Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0411496
Nº Convencional: JTRP00037818
Relator: ÉLIA SÃO PEDRO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
OFENSAS CORPORAIS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RP200503090411496
Data do Acordão: 03/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: .
Sumário: I - Se recorrente, nas conclusões da sua motivação, defendeu que a matéria de facto dada como provada não integrava o crime de maus-tratos a cônjuge, por que foi condenado, mas apenas um crime de ofensas à integridade física simples, pode o tribunal de recurso alterar, nesse sentido, a qualificação jurídica dos factos provados, sem necessidade de dar cumprimento ao disposto no art. 358º, n.1 do C.P.Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
No -º Juízo do Tribunal Judicial de....., foi julgado em processo comum e perante tribunal singular o arguido B....., tendo sido proferida a seguinte decisão:
“Neste termos e pelos fundamentos expostos, decide-se julgar totalmente procedente a acusação e, em consequência:
a) condenar o arguido B..... como autor material de um crime de maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152°, nos 1 e 2 do CP, na pena de 20 ( vinte meses) de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 2 (dois) anos.
b) condenar o arguido B..... pela prática de dois crimes de ameaça p. e p. pelo artigo 153°, nºs 1 e 2, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa cada um, fixando-se a pena única em 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 4 (quatro) euros, num total de 1120 euros.
Mais se decide condenar o arguido no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 2 UC, acrescida de 10/0, nos termos do art. 13°, n.3 do DL 423/91, de 30/10, bem como no pagamento das custas, sendo a procuradoria mínima.
Decide-se ainda julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido e, em conformidade, condenar o demandado B..... a pagar à demandante C..... a quantia de € 1.250 (mil duzentos e cinquenta) euros a título de danos não patrimoniais, absolvendo-se o demandado quanto ao restante peticionado.
Custas do pedido de indemnização civil por demandante e demandado, na proporção do respectivo decaimento”.

Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:

1- A acusação era obrigada a alegar factos, nomeadamente o circunstancialismo de tempo, modo e lugar capazes de caracterizar o crime de maus-tratos a cônjuge; ao não o fazer, não podia a sentença recorrida condenar o arguido pela prática de tal crime;
2- Não podia o arguido impugná-los especificadamente e daí a sua irrelevância jurídica, por serem conclusivos e desenquadrados do tempo, modo e lugar em que terão ocorrido e portanto incapazes de ser subsumidos no art. 152º do CP;
3- Para além disso, estes factos nunca foram impeditivos da vida em comum, até o arguido resolver abandonar a casa;
4- Os únicos factos concretos alegados pela acusação e dados como provados pela Ex.ª juíza recorrida foram tão só os ocorridos no dia 27 de Agosto de 2002;
5- Ora, o Tribunal recorrido omitiu quer declarações do arguido, quer declarações da testemunha D....., ou mesmo da ofendida, que como acima já transcrevemos da gravação áudio, afirmaram no decorrer da audiência que, nesta data, o casal encontrava-se separado de facto e, se se desse este facto como provado, também ele não seria integrador do crime de maus-tratos conjugais;
6- O art. 152º, 2 do CP não se basta com uma mera existência formal do casamento. O cônjuge só pode necessitar desta protecção especial quando a relação conjugal assenta numa vida familiar efectiva, “quando ambos viverem dentro das mesmas quatro paredes”. Só assim se justifica uma punição autónoma mais grave. Logo, quando esta vivência familiar desaparece e a eventual subordinação de facto deixa de existir, não faz qualquer sentido a punição do cônjuge agressor;
7- Relativamente ao crime de ameaças, foi dado como provado apenas que “O arguido costumava ameaçar a esposa e o filho, dizendo que os havia de matar a tiro e incendiar a casa onde habitam”; “ao mesmo tempo que praticava as agressões (…) o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo que os matava a tiro e incendiava a casa”; ora, relativamente à primeira parte, falta o circunstancialismo de tempo e lugar, o que impede a defesa cabal do arguido, porque desconhece de que factos se há-de defender;
8- Relativamente à segunda parte, a ameaça refere-se ao presente “Ao mesmo tempo… o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo que os matava a tiro…”, surge no contexto de uma discussão em que o arguido agride a ofendida. Logo não se trata de uma ameaça, de um mal futuro, mas antes da execução do próprio acto ameaçado, pelo que não configura o crime que vimos analisando, pelo que dele deve o arguido ser absolvido. A este propósito, veja-se, entre outros, o Ac. Rel. Porto, de 25/09/02, proc.0240259 e Anotação ao art. 153CP, Comentário Conimbricense, Tomo I;
9- Entre o crime de maus-tratos p. e p. pelo art. 152 e o crime de ameaças p. e p. pelo art. 153 do CP, há relação de especialidade, dado que toda a matéria de facto integradora do art. 152 consome inteiramente a matéria da norma geral;
10- Assim, exclui-se a aplicabilidade da norma geral devido a uma outra concorrente que agarra a situação com maior proximidade, prevalecendo a norma especial sobre a norma geral, logo, nunca o arguido poderia ser condenado pela prática de ambos os crimes;
11- Dado o que acima se disse, sob as conclusões 1 a 4, o arguido só poderá ser condenado pela prática do crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143 CP;
12- Ao fundamentar a decisão em sentido contrário ao das conclusões anteriores, a sentença recorrida está ferida de erro notório na apreciação da prova, de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do art. 410, als. a) e c) do CPP;
13- Ao condenar o arguido pelos crimes de maus-tratos a cônjuge e ameaças, quer ao cônjuge quer ao E....., violou os arts. 127º do CPP, 152º e 153º do CP;
14- A decisão recorrida deve por isso ser anulada e substituída por outra que absolva o arguido dos crimes de maus-tratos a cônjuge e ameaças e do pedido de indemnização civil.

O MP junto do tribunal “a quo” respondeu à motivação, defendendo a improcedência do recurso e a consequente manutenção da decisão recorrida.

Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-geral-adjunto emitiu parecer referindo “haver um ponto em que o recorrente tem razão de modo claro. Diz respeito à qualificação jurídica dos factos: maus-tratos a cônjuge ou ofensa à integridade física. (…) De modo que, e em consequência, se deve, nesta parte, dar provimento ao recurso, condenando-se o recorrente, mas pelo crime p. e p. pelo art. 143 CP, em pena que deve ser de multa. Quanto aos crimes de ameaças (…) deve manter-se o decidido, subscrevendo-se aqui a reposta do MP em 1ª instância”

Cumprido o disposto no art. 417, 2 do CPP, não houve resposta.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência de julgamento com observância de todo o formalismo legal

2. Fundamentação
2.1 Matéria de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
- O arguido foi casado com a ofendida C....., desde 31.12.1977, sendo pai do menor E....., nascido a 10.12.1990.
- De há cerca de 4 anos a esta parte o arguido vem agredindo a esposa na casa de residência de família, em....., ....., ....., agressões essas que se intensificaram a partir de Maio de 2002, altura em que o mesmo iniciou uma relação extra-conjugal.
- Para além disso, o arguido costuma ameaçar a esposa e o filho, dizendo que os há-de matar a tiro e incendiar a casa onde habitam.
- Assim, entre muitas outras vezes, no dia 27 de Agosto de 2002, pelas 21 horas e 30 minutos, na casa de residência da família, em....., ....., ....., o arguido perguntou à esposa por uns garrafões de vinho. Como esta lhe tivesse respondido que não sabia de tais garrafões, o arguido agarrou-a e atirou-a ao chão. De seguida, agrediu-a a murro e a pontapé, na presença no E..... e de uma outra filha do casal, D......
- Perante tal comportamento, a queixosa disse-lhe que não suportava mais a vida que levava e, por isso, ia morar com os filhos para casa de um irmão. Ao ouvir tais palavras o arguido ainda se enfureceu mais e voltou a agredir a esposa a murro e apertando-lhe o pescoço.
- Dessa forma, provocou-lhe as lesões constantes do auto de exame médico de fls. 8 e 9, lesões essas que foram causa directa e necessária de 15 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho. Para além disso, em consequência da actuação do arguido, tem a queixosa sofrido lesões do foro psicológico decorrentes do clima de tensão gerado que lhe vem provocando ansiedade, nervosismo e descontrole.
- Ao mesmo tempo que praticava as agressões supra descritas, o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo-lhes que os matava a tiro e que pegava fogo à casa. Devido ao feitio violento do arguido e por saberem que o mesmo era possuidor de várias armas de fogo os ofendidos vêm receando pela vida, por temerem que ele possa concretizar as ameaças.
- Bem sabia o arguido que as expressões proferidas revestiam carácter de seriedade e eram susceptíveis de causar perturbação nos visados como efectivamente causaram.
- O arguido vem agindo livre e conscientemente, com intenção de humilhar a ofendida e de atingir na respectiva integridade física, não obstante saber que, sendo ela sua esposa, tinha um especial dever de a respeitar.
- Não ignorava que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.
- O arguido não tem antecedentes criminais.
- Exerce as funções de pedreiro, auferindo 80.000$00 mensais; paga 15.000$00 mensais de renda de casa e paga a quantia mensal de 125 euros de prestação de alimentos ao filho menor; e proprietário de um veículo automóvel marca Land Rover.
- Tem como habilitações literárias a 4ª classe.

Provou-se, ainda, quando ao pedido de indemnização civil:
- Em virtude da conduta do demandado a demandante sofreu grande humilhação, vergonha e medo.
Factos não provados:
Provou-se toda a factualidade constante da acusação.

Quanto ao pedido de indemnização civil, não se provou que:
- A demandada tenha recorrido a tratamentos psiquiátricos.
- Que só sai da casa acompanhada por alguém e que mesmo acompanhada, sempre que avista o arguido entra em pânico.

Provas que serviram para formar a convicção do tribunal
Para prova do vínculo matrimonial que uniu o arguido à ofendida atendeu-se ao assento de casamento junto aos autos a fls. 32 e para prova de que o menor E..... é filho do arguido atendeu-se ao assento de nascimento de fls. 29. Para prova dos demais factos constantes da acusação atendeu-se, desde logo, às declarações da ofendida que, em termos credíveis e convincentes, pela sua impressividade, certeza, e localização espacial e temporal, relatou os factos constantes da acusação, declarações essas que forma confirmadas pelos filhos do casal, E..... e D..... que demonstraram conhecimento directo dos factos e depuseram de forma isenta e credível. Em nada abalou a sua isenção e credibilidade a alusão a conflitos com o progenitor em razão da grande mágoa que manifestaram sentir em relação a ele por ter saído de casa e se ter passado a relacionar com outra mulher, posto que os factos por elas trazidos a juízo e relativos às agressões a ameaças de que a ofendida foi vítima, bem como das ameaças de que foi vítima o menor E..... e praticados pelo arguido foram-no de forma clara e fundada, assentes na percepção directa as mais das vezes. Por outro lado, e no que concerne aos maus-tratos de que foi vítima a ofendida o tribunal louvou-se ainda nas regras da experiência comum, em termos de se impor uma presunção judicial ou natural da sua ocorrência, pois que para além dos depoimentos já aludidos que os confirmam, atendeu-se ainda aos dados objectivos consistentes nas lesões sofridas pela ofendida e relatadas no exame médico de fls.8 e 9, que sustenta a demonstração da verificação daquela agressão. O arguido negou a prática dos factos tal qual lhe são imputados na acusação, admitindo apenas ter referido no dia 27 de Agosto de 2002 que se não lhe dessem os garrafões de vinho pegava fogo à casa. Referiu ainda que as mais das vezes ele é que era a vítima de maus-tratos por parte da ofendida, que o insultava e chegou a dar-lhe com uma vassoura. Todavia, o arguido não apresentou qualquer prova que sustenta-se tal versão dos factos nem logrou, com as suas declarações, infirmar a prova produzida.
Diga-se, aliás, que a postura assumida pelo arguido em audiência de julgamento se revelou, a todos os títulos lamentável, arvorando-se ele de vítima da ofendida e chegando mesmo a insinuar que esta havia comprado os filhos com presentes para virem em audiência de por contra o mesmo.
E não menos lamentável foi a postura assumida pelas testemunhas de defesa arroladas pelo arguido (curiosamente, três homens e todos de relações cortadas com a ofendida) os quais, apesar de acabarem por referir que não tinham qualquer conhecimento directo da vida do casal e que não presenciaram qualquer situação ocorrida entre ambos, não se coibiram de comentar e mesmo afirmar que a vítima era o arguido, o qual por várias vezes lhes tinha confessado que se ausentava de casa do casal e chegava a dormir no seu veículo automóvel por sentir medo da ofendida, factos que curiosamente, situaram temporalmente em período em que o arguido já não se encontrava a residir com a ofendida e que, diga-se, nem o próprio arguido confirmou.
Para prova da ausência de antecedentes criminais do arguido atendeu-se ao CRC junto aos autos.
Para prova da situação económica e profissional do arguido atendeu-se ao por si declarado que, quanto a esta parte não ofereceu dúvidas ao tribunal. Para prova dos factos relativos ao pedido de indemnização civil o tribunal atendeu aos depoimentos da própria ofendida e da testemunha F..... que foi vizinha da ofendida até Julho de 1999 e que desde essa data tem continuado a contactar frequentemente com a mesma, por serem amigas.
Atendeu-se ainda às regras da experiência comum, pois que a normalidade das coisas é que alguém que sofra os maus-tratos que a demandante sofreu por parte do marido se sinta humilhada, triste e envergonhada e ainda que sinta dores físicas em virtude das lesões sofridas. Ao dar como não provados os restantes factos constantes do pedido de indemnização o tribunal atendeu à ausência de prova sobre os mesmos.

2.2 Matéria de direito
Tendo em atenção as conclusões da motivação, as questão a decidir neste recurso são, essencialmente, as de saber (i) se a falta de indicação discriminada de factos na acusação e na sentença, relativamente ao crime de “maus-tratos”, impossibilita a qualificação jurídica do referido crime, (ii) se o arguido cometeu os crimes de ameaças que lhe foram imputados e, finalmente, (iii) qual a medida da pena e indemnização cível adequadas.

Vejamos cada uma das questões.

Entende o recorrente que nem a acusação, nem a sentença, discriminam os factos susceptíveis de integrar o crime de maus-tratos a cônjuge e um dos crimes de ameaças. O M.P. junto desta Relação considerou também que a acusação não continha os factos indiciados, de modo a permitir que o arguido se pudesse efectivamente defender, tal como disciplina o art. 283 do Cód. Proc. Penal.

Julgamos que tanto o recorrente, como o M.P., têm toda a razão. Relativamente a este ponto, acusação diz o seguinte: “De há cerca de 4 anos a esta parte o arguido vem agredindo a esposa na casa de residência de família, em ....., ....., ....., agressões essas que se intensificaram a partir de Maio de 2002, altura em que o mesmo iniciou uma relação extra-conjugal. - Para além disso, o arguido costuma ameaçar a esposa e o filho, dizendo que os há-de matar a tiro e incendiar a casa onde habitam.”.

A sentença deu como provada a acusação, nos seus precisos termos.

Pensamos que a acusação, tal como foi formulada, enferma da nulidade prevista no art. 283º, n.º 1, al. b) do CPP, segundo o qual a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, “dos factos … incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática…”.
Não tendo sido arguida a respectiva nulidade, a mesma deve considerar-se sanada, conforme Ac. do STJ, de 5/5/1993, recurso 42290/3ª, sublinhando que a referida nulidade não pode sequer ser invocada pelo arguido, já que “manifestamente o beneficia”. Tal não implica, porém, que seja possível a condenação do arguido, pela prática do crime cujos factos não estejam delimitados com o rigor exigido pelo art. 283º, n.º 1, al. b) do C.P.Penal.

No caso dos autos, deu-se como provado que o arguido desde há cerca de 4 anos a esta parte vem agredindo a esposa. Esta expressão não passa (como diz o M.P. nesta Relação) de uma afirmação genérica, que impossibilita qualquer defesa. Dizer, como fez a sentença, que o arguido “vem agredindo”, é uma forma conclusiva e genérica do número de vezes que o mesmo agrediu a ofendida naquele período temporal, omitindo por completo a especial forma de agressão (pontapés, bofetadas, empurrões…). Só perante uma imputação concreta, devidamente circunstanciada no tempo e no espaço, do número de agressões feitas, espécie e gravidade das mesmas e respectivas consequências, seria possível concluir por um tratamento cruel ou de maus-tratos físicos. Também não basta (como fez a acusação e a sentença acolheu) fazer-se uma afirmação conclusiva e genérica, concretizando-se uma dessas agressões em 27 de Agosto de 2002. Na verdade, há no tipo de crime em causa uma continuidade do comportamento, ou seja, são puníveis neste tipo “os comportamentos que, de forma reiterada, afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado” – Ac. desta Relação de 5-11-2003, recurso 0342343. Assim, deveria a matéria de facto susceptível de ser qualificada como crime de “maus-tratos”, previsto no art. 152º do CP, integrar os diversos comportamentos que, em concreto e ao longo do tempo, eram praticados pelo arguido; não descrevendo a acusação quais os factos que justificavam o aludido comportamento reiterado, julgamos evidente que não se verifica o aludido crime.
De outro modo (e como refere também o M.P. junto desta Relação) estaria claramente violado o art. 32, 1 da CRP, pois impedia-se, de facto, o exercício do direito de defesa do arguido.

Provou-se contudo que, pelo menos num determinado dia, a ofendida foi agredida: “Assim, entre muitas outras vezes, no dia 27 de Agosto de 2002, pelas 21 horas e 30 minutos, na casa de residência da família, em ....., ....., ....., o arguido perguntou à esposa por uns garrafões de vinho. Como esta lhe tivesse respondido que não sabia de tais garrafões, o arguido agarrou-a e atirou-a ao chão. De seguida, agrediu-a a murro e a pontapé, na presença no E..... e de uma outra filha do casal, D......”

Como acima dissemos, o crime de “maus-tratos” a cônjuge, previsto no art. 152º, 2 do Cód. Penal, não se preenche com a prática de um único comportamento (concreto) ofensivo da integridade física, sendo irrelevante, para este efeito, que se tenha provado que tal agressão foi uma “entre muitas”. Assim, os factos dados como provados e que já constavam da acusação, integram apenas a previsão do art. 143º do Cód. Penal - ofensas à integridade física simples.

Poderá esta Relação condenar o arguido pela prática do crime previsto no art. 143 do C.Penal, tendo em conta o disposto no art. 358, 3 do C.P.Penal?

O art. 358, n.º 3 do C. Penal equipara a “alteração da qualificação jurídica” a uma alteração não substancial dos factos, mandando aplicar o disposto no n.º 1, ou seja, a comunicação da alteração ao arguido e a concessão (se ele o requerer) do “tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.
No presente caso, todavia, o recorrente, nas motivações do recurso, pugnou precisamente pela verificação apenas do crime de ofensas à integridade física – cfr conclusão 11: “Dado o que acima se disse sobre as conclusões 1 a 4, o arguido só poderá ser condenado pela prática do crime de ofensas à integridade física, p. e p. pelo art. 143º do C.Penal”.

O n.º 3 do art. 358 CP refere-se, em termos literais, à alteração da qualificação jurídica por iniciativa do Tribunal: “O disposto no n.º1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica”. Só nestes casos, de facto, se justifica o contraditório, para evitar uma “decisão surpresa”. Quando é o próprio recorrente que pugna por tal alteração, da qual resulta a condenação por crime menos grave (e da acusação constava a imputação de crime mais grave), não há qualquer alteração relevante para efeito do disposto no art. 358,1 CPP, uma vez que o arguido se defendeu relativamente a todos os factos e acaba por ser condenado (de acordo com a sua tese) por crime diferente, mas consumido pela acusação. Nestes casos, não há necessidade de dar cumprimento ao disposto no art. 358º, 3 do Cód. Proc. Penal. Da mesma forma, nos termos do n.º 2, se a alteração não substancial resultar de factos alegados pela defesa, não é necessária a comunicação ao arguido, para deles se defender. A ideia do legislador é pois, segundo pensamos, a de que o arguido não possa ser surpreendido, nem prejudicado na sua defesa, pela alteração da qualificação jurídica. Sempre que dessa alteração não surja qualquer surpresa, nem prejuízo na sua defesa, (por resultar de factos alegados pelo próprio arguido, ou de adesão do tribunal à qualificação jurídica pela qual o mesmo pugnou), não é necessária a comunicação ao arguido “para preparação da defesa” (art. 358,1 CPP).
Esta interpretação corresponde ao entendimento dominante da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e da doutrina, como se refere no sumário do Acórdão de 7-11-2002, recurso 02P3158:
“Resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina que se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia). O mesmo se diga quando a alteração da qualificação jurídica é trazida pela defesa, pois que também aqui se não verifica qualquer elemento de surpresa que exija a atribuição ao arguido de maior latitude de defesa.”.
O Supremo Tribunal de Justiça explicita, no referido Acórdão, que este entendimento não põe em causa a menor garantia de defesa do arguido: “Com efeito, (argumenta o Acórdão) resulta da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e da Doutrina (2 cfr. Castanheira Neves, Sumários de Direito Criminal, Simas Santos, Alteração substancial dos factos, RMP, n.º 52, págs. 113 e BMJ 423-9, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Relevância no Processo Penal Português RPCC, 1, 2, 221, Duarte Soares, Convolações, CJ, Acs. STJ II, 3, 13, Marques Ferreira, Da Alteração Substancial dos Factos Objecto do Processo, Souto Moura, Notas sobre o Objecto do processo, RMP n.º 48, 41, Germano Marques da Silva, Objecto do Processo Penal. A Qualificação Jurídica dos Factos - Comentário ao «Assento» n.º 2/93 in Direito e Justiça, III, tomo 1 e Teresa beleza, Apontamentos de Direito Processual Penal, III, 93) que se a alteração resulta da imputação de um crime simples, ou «menos agravado», quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador ou agravativo inicialmente imputado, não há qualquer alteração relevante para este efeito, pois que o arguido se defendeu em relação a todos os factos, embora venha a ser condenado por diferente crime (mas consumido pela acusação ou pronúncia). Ou seja, o arguido defendeu-se em relação a todos elementos de facto e normativos que lhe eram imputados em julgamento, pelo que nada havia a notificar, toda a vez que se verificou não uma adição de elementos, mas uma subtracção. O mesmo se diga quando a alteração da qualificação jurídica é trazida pela defesa, pois que também aqui se não verifica qualquer elemento de surpresa que exija a atribuição ao arguido de maior latitude de defesa (cfr. Leal -Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, II, pág. 415) (…)”.

No caso dos autos a situação é muito semelhante, sendo que o crime de “maus-tratos” (pelo qual o arguido vinha acusado) pune um “comportamento reiterado” englobando a prática de diversos crimes (ofensas à integridade física, ameaças e injúrias) ocorridos num certo período e numa relação de proximidade ou subordinação. O arguido, perante os factos narrados na acusação e acolhidos na sentença, pugnou precisamente (na sua motivação) pela alteração da qualificação jurídica dos factos. Deste modo, a aceitação pelo Tribunal de recurso da sua tese não põe minimamente em causa a sua defesa, nada obstando a que o arguido seja condenado pela prática do crime de ofensas à integridade física (art. 143º do C. Penal), sem necessidade de cumprimento do disposto no art. 358º, 1 do C.P.Penal. Apesar deste último crime ser semi-público (art. 143º, 2 do C.Penal), constatamos que a ofendida apresentou queixa em 28 de Agosto de 2002 e a ofensa à integridade física ocorreu em 27 de Agosto de 2002 (no dia anterior) isto é, dentro do prazo legal (cfr. 115º, 1 do C.Penal).

Assim e em conclusão, deve dar-se provimento ao recurso no que respeita à qualificação jurídica dos factos dados como provados e, consequentemente, condenar-se o arguido pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do C.Penal.

Quanto aos crimes de ameaças, o recorrente pugna pela sua absolvição.
Sobre este ponto, diz o recorrente ter sido dado como provado apenas que:
“O arguido costumava ameaçar a esposa e o filho, dizendo que os havia de matar a tiro e incendiar a casa onde habitam”; “ao mesmo tempo que praticava as agressões (…) o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo que os matava a tiro e incendiava a casa”; ora, relativamente à primeira parte, falta o circunstancialismo de tempo e lugar, o que impede a defesa cabal do arguido, porque desconhece de que factos se há-de defender; Relativamente à segunda parte, a ameaça refere-se ao presente: “Ao mesmo tempo… o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo que os matava a tiro…”, surge no contexto de uma discussão em que o arguido agride a ofendida. Logo não se trata de uma ameaça, de um mal futuro, mas antes da execução do próprio acto ameaçado, pelo que não configura o crime que vimos analisando, pelo que dele deve o arguido ser absolvido. A este propósito, veja-se, entre outros, o Ac. Rel. Porto, de 25/09/02, proc.0240259 e Anotação ao art. 153CP, Comentário Conimbricense, Tomo I.”

Como se explicitou no recente Acórdão desta Relação (17-11-2004, recurso 0414654), “O crime de ameaça é um crime contra a liberdade pessoal (encontra-se no capítulo “Dos crimes contra a liberdade pessoal”), contra a liberdade de decisão e de acção. Por isso, a ameaça há-de ser de tal ordem que gere insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante. E isso não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar no momento, porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça, sendo nesse caso a conduta punível como tentativa desse crime, se a tentativa for punível, ou não entra e, então, a ameaça logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ficar o visado condicionado nas suas decisões e movimentos dali para a frente. Nesse sentido se pronuncia Taipa de Carvalho: «O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma: “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: “vou-te matar já”» (Comentário Conimbricense, Tomo I, página 343).”

A matéria dada como provada quanto a este crime foi, com vimos, a seguinte: “Ao mesmo tempo que praticava as agressões supra descritas, o arguido ameaçava a esposa e os filhos, dizendo-lhes que os matava a tiro e que pegava fogo à casa. Devido ao feitio violento do arguido e por saberem que o mesmo era possuidor de várias armas de fogo os ofendidos vêm receando pela vida, por temerem que ele possa concretizar as ameaças”.

Se tivermos em conta que “as agressões supra descritas” se limitaram a descrever em concreto uma agressão (em 27 de Agosto de 2002), não estando as demais localizadas no tempo e no espaço, só relativamente aos factos ocorridos em 27 de Agosto de 2002 o arguido pode ser condenado. Basta atentar que o crime de ameaças é semi-público, para se concluir que o momento preciso da sua prática é determinante para apurar a tempestividade do exercício do direito de queixa – cfr. arts. 153º, 3 e 115º do C.Penal.

Assim, reportando a ameaça à agressão ocorrida no dia 27 de Agosto de 2002, julgamos que não coexistiu o crime de ameaça, mas apenas a exteriorização verbal de um comportamento violento, mas cuja violência foi desde logo exercida. Não resulta provado que a ofendida e os filhos do arguido tenham de alguma forma condicionado a sua vida, devido ao receio de concretização das ameaças. A situação descrita nos autos (dada a deficiente narração dos factos descritos na acusação e acolhidos na sentença) não permite delimitar, com o menor rigor, em que medida a ofendida e os filhos ficaram, de facto, condicionados e tolhidos na sua vivência, com medo da concretização das ameaças. Tendo-se provado, concretamente, uma única agressão do arguido, acompanhada de expressões de que ia matar a ofendida e os filhos e deitar fogo à casa, tal não permite uma individualização (autonomização) do crime de ameaça.

Deste modo, deve dar-se provimento ao recurso do arguido, também quanto à não verificação dos elementos do tipo legal dos crimes de ameaça por que foi condenado.
Perante a procedência do recurso relativamente à qualificação jurídica dos factos dados como provados, fica prejudicada a pretendida alteração da matéria de facto.

Nestes termos, o arguido deve ser condenado apenas pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, punível, em abstracto, com uma pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. As agressões praticadas no seio da família nuclear exigem especiais cuidados da sociedade e, portanto, de prevenção geral. Face à gravidade do comportamento e ao facto de apenas se ter provado (em concreto) uma agressão, sendo certo que o arguido e a ofendida já não vivem juntos, entendemos não haver razões para afastar a regra geral do art. 70º do C.Penal e, consequentemente, optar pela pena de multa.
Tendo em atenção o limite máximo da pena de multa (360 dias) e a situação económica do arguido (aufere 80.000$00 mensais como pedreiro), julgamos adequada a multa de 180 dias, à taxa diária de € 3,00, ou seja, a pena de multa global de € 540,00 (quinhentos e quarenta euros).

O valor do pedido de indemnização cível em que o arguido foi condenado - € 1.250,00 - não permite o recurso quanto a esta matéria (art. 400º, 2 do C.P.P). Contudo, a lei impõe o dever de retirar da procedência do recurso as consequências “legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida” (art. 403º, 3 do C.P.Penal). Impõe-se assim apurar em que medida a absolvição do arguido, relativamente aos crimes de “maus-tratos” e de “ameaça”, se projecta no cômputo da indemnização cível.

A sentença recorrida, na parte respeitante ao julgamento do pedido cível, disse apenas o seguinte: “… entende-se por justo e equitativo o montante de € 1.250 (mil duzentos e cinquenta euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante” (as considerações precedentes limitaram-se a descrever o direito aplicável em todos os casos, sem estabelecer qualquer nexo de ligação com o caso dos autos). Porém, tal juízo teve como fundamento de facto uma situação de agressões e ameaças ocorridas num longo período de tempo (quatro anos), que neste Tribunal não foi acolhida, por falta de concretização. Assim, tendo em conta a absolvição do arguido relativamente aos crimes de maus-tratos e de ameaça, e perante uma única agressão, temos forçosamente de concluir que a vergonha e humilhação sentidas pela ofendida justificam uma indemnização inferior, cujo montante decidimos fixar em € 500,00 (quinhentos euros).

3. Decisão
Face ao exposto, os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto acordam em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar a decisão recorrida nos seguintes termos:
a) absolver o arguido da prática de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artigo 152°, nos 1 e 2 do CP e de dois crimes de ameaça, p. e p. pelo artigo 153°, nºs 1 e 2 do CP, por que fora acusado e condenado;
b) condenar o arguido como autor material de um crime p. e p. pelo art. 143º, 1 do Cód. Penal, na pena de 180 (oitenta) dias de multa à taxa diária €3,00 (três euros), ou seja, multa global de 540 € (quinhentos e quarenta euros);
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível e, consequentemente, condenar o demandado a pagar à demandante a quantia de € 500,00 (quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.

Sem custas.
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Porto, 09 de Março de 2005
Élia Costa de Mendonça São Pedro
António Manuel Alves Fernandes
Manuel Joaquim Braz
José Manuel Baião Papão