral) atua por via diversa, fazendo-o mediante a inversão do ónus da prova. Se o reivindicante beneficiar da presunção, cabe a quem se arrogue dono da coisa fazer a prova que a ilida. Neste caso não pode falar-se, obviamente, num fenómeno constitutivo do direito que leva à demonstração efetiva do direito de propriedade, mas sim num fenómeno presuntivo. Ora, tal situação presuntiva, não sendo ilidida a presunção, não tem por que não poder valer para todos os efeitos como se o direito de propriedade tivesse sido provado constitutivamente. Na realidade, a função de qualquer presunção legal é precisamente a de conferir o direito (até demonstração do contrário) sem que o beneficiário o tenha de provar (tem que provar é a base da presunção, o que é uma coisa muito diferente).
E, ainda, nesta temática, prossegue-se no mesmo douto aresto, «diz José Alberto Gonzalez a este propósito (Direitos Reais, 5ª edição, p. 426), e subscreve-se este ponto de vista: «… não se vê razão para impedir que tal demonstração [do direito de propriedade em ação de reivindicação] se faça através da presunção derivada do registo (artigo 7º, Cód. Reg. Predial) ou através da presunção assente na posse (artigo 1268º/ nº 1/1ª parte). A presunção é um meio de prova como outro qualquer (artigos 341º e segs.). Por isso somente quando ele se não admita ou quando a presunção seja ilidida, deverá o autor proceder à demonstração positiva da sua titularidade.»
E diz Machado Oliveira (A posse, 1981, p. 81), reportando-se à presunção da titularidade do direito fixada no citado art. 1268º nº 1, e subscreve-se igualmente esse ponto de vista: «Com base na regra «nemo plus in alio transfere potest quam ipse habet», o reivindicante, no título translativo, apenas pode provar que adquiriu o mesmo direito do «dante causa»; se este nenhum direito tinha, nenhum podia transmitir.
Daí que para provar o seu direito, o titular tenha de invocar a aquisição originária - designadamente através da usucapião - ou a presunção de que estamos a tratar, fazendo recair sobre o réu da acção o ónus de impugnar a presunção em causa.
Creio ser de estabelecer aqui uma distinção entre a invocação do direito de propriedade presumido para efeitos da acção de reivindicação, e aquilo a que Cunha Gonçalves chama «a prova de melhor posse», denegando-lhe eficácia como fundamento daquela acção com o argumento de que tal hipótese «importa a conversão da acção reivindicatória em acção possessória».
Trata-se de circunstâncias completamente diversas.
Se a posse em si não pode efetivamente constituir fundamento das acções de reivindicação (…), a propriedade presumida já o pode ser.
E por força do art. 1268º a posse cria essa presunção.
Em síntese: nas acções possessórias, a posse é um fundamento imediato da acção; nas acções de reivindicação, a posse pode constituir um fundamento mediato”.
Acrescentem-se os ensinamentos de Pires de Lima - Antunes Varela (Código Civil Anotado, III, anotação ao art. 1311º) e de Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, 4ª edição, pág. 262 e 263), que, a nosso ver, vão claramente no sentido da possibilidade de invocação e reconhecimento do direito de propriedade em acção de reivindicação fundamentada simplesmente na presunção estabelecida no nº 1 do art. 1268º do CCivil
Assim, em conclusão, salienta-se no mesmo aresto que «nada parece obviar a que (talqualmente sucede no caso da presunção fundada no registo) uma acção tendente ao reconhecimento do direito de propriedade, (…) seja fundamentada na presunção estabelecida no nº 1 do art. 1268º do CCivil e que, consequentemente, nela seja reconhecido o correspondente direito de propriedade (e feita restituir a coisa, se disso se tratar).» [sublinhados nossos]
Feitas estas considerações e perfilhando-se a lição que antecede, nem assim, no caso dos autos, o resultado final pode divergir do decidido em 1ª instância.
Explicitando.
No caso dos autos, respigada a facticidade provada apenas se evidencia que há cerca de 3 anos, a empresa “G…” realizou trabalhos no local – intercetor do Rio … – tendo instalado várias caixas de visita com o acordo da autora, pagando-lhe a respetiva indemnização. - facto provado em C.
Ora, com todo o respeito, este acto da parte da ora Autora – e nenhum outro se provou -, qual seja, a autorização comunicada à dita empresa para a realização de trabalhos no local [trabalhos que não foram, portanto, materialmente executados no local pela Autora, mas pela empresa “G…“] e o recebimento de uma indemnização pela instalação de «caixas de visita» no caminho ora em discussão, não constitui, por si só, uma actuação reiterada e material sobre a coisa, dotada de suficiente aparência e significância exterior, que legitime a presunção de propriedade ínsita no citado art. 1268º, n.º 1 do Cód. Civil e o seu reconhecimento judicial por via da presente acção.
Com efeito, em todos os casos sobre que versam os arestos acima citados, os actos materiais em causa, levados a cabo pelo possuidor sobre a coisa, revestiam-se de uma evidência, aparência ou significância exterior correspondente ao exercício do direito de propriedade - como seja a exploração em termos agrícolas do terreno em disputa, a colocação de vedação à volta do prédio, a colocação ostensiva e pública de anúncios de venda no prédio, a limpeza e apanha de frutos no prédio -, justificativos da presunção de titularidade do direito que emerge do art. 1268º, evidência ou aparência exterior que, no caso em apreço, não ocorre, manifestamente, face à facticidade acima demonstrada.
Destarte, como antes se avançou, mesmo à luz do preceituado no art. 1286º, n.º 1 do Cód. Civil e da presunção de titularidade do direito de propriedade que dela emerge, a pretensão reivindicativa da apelante não colhe apoio legal, em razão do que só poderia ter improcedido.
*
C. Por último, ainda, cumpre dirimir a questão atinente às custas fixadas a final.
Decidindo.
Desde logo, como se evidencia do sentenciando em 1ª instância, a reconvenção deduzida pelos RR. foi julgada improcedente e em consequência foi a Autora absolvida dos pedidos formulados.
Neste conspecto, quanto à reconvenção, e constituindo ela, como é pacífico, uma contra - acção dirigida contra o autor, as custas totais da mesma deverão ficar a cargo dos RR., em conformidade com a regra de decaimento contida no art.º 527º, n.ºs 1 e 2 e do CPC.
Relativamente à acção deduzida pela Autora, como se vê do sentenciado (e ora mantido) foram todos os pedidos formulados em b), c), d) e e) julgados improcedentes, reconhecendo-se apenas e só a propriedade da Autora sobre o prédio rústico melhor descrito nos autos.
Ora, na economia das pretensões deduzidas pela Autora, tomadas como um todo coerente e significativo, o reconhecimento do direito de propriedade da mesma sobre o prédio rústico apresenta-se-nos como claramente residual em face dos interesses que a Autora pretendia acautelar com a presente acção judicial, interesses esse que iam muito além do mero reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico.
Com efeito, a Autora, por via da propositura da presente acção, pretendia, ainda, o reconhecimento do direito de propriedade sobre as áreas de terreno referidas em b) do petitório (pretensão que foi afastada), a demolição dos anexos efectuados pelos RR. e referidos em c) do mesmo petitório (pretensão esta que também foi negada), a proibição de circulação, a pé e de carro, pelo caminho e a proibição de estacionamento na faixa de terreno em disputa, referidas em d) do petitório (pretensão também afastada) e, ainda, a pretensão indemnizatória formulada em e) do mesmo petitório (pretensão que também foi afastada).
Como assim, tudo ponderado, não se vislumbra que a proporção fixada na sentença [90% a cargo da Autora e 10% a cargo dos RR.], tomando apenas por referência a acção, sofra de uma qualquer incorrecção, antes correspondendo, a uma adequada e proporcional repartição do decaimento em face do conjunto das pretensões formuladas pela Autora nos autos e dos interesses que, através das mesmas, a autora procurava defender.
Como assim, a dita proporção é de manter, com a ressalva de que as custas da reconvenção, face à sua improcedência total, deverão ser antes suportadas pelos RR., que nela decaíram na íntegra, ressalva que se fará constar expressamente do decisório deste aresto.
* *
IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida, sem prejuízo da alteração consignada quanto a custas.
* *
As custas, em 1ª instância, serão suportadas, quanto à acção deduzida pela Autora, na proporção de 90% a cargo da Autora e 10% a cargo dos RR. – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por seu turno, em 1ª instância, as custas da reconvenção ficaram a cargo dos RR., pois nela decaíram na íntegra – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*
As custas da presente apelação serão a cargo da Autora, pois que nela decaiu, na íntegra – art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*
*
Porto, 23-01-2017
Jorge Seabra
Sousa Lameira
Oliveira Abreu
____
[1] A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 132-133.
[2] A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 130.
[3] ANA LUÍSA GERALDES, “ Impugnação e Reapreciação da decisão da matéria de facto ”, in www.cjlp.org /Ana Luísa Geraldes, pág. 6.
[4] ANA LUÍSA GERALDES, op. cit., pág. 6.
[5] ANA LUÍSA GERALDES, op. cit., pág. 5.
[6] Vide, neste sentido, AC STJ de 15.09.2011, relator Sr. Juiz Conselheiro ALVARO RODRIGUES, AC STJ de 2.12.2013, relator Srª Juiz Conselheira ANA PAULA BOULAROT e AC STJ de 22.10.2015, relator Sr. Juiz Conselheiro TOMÉS GOMES, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] A. VARELA, P. LIMA, “ Código Civil Anotado ”, III volume, 2ª edição, pág. 113. No mesmo sentido, vide, ainda, L. MENEZES LEITÃO, “ Direitos Reais ”, Almedina, 2009, pág. 256 e L. CARVALHO FERNANDES, “ Lições de Direitos Reais ”, Quid Iuris, 6ª edição [reimpressão], pág. 276.
[8] L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 276 e L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 257.
[9] A. VARELA, P. LIMA, op. cit., pág. 115, L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 277 e L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 256 e, ainda, além de muitos outros, AC RP de 16.12.2015, relator Sr. Juiz Desembargador MANUEL DOMINGOS FERNANDES, AC RP de 28.10.2015, relator Srª Juiz Desembargadora JUDITE PIRES, AC RP de 15.10.2015, relator Sr. Juiz Desembargador ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, AC RP de 15.10.2015, relator Sr. Juiz Desembargador FILIPE CAROÇO, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] AC RP de 24.01.2012, relator Sr. Juiz Desembargador M. PINTO dos SANTOS, disponível in www.dgsi.pt
[11] L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 277 e, no mesmo sentido, por todos, A. VARELA, P. LIMA, op. cit., pág. 115.
[12] Neste sentido, por todos, A. VARELA, P. LIMA, op. cit., pág. 5 e C. MOTA PINTO, Lições ao 4º ano Jurídico 1970-1971, Almedina, pág. 189-190.
[13] Vide, neste sentido, por todos, A. VARELA, P. LIMA, op. cit., pág. 65 e L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 246-247.
[14] Vide, neste sentido, apenas dos arestos mais recentes do nosso Supremo Tribunal, AC STJ de 21.06.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro MANSO RAÍNHO, AC STJ de 11.02.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro LOPES do REGO, AC STJ de 27.03.2014, relator Sr. Juiz Conselheiro ALVARO RODRIGUES, AC STJ de 14.11.2013, relator Sr. Juiz Conselheiro SERRA BAPTISTA, todos in www.dgsi.pt e, ainda, na doutrina, SEABRA LOPES, “ Direito dos Registos e do Notariado “, Almedina, 3ª edição, pág. 360.
[15] Vide, neste sentido, em situação similar à dos presentes autos, o já citado AC STJ de 11.02.2016.
[16] Sobre os interesses subjacentes à tutela jurídica da posse, vide, por todos, C. MOTA PINTO, op. cit., pág. 191-195
[17] Vide, neste sentido, por todos, C. MOTA PINTO, op. cit., pág. 204 e L. MENEZES LEITÃO, op. cit., pág. 152.
[18] C. MOTA PINTO, op. cit., pág. 193.
[19] Vide, neste sentido, AC STJ de 12.01.2012, relator Sr. Juiz Conselheiro SERRA BAPTISTA, AC STJ de 21.06.2016, já citado, e AC RP de 28.10.2015, relator Srª Juiz Desembargadora JUDITE PIRES, todos disponíveis in www.dgsi.pt.