Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
383/18.6GAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RP2021021038318.6GAVNG.P1
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO MP)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge.
II - O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal de ausência de acusação particular, não mais se pode continuar com o processo.
(Da exclusiva responsabilidade do Relator).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 383/18.6GAVNG.P1
Relator Paulo Costa
Adjunto Nuno Pires Salpico
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum singular n º 383/18.6GAVNG.P1, a correr termos no Juízo local Criminal de Vila Nova de Gaia-J4 por sentença foi decidido:
a) Absolver a arguida B… da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que vinha acusada;
b) Condenar a arguida B… pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), assim perfazendo um montante de 600,00€ (seiscentos euros);
c) Condenar a arguida B… no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais.”
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Inconformado, o M.P. interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença recorrida, apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«V – Conclusões:
1. Por sentença proferida a 01.07.2020, o Tribunal a quo absolveu B… da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que vinha acusada e condenou-a pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), assim perfazendo um montante de 600,00€ (seiscentos euros).
2. A propósito da desqualificação do crime de furto refere a sentença recorrida que: “não se provou que a apropriação tenha ocorrido após a separação do casal, em data não concretamente apurada, mas situada entre 15 de março de 2018 e 1 de abril de 2018; e que, para o efeito, a arguida se tenha aproveitado da ausência do assistente, que se tenha deslocado à sua residência e munida das respetivas chaves tenha entrado na mesma, sem o conhecimento e/ou consentimento do assistente.
Não se provou, pois, que a apropriação tenha ocorrido mediante introdução ilegítima em habitação.
Tais factos que resultaram provados, desencadeiam a aplicação dos elementos objetivos e subjetivos do crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do Código Penal, e não do crime de furto qualificado previsto e punido pelo 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que a arguida vinha acusada.”
3. Por isso, a conduta da arguida integrou o estatuído no art. 207.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, ou seja, em virtude destas particulares circunstâncias, o crime de furto passa a assumir a natureza de crime particular e, alterando-se o regime de procedibilidade, é ao ofendido que cabe deduzir a respetiva acusação particular, requerendo, previamente, a sua constituição como assistente, no prazo que a lei estabelece para o efeito.
4. Pelo que, com todo o respeito pela decisão recorrida, não podemos deixar de discordar com a mesma, pois impunha-se a absolvição da arguida pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, por ausência de acusação particular e falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal nos termos dos artigos 50.º, do Código de Processo Penal, 203.º, n.º 1 e 207.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
5. A questão essencial prende-se em saber se o Tribunal, absolvendo a arguida pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelo 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que a arguida vinha acusada, pode condenar pela prática do crime de furto simples, p. e p. pelo art. 203º, nº 1, do Código Penal, não tendo o assistente deduzido acusação particular.
6. No caso, o ofendido constituiu-se assistente, mas ainda assim, não se verificou o cumprimento de um dos requisitos para que o processo pudesse prosseguir apenas pela prática do crime de furto simples: o assistente não deduziu acusação particular pelo referido crime nem aderiu à acusação principal deduzida pelo Ministério Público.
7. Em consequência, verifica-se a falta de legitimidade do MP para promover o processo, já que a natureza particular do crime, para além da queixa, exige também a constituição de assistente e a dedução de acusação particular (cf. artigos 117.º, 203.º n.ºs 1 e 3, 207.º, n.º 1, al. a), do CP e 48.º, 50.º, 68.º, 69.º, n.º 2, al. b), 242.º, n.º 3, 246.º, n.º 4 e 285.º, do CPP).
8. O Ministério Público carece, pois, de legitimidade para fazer prosseguir a ação penal, a não ser que o assistente tivesse deduzido acusação particular, pelo que deverá a arguida ser absolvida definitivamente de tal crime particular.
9. Por todo o exposto, ao condenar a arguida, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 203.º, nº 1 e 207º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, assim como o disposto nos artigos 50º e 284º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, que impunham que proferisse decisão absolutória relativamente ao crime de furto simples.»
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O assistente nada disse e tão pouco a arguida o fez.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que assumiu posição equivalente à do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, pugnando pela procedência do recurso.

Não houve respostas.
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1. É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação que constam da sentença recorrida (transcrição):
«Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão a proferir:
1º- O assistente C… e arguida B… mantiveram uma relação amorosa tendo coabitado na residência do assistente, sita na Avenida …, …, Bl. …, …, …, Vila Nova de Gaia, entre Janeiro de 2015 e Março de 2018.
2º- Terminada a relação, a arguida abandonou a residência levando, no entanto, as chaves de acesso à mesma que nunca entregou ao assistente.
3º- Em data não concretamente apurada, mas anterior ao termo da relação e antes de a arguida ter abandonado a residência do assistente, a arguida retirou do interior desta um quadro “…”, no valor de €271 e um disco externo “…, …, no valor de €207, deles se apropriando, fazendo-os seus.
4º- A arguida agiu, livre, deliberada e conscientemente, com o propósito concretizado de se apoderar dos artigos supra descritos do interior da residência do assistente e fazê-los seus, bem sabendo que os mesmos lhe não pertenciam e que agia contra a vontade do seu legítimo proprietário.
5º- A arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Provou-se ainda que:
6º- No disco rígido referido em 3º encontram-se dados pessoais e fotografias do nascimento do filho do assistente e de outras recordações de família.
7º- Em consequência da atuação da arguida, o assistente ficou muito triste e desgostoso.
Mais se provou que:
8º- A arguida confessou parte dos factos de que vinha acusada.
9º- É divorciada, exerce a atividade de gestora comercial, aufere mensalmente 585,00€, vive em casa própria e tem como habilitações literárias uma licenciatura em Contabilidade e Administração.
10º- A arguida não tem antecedentes criminais.
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Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir:
a) – Que os factos referidos em 3º tenham ocorrido após a separação do casal, em data não concretamente apurada mas situada entre 15 de Março de 2018 e 1 de Abril de 2018;
b) – Que, para o efeito, a arguida se tenha aproveitado da ausência do assistente, que se tenha deslocado à sua residência e munida das respetivas chaves tenha entrado na mesma, sem o conhecimento e/ou consentimento do assistente.
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Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos constantes da factualidade provada e não provada, ou que com os mesmos estejam em contradição, e que assumam relevo para a decisão a proferir.”

2. É do seguinte teor a ATA DE AUDIÊNCIA DE DISCUSSÃO E JULGAMENTO:

“Data: 01-07-2020
Local: Sala 6.01
Juiz de Direito: Dr.ª D…
Magistrada do Ministério Público: Dr.ª E…
Escrivão Auxiliar: F…
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Sendo a hora marcada, publicamente e de viva voz, identifiquei os presentes autos de Processo Comum (Tribunal Singular), em que são:
Assistente: C…
Arguida: B…
e de imediato procedi à chamada de todas as pessoas que nele devem intervir, após o que comuniquei verbalmente à Mm.ª Juiz, o rol dos presentes e dos faltosos (art.º 29º, n.ºs 1 e 2 do C. P. Penal), a saber:
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PRESENTES:
Arguida: B…
Mandatária da arguida: Dr.ª G…
*
FALTOSOS:
Ninguém
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Quando eram 13 horas e 50 minutos, e após a realização de todas as chamadas no âmbito dos processos para hoje agendados, pela Mm.ª Juiz foi declarada reaberta a presente audiência tendo de seguida proferido o seguinte:
*
DESPACHO
*
Da audiência de julgamento diversas foram as referências aos seguintes factos:
- que os factos ocorreram em data não concretamente apurada, mas anterior ao termo da relação e antes de a arguida ter abandonado a residência do assistente.
Ora, tais factos, não estando descritos no despacho de acusação, na medida que resultaram da audiência de julgamento e na estrita medida em que poderão ser importantes para a boa decisão da causa a proferir, consubstanciam uma alteração dos factos objeto deste processo que, não sendo substancial nem resultando da própria defesa, deve ser levada ao conhecimento do arguido para dar integral cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P., apesar de a discussão já se ter encerrado.
Na verdade, toda a sentença que conheça de factos que constituam uma alteração seja ela substancial, não substancial ou equiparada a esta última, sem dar integral cumprimento ao disposto no art.º 358.º do C.P.P. ou ao disposto no art.º 359.º do C.P.P., consoante o caso, está ferida de nulidade, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do C.P.P.
No entanto, tal vício é susceptível de ser arguido ou conhecido em recurso, sendo lícito ao Tribunal supri-la nos termos dos arts. 379.º, n.º 2 e 414.º, n.º 4, do C.P.P.
Ora, assim sendo, atento o formalismo estabelecido na lei processual, afigura-se que a forma adequada a suprir a dita nulidade consiste em reabrir a audiência de julgamento e dar integral cumprimento ao disposto nos arts. 358.º ou 359.º do C.P.P., conforme o caso (cfr. nesse sentido, Ac. da Relação de Coimbra, de 31 de Outubro de 2001, in http://www.dgsi.pt; VEIGA, Raul Soares da, in prefácio à 2.ª edição de Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, ISASCA, Frederico, Almedina, Coimbra, 1995).
Pelo exposto, tendo em conta o princípio da economia processual que está subjacente ao dito formalismo estabelecido na lei processual, determino a reabertura da audiência de julgamento e, em obediência ao disposto no art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P., comunico que, na decisão a proferir, serão valorados os ditos factos.
Mais se dá conhecimento que, discutida a causa, entende o tribunal terem resultado provados parte dos factos imputados na acusação pública à arguida, bem como aqueles que supra se aludem.
Porém, entende que tais factos integram a prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1, e não o crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que vem acusada.
Deste modo e pelo exposto, comunica-se à arguida a presente alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 3 do CP.P.
*
Dada a palavra à Digna Magistrada do M.º Público e à ilustre advogada, pelas mesmas foi dito nada terem a opor ou a requerer.
*
Foi dada a palavra novamente para alegações e, após, facultada a palavra à arguida presente para, querendo, acrescentarem algo à sua defesa.
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De seguida, após uma breve interrupção, a Mm.ª Juiz procedeu à leitura da sentença, o que fez em voz alta.
*
Logo, todos os presentes foram devidamente notificados e foi declarada encerrada a audiência quando eram 14 horas.
A presente ata foi integralmente revista e por mim, F…, elaborada.”
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a seguinte:
- Legitimidade do M.P por ausência de acusação particular relativamente ao crime pelo qual foi condenado o arguido.
*
Vejamos.

Como resulta do douto libelo acusatório, a arguida B… vem acusada da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal. O crime pelo qual foi acusada tem natureza pública.
Porém,
E tal como resulta da ata de leitura do da decisão condenatória, “Da audiência de julgamento diversas foram as referências aos seguintes factos: - que os factos ocorreram em data não concretamente apurada, mas anterior ao termo da relação e antes de a arguida ter abandonado a residência do assistente.
Ora, tais factos, não estando descritos no despacho de acusação, na medida que resultaram da audiência de julgamento e na estrita medida em que poderão ser importantes para a boa decisão da causa a proferir, consubstanciam uma alteração dos factos objeto deste processo que, não sendo substancial nem resultando da própria defesa, deve ser levada ao conhecimento do arguido para dar integral cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P., apesar de a discussão já se ter encerrado.
Na verdade, toda a sentença que conheça de factos que constituam uma alteração, seja ela substancial, não substancial ou equiparada a esta última, sem dar integral cumprimento ao disposto no art.º 358.º do C.P.P. ou ao disposto no art.º 359.º do C.P.P., consoante o caso, está ferida de nulidade, nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do C.P.P.
No entanto, tal vício é susceptível de ser arguido ou conhecido em recurso, sendo lícito ao Tribunal supri-la nos termos dos arts. 379.º, n.º 2 e 414.º, n.º 4, do C.P.P.
Ora, assim sendo, atento o formalismo estabelecido na lei processual, afigura-se que a forma adequada a suprir a dita nulidade consiste em reabrir a audiência de julgamento e dar integral cumprimento ao disposto nos arts. 358.º ou 359.º do C.P.P., conforme o caso (cfr. nesse sentido, Ac. da Relação de Coimbra, de 31 de Outubro de 2001, in http://www.dgsi.pt; VEIGA, Raul Soares da, in prefácio à 2.ª edição de Alteração Substancial dos factos e a sua relevância no processo penal português, ISASCA, Frederico, Almedina, Coimbra, 1995).
Pelo exposto, tendo em conta o princípio da economia processual que está subjacente ao dito formalismo estabelecido na lei processual, determino a reabertura da audiência de julgamento e, em obediência ao disposto no art.º 358.º, n.º 1, do C.P.P., comunico que, na decisão a proferir, serão valorados os ditos factos.
Mais se dá conhecimento que, discutida a causa, entende o tribunal terem resultado provados parte dos factos imputados na acusação pública à arguida, bem como aqueles que supra se aludem.
Porém, entende que tais factos integram a prática de um crime de furo simples, previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1, e não o crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, alínea f) do Código Penal, de que vem acusada.
Deste modo e pelo exposto, comunica-se à arguida a presente alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 3 do CP.P.”.
O Tribunal a quo entendeu assim que, após a produção da prova, indiciariamente resultaram provados factos que poderiam consubstanciar a prática, pelo arguido, de um crime de furto simples, previsto e punido nos termos do artigo 203.º, n º 1do Código Penal e não do crime de furto qualificado com referência aos artigos 203º, n º 1 e 204º, n º 1, al.f) do Código Penal, pelo qual vinha a arguida publicamente acusada.
Nesta subsequência, e cumpridos os formalismos legais prescritos pelo artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, foi a arguida condenada pela prática de um crime de furto simples, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de €6,00.
O crime pelo qual o Recorrente foi condenado tem natureza particular atendendo ao disposto no art. 207º, n º 1, al.a) do C.Penal, na medida em que o agente vivia em condições análogas às dos cônjuges, ponto 1 dos factos provados.
Como é consabido, a natureza do crime em questão faz depender o procedimento criminal da apresentação de «queixa» e de acusação particular- artigo 207º, n º 1, al.a) do Código Penal.
Queixa esta a apresentar no prazo de seis meses – a que alude o artigo 115,º, n.º 1, do Código Penal.
É sabido que um dos princípios fundamentais do nosso processo penal é o princípio da oficialidade, consagrado no artº 48º do C.P., cujo significado é o de que cabe ao Mº Pº a investigação da prática de infrações penais e, finda a investigação, deduzir ou não acusação.
Este princípio, contudo, sofre algumas restrições, designadamente, em função da natureza dos crimes - semipúblicos (artº 49º) ou particulares (artº 50º).

Quanto aos primeiros, o Mº Pº só pode promover o processo se o "ofendido" ou "outras pessoas" lhe derem conhecimento "do facto".
Quanto aos segundos, para que o Mº Pº possa desencadear a investigação é necessário que seja apresentada queixa, o queixoso se constitua assistente e, a seu tempo, deduza acusação particular.
Quanto à forma da queixa, ensina Figueiredo Dias Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, pág. 675, parágrafo 1086.: tanto o C.P. como C.P.P. são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. (...) Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona.

Ora, dedilhando os presentes autos, facilmente se constata existir qualquer queixa expressa apresentada pelo ofendido dentro do prazo legal, cfr. fls.30 dos autos, tendo, inclusive assumido o estatuto de vítima, cfr. fls. 5 e ss.
Também não temos dúvidas que o ofendido se constitui em tempo assistente nos auto cfr. fls. 68 e que o mesmo deduziu, também em tempo pedido de indemnização civil, cfr. fls. 146 dos autos
Embora não requerendo a utilização de fórmula especial, o exercício do direito de queixa exige uma manifestação inequívoca de vontade do denunciante no sentido de que pretende procedimento criminal contra o denunciado.
Com tal exigência, pretende a lei que a queixa seja um ato refletido, dadas as consequências daí advenientes.
Contudo, saliente-se que para se apresentar a queixa não são necessários especiais conhecimentos jurídicos, nem a sua validade está dependente de qualquer fórmula sacramental (vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 525/12.5GAAMR.G1, do Relator Fernando Monterroso, de 10/07/2014).
A queixa não está sujeita a qualquer formalismo específico, sendo apenas necessário que a comunicação exprima a referida vontade de que seja exercida a ação penal (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 417/16.9PBCVL.C1, do Relator Luís Ramos, de 05/12/2018).
Analisado o processo não temos dúvidas que o ofendido desejou e pugnou pela existência de um procedimento criminal contra a arguida.
Atenta a qualificação dos factos por parte do M.P., a factualidade foi sempre perspetivada do ponto de vista da eventual prática do crime de furto qualificado, crime público que dispensa a apresentação de queixa e a acusação particular e por essa razão nem sequer deu cumprimento ao disposto no art. 285º, n º 1, 2 e 4 do CPP.
A queixa é a comunicação e a declaração de vontade do titular do direito violado de que seja instaurado um processo por facto suscetível de integrar um crime.
Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, o exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semipública e particular a que acresce a estes a dedução de uma acusação particular.
Por crimes particulares entende-se aqueles cuja promoção da ação penal pelo M.P. depende da apresentação da queixa pelo respetivo titular, da sua rápida constituição como assistente e de posterior/eventual acusação privada, -condição de procedibilidade processual-arts. 50º e 68º e arts. 113º a 117º do C.P.
A informação sobre a natureza dos crimes colhe-se no descritivo dos tipos legais e seu enquadramento, em função da caraterização individual ou supraindividual do bem jurídico protegido.
Declarado encerrado o inquérito, verificada a conformidade legal de todos os atos do inquérito pelo M.P. e a existência de crime de natureza particular, sem prejuízo de outros, é o assistente notificado para que deduza, querendo, acusação particular e nesse momento o M.P. emite ainda uma parecer não vinculativo sobre a prova indiciária produzida e notifica o assistente, para que este tenha conhecimento prévio da posição do M.P. A acusação do assistente acompanhada ou não pelo M.P. segue sempre para julgamento, sem prejuízo do art. 311º do CPP. Tal acusação adquire a posição de dominante, ficando o M.P.na situação do assistente nos casos dos crimes públicos e semipúblicos.
Por sua vez a acusação do assistente tem de observar o mesmo rigor que é imposto à acusação do M.P. regulada no art. 283º do CPP.
O M.P. após a dedução de acusação particular pode também acusar.
O assistente tem 10 dias para acusar, art. 50º do CPP.
Compulsados os autos verifica-se que tudo está presente menos a acusação particular bem como a notificação do M.P. para que o assistente o fizesse.
Verifica-se igualmente que o inquérito e a acusação encaminhou toda a investigação para crime de natureza pública.
Verifica-se igualmente que o assistente a quando da dedução da acusação pública não a acompanhou nos termos do art. 284º do CPP. Contudo não era obrigado a tal, pois que a lei usa o termo “ pode” e daí não podem resultar quaisquer consequências jurídicas, pois que o titular da ação penal nos crimes públicos e semipúblicos é o M.P. e o assistente não tem a função que cabe ao M.P de garante da legalidade penal, art. 219º da CRP. Mas mesmo que se considerasse uma obrigação do assistente, tal seria uma mera nulidade sanável prevista no art. 120, n º 2,al.d) do CPP e não tendo sido invocada por qualquer interessado no prazo legal, no caso até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito, art. 120º n º 3, al.c) do CPP, mostra-se sanada, pelo que não pode o recorrente M.P. nesta fase invocar o facto de o assistente não ter acompanhado a acusação pública.
E também não pode o recorrente dizer que cabia ao assistente prever a hipótese do crime poder vir a ser convolado deixando de ser público e passando a particular. O M.P não o previu e nem preveniu o assistente para querendo deduzir em alternativa uma acusação particular. Por sua vez, a referida acusação do assistente prevista no art. 284º do CPP para os crimes públicos e semipúblicos em nada se compara com a natureza de uma acusação particular, cujos requisitos mais apertados e exigentes remetem para o art. 283º do CPP, não podendo ser uma mera adesão ou uma só indicação de provas.
As consequências a extrair da alteração da natureza do crime de público para semipúblico ou mesmo particular, seja em resultado de alteração legislativa, seja por força da modificação da matéria de facto imputada, após a produção da prova, em sede de audiência de julgamento, com alguma proximidade à questão que ora nos ocupa, não tem merecido resposta unânime da jurisprudência.
- Para uma corrente - a título de mero exemplo, Ac. do STJ de 01-07-1998 (proc. n.º 234/98 - 3.ª Secção), in Sumários do STJ, Acs. do mesmo Tribunal de 04-10-1995 e 19-03-97, in Colectânea, tomos III e I, págs. 203 e 292, e Ac. do mesmo Tribunal de 04-10-1995, Colectânea, tomo III, pág. 203 - tendo o instituto da queixa natureza mista, processual e substantiva, a lei que passa a fazer depender de queixa o procedimento criminal, no confronto com aquela que conferia ao ilícito natureza pública, é a aplicável, por favorecer inequivocamente o arguido;
- Seguindo outra, no circunstancialismo considerado, o ofendido dispõe do prazo de seis meses, contados da data da entrada da LN para declarar se deseja procedimento criminal - inter alia, vejam-se os Acs. do STJ de 19-03-1997, Colectânea, tomo I, pág. 252, e de 29-01-1997, BMJ 463, pág. 319;
- Em posição diversa, sustenta-se no Ac. do STJ de 12-11-1997, publicado, em sumário, no respetivo Boletim Interno: «em tais circunstâncias, deve o tribunal, em aplicação, por analogia, do disposto no artigo 52.º do CPP, proceder à notificação do ofendido para, em três dias, declarar se quer ou não exercer o seu direito de queixa, com as consequências seguintes: a) declarando que não pretende apresentar queixa, ou nada declarando, o MP não tem legitimidade para prosseguir a acção penal e o arguido será então absolvido da instância, por ilegitimidade daquele; b) declarando que apresenta queixa, o MP tem legitimidade para prosseguir a acção penal»;
- Ainda com diferente registo, os Acs. da Relação do Porto de 13-03-1996, Colectânea, tomo II, pág. 229, e da Relação de Évora de 19-03-1996, mesma obra e mesmo tomo, pág. 286, sufragam tese no sentido de a queixa ser um mero pressuposto processual, detendo as normas atinentes ao exercício do respetivo direito natureza exclusivamente adjetiva penal, sendo, por conseguinte, de aplicação imediata, com projeção apenas no futuro;
- Por fim, outro sector da jurisprudência, acompanhado por parte da doutrina - sem a preocupação de sermos exaustivos, destacamos Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Editorial Verbo, 1997, pág. 275, e Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis no Tempo, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 385/410, e Acs. do STJ de 05-04-2001, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, pág. 176/8; da Relação de Guimarães de 09-05-2005, Colectânea, III, pág. 295/6; da Relação de Lisboa de 26-11-2004, da Relação de Coimbra de 15-05-2013 (proc. n.º 2107/12.2PCCBR.C1) e de 12-03-2014 (proc. n.º 308/12.2T3AND.C1) - aceitando a dupla natureza, material e substancial, das normas relativas ao direito de queixa e, consequentemente, a aplicação retroativa do regime penal mais favorável ao arguido, autonomizam, na vertente em causa, a incidência desta realidade na legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal, no manifestado entendimento de a condição de procedibilidade que a queixa constitui esgotar os seus efeitos na criação do pressuposto da promoção da ação penal pelo MP.
Assim, entre o mais, há quem - sufragando embora a dupla natureza (material e substancial) das normas relativas ao direito de queixa e, por conseguinte, a aplicação retroativa do regime penal mais favorável ao arguido - considere, neste preciso segmento que, tendo sido já deduzida acusação, em conformidade com a lei vigente e estando, pois, estabelecida a legitimidade do Ministério Público no momento próprio, apenas se consubstancia uma alteração de procedimentos que em nada afeta os direitos do arguido, sendo inaplicável a previsão do art. 2º, n.º 4, do Cód. Penal.
Já outra corrente, assinalando igualmente a natureza mista do instituto da queixa, conclui que se a alteração posterior faz depender de queixa o procedimento criminal que até aí a dispensava, há que aplicar a lei mais favorável ao arguido, ditando a absolvição.
Existem ainda algumas variantes que afirmam a necessidade de ouvir o ofendido, concedendo-lhe prazo para, querendo:
a) Exercitar o seu direito de procedimento criminal e demais trâmites legais; ou
b) Desistir do procedimento.
Na primeira hipótese os autos prosseguirão ou não consoante seja deduzida a queixa em falta, enquanto na restante o processo seguirá os seus normais termos a não ser que o ofendido formule desistência de queixa e o arguido a tal não se oponha, caso em que a mesma será homologada e o procedimento extinto.
Ocorre, no caso, que em sede de julgamento o tribunal a quo decidiu operar o art. 358º, nº 1 do CPP, convolando o crime público em particular. Em ata nada foi requerido subsequentemente.
A ausência de acusação particular pelo assistente, sobretudo nos casos em que os crimes denunciados e investigados têm natureza pública e os visados não são informados nem instados sobre tal matéria, como aconteceu nos autos, não deve redundar num surpreendente e irrevogável efeito preclusivo, sendo que o assistente demonstrou pelo seu comportamento processual ser o prosseguimento do processo a sua intenção.
E isto, repare-se, não por via de qualquer incúria do assistente, mas pela convicção em si formada – legitimamente, até porque sancionada por acusação do MP – de que os indícios suficientemente carreados para os autos configuravam um delito público.
A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da acção penal o Ministério Público, órgão que, quando do exercício dessa mesma acção, a tinha e a usou de acordo com a lei.” (Ac TRL de 17/06/2015, proferido no Proc48/13.5PFPDL.L1-3)
Estando sempre em causa, como está, a protecção do interesse e da vontade da vítima, mal se acolhe a ideia de que, pelo facto de ela não ter proferido, a seu punho, a acusação, se venha a determinar a inutilidade de todo um procedimento criminal e, em última análise, a não punição do agente, quando se comprova que, ainda que por actos distintos, essa vontade de persecução penal foi suficientemente manifestada, se demonstra actual e os factos criminosos foram, efectivamente, cometidos.
No caso, a manifestação da vontade actual, por parte da ofendida, de persecução da tutela penal dos direitos violados está suficientemente expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito (artº 285º/CPP), quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação (sublinhado nosso) seria, quanto a nós, impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão.”
Na verdade, por força da acusação deduzida, o arguido sabia que o julgamento haveria de tomar em conta os factos injuriosos e em coisa nenhuma viu beliscado os seus direitos de defesa; a ofendida viu defendidos os interesses penais pelos quais demonstrou pretender a condenação do arguido e o sistema penal funcionou de forma eficaz no âmbito de um único procedimento criminal, repondo a paz pública.
Nem cremos que a falta de acusação particular seja motivo legal para a inutilização, retroactiva, da acusação que foi proferida por quem, à data, detinha exclusiva legitimidade para o efeito – ou seja, sem dependência de qualquer actividade da ofendida. O MP acusou por factos relativamente aos quais tinha legitimidade e os pressupostos processuais relativos a tal acusação estabilizaram-se, nesse preciso momento.”

Ver ainda, AC TRP, 30-01-2013, relator: Pedro Vaz Pato, AC TRP, 27-04-2016, relator: Vítor Morgado.
Ainda “Ademais, em face de todos os elementos então disponíveis, a investigação iniciou-se, prosseguiu e foi concluída com a dedução de uma acusação por um crime público, não estando, pois, dependente da satisfação da condição de procedibilidade traduzida no exercício do direito de queixa pelo respetivo titular.
Consequentemente, a promoção do processo iniciou-se e decorreu de forma válida e eficaz, não se podendo apontar qualquer irregularidade ao início e ao desenvolvimento da atividade do Ministério Público, que viu, ab initio, a sua legitimidade assegurada.
O que sucedeu é que, em sede de julgamento e em consequência da conformação probatória que teve lugar, se concluiu que os factos apurados integram antes um crime de natureza semipública.
O que, todavia, não implica uma deslegitimação retroativa do Ministério Público para promover o processo. O facto de, perante a prova produzida em audiência, o tribunal ter convolado os factos para um crime de natureza semipública torna desnecessária a apresentação de uma queixa cujos possíveis efeitos jurídicos já se produziram no momento próprio, com o início legítimo do procedimento criminal. Constituindo a queixa uma condição de procedibilidade pelos crimes de natureza semipública, os seus efeitos esgotam-se na criação do pressuposto da promoção da ação penal pelo Ministério Público.
Tendo-se o processo iniciado legitimamente, deve entender-se que assim permanece, sob pena de se surpreender agora a ofendida com uma exigência que não é razoável, ou seja, que prefigurasse e antecipasse a necessidade de satisfação uma condição de procedibilidade que, ao tempo em que podia ser exigida, enquanto pressuposto para a promoção do processo, não o era.
Sem prejuízo, claro está, de uma eventual desistência de queixa por parte da ofendida já constituir, ela sim, um obstáculo ao prosseguimento do processo.
Em suma, tendo o processo tido início para investigação de um crime de natureza pública (ofensa à integridade física qualificada) e assim prosseguido até à fase de julgamento, qualificação jurídica essa suportada pelos elementos então disponíveis, constatando-se, em consequência da prova produzida em audiência, que a conduta da arguida integra antes o crime de ofensa à integridade física simples (de natureza semipública), para a condenar por este crime não é necessário que a ofendida tenha exercido o direito de queixa, por aquela alteração da qualificação jurídica não ter qualquer efeito sobre o procedimento que foi iniciado de forma válida e eficaz.”Ac RG de 09.12.2019.
Ac. do TRP de 24/10/2007, Proc. n.º 0742054 (Artur Oliveira): «Uma vez iniciado o procedimento por um crime público, a constatação, após o julgamento, de que os factos integram a prática de um crime semi-público não tem qualquer efeito sobre o procedimento iniciado de forma válida, para além de, por ser favorável ao arguido, se admitir a possibilidade de desistência da queixa.».
Note-se que o legislador admitiu, por razões de economia processual e no sentido de cumprir as finalidades do processo criminal, que, resultando do julgamento (ou da instrução) uma mutação substancial ou não dos factos (artigo 1.º, alínea f)), os autos não regressem às fases preliminares, mas permaneçam no momento processual em que se encontram, cumpridas as exigências das garantias de defesa devidamente asseguradas pelos artigos 358.º e 359.º Daqui retira-se, sem sombra para dúvidas, que foi intentio legis operar a concordância entre os interesses da arguida e os da realização da justiça criminal, a que também não são alheios os do ofendido/assistente.
As condições de procedibilidade da ação penal servem como forma de disciplinar a tramitação processual, impedindo que a mesma seja excessivamente morosa – com o que se vulneraria a existência de uma decisão “em prazo razoável” (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) –, para além de acautelar os interesses já identificados do arguido e do ofendido. Conduzindo-se as fases anteriores ao julgamento num sentido inequívoco de que estaríamos em face de um delito público, é manifestamente desproporcionado (e por isso questionável à luz do artigo 18.º, n.º 2 da CRP) que se negue a pacificação social e a descoberta da verdade apenas e tão-só em obediência a uma visão exasperadamente formalista de um pressuposto processual.
Optar-se por uma solução que passasse pela absolvição da arguida, por ausência de acusação particular, de um prisma criminológico, a solução obtida apenas contribui para o descrédito da administração da Justiça ao nível do ofendido e, por consequência, de toda a comunidade organizada em Estado. A mensagem que se passa é a seguinte: estamos convictos, pela prova produzida em julgamento, que o agente cometeu um ou mais delitos, mas como não é exatamente aquele que se encontrava imputado na acusação ou pronúncia, mas outro ou outros, e o ofendido – porque sempre teve sinais do sistema de que tal não era necessário – não apresentou, em tempo, a queixa/acusação particular ou, para além dela, não desenvolveu os ulteriores atos processuais (tratando-se de um crime particular em sentido estrito), não podemos condenar a dita arguida.
Não se pode exigir ao ofendido que configure todas as soluções jurídicas possíveis para o mero fazer chegar ao conhecimento da autoridade judiciária encarregada da investigação todas as vicissitudes jurídicas e factuais. Temos por incompreensível.
Configurar uma visão mais rigorista e formalista dos pressupostos processuais, ou uma que – não quebrando embora os fins essenciais que lhe subjazem – dos mesmos comporta uma leitura mais material e orientada para a efetiva realização da Justiça, é matéria que ainda cabe dentro da margem de discricionariedade que o Tribunal Constitucional vai reconhecendo ao legislador ordinário.
Os pressupostos processuais, em geral, de que os atinentes à procedibilidade são um mero espécimen, só podem estar ao serviço da Justiça (do caso concreto) e não ao invés. Se assim não for, é a própria verdade que se não atinge. Dir-se-á: mas esta verdade é intraprocessual, razão pela qual os pressupostos processuais devem ser respeitados. Por certo. Todavia, o modo como configuramos estes últimos e os colocamos ao serviço da concreta resolução do conflito penal não está inscrito na natureza das coisas.
O processo iniciou-se para investigação de um crime público, pois que os factos objeto de comunicação ao OPC e relatados no auto de notícia que suporta a instauração de inquérito, indiciavam ser esse o caso e as diligências subsequentes realizadas compadeciam-se com tal entendimento, podendo acolher-se a opção do Ministério Público e considerar assente a sua legitimidade, ou seja, o procedimento, à partida, preenchia o requisito de procedibilidade previsto no art. 49º, do Cód. Proc. Penal.
O Estado não pode demonstrar-se desleal com o ofendido nos casos em que tudo indiciava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto da alteração da qualificação jurídica ou dos factos, que não tinha de ser prevista de jeito expedito pelo ofendido, se lhe diga que, por uma questão formal, não mais se pode continuar com o processo.
É óbvio que a perspetiva que sustentamos não é compatível com uma visão maximalizada dos direitos de defesa do arguido, o que não significa que patrocinemos o que se vai escutando como vox populi e como voz autorizada, de que o nosso processo penal é excessivamente garantista para quem enfrenta uma ação criminal. Afirmamos – isso sim – que é essencial encontrar espaços de concordância prática com os direitos do ofendido e as outras finalidades processuais penais. No mesmo sentido ver “Falta de condições de procedibilidade para a ação penal e verdadeiras decisões surpresa” in Revista do M.P., n º 155 de Julho/Set de 2018.
Aliás a arguida em nada é surpreendida ou prejudicada nos seus direitos de defesa.
Entende-se não ser irrelevante a natureza do crime à data em que o inquérito foi instaurado e prosseguiu seus termos, levando à dedução de acusação e ao julgamento do arguido.
O princípio da confiança, ínsito no do Estado de Direito Democrático, proclamado pelo artigo 2.º da CRP exige que no circunstancialismo dos autos em que, findo o julgamento, o tribunal entendeu não ter recolhido prova de toda a factualidade imputada ao arguido, mas apenas de uma parte integrante unicamente de crimes de natureza particular, proteja o assistente.
As expectativas da arguida que eram as de ser sujeita a julgamento relativamente aos factos objeto do processo em que era ofendido o assistente, não se mostram goradas. O prosseguimento do processo por factos que já constituíam objeto do julgamento em nada belisca tais expectativas, únicas que legitimamente podia acalentar.
As expectativas a proteger no caso são, manifestamente, as do assistente que viu os autos prosseguir seus trâmites normais, com fundamento em denúncia sem que ninguém o questionasse sobre a sua vontade de tal ocorrer – nem, para tanto, se verificavam, então, os pressupostos, pois que, de crime público se tratava e a lei proíbe a prática de atos inúteis – e foram surpreendidos com a alteração dessa situação a final do julgamento. Não permitir ou não considerar que ofendido, em situações dessas, exerça validamente o seu direito, isso, sim, é inconstitucional por violação do já aludido princípio da confiança ínsito no Estado de Direito Democrático, proclamado pelo artigo 2.º da lei fundamental.
Trata-se de situação similar à que ocorre com a transformação de crimes públicos em semipúblicos, por via legislativa e, nesses caso, é no sentido apontado que vai a doutrina e jurisprudência (neste sentido, v.g. TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de leis penais, 2.ª edição, Coimbra, 1997, p. 245 e Ac. TC n.º 523/99 de 28/9/1999).
Aliás, tratando-se, no caso, de convolação para crimes menos graves já contidos no crime mais grave que ao arguido vinha imputado na acusação, nem se justifica a comunicação da alteração da qualificação jurídica efetuada pelo Tribunal ao arguido (Cfr. neste sentido CPP comentado António Henriques Gaspar, Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, Edª Almedina 2014, pág. 1128 penúltimo e antepenúltimo parágrafos e vasta jurisprudência aí anotada), que apenas se compreende no sentido de lhe possibilitar a obtenção de composição juridicamente relevante com os ofendidos, que até aí não fora possível.
No caso dos autos, nenhuma patologia se verifica no surgimento e promoção do processo penal até à fase de julgamento: naquela altura, os elementos disponíveis sugeriam a prática de um crime de furto qualificado, cuja natureza pública dispensava o Ministério Público de aguardar qualquer atividade de terceiros para a promoção do processo.
Sucedeu, tão só, que, na fase do julgamento, perante a prova produzida em audiência, o tribunal a quo veio a entender não se verificar tal crime.
Sendo a acusação particular uma condição de procedibilidade, mas não de prosseguibilidade, uma vez iniciado o processo por iniciativa do Ministério Público, num momento em que o crime indiciado e imputado ao arguido era público, é desnecessária a apresentação de uma acusação particular, cujos (possíveis) efeitos jurídicos já se produziram, quando o crime público se degradou em crime particular. O curso normal do processo só poderá ser impedido pelo surgimento de um obstáculo - desistência de queixa -, legalmente reconhecido. «Ou seja, por outras palavras: não é a declaração do ofendido no sentido de que o processo prossiga que vai conferir ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir o processo que validamente iniciou; é, sim, a eventual vontade do ofendido de que o processo seja extinto o que retira ao Ministério Público a legitimidade para prosseguir com a acção penal» - Taipa de Carvalho, obra cit., pág. 390.
Na feliz expressão do Ac. do STJ de 05-04-2001, «o que já se iniciou legitimamente, iniciado está e permanece».
Nesta conformidade, conclui-se no sentido de que não se verifica qualquer obstáculo legal processual impeditivo da apreciação da responsabilidade criminal da arguida quanto ao crime de furto simples p. e p. pelo arguido 203º do C. Penal.
Perante este quadro, não deverá extinguir-se todo o processado, sob pena de violação do dever de proteção dos direitos e liberdades fundamentais enquanto tarefa fundamental do Estado, nos termos do art. 9º, al. b) da Constituição da República Portuguesa.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pelo M.P. e, em consequência, decidem:
a) -Manter nos seus precisos termos a decisão recorrida.

Sem custas por delas estar isento o M.P.
Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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Porto, 10 de fevereiro de 2021
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.