Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6652/18.8T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
PRONÚNCIA DAS PARTES
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
DEVER DE COOPERAÇÃO
PROVA DE UM FACTO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
DIREITOS INDISPONÍVEIS
REPARAÇÃO DO ACIDENTE
Nº do Documento: RP202110186652/18.8T8VNG.P1
Data do Acordão: 10/18/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO DAS AUTORAS PARCIALMENTE PROCEDENTE; ALTERADA A SENTENÇA
RECURSO PRINCIPAL E SUBORDINADO DOS RÉUS, IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Em face do regime que resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do referido artigo 112.º, a propósito dos direitos reclamados e sobre os quais terá de existir pronúncia das partes no sentido da sua aceitação ou não, esses deverão assentar em factos previamente expostos e consignados no auto.
II - Tanto o acordo como o desacordo na tentativa de conciliação deve incidir ou versar sobre factos, sendo que a questão de saber se esses, num ou noutro caso, se deverão integrar e ou caracterizar o evento como acidente de trabalho é já um problema de qualificação jurídica, que apenas ao julgador compete resolver – conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são atividades que transcendem a vontade das partes.
III - O princípio do contraditório, que podemos ter como emanado do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – direito constitucional a um processo equitativo – e que encontra atualmente consagração expressa no CPC, assim no seu artigo 3.º, n.º 3, estando ainda diretamente associado aos deveres de gestão processual e de cooperação para com as partes, também cometidos ao juiz – respetivamente, pelo artigo 6.º e 7.º do CPC –, tem normalmente como campo de aplicação os casos em que o tribunal tenha de debruçar-se sobre questões (de facto ou direito) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado/invocado.
IV - A prova pode/deve ser objeto de formulação de deduções e induções que, partindo da inteligência, se baseiem na correção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e de conhecimentos científicos.
V - Como a descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito reclamado pelo autor, compete ao réu a prova da materialidade integradora dessa descaraterização.
VI - É ao empregador, em caso de violação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, que cabe reparar os danos provindos do acidente de trabalho de que haja sido vítima o trabalhador ao seu serviço – artigo 18.º, nºs 1 e 3, da LAT –, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assista quando essa violação seja imputável a um terceiro.
VII - Tratando-se de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 6652/18.8T8VNG.P1
Autoras: B… e C…
Réus: D… e E…, Lda.
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Relator: Nélson Fernandes
1ª Adjunto: Des. Rita Romeira
2ª Adjunto: Des. Teresa Sá Lopes
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. B… e C…, na qualidade, respetivamente, de cônjuge e filha do sinistrado F…, intentaram ação especial emergente de acidente de trabalho, contra D… e E…, Lda., pedindo: o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre o sinistrado e a sociedade, com a remuneração mensal de €950, paga 14 x ao ano; a condenação daquelas a reconhecer a existência de um acidente de trabalho que vitimou o sinistrado, que o mesmo ocorreu com grave violação das regras de segurança por parte da empregadora; a condenação solidária das RR a pagar: A) à A (viúva) B… a quantia de € 88.447,63 nos seguintes termos: i. 50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido marido; ii. 25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do marido; iii. 1.709,17€ devida pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado F…; iv. 2.830,74€ a título de subsídio de morte do marido; v. 3.990,00€ a título de pensão anual e vitalícia, atualizável a partir da idade da reforma; vi. 1.887,72€ a título de despesas com o funeral e trasladação; vii. 30,00€ com as despesas que suportou com deslocações feitas por causa do sinistro em questão, incluindo a realizada à diligência de conciliação. B) à Autora C… (filha) a quantia de 80.490,74 €, como se descrimina: i. 50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido pai; ii. 25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do pai; iii. 2.830,74€ a título de subsídio por morte do pai; iv. 2.660,00€ a título de pensão anual e temporária; tudo acrescidos de juros vincendos sobre cada uma das quantias até efetivo pagamento à taxa legal de 4%.
Como fundamento da sua pretensão alegaram, muito em síntese, que o sinistrado foi vítima de uma queda, quando se encontrava a executar o seu trabalho ao serviço da sua entidade patronal, que lhe determinou a morte. Invocam ainda, para responsabilização agravada da Ré sociedade, a falta de condições de segurança no trabalho, nomeadamente, falta de guarda corpos, responsabilizando o Réu D…, nos termos do artigo 79º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, em virtude do mesmo ser o gerente da Ré.

1.2. Na contestação que apresentou, a Ré E…, Lda., alegou, também em síntese, que em nenhum momento anterior, nomeadamente na tentativa de conciliação, as Autoras pediram o pagamento de danos não patrimoniais por alegada violação das regras de segurança no trabalho, não o podendo fazer agora na fase contenciosa, e que a sua intervenção na obra limitou-se à execução dos trabalhos de demolição e pedreiro, sendo que ninguém testemunhou o acidente, não comportando os trabalhos a executar pelo falecido qualquer risco, já que seriam unicamente feitos no interior do edifício e sobre superfícies absolutamente estáveis e que não implicavam qualquer subida ao telhado, não existindo a subida para cima do que quer que fosse. Impugnou, também, o valor do vencimento agora reclamado, de € 600, para concluir que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do comportamento do falecido. Mais impugna, ainda, os valores peticionados a título de danos não patrimoniais, de despesas com funeral, bem como os cálculos a que se recorreu para calcular as pensões.

1.3. Contestou também o Réu D…, alegando que a obrigação da implementação de elementos de prevenção de quaisquer elementos na obra, que aliás as Autoras não conseguiram identificar, seria da responsabilidade do empreiteiro geral da obra, G…, e que, para além disso, não há qualquer facto alegado donde se possa inferir que tenha ele violado culposamente os deveres que se referem, aderindo ainda integralmente à contestação apresentada pela Co-Ré.

1.4. Foi proferido despacho saneador, procedendo-se de seguida à indicação dos factos assentes e dos temas de prova.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi após proferida sentença, de cujo dispositivo consta o seguinte:
“DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar a presente ação parcialmente procedente por provada e:
A) absolve-se o Réu D… dos pedidos contra si formulados.
B) reconhece-se que o sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho ocorrido em 23.05.2018, por violação das regras de segurança por parte da Ré entidade patronal, do qual veio a resultar a sua morte.
C) em consequência, condena-se a Ré E…, Lda, a pagar:
I. à Autora B…:
i. 25.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
ii. 17.500,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
iii. 639,41 € devida pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado F…, acrescidos de juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;
iv. 2830,73€ a título de subsídio de morte do marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
v. desde 30 de julho de 2018, à pensão anual e vitalícia correspondente a 30% da sua retribuição do sinistrado até perfazer a idade da reforma por velhice (e que neste momento se situa nos 66 anos e 5 meses), ou seja, € 2.941,81 e 40% a partir daquela idade, ou seja, € 3.922,41, acrescidos dos correspondentes juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;
vi. 1.887,72€ a título de despesas com o funeral e trasladação, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida.
B) à Autora C… (filha):
i. 25.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido pai, acrescidos de juros desde a presente decisão até integral pagamento da dívida;
ii. 17.500,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do pai, acrescidos de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento da dívida;;
iii. 2.830,74€ a título de subsídio por morte do pai, acrescidos de juros desde a citação até integral pagamento da dívida;
iv. 639,41 € devida pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado F…, acrescidos de juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;
v. pensão correspondente a 20% da retribuição do sinistrado, no montante anual de € 1961,20, desde 30 de julho de 2018 e até aos seus 25 anos, enquanto aquela frequentar o ensino superior ou equiparado, a ser paga anualmente em 14 meses, sendo duas vezes nos meses de Junho e Novembro de cada ano, até ao 3º dia de cada mês, acrescidos dos correspondentes juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida.
No mais, vai a Ré entidade patronal absolvida do que vinha peticionado pelas Autores.
Custas da acção pela R entidade patronal.
Fixo à acção o valor de € 211.657,16 (artigo 120º do CPT).
Registe e notifique.”

2.1. Inconformadas com o decidido, interpuseram as Autoras recurso de apelação, formulando a final as conclusões que se seguem (transcrição):
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X) O Tribunal recorrido fez incorreta apreciação da prova produzida justificando-se a sua alteração dos concretos pontos da matéria de facto nos termos e pelos fundamentos aduzidos acima, assim como incorreu em erro de julgamento na apreciação do Direito aplicável, violando, entre outros, o artº 607º, nº 5 do CPC; artº 344º, nº 2 e 496º e 497º do C Civil; arts. 64º, 79º e 73º do CSC e artº 18º, nº 1 da LAT.
Termos em que deve dado provimento ao presente recurso e por via disso,
A) ser modificada a matéria de facto aqui em relação aos concretos pontos da indicados acima
B) ser revogada, em parte, a sentença proferindo-se acórdão que condene os RR solidariamente ao pagamento às Autoras:
danos patrimoniais:
à Autora B…:
3.990,00€ a título de pensão anual e vitalícia atualizável a partir da idade da reforma
859,58€ (correspondente a metade de 1.709,17€) a título de indemnização pela incapacidade temporária e absoluta do sinistrado
À Autora C…:
2.660,00€, a título de pensão anual e temporária
859,58€ (correspondente a metade de 1.709,17€) a título de indemnização pela incapacidade temporária e absoluta do sinistrado a título de danos não patrimoniais:
À Autora B… (viúva) a quantia de 75.000,00€, assim descriminada:
i50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido marido;
ii. 25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do marido;
À Autora C… (filha) a quantia de 75.000,00€, assim decomposta:
50.000,00€ de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido pai;
25.000,00€ de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do pai;
com o que assim farão, Vas. Excias. a merecida e habitual JUSTIÇA.”

2.1.1. Contra-alegaram ambos os Réus, apresentando ainda recurso subordinado, formulando, a afinal, as conclusões seguintes:
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• Não se verificando nenhum os requisitos que a lei paz depender para o agravamento da responsabilidade da Ré (do art.18º, da Lei 98/2009, de 4 de setembro), designadamente, a falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, deverá a ação ser julgada totalmente improcedente;
• Mostram-se, violados, entre outros, a al. d), nº1 do art.615º, do CPCiv., ex vi art.77º, do CPTrab., o nº1 do art.5º, do CPCiv, aplicável “ex vi” da al. a), nº2 do art.1º, do CPTrab., o nº3 e nº4 do art.607º, do CPCiv., assim como os arts 1º e56º e seguintes do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958, e o nº3 do art. 7º, do CCiv..
Nestes termos e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por Acórdão que absolva os RR de todos os pedidos contra si deduzidos, como é da mais elementar JUSTIÇA.”

2.2. Também inconformada com o decidido, interpôs a Ré recurso de apelação, formulando a final as conclusões que se seguem (transcrição):
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xxxix. Como se viu que acidente em causa não teve qualquer relação com trabalhos que iam ser executados pelo falecido sinistrado e a testemunha N…, de remoção do entulho da demolição do telhado;
xl. E ocorreu antes do início desses trabalhos e para a sua realização o falecido sinistrado sabia que não precisava de subir para a cornija, supondo que seja isso que tenha feito;
xli. O falecido sinistrado ter-se-ia mantido com os pés bem assentes quer no piso do 1º andar quer no piso do rés-do-Chão se tivesse cumprido o plano estabelecido para a operação de remoção do entulho do telhado demolido, o qual apenas implicava a descida do entulho para o rés-do chão do edifício e depois para a viatura referida no ponto 11. dos factos provados, estacionada em frente do edifício;
xlii. Mostram-se, violados, entre outros, a al. d), nº1 do art.615º, do CPCiv., ex vi art.77º, do CPTrab., o nº1 do art.5º, do CPCiv, aplicável “ex vi” da al. a), nº2 do art.1º, do CPTrab., o nº3 e nº4 do art.607º, do CPCiv., assim como os arts 1º e56º e seguintes do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958.
Nestes termos e contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida e substituída por Acórdão que absolva a Recorrente de todos os pedidos contra si deduzidos, como é da mais elementar JUSTIÇA.”

2.2.1. Contra-alegaram as Autoras, concluindo pela improcedência do recurso interposto pela Ré, devendo em consequência ser mantida a sentença na parte em que aquela condenou.

2.3. Os recursos foram admitidos pelo Tribunal a quo como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

3. Subidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer emitido, depois de considerar que não deve conhecer-se das nulidades invocadas pelos Réus – por falta de cumprimento do regime previsto no n.º 1 do artigo 77.º do Código de Processo do Trabalho (CPT) – e que os recursos devem improceder, sustentou, no entanto, que oficiosamente, em face do regime estabelecido no artigo 74.º do CPT, aplicável ao caso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis de leis, assim o previsto no artigo 18.º da LAT, deve a sentença ser alterada em sede de recurso:
- Cabendo “à viúva: - a pensão anual e vitalícia, com inicio em 30 de julho de 2018, de 5.883,61€ (9.806,02x60%), não havendo qualquer alteração na idade de reforma); e, - à filha a pensão anual e temporária, até perfazer 25 anos, e desde 30 de julho de 2018, de 3.922,41%€, (9.806,02€x40%), (que reverterá para a mãe quando esta atingir 25 anos ou cessar o recebimento”;
- “Quanto à indemnização por Incapacidade Temporária Absoluta – ITA – no valor global de 1.800,00€ (RA:365x67 dias :2), enquanto únicas herdeiras do sinistrado falecido, cabe, a cada uma delas (…): - à viúva a quantia de 900,00€, e, - à filha a quantia de 900,00€.”

3.1. Notificadas as partes do conteúdo do aludido parecer, apenas responderam as Autoras / Recorrentes, mantendo as razões que enunciaram no recurso, mas concordando, no entanto, com o parecer quanto à condenação extra vel ultra petitum, devendo ser alterados os valores fixados na sentença, mas, porém, e quanto à concretização dos referidos valores, que devem os mesmos ser aferidos em função da fixação da retribuição (salário) cujo montante foi objeto de recurso.

4. Tendo sido determinado, por despacho do relator, a baixa dos autos à 1.ª instância para pronúncia sobre as nulidades invocadas, foi proferido pelo Tribunal a quo despacho nesse sentido.
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Cumpridas as formalidades legais, cumpre decidir:

II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC – aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas questões que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir:
(1) Nulidades invocadas / recursos dos Réus (principal e subordinado): Da invocada nulidade da sentença por imputada “violação do princípio da vinculação temática”; Da invocada falta de cumprimento do contraditório / decisão surpresa / do excesso de pronúncia;
(2) Impugnação da matéria de facto / Autoras e Réus
(3) O Direito do caso: (3.1) Recurso dos Réus, principal e subordinado / da verificação sobre se estamos perante acidente de trabalho / descaraterização ou não do acidente; (3.2) Recurso das Autoras: questão do valor do salário auferido / questão dos valores fixados referentes a direito à vida e danos não patrimoniais sofridos por cada uma das Recorrentes / questão da responsabilização ou não do Réu pessoa singular;
(4) Intervenção oficiosa / artigo 74.º do CPT.
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III - Fundamentação
A) Fundamentação de facto
Da sentença resulta ter sido considerada provada a factualidade seguinte (transcrição):
“1º No dia 29 de julho de 2018, pelas 6h45m faleceu em Vila Nova de Gaia, nos Hospital …, sem testamento ou disposição de última vontade, F…, casado com B… desde 25.06.1994 (artigo 1º da p.i.)
2º Em 08.11.1996, nasceu a A. C…, sua filha (artigo 2º da p.i.)
3º A Ré dedica-se à actividade de construção civil e obras públicas (artigo 6º da p.i.)
4º Pelo menos desde meados de maio de 2018, F… exercia para a Ré mediante as suas ordens, direção e fiscalização e cumprimento, num determinado horário de trabalho de segunda a sexta, as funções de servente da construção civil mediante a retribuição ilíquida mensal de 600€ x 14 meses e o subsidio de alimentação diário de € 5,81 (auto de tentativa de conciliação e artigo 30º da contestação da Ré sociedade)
5º Na tentativa de conciliação realizada no dia 22 de maio de 2019, as partes não chegaram a acordo, nomeadamente porque a entidade patronal não aceitou o acidente dos autos como de trabalho; não aceitou o salário reclamado pela viúva do sinistrado no montante de € 950 x 14 meses na medida em que referiu que o vencimento auferido era de € 600 x 14 meses, concluindo pela sua irresponsabilidade pela reparação do acidente, conforme teor de fls. 100 a 103 que se dá por integralmente reproduzido.
6º Na mesma, a viúva alegou que
Que o seu marido, trabalhava como pedreiro/trolha, por conta sob as ordens direcção e fiscalização da entidade patronal E…, Unipessoal Ldª.
No dia 23.05.2018, quando se encontrava na Rua … nº ../.. no Porto, no exercício da sua actividade profissional, se encontrava em cima de um telhado houve uma derrocada das pedras da cornija tendo caído de uma altura de cerca de 5 metros.
Foi socorrido pelo INEM e transportado para o Hospital …, posteriormente foi transferido para o Centro Hospitalar …, onde veio a falecer em 29.07.2018.
Como consequência necessária e directa desse acidente o malogrado sinistrado sofreu diversos traumatismos, que lhe causaram a morte, (conforme conclusões do relatório da autopsia, junta a fls. 83), verificada a 29.07.2018.
O malogrado sinistrado auferia à data do acidente o salário mensal de 950,00€ X 14 meses= 13.300,00€.
O seu funeral realizou-se do Instituto de Medicina Legal do Porto para o cemitério ….
Gastou 30,00€ de transportes para se deslocar da sua residência a esta Tribunal.
Esteve de ITA de 24.05.2018 a 29.07.2018 (67 dias).
Com base nestes pressupostos de facto e ao abrigo do disposto no artº. 57, nº.1 al.a) e c), Artº 59 nº 1 al. a) da Lei 98/2009, de 04.09, reclama o seguinte:
Para si a pensão anual e vitalícia de 3.990,00€, devida desde o dia 30.07.2018, dia seguinte ao da morte, e actualizável a partir da idade da reforma, calculada com base no salário já referido e nos termos do Artº 59 nº 1 al. a) da Lei 98/09 de 04/09.
A título de reparação por despesas de funeral e com transladação a quantia de 1.887,72€.
A título de subsídio por morte a quantia de 2.830,74€, nos termos do artº. 65, nº.1,e 2 al.a) da mesma lei.
A título de ITA a quantia de 1.709,17€ (de 24.05.2018 a 29.07.2018 = 67 dias).
Finalmente a quantia de 30,00€ de transportes a este Tribunal.
Para a sua filha:
A pensão anual e temporária de 2.660,00€, devida desde o dia 30/07/2018, dia seguinte ao da morte, nos termos do artº.57, nº.1, al.c) da Lei 98/2009, até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário, curso equiparado ou o ensino superior.
A título de subsídio por morte a quantia de 2.830,74€ cfr. Artº.65, nº.1,e 2 al.a) da mesma Lei. (…)”
7º Entre a Ré E…, Lda e a sociedade comercial G…, Lda foi celebrado um contrato de subempreitada na obra referente ao restauro do edifício sito na Rua …, nº .., .. e .., no Porto, conforme teor de doc. de fls. 27 e ss que se dá por integralmente reproduzido (artigos 22º da p.i e 25º da contestação da Ré sociedade)
8º Os trabalhos subcontratados da responsabilidade da sociedade Ré respeitavam a trabalhos de execução de demolições e pedreiro e iniciaram-se em maio de 2018 (artigos 23º e 24º da p.i. e 26º da contestação da Ré sociedade)
9º No dia 23 de maio de 2018, pelas 10h30m, o trabalhador participava, segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda nos trabalhos de limpeza das cornijas do edifício sito na Rua …, nº ../.., no Porto, usando para o efeito uma mangueira e vassoura (artigo 5º e 27º da p.i.)
10º Naquele dia e hora, o trabalhador encontrava-se na cornija a efetuar tais trabalhos de limpeza apoiado numa pedra que partiu ou cedeu, pela falta de resistência da cornija ao peso do sinistrado, tendo sofrido uma queda de cerca de 4 metros de altura (artigo 28º da p.i. e artigo 61º da contestação da sociedade Ré)
11º O sinistrado tinha-se deslocado para o local em viatura da Ré acompanhado de outro trabalhador desta, com funções de chefe de equipa (artigo 26º da p.i.)
12º Após a queda, o sinistrado ficou inconsciente e foi assistido no local por uma equipa do INEM (artigos 30º da p.i. e 74º da contestação da Ré sociedade)
13º dali foi transportado para o Hospital H…, no Porto onde foi assistido nos serviços de urgência (artigo 32º da p.i.)
14º sendo posteriormente transferido para o Centro Hospitalar … onde permaneceu em estado comatoso até 29.07.2018, data em que veio a falecer (artigo 33º da p.i.)
15º Na altura do acidente, na obra não havia andaimes, nem guarda-corpos, não tendo sido colocados à disposição dos trabalhadores arneses, nem capacetes (artigo 35º a 37º da p.i.)
16º Os trabalhos de demolição do telhado do edifício foram concluídos dias antes da ocorrência do acidente (artigo 48º da contestação da Ré sociedade)
17º Os trabalhadores, entre os quais o A, tinham que remover o entulho provindo dessa demolição para fora do edifício (artigo 50º da contestação da sociedade Ré)
18º Do acidente resultaram para o sinistrado as seguintes lesões: Politrauma por queda em altura; traumatismo craniano encefálico grave, trauma torácico, trauma abdominal, trauma da bacia, trauma dos membros, fratura exposto do punho esquerdo, lesões hemorrágicas profundas encefálicas (artigo 48º da p.i.)
19º Em consequência das lesões corporais e da sua gravidade, o sinistrado acabou por falecer (artigo 54º da p.i)
20º As AA e o sinistrado constituíam uma família unida e feliz (artigo 58º da p.i.)
21º Ao terem conhecimento do sinistro, as AA mergulharam numa profunda dor (artigo 59º da p.i.)
22º À medida que o tempo ia decorrendo, caíram num profundo desgosto, durante mais de dois meses, perderam a alegria de viver, andavam ansiosas e angustiadas com a situação do marido e do pai (artigo 60º da p.i.)
23º Com a morte do sinistrado mergulharam numa profunda dor e saudade que se mantém até hoje (artigos 62º e 63º da p.i.)
24º A Autora B… suportou com o funeral do marido e despesas de trasladação deste a quantia de € 1887,72 (artigo 72º da p.i.)
25º A Autoria C… encontra-se a frequentar o ensino superior no curso de Economia da Universidade … [artigo 75º, b) da p.i.]
26º O Réu D… é o único sócio e gerente da Ré E…, Lda (artigo 10º da p.i.)
27º A G…, Lda foi a responsável pela instalação dos andaimes o que veio a ocorrer dois dias após a ocorrência do acidente (artigo 71º da contestação)
28º O Autor nasceu em 21 de julho de 1961, conforme doc. de fls. 75.”
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Por sua vez, considerou-se na sentença que não se provou o seguinte:
“a) o sinistrado auferisse ao serviço da Ré E…, Lda a quantia mensal de 950€ (artigo 7º da p.i.)
b) o trabalhador, depois de cair ao solo, tenha sofrido dores horríveis que perduraram enquanto aguardou pelos socorros do INEM e no transporte até à urgência do Hospital H… no Porto (artigo 49º da p.i.)
c) sentiu que tinha chegado o fim (artigo 50º da p.i.)
d) percebeu que não mais veria os seus entes queridos e que não assistiria à formação da sua filha única (artigo 51º da p.i.)
e) além das dores físicas, o sinistrado tenha sofrido o pesadelo da morte e antecipação da saudade (artigo 52º da p.i.)
f) no último mês de vida, o sinistrado parecia vir dando sinais de alguma evolução ao reagir à voz de cada uma das AA, mexendo os olhos e apertando as mãos quer da mulher, quer da filha (artigo 61º da p.i)
g) A A. B… tenha suportado a quantia de € 30 em despesas de transporte motivados pelo sinistro, incluindo a realizada à diligência de conciliação (artigo 73º da p.i.)
h) Sobre o Réu D… incumbisse diligenciar pela implementação na obra dos elementos coletivos de prevenção de acidentes de trabalho (artigo 79º e 80º da p.i.)
i) Os trabalhos de remoção do entulho consistiam em deslocar esse entulho depositado no piso do 1º andar para o piso inferior, através das escadas interiores do edifício e daí seria levado para a referida viatura, estacionada em frente do edifício (artigo 51º e 52º da contestação da Ré sociedade)
j) Tais trabalhos seriam feitos unicamente no interior do edifício sobre superfícies absolutamente estáveis, nomeadamente, o piso do 1º andar, não implicando a subida para cima do que quer que fosse, nomeadamente, para a cornija da fachada virada para as escadas do … (artigos 54º, 55º e 57º da contestação da Ré sociedade)
k) Não ignorando o sinistrado tal circunstancialismo (artigo 56º da contestação do sinistrado)
l) A causa do desequilíbrio do sinistrado que terá provocado a sua queda poderá ter sido um enfarte cerebral (artigo 60º da contestação)
m) A A. tenha sido reembolsada pelos serviços da segurança social por despesas de funeral do falecida em pelo menos € 1307,28 (artigo 83º da contestação da Ré sociedade)
n) A instalação de andaimes e de guarda-corpos não fosse necessária para a execução dos trabalhos em curso no dia do acidente de limpeza (artigos 68º e 71º da contestação)”

B) - Discussão
1. Nulidades invocadas / recursos dos Réus (principal e subordinado)
1.1. Da invocada nulidade da sentença por imputada “violação do princípio da vinculação temática”
Nas conclusões ii a iv, os Réus / recorrentes sustentam que, contestando eles na contestação os vários pedidos formulados na petição inicial, “invocando, entre outras coisas, a sua inadmissibilidade, nos termos referidos nos arts. 1º a 14º, inclusive, que aqui se dão inteiramente por reproduzidos”, “a sentença recorrida não se pronunciou relativamente a esta questão que tem a ver com a violação do princípio da vinculação temática, como devia (al. d), nº1 do art.615º, do CPCiv., ex vi art.77º, do CPTrab.)” – “Tal omissão constitui uma nulidade, que aqui expressamente se invoca, porquanto determina para o processo, um rumo distinto do que era suposto ter lugar”.
Pronunciando-se sobre a invocada nulidade, o Tribunal recorrido fez constar o seguinte:
“(…) No que respeita à alegada inadmissibilidade do pedido formulado por danos não patrimoniais, o Tribunal ao conceder indemnização com esse fundamento, obviamente, entende que o mesmo poderia ter sido deduzido na ação.
De todo o modo, a alegada circunstância de na tentativa de conciliação, as AA. não terem invocado a sua pretensão a uma indemnização por danos não patrimoniais justificada pela violação das normas de segurança não preclude o direito de o fazerem na petição inicial.
Na verdade, o artigo 131º, nº 1, al. c) do CPT apenas determina que se consideram assentes os factos que tenha havido acordo na tentativa de conciliação. E, aliás, entendemos que este acordo deverá ficar expressamente consignado. Serão apenas estes que não poderão ser postos novamente em causa no caso de o processo seguir a fase contenciosa e tiver que haver produção de prova sobre qualquer outra factualidade.
Também a realização de um acordo nessa fase, homologada por decisão judicial, nomeadamente, a caraterização do acidente, a fixação de uma determinada incapacidade e a aceitação de uma determinada indemnização com fundamento nesta, leva a que fique precludido o eventual direito a reparação por danos não patrimoniais, já que após trânsito em julgado da decisão homologatória de tal acordo, esta questão não pode mais ser suscitada.
Porém, não foi isso que sucedeu nos autos. Na tentativa de conciliação (ocorrida em 22 de maio de 2019, ref. 404251710) não houve sequer acordo quanto à existência de um acidente de trabalho, pelo que se mostra possível a discussão de toda a responsabilidade da Ré quanto a este evento, nomeadamente, por eventual violação das regras de segurança. (…)”
Por sua vez, considerando o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer emitido, que não deve conhecer-se das nulidades invocadas, por falta de cumprimento do regime previsto no n.º 1 do artigo 77.º do CPT, importa esclarecer que o invocado preceito foi alterado pela Lei n.º 107/2019, de 09 de setembro – passando a ter o referido artigo a redação seguinte: “À arguição de nulidades da sentença é aplicável o regime previsto nos artigos 615.º e 617.º do Código de Processo Civil” –, regime que é aplicável ao caso, do que decorre não se colocar, pois, a invocada questão.
No entanto, tendo em vista a apreciação, e desde logo, constamos que, percorrendo o corpo das alegações, para além da mera remissão para o que teriam invocado na contestação, mas que não cuidaram de mencionar expressamente em sede de recurso, nada mais dizem os Réus /recorrentes em termos de se evidenciar, minimamente que seja, em que se traduziu, efetivamente, a imputada nulidade, ou seja, referindo de modo devidamente circunstanciado os argumentos / fundamentos para essa invocação, como entendemos que seria pressuposto, em termos de permitir que este Tribunal de recurso os pudesse apreciar, no sentido de os acolher ou não, o que por si só conduz, sem prejuízo do que se dirá infra aquando do conhecimento do mérito e que possa contender com a questão – assim em particular sobre se ocorrem ou não os pressupostos da responsabilidade agravada nos termos do artigo 18.º da LAT –, à improcedência da invocada, mas não motivada, nulidade.
Não obstante, também para se repor o rigor das coisas, sempre se esclarece que, ainda que se entenda não ser esse o caso, ou seja que se tenha por bastante a mera remissão para artigos do articulado, sequer os pressupostos aí indicados são propriamente exatos, desde logo a respeito da transcrição que aí se faz, dizendo que o seria do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de fevereiro de 2014, pois que, diversamente, corresponde antes a parte do texto do Acórdão desse Tribunal de 13 de julho de 2016[1], o qual, citando-se é certo o sumário daquele Acórdão, na parte que aqui poderia relevar – assim: “Sucede, porém, que aquando da tentativa de conciliação, o sinistrado e a família não invocaram que o acidente foi provocado pela atuação culposa da empregadora ou que esta não observou as regras de segurança no local de trabalho, nem reclamaram qualquer indemnização por danos não patrimoniais, como reclamam na presente acção, tendo o sinistrado aceitado que o direito à reparação se fixasse nos termos previstos no artigo 48º da Lei 98/2009 e não nos termos do artigo 18º da mesma Lei que prevê uma responsabilidade agravada por parte da empregadora.” –, nada tem a ver com o caso que apreciamos, incluindo, diga-se ainda, o que também importa decisivamente para a compreensão do que se invoca naquele Acórdão, por estar aí em causa a existência de acordo na tentativa de conciliação[2], situação bem distinta daquela que se verifica no presente caso, em que não resulta, da ata do auto de conciliação, que tenha existido qualquer acordo. Diversamente, no caso, em face do que consta do mesmo auto de não conciliação, sendo verdade que então não resulta que tenham sido reclamados direitos por responsabilidade agravada por apelo ao regime que resulta do artigo 18.º da LAT como o dizem os Recorrentes, assim designadamente danos não patrimoniais e direito à vida[3] –, no entanto, em face do que consta do mesmo auto, alegando então a viúva, quanto ao acidente, “que o seu marido, trabalhava como pedreiro/trolha, por conta sob as ordens direcção e fiscalização da entidade patronal E…, Unipessoal Ldª” e que “no dia 23.05.2018, quando se encontrava na Rua … nº ../.. no Porto, no exercício da sua actividade profissional, se encontrava em cima de um telhado houve uma derrocada das pedras da cornija tendo caído de uma altura de cerca de 5 metros”, o certo é que, como o refere o Tribunal a quo no despacho em que se pronunciou sobre as nulidades invocadas, o legal representante da Entidade Patronal, tomando posição, referiu apenas que “não aceita o acidente dos autos como de trabalho” e que “nada lhe cumpre pagar pela reparação do acidente em apreço”.
Vejamos, pois, para o que se fará de seguida um introito explicativo sobre o processo especial por acidentes de trabalho.
Ora, compreendendo o processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, regulado nos artigos 99.º a 150.º do CPT, duas fases distintas, a primeira delas, obrigatória, denominada conciliatória[4], que decorre sob a direção do Ministério Público, visando-se na mesma, como aliás a sua própria denominação o indica, alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho através de uma composição amigável – muito embora sujeita necessariamente a regras legais imperativas, pela natureza indisponível dos direitos, atendendo aos interesses de ordem pública que estão envolvidos[5].
Verificando da importância, face à sua finalidade, da tentativa de conciliação, constata-se que essa tanto pode vir a determinar o termo do processo, assim em caso de acordo quanto à discussão do acidente de trabalho e ao reconhecimento dos direitos para a sua reparação – pois que, homologado esse acordo, o processo conclui-se com a efetivação dos direitos aí reconhecidos –, como pode, diversamente, na falta desse acordo, no todo ou em parte, prosseguir para a fase contenciosa, razão pela qual, face ao regime assim estabelecido, o conteúdo do respetivo auto acaba por assumir importância determinante.
Por essa razão se justifica a necessidade sentida pelo legislador de especificar os requisitos a que esse auto deve obedecer, num ou noutro dos casos, como resulta dos artigos 111.º e 112.º do CPT.
Assim, para a eventualidade de se obter o acordo, resulta do artigo 111.º do CPT que dos autos de acordo constam “a indicação precisa dos direitos e obrigações que são atribuídos e, ainda, a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações” – como ainda, depois, do n.º 1 do artigo 114.º, quanto à pronúncia jurisdicional sobre esse acordo que, sendo esse imediatamente submetido ao juiz, o homologa por simples despacho exarado no próprio auto e seus duplicados “se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais.” Ou seja, sem que dúvidas se coloquem em face da redação da norma, a homologação pelo juiz depende da sua efetiva verificação sobre se o acordo atendeu por um lado aos elementos que constam do processo e, por outro, ao que se dispõe nas normas legais aplicáveis, sendo que, se não for esse o caso, como resulta do artigo 115.º, n.º 2, assim em caso de não homologação do acordo, deve então o Ministério Público, se considerar possível a remoção dos obstáculos à sua homologação, tentar a celebração de novo acordo para substituir aquele cuja homologação foi recusada.
Do regime que anteriormente se expôs resulta, pois, que a atividade do juiz está vinculada à verificação sobre se o caso submetido à sua apreciação atendeu aos elementos que porventura resultem do processo, sendo que, aliás, existe um dever de conhecimento oficioso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis – em que, como se sabe, a condenação pode até exceder ou ir além do pedido[6], como ocorre com os acidentes de trabalho, matéria subtraída à disponibilidade das partes / artigo 12.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (LAT). De resto, acrescente-se, o dever de adequada instrução dos autos impõe-se expressamente também ao Ministério Público, sobre a direção do qual corre, como se disse, a fase conciliatória, bastando para o efeito ter presente o que se dispõe no artigo 104.º do CPT, em particular o seu n.º 1, ao estabelecer que “O Ministério Público deve assegurar-se, pelos necessários meios de investigação, da veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes, para os efeitos dos artigos 109.º e 114.º”.
Sendo assim, importando agora verificar qual o regime aplicável nos casos em que se não lograr obter o acordo na fase conciliatória, em resposta, dispõe-se no artigo 112.º do CPT que, frustrando-se a conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, sendo que, porém, aí não se prevendo um dever de consignação dos factos que fundamentam o desacordo quando esse resultar da posição da entidade a quem é imputada a responsabilidade[7], no entanto, quanto à delimitação que os beneficiários devem fazer no ato de tentativa de conciliação das questões que pretendam suscitar, a questão assume-se como distinta, pois que a lei processual laboral impõe aos intervenientes no processo especial de acidentes de trabalho um especial dever de, aí, se pronunciarem, caso estejam em condições de o fazer, sobre todas as questões antes mencionadas, pelo que, em presença do acordo que esteja a ser proposto pelo Ministério Público, devem tomar posição acerca do que lhes é proposto – factos e direitos daí emergentes (sendo que, caso se recusem a tomar posição, estando já habilitado a fazê-lo, são a final condenados como litigantes de má-fé (artigo 112º, nº 2 do CPT).
Ainda nos casos de falta de acordo, avançando na análise, a respeito da fase contenciosa, dispondo-se no n.º 1 do artigo 117.º que essa tem por base de acordo com a alínea a) a petição inicial (em que o sinistrado, doente ou respetivos beneficiários formulam o pedido, expondo os seus fundamentos) ou de acordo com a alínea b) o requerimento a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º (do interessado que se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho), no que diz respeito à petição inicial, única que importa no caso, estipula depois o n.º 1 do artigo 126.º que “no processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso”, sendo que, agora em face do artigo 131.º, sob a epígrafe “despacho saneador”, resulta do seu n.º 1, alínea c), que são considerados “assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação e nos articulados”.
Em face do regime que resulta do disposto nos n.ºs 1 e 2 do referido artigo 112.º, importa porém salientar que os direitos reclamados e sobre os quais terá de existir pronúncia das partes no sentido da sua aceitação ou não deverão assentar em factos previamente expostos e consignados no auto[8].
Neste contexto, sem esquecermos o regime que antes enunciámos, importa então saber, nos casos em que na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória não se obtenha acordo que venha a ser homologado, porque a entidade responsável manifestou discordância quanto à qualificação do evento como acidente de trabalho e quanto à assunção de responsabilidade, tal como ocorreu no caso, se, não obstante não conste qualquer referência no auto de não conciliação a que se esteja perante responsabilidade agravada (por violação de normas de segurança) e qualquer pedido expresso por danos morais / ou direito à vida, pode, ainda assim, o sinistrado ou beneficiários, na petição inicial que venham a apresentar e que dá início à fase contenciosa, formular tais pedidos.
Ora, sabendo-se que a resposta dada pela jurisprudência nem sempre tem sido coincidente[9], não obstante dizer-se frequentemente que o auto de tentativa de conciliação delimita o objeto do processo, relativamente às questões em apreciação, no entanto, em face desde logo da atual redação do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT– no saneador consideram-se assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação –, como aliás já o referimos anteriormente, quer o acordo como o desacordo verificado na tentativa de conciliação deve incidir ou versar sobre factos, sendo que a questão de saber se esses factos, num ou noutro caso, deverão integrar / concretizar ou não o evento como acidente de trabalho é já um problema de qualificação jurídica, que apenas ao julgador compete resolver – conclusões, juízos de valor, qualificações jurídicas, são atividades que transcendem a vontade das partes. Daí que, por essa razão, no que também importa para o caso que se decide, o que deve constar do auto não é o acordo ou desacordo das partes acerca da existência e caracterização do acidente ou acerca do nexo de causalidade, por se tratar de conceitos jurídicos, e sim, diversamente, o acordo ou o desacordo acerca dos elementos de facto que definem e caracterizam o acidente e o nexo causal.
Sendo assim, descendo ao caso, visto o que consta do auto de não conciliação, apenas desse resulta, quanto ao acidente, que a viúva alegou “que o seu marido, trabalhava como pedreiro/trolha, por conta sob as ordens direcção e fiscalização da entidade patronal E…, Unipessoal Ldª2 e que “no dia 23.05.2018, quando se encontrava na Rua … nº ../.. no Porto, no exercício da sua actividade profissional, se encontrava em cima de um telhado houve uma derrocada das pedras da cornija tendo caído de uma altura de cerca de 5 metros”, sendo que, como aliás o refere o Tribunal a quo no despacho em que se pronunciou sobre as nulidades invocadas, o legal representante da Entidade Patronal, tomando posição, apenas referiu que “não aceita o acidente dos autos como de trabalho” e que “nada lhe cumpre pagar pela reparação do acidente em apreço”, ou seja, a referida pronúncia sequer incidiu sobre o facto antes referido que fora alegado pela viúva / beneficiária, traduzindo-se diversamente em pronúncia que, nos termos antes ditos, incide sobre conceito jurídico. Aliás, relembrando-se aqui o que se referiu anteriormente a respeito da intervenção que é imposta ao Ministério Público e ao juiz neste âmbito e que aqui não importa repetir[10], será caso para perguntar, desde logo, ao constar do auto de não conciliação que a alegação pela viúva de que o evento se traduziu numa queda do trabalhador quando esse se “encontrava em cima de um telhado houve uma derrocada das pedras da cornija tendo caído de uma altura de cerca de 5 metros”, se não seria caso para justificar a intervenção do Ministério Público, por estarmos perante ato presidido pelo mesmo e tendo em vista uma proposta de acordo que cautelasse os direitos que fossem de afirmar, no sentido de que se esclarecessem factos tendentes a saber-se se teria ou não existido qualquer violação de regras de segurança.
Independentemente do que agora se referiu, em face de todo o regime antes exposto, apenas constando do auto de não conciliação o que então dissemos, na consideração ainda, voltamos a repeti-lo, de que é de factos que se deve falar e não de meros conceitos jurídicos, sem esquecermos também a forma como a entidade patronal tomou posição nesse auto, consideramos que, impondo-se que a fase contenciosa se tivesse de iniciar com a apresentação de petição inicial, como o foi, não estavam as aqui Autoras impedidas de alegar factos tendentes a demonstrar que o acidente ocorreu por desrespeito de regras de segurança, no sentido de fundamentar que se estaria perante um caso de responsabilidade agravada, e, como esse fundamento, que pudessem formular pedidos referentes a danos não patrimoniais / e por violação do direito à vida. De facto, em face do regime que resulta do n.º 1, alínea a), do artigo 117.º, devem formular o pedido, o que pode abranger essa parte, expondo os seus fundamentos, sendo que, como é imposto pelo o n.º 1 do artigo 126.º, “no processo principal decidem-se todas as questões, salvo a da fixação de incapacidade para o trabalho, quando esta deva correr por apenso”. Repete-se, em face também da posição assumida pela Ré / aqui Recorrente no auto de não conciliação, ao não aceitar sequer, afinal, que se estivesse perante um acidente de trabalho, ficou desse modo toda a matéria controvertida, razão pela qual só com alguma dificuldade se pode dizer que da aplicação do princípio da vinculação temática, a que faz apelo, decorra neste caso impedimento no sentido de, precisamente por decorrência do facto de a situação ser assim nesse âmbito totalmente controvertida, não pudessem as Autoras, na petição inicial, que como se referiu se impunha ser apresentada para darem início à fase contenciosa, invocar os factos relacionados com a ocorrência do acidente e de onde derivasse a responsabilidade, toda ela pois, incluindo, caso fosse esse o caso, que demonstrassem os pressupostos da responsabilidade agravada.
Em face do exposto, improcede estra invocada nulidade.

1.2. Da invocada falta de cumprimento do contraditório / decisão surpresa / do excesso de pronúncia
Nos recursos que apresentaram, fazendo-o constar também das conclusões das alegações, os Réus / recorrentes invocam, ainda, que, estabelecendo o “nº1 do art.5º, do CPCiv, aplicável “ex vi” da al. a), nº2 do art.1º, do CPTrab.”, “o ónus de alegação, segundo o qual cabe às partes alegar os factos essências que servem de fundamento à sua pretensão, quer seja a procedência ou improcedência da ação” – “O juiz deve julgar de acordo com os factos alegados e provados pelas partes, só podendo considerar na sua decisão, para além daqueles, os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam oportunamente alegado e resultem da instrução da causa, desde que à parte contrária tenha sido facultado o exercício do contraditório, nos termos do nº3 do art.3º, do CPCiv” –, “não podia o Tribunal legitimamente dar por provada a afirmação contida no ponto. 9. dos factos provados, no sentido de que o falecido sinistrado participava nos trabalhos de limpeza das cornijas em cumprimento de ordens e instruções da Recorrente, facto essencial à procedência da presente ação e que nem sequer foi alegada pelas Autoras, como lhes competia”, por estar não só a julgar em desacordo com o que foi alegado pelas Autoras nos mencionados factos, se não também pelo que deixaram referido no art.25 da p.i. (À data do sinistro decorriam trabalhos de limpeza de escombros do telhado do edifício), como ainda decidiu sem que lhes tenha sido dada a oportunidade de se pronunciarem sobre tal questão de facto – “ou seja, contra os referidos princípios das citadas disposições legais, o que volta a constituir uma nulidade, em quaisquer dos casos, que aqui se invoca e pela qual deverá ser anulada a matéria vertida no ponto 9. dos factos provados”.
Apreciando, diremos o seguinte:
Em primeiro lugar, e como primeira nota, para esclarecermos, desde já, que a ocorrer a invocada nulidade de falta de cumprimento do contraditório / decisão surpresa a mesma dirá respeito a atividade anterior à da prolação da sentença propriamente dita, assumindo-se assim como processual, referente a essa atividade que se diz não ter sido a adequada – ou seja, por decorrência da pretensa existência de decisão surpresa, em violação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Sendo assim, introduziremos de seguida algumas considerações a respeito das nulidades da sentença, a que alude o artigo 615.º, n.º 1, do CPC[11], no sentido de distinguirmos os dois tipos de nulidade.
Avançando então com tal objetivo, conhecendo das pretensões das partes – pedido e causa de pedir –, é afinal através da sentença que o juiz dita o direito para o caso concreto – nesse sentido, já há muito Anselmo de Castro acentuava a importância da sentença, por representar “conceitual e historicamente o ato jurisdicional por excelência, aquele em que se traduz na sua forma mais característica a essência da jurisdictio: o ato de julgar.”[12]
Sendo pois esse o objetivo perseguido pela sentença, pode no entanto essa estar viciada em termos que obstem à eficácia ou validade do pretendido dizer do direito, assim por um lado nos casos em que ocorra erro no julgamento dos factos e do direito, do que decorrerá como consequência a sua revogação, e, por outro, enquanto ato jurisdicional que é, se atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou ainda contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é decretada, caso este em que se torna, então sim, passível do vício da nulidade nos termos do artigo 615.º do CPC. No fundo, trata-se do sancionamento das normas prescritivas que disciplinam no mesmo Código o ato de elaboração da sentença, assim nos artigos 131.º, n.º 3, 2.ª parte, 154.º, n.º 1, e 607.º, n.º 3 e 4, do CPC, respeitantes à clareza, especificação e coerência da fundamentação e, ainda, no caso do n.º 2 do artigo 608.º, em contraponto, o dever e a proibição de pronúncia, atentos o objeto do litígio e o princípio do dispositivo.
Já diversamente, quanto às nulidades processuais, enquanto desvios entre o formalismo prescrito na lei e o formalismo efetivamente seguido no processo – vício formal que pode consistir: a) na prática de um ato proibido; b) na omissão de um ato prescrito na lei; c) na realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem as formalidades requeridas[13] –, dessas, em princípio, como é consabido, cabe reclamação e não recurso, reclamação essa também em princípio dirigida ao tribunal em que foi cometida a nulidade, sendo que só assim não ocorrerá quando essa estiver a coberto de uma decisão judicial, pois que nesta situação o meio de impugnação será o recurso e não aquela reclamação. Assim o afirmava já o Professor Alberto dos Reis[14], com a autoridade que por todos lhe foi sempre reconhecida, cujos ensinamentos neste âmbito se têm por atuais, ao referir o seguinte: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo.”[15]
Distinguindo a lei entre duas modalidades distintas de nulidades processuais, na terminologia da doutrina as principais (ou, de 1.º grau, típicas ou nominadas) e as secundárias (ou, de 2.º grau, atípicas ou inominadas), as primeiras configuram-se como as mais graves pelas suas consequências, estando especificamente previstas na lei e podendo o Tribunal delas conhecer oficiosamente, conforme estabelecido no artigo 196.º do CPC[16], enquanto as segundas, por sua vez, serão todas aquelas que caiam na fórmula genérica do n.º 1 do artigo 195.º do mesmo Código: “Fora dos casos previstos nos artigos, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”[17]. Importa ainda ter presente que, neste último caso, tratando-se pois de nulidade secundária, o seu conhecimento depende de arguição, posto que o tribunal só pode conhecer oficiosamente das nulidades principais[18], regulando a lei a legitimidade de quem pode invocá-las (artigo 197.º), o prazo em que pode fazê-lo (artigo 199.º) e as consequências/modo do seu suprimento (artigo 195.º, n.ºs 2 e 3, e 200.º, n.º 3).
No caso dos autos, face à posição assumida nos recursos pelos Réus, se bem a percebemos, o vício invocado é pelos mesmos vislumbrado precisamente numa imputada falta de cumprimento pelo tribunal de 1.ª instância do princípio do contraditório, princípio esse que, como é consabido, podemos ter como emanado do n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – direito constitucional a um processo equitativo – e que encontra atualmente consagração expressa no CPC, assim no seu artigo 3.º, n.º 3, em que se estabelece que o “juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Estamos aqui perante princípio que, estando ainda diretamente associado aos deveres de gestão processual e de cooperação para com as partes, também cometidos ao juiz – respetivamente, pelo artigo 6.º e 7.º do CPC –, tem normalmente como campo de aplicação os casos em que o tribunal tenha de debruçar-se sobre questões (de facto ou direito) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado/invocado, impondo-se ao juiz, mesmo nesses casos, que antes de decidir dê a possibilidade às partes de se pronunciarem, independentemente da fase em que se encontre o processo[19]’[20]. São de resto bem evidentes as vantagens que desse regime podem resultar, seja para o julgador, por lhe permitir após a audição das partes que a sua posição seja afirmada com maior convicção e segurança, seja para as partes, ao dar a estas a possibilidade de esgrimirem os seus argumentos de modo a poderem influenciar aquela decisão[21].
Pois bem, por decorrência do regime que antes sinteticamente se expôs, tentando perceber-se o que se invoca no caso, estaríamos então, a ocorrer o vício que é avançado, como o dissemos já, perante nulidade processual, ocorrida não na sentença propriamente dita e sim, diversamente, em momento prévio, nulidade essa que, a verificar-se, chamando à colação o que se referiu anteriormente, não integraria o núcleo das nulidades principais (ou, de 1.º grau, típicas ou nominadas), as quais estão especificamente previstas na lei e de que pode o Tribunal conhecer oficiosamente, conforme estabelecido no artigo 196.º do CPC[22], assumindo antes, diversamente, a natureza de nulidade secundária (ou, de 2.º grau, atípica ou inominada), caindo assim na fórmula genérica do n.º 1 do artigo 195.º do CPC – omitindo o juiz a aplicação do analisado princípio do contraditório, daí pode pois resultar nulidade, a apreciar nos termos gerais do artigo 201.º[23], caindo na previsão do referido artigo 195.º, pois que a decisão surpresa, salvos os casos de manifesta desnecessidade, ao não ter dado às partes a oportunidade de se pronunciarem, pode influir no exame ou na decisão a causa –, razão pela qual, como desse resulta, sempre o seu conhecimento, pela sua afirmada natureza, dependeria de arguição, regulando a lei a legitimidade de quem pode invocá-la (artigo 197.º) e o momento/prazo em que pode fazê-lo (artigo 199.º, n.º 1: “se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência”).
Ora, no caso, porque foi na sentença que o Tribunal a quo se pronunciou sobre a matéria de facto, a ocorrer tal nulidade, pode considerar-se que só com a notificação daquela estariam os Arguentes em condições de se aperceber da sua ocorrência, razão pela qual, estando desse modo ainda a coberto da própria sentença, o meio de reação será neste caso o recurso, nos termos anteriormente afirmados.
Porque assim é, estamos em condições de analisar o invocado pelos Réus, que apontam à sentença o vício da nulidade por falta de cumprimento do princípio do contraditório, fazendo nomeadamente apelo ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC (o que nos remete também para o regime previsto no artigo 72.º, n.ºs 1 e 2, do CPT, ao afirmarem que foi proferida uma decisão-surpresa, quanto a facto que foi considerado provado sem que tivesse sido alegado e ainda sem cumprimento do contraditório quanto ao mesmo.
Cumprindo esse objetivo, adiantamos desde já ser nosso entendimento que não lhes assiste razão, como procuraremos evidenciar de seguida.
Na petição inicial as Autoras alegaram: “No dia 23 de Maio de 2018 pelas 10,30h ocorreu um acidente numa obra sob a responsabilidade da 1ª Ré, na Rua … nº ../.., no Porto, do qual veio a resultar a morte de F…, então ao serviço e na dependência daquela” (artigo 5.º); “O desafortunado F… havia sido admitido ao serviço da Ré em 01/11/2016, para, sob instruções, as ordens e direção desta última, mediante a retribuição ilíquida mensal de 950,00€ (correspondente a 850,00€ líquidos) quantia esta que em média lhe era colocada à disposição em numerário, exercer as funções de servente da construção civil” (artigo 7.º); “Funções estas que sempre exerceu até ao fatídico dia do acidente infortunístico, sob autoridade, por conta e ordem da Ré, e que consistiam, nomeadamente em: fazer e acarretar massa, colocação e assentamento de blocos e cimento, lavagem e limpeza de paredes e pavimentos, etc” (artigo 8.º); “O falecido exercia tais funções nos diversos locais onde a Ré desenvolvesse trabalhos próprios da sua atividade, utilizando os instrumentos de trabalho por esta colocados à sua disposição” (artigo 9.º); “À data do sinistro decorriam trabalhos de limpeza de escombros do telhado do edifício” (artigo 25.º); “No dia 23 de maio de 2018, pelas 10,30 o trabalhador F… encontrava-se a realizar trabalhos de limpeza de escombros no telhado, usando para o efeito uma mangueira e uma vassoura” (artigo 27.º); “No momento em que se encontrava na cornija a efetuar tais trabalhos, apoiado numa pedra, esta cedeu ou partiu, tendo-se estatelado no chão, caindo de mais de 4 ou 5 metros de altura.” ” (artigo 28.º).
Ora, em face da referida alegação, visto o conteúdo da resposta dada pelo Tribunal quanto ao ponto 9.º da factualidade provada –“No dia 23 de maio de 2018, pelas 10h30m, o trabalhador participava, segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda nos trabalhos de limpeza das cornijas do edifício sito na Rua …, nº ../.., no Porto, usando para o efeito uma mangueira e vassoura” –, não se vislumbra, salvo o devido respeito, que dessa resposta constem factos não alegados na petição inicial, para o que bastará ter presente a transcrição antes feita dessa peça processual, pois que, sendo verdade que não é alegado expressamente que estivessem em causa trabalhos de limpeza das cornijas do edifício, não o é menos, até pela localização dessas no edifício, que se pode ter por enquadrada na alegação de que se procedia à limpeza “de escombros no telhado, usando para o efeito uma mangueira e uma vassoura” (artigo 27.º), pois que, e desde logo, dada a localização e função que podem ter as cornijas, ou seja enquanto localizadas na parte superior das paredes e em que assenta / se suporta a estrutura do telhado, estão assim cobertas por esse telhado e, sendo desse modo, tanto mais que, estando precisamente alegado que se procedia à limpeza “de escombros”, seria facilmente percetível por um destinatário normal que esses escombros poderiam ser precisamente do próprio telhado e, pois, no que aqui importa, na zona em que esse era suportado pelas paredes e cornijas. Como, diga-se também, sendo que tal se tem ainda por integrado no facto fundamental alegado, na consideração de que, como se provou, o telhado já tinha sido demolido e que os trabalhadores tinham de remover o entulho provindo dessa demolição (pontos 16.º e 17.º provados), não estaria excluída (sendo até pelo contrário natural que fosse esse o caso) a possibilidade de se encontrem nas paredes e cornijas parte desses escombros (pois que os escombros, salvo o devido respeito, não têm de se encontrar necessariamente, e todos eles, no chão), sendo que, afinal, em termos de alegação, aliás em conformidade, no artigo 28.º da petição se alegou que o Sinistrado “se encontrava na cornija a efetuar tais trabalhos” – localização essa que, em conformidade com tal alegação, se fez depois constar do ponto 10.º da factualidade provada: “Naquele dia e hora, o trabalhador encontrava-se na cornija a efetuar tais trabalhos de limpeza apoiado numa pedra que partiu ou cedeu, pela falta de resistência da cornija ao peso do sinistrado, tendo sofrido uma queda de cerca de 4 metros de altura”. Do mesmo modo, agora sobre o ter-se feito constar que atuava “segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda.”, pois que tal se enquadra no que foi alegado no artigo 5.º, que deve ser considerado também em face do que mais se invocou, assim desde logo no artigo seguinte quando consta “para, sob instruções, as ordens e direção desta última”.
Do exposto resulta, pois, que o conteúdo dos referidos pontos da factualidade provada – sem prejuízo agora da questão de saber se a prova o sustenta, caso o recurso a esses seja dirigido e com cumprimento dos ónus legais, o que porém apreciaremos apenas mais tarde, assim aquando da reapreciação do recurso em sede de matéria de facto –, diversamente do que invocam os Réus no recurso, não se traduz na introdução de um qualquer facto ex novo, até porque, como é consabido, nada impede uma atividade de concretização da própria alegação das partes nos seus articulados, se sujeita à discussão e julgamento da causa (contraditório), como sem dúvidas nossas o foi neste caso. Ou seja, estamos no caso perante questão levantada no processo, sujeita assim ao contraditório das partes, razão pela qual sempre teria o tribunal, enquadrada como está a sua atuação no cumprimento efetivo do seu dever de conhecimento, de sobre a mesma se pronunciar. Por último, diga-se também, sendo o facto essencial / fundamental[24] invocado a ocorrência do acidente quando o Sinistrado estando na cornija procederia à operação de limpeza do telhado, desde que essa concretização decorresse da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, sempre poderia o tribunal, dar como provado, em termos de concretização, que a limpeza ocorria nas cornijas, desde que resultante da discussão da causa, por terem tido as partes a oportunidade de se pronunciarem.
Do que se disse anteriormente decorre, também, que não estaríamos perante um qualquer caso em que, por falta de cumprimento de contraditório que se impusesse, se pudesse chamar à aplicação a previsão da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento), vício esse que, como se sabe, tem a ver diretamente com os limites da atividade de conhecimento do tribunal, estabelecidos no artigo 608º, nº2 do CPC[25], tratando-se pois, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de outubro de 2012[26], “de anomia atinente aos deveres e limitações do decisor em matéria de cognição da causa, ou seja, relativa ao poderes/deveres de cognição do julgador”.[27]
Nos termos expostos, não colhe assim fundamento, improcedendo, pois, a questão levantada pelos Réus referente à imputada existência de qualquer das nulidades que invocaram.

2. Impugnação da matéria de facto
Impugnam Autoras e Réus, ao longo das conclusões que apresentaram nos respetivos recursos, a decisão proferida sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1ª instância.
Resulta do n.º 1 do artigo 662.º do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Nestes casos, deve, porém, o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, no qual se dispõe:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Nas palavras de Abrantes Geraldes, “(…) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”[28]. Contudo, como também sublinha o mesmo autor, “(..) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”[29].
Tendo por base os supra citados dispositivos legais, teremos de considerar que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[30] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[31].
Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, impõe que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”.
Pronunciando-se neste âmbito, resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2016[32] que, “Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPCivil, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.” Observa-se também no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de julho de 2016[33] que, “para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).” Ainda, por último, no mesmo sentido, conclui-se no Acórdão do mesmo Tribunal de 27 de outubro de 2016[34] – proferido num caso em que o Tribunal da Relação não conheceu do recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto não pelo incumprimento pela recorrente no corpo das alegações, dos ónus impostos pelos nºs 1 e 2, al. a) do art. 640º e sim pelo facto de se terem omitido nas conclusões a indicação de quais as alíneas da matéria de facto provada e/ou quais os números da matéria de facto não provada que se impugnam, bem como a decisão, que no entender do recorrente, deveria ser proferida sobre esses concretos pontos da factualidade provada e/ou não provada –, que o “Supremo Tribunal já por variadas vezes se pronunciou sobre a questão, tendo, de forma reiterada, decidido que, para cumprimento dos ónus impostos pelo art. 640º do CPC, o recorrente terá que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso e a decisão alternativa que propõe.”[35]. Em conformidade com esse entendimento, aí se conclui, também, que “perante a sobredita omissão, não havia lugar ao convite ao aperfeiçoamento, mas à rejeição do recurso no tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.” Ainda mais recentemente, também do mesmo Tribunal, resulta do Acórdão de 5 de Setembro de 2018[36] que a “alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”, sendo que “não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna”.

2.1. Da verificação sobre cumprimento dos ónus legais de impugnação / apreciação
2.1.1. Recurso das Autoras
Em face das conclusões que apresentaram, começam as Recorrentes /autoras, assim na conclusão C), por afirmar “que se mostram indevidamente julgados: i. os pontos constantes do ponto 4 dos factos provados (adiante simplesmente designado pela abreviatura “fp”); e ii. a matéria constante das alíneas a), f), h) dos factos não provados (e matéria da alegação do artº 78º da p. inicial relativamente ao qual a sentença é omissa)”, sendo que nesta parte não ocorrem razões que impeçam a apreciação.
No entanto, diversamente, quanto às referências que se fazem no corpo das alegações ao que resultaria ou não dos depoimentos, impõe-se a rejeição do recurso, assim na parte em que não foi cumprido o ónus estabelecido na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 640.º do CPC – nomeadamente, a respeito de referências que se fazem ao Réu D… e testemunha I….
Com as limitações antes enunciadas, de seguida procederemos à apreciação:

2.1.1.1. Ponto 4.º da factualidade provada e alínea a) não provada
Este ponto e alínea têm a redação seguinte:
- “4º Pelo menos desde meados de maio de 2018, F… exercia para a Ré mediante as suas ordens, direção e fiscalização e cumprimento, num determinado horário de trabalho de segunda a sexta, as funções de servente da construção civil mediante a retribuição ilíquida mensal de 600€ x 14 meses e o subsidio de alimentação diário de € 5,81 (auto de tentativa de conciliação e artigo 30º da contestação da Ré sociedade)”
- “a) o sinistrado auferisse ao serviço da Ré E…, Lda a quantia mensal de 950€ (artigo 7º da p.i.)”
Dirigindo as Autoras as conclusões D) a P) a esta parte do recurso, pretendendo que seja eliminada a citada alínea a), resulta depois da conclusão N, quanto ao ponto 4.º da factualidade provada, em termos de redação que indicam a seguinte: “o valor da retribuição pago ao sinistrado pela Ré era de 850€ líquidos mensais, correspondente na 950 ilíquidos mensais, vezes catorze meses ao ano, acrescido do subsídio de alimentação no valor de 5,81€”.
Por sua vez, em termos de fundamentos para a alteração, mencionando como prova para sustentar a alteração o que dizem resultar do depoimento da testemunha J… – localizando no registo da gravação a passagem que indicam, assim entre os minutos 3:49 e 5:00 –, do Réu D… – mas limitando-se, incluindo por recurso ao corpo das alegações, a referir que “prestou depoimento de parte no dia 21 de Janeiro de 2020, entre as 10h:05:15 e 10H16:04, tendo assumido o pagamento em numerário)” – e da testemunha I… –, limitando-se, também a referir “tendo prestado declarações em audiência de julgamento, no dia 18 de julho de 2020 entre 00:00:00 e 00:11:16, a instâncias da mandatária da autora, assumiu que já trabalhava para a Ré muito antes de entrar para o mapa de trabalhadores abrangido pelo contrato de seguro de acidentes de trabalho”, constata-se, porém, que apenas quanto à primeira testemunha dão efetivo cumprimento ao ónus estabelecido na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 640.º do CPC, razão pela qual, quanto ao mais, se decide rejeitar o recurso nessa parte. Por outro lado, ainda, sustentam as Autoras estarmos perante situação em que, nos termos do n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil (CC), pelo que se impõe a inversão do ónus da prova, fazendo também apelo, por último, as regras da experiência.
Pugnando os Réus pela improcedência do recurso das Autoras, no que são acompanhados pelo Ministério Público junto desta Relação, constata-se que o Tribunal recorrido, na motivação da matéria de facto, fez constar o seguinte (transcrição):
“Relativamente, ao vencimento auferido pelo trabalhador sinistrado, é irrelevante o alegado pela Ré no artigo 29º ao referir que lhe pagava um vencimento inferior (de € 580) face ao que aceitou em sede de tentativa de conciliação (cfr. fls. 100 a 103) e em face do disposto no artigo 131º, nº 1, al. c) do CPT. De todo o modo importa salientar que o representante legal da Ré assumiu no seu depoimento de parte que efetivamente o trabalhador auferia a quantia mensal de € 600 pelo trabalho executado ao serviço da Ré.
Porém, não lograram as AA demonstrar que o sinistrado auferia, à data do acidente, quantia superior, nomeadamente, € 950. Na verdade, as testemunhas que depuseram sobre tal circunstancialismo fizeram-no de modo evasivo e sem conhecimento direto dos factos: K…, amigo do sinistrado apenas referiu que em conversa com aquele, soube que ele ganhava “800 e pico euros”; a irmã do sinistrado, J… apenas referiu que assistiu, em maio, ao D… entregar em caso do irmão um envelope com € 800 e no mês seguinte entregar um envelope de € 600. Mesmo a considerar como verdadeiros estes depoimentos, sendo o primeiro irrelevante porque indireto, os mesmos não podem fundamentar a afirmação invocada pelas AA. quanto ao valor auferido pelo sinistrado no montante de € 950. Aliás, nem demonstram um pagamento certo e regular.
Assim, tendo a Ré declarado em sede de tentativa de conciliação que o vencimento do sinistrado era de €600 x 14, aceitando também o pagamento de um subsidio de alimentação diário de 5,81 (artigo 30º da contestação) será este o valor da remuneração a ter em consideração para a decisão da causa, nomeadamente, para efeitos de cálculo de uma pensão que possa ser devida.”
Cumprindo-nos apreciar, e desde logo, fator determinante, importa ter presente, como alias o Tribunal a quo o refere expressamente, o regime que resulta do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), do CPT, sendo que, como alias se extrai claramente do despacho saneador proferido, com apelo nessa norma, considerou-se logo então como facto assente o teor do ponto 4.º agora impugnado.
Porque assim é, tratando-se de facto assente por apelo ao mencionado regime, se a intenção das Autoras fosse a de em sede de recurso afastar tal entendimento e aplicação da lei, impunha-se que dirigissem, no presente recurso, o que claramente não fizeram, os argumentos que, na respetiva ótica, impunham diversa aplicação daquele normativo, assim em termos de convencerem o tribunal de recurso da sua pertinência. Do exposto decorre, tanto mais que não encontramos razões para entendermos que o Tribunal a quo tenha errado nessa aplicação da lei, sem necessidade de outras considerações, a improcedência do recurso nesta parte.
Aliás, esclareça-se, tendo-se pronunciado de facto o Tribunal recorrido de seguida sobre outras razões, incluindo a prova que teria sido produzida, evidencia-se que o fez apenas em complemento – repare-se que que inicia com a expressão “De todo o modo importa salientar …” –, ou seja, sem colocar em causa a sua primeira afirmação e consideração, sendo que, diremos por ultimo, mesmo tais observações daquele Tribunal sequer são infirmadas no presente recurso, assim em face da prova produzida.
Improcede, em face do exposto, o recurso nesta parte.

2.1.1.2. Alínea f) não provada
Esta alínea tem a redação seguinte:
“f) no último mês de vida, o sinistrado parecia vir dando sinais de alguma evolução ao reagir à voz de cada uma das AA, mexendo os olhos e apertando as mãos quer da mulher, quer da filha”.
Defendem as Autoras / recorrentes que o seu teor deve ser dado como provado, indicando como meios de prova passagens dos depoimentos das testemunhas J… (passagem entre os minutos 5:00 e 7:18) e L… (entre 00:59 e 2:15).
O Tribunal recorrido, na motivação da matéria de facto, fez constar o seguinte (transcrição):
“(…) Porém, considerando que o sinistrado logo após o acidente ficou imediatamente inconsciente, tendo estado em coma durante todo o hiato de tempo até à sua morte (circunstancialismo que resultou não só dos elementos médicos juntos aos autos como também das testemunhas que viram o sinistrado logo após o acidente como também no hospital), entendemos que os depoimentos prestados pelos familiares e pelo namorado da filha (considerando até a proximidade emocional da tragédia que se abateu nesta família) não se mostram suficientes para demonstrar o circunstancialismo alegado nos artigos 49º a 52º e 61º da p.i.) [ alíneas b) a f) dos factos não provados]. Cremos que seria necessário um testemunho mais científico, nomeadamente, de um médico que tivesse acompanhado o percurso hospitalar deste doente, para que se pudesse afirmar que o mesmo teve dores, teve a perceção da sua morte, etc.”
Apreciando, deixando-se consignado que se reapreciámos a prova indicada – assim pelas Recorrentes, mas também pelo Tribunal –, não temos razões válidas para afastarmos a convicção formada em 1.ª instância, desde logo em face dos fundamentos que se indicam na fundamentação antes citada, pois que, e desde logo, para além da indicada pelas Recorrentes, outra prova também foi tida em conta, sendo que aquelas a esta parte não dirigiram qualquer argumento, sem esquecermos também que aqui vigora o princípio da livre apreciação da prova.
Melhor explicando, significando o princípio da livre apreciação da prova, por apelo a Lebre de Freitas[37], “que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa segundo a sua íntima convicção, formada no confronto com os vários meios de prova” – “Compreende-se como este princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis” –, da sua aplicação ao caso, não encontramos razões, em particular em face do que é indicado pelas Recorrentes, para não considerarmos que a decisão recorrida não tenha motivado e analisado, de forma ponderada, a globalidade da prova produzida, não padecendo, nomeadamente, de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis – sendo que, como se disse também, por outro lado, não resulta a nosso ver infirmada tal decisão, na alegação das Recorrentes.
Neste contexto, tendo então por base o regime legal aplicável, importando ter presente que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[38] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão proferida em 1.ª instância, exigindo antes da parte processual que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos – sem limitar, porém, o segundo grau, ou seja o tribunal de recurso, de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção (não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem, pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[39]) –, em face pois de toda a prova produzida e que foi atendida, devidamente conjugada, dessa não resulta fundamento para afastarmos a convicção afirmada pelo Tribunal recorrido, nomeadamente em termos de essa ser substituída por aquela que é defendida (mas não fundadamente, como se viu) pelas Recorrentes.
Improcede assim o recurso também nesta parte.

2.1.1.3. Alínea h) não provada
Esta alínea tem a redação seguinte:
“h) Sobre o Réu D… incumbisse diligenciar pela implementação na obra dos elementos coletivos de prevenção de acidentes de trabalho (artigo 79º e 80º da p.i.)”
Sustentam as Recorrentes / autoras, assim nas conclusões T) a W), que o conteúdo da citada alínea deve ser considerado provado, referindo o seguinte: incumbia ao Réu, nos termos da legislação aplicável, celebrar e manter em vigor com a totalidade dos salários transferidos, contrato de acidentes de trabalho onde incluísse todos os trabalhadores ao seu serviço e por virtude do qual para a seguradora ficasse transferida o risco de indemnizar pelos danos sofridos pelos trabalhadores por acidentes de trabalho, sendo que tal responsabilidade decorre da responsabilidade funcional como gerente e da qualidade de representante nos termos do artº 18º da LAT em que esta expressão normativa deve ser interpretada; é indiferente que a implementação dos elementos coletivos de segurança na prevenção de acidentes de trabalho coubesse ao empreiteiro e não à Ré, já que do mesmo modo que na sentença se considerou que sempre seria dever desta zelar pelo cumprimento de tal implementação em ordem a prevenir acidentes de trabalho dos seus trabalhadores, igual obrigação, inerente ao exercício do cargo de único gerente, cabia ao Réu, posto que era este quem teria que previamente saber se a obra reunia as condições de segurança, de modo a impedir (caso aqueles não se encontrassem implementados, como não estavam), que o trabalhador executasse as tarefas inerentes à sua função em obra, incluindo facultar-lhe os elementos individuais de segurança que à patronal incumbia colocar-lhe à disposição, evitando com o isso o sinistro que veio a sofrer, de cujas lesões lhe sobrevieram a morte.
Ora, confrontadas todas as conclusões dirigidas à impugnação da matéria de facto no que se refere à analisada alínea, sendo que tal não consta também sequer do corpo das alegações, sempre se imporia que fosse indicada, em cumprimento dos ónus legais antes mencionados, o que não ocorre, a redação a dar a qualquer facto que se pretendesse que fosse dado como provado, com a consequente rejeição do recurso caso assim não se cumpra o inerente ónus legal. Independentemente disso, e de modo relevante, o que se constata é que sequer estão em causa factos e sim conclusões ou juízos valorativos, assim nomeadamente o de saber se, em face dos factos concretos que se tivessem provado, incumbiria (ou não) sobre o Réu D… diligenciar pela implementação na obra de quaisquer elementos coletivos de prevenção de acidentes de trabalho. Por ser assim, não se assumindo sequer com a natureza de facto a mencionada invocação, não deve integrar a factualidade, o que, referira-se, é também e do mesmo modo claramente aplicável ao teor do artigo 78.º da petição inicial.
Em face do exposto, improcede o recurso nesta parte.

2.1.2. Recurso dos Réus (principal e subordinado)
Por referência aos critérios antes enunciados a respeito dos ónus legais, da sua aplicação resulta que, sendo indicados pelos Recorrentes nas conclusões os pontos de facto impugnados e o sentido que se pretende obter – assim que sejam dados como não provados os factos dos pontos 9.º e 10.º dos factos provados (ou, pelo menos, ser considerado como não provado o segmento do ponto 9.º onde se refere “segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda.”) e como provados os factos vertidos nas alíneas i), j) e k) dos factos não provados –, constando ainda do corpo das alegações, quanto à prova que se indica, no que se refere aos depoimentos a respetiva localização no registo da gravação, constata-se, porém, que a prova acaba por ser indicada em bloco, ou seja para o conjunto de factos que são impugnados, do que resulta que, em bom rigor, não teria sido cumprido o ónus, antes afirmado, que impõe que a concretização seja feita relativamente a cada um dos factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
Não obstante, na consideração de que se possam colocar dúvidas nesse âmbito, no entendimento de que se trate de factos que estão diretamente relacionados – ou seja que se trate da apreciação do facto complexo referente a saber que a atividade o Sinistrado estava a realizar e onde, razão pela qual –, não deixaremos de proceder à apreciação, o que faremos de seguida.

2.1.2.1. Apreciação / matéria de facto.
Pontos 9.º e 10.º dos factos provados e alíneas i), j) e k) dos factos não provados
Estes pontos e alíneas têm a redação seguinte:
“9º No dia 23 de maio de 2018, pelas 10h30m, o trabalhador participava, segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda nos trabalhos de limpeza das cornijas do edifício sito na Rua …, nº ../.., no Porto, usando para o efeito uma mangueira e vassoura”.
“10º Naquele dia e hora, o trabalhador encontrava-se na cornija a efetuar tais trabalhos de limpeza apoiado numa pedra que partiu ou cedeu, pela falta de resistência da cornija ao peso do sinistrado, tendo sofrido uma queda de cerca de 4 metros de altura.”
“i) Os trabalhos de remoção do entulho consistiam em deslocar esse entulho depositado no piso do 1º andar para o piso inferior, através das escadas interiores do edifício e daí seria levado para a referida viatura, estacionada em frente do edifício.”
“j) Tais trabalhos seriam feitos unicamente no interior do edifício sobre superfícies absolutamente estáveis, nomeadamente, o piso do 1º andar, não implicando a subida para cima do que quer que fosse, nomeadamente, para a cornija da fachada virada para as escadas do ….”
“k) Não ignorando o sinistrado tal circunstancialismo.”
Impugnando os Recorrentes (em particular conclusões ix a xxxviii) a decisão proferida sobre a matéria de facto, para o efeito sustentam o seguinte: não podia o Tribunal legitimamente dar por provada a afirmação contida no ponto. 9. dos factos provados, no sentido de que o falecido sinistrado participava nos trabalhos de limpeza das cornijas em cumprimento de ordens e instruções da Recorrente, facto essencial à procedência da presente ação e que nem sequer foi alegada pelas Autoras, como lhes competia, ignorando-se, ainda, o que foi alegado no artigo 25º da p.i. (nem provado, nem não provado), acrescentando-se que, mesmo que tal factualidade não se julgue confessada (e consideram que deve, dizendo-se que não foi impugnada e está em harmonia com a factualidade vertida nos artigos 48.º a 50.º da contestação e ainda dos pontos 16. e 17. dos factos provados – nº3 e nº4 do art.607º, do CPCiv.); o Tribunal fez ainda uma errada apreciação da prova, assim testemunhal (indicando-se nomeadamente os depoimentos das testemunhas M…, N…, O…) e documental (fotografias 1 e 2 do registo fotográfico, conclusões do relatório da autopsia); verifica-se uma obvia contradição entre o que se deu por provado nos pontos 9. e 10. dos factos provados e os pontos 11., 16. e 17. seguintes.
Defendendo as Autoras o acerto do julgado, no que são acompanhadas pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, constata-se que o Tribunal a quo, na motivação sobre a matéria de facto fez constar nomeadamente o seguinte (transcrição):
“Na verdade, M…, que trabalha diariamente como voluntário no museu ao lado da obra em curso e que nenhuma relação terá com nenhuma das partes, pese embora não ter visto o acidente, deslocou-se ao local pouco depois daquele ocorrer tendo visto o corpo no chão a ser assistido pelo INEM. Referiu (porque viu), que as obras de demolição do telhado teriam começado nessa semana e que a casa já não tinha telhado e que o entulho que estava a ser retirado era das paredes em tabique, sendo que a parede de cima já havia desaparecido. Mais disse que, embora não tenha fixado caras, as duas ou três pessoas que se encontravam no local (aparentemente ligadas ao sinistrado e à obra) disseram-lhe que o sinistrado estava a trabalhar com o I… a fazer a limpeza do entulho do piso superior e que estavam em cima da pedra e que esta cedeu e originou a queda do sinistrado de lá de cima. Acrescentou ainda que os andaimes apenas foram postos na obra 2 ou 3 dias após o acidente.
Também P…, enfermeira que trabalha no gabinete de enfermagem ao lado da obra que estava em curso, referiu que a obra tinha começado 2/3 dias antes com dois ou três trabalhadores e não existiam andaimes nem linha de vida, arneses, etc. Chegou a ver, quando passava, as pessoas na parte superior da casa a trabalhar e no dia do acidente já não existia telhado. Referiu ainda que viu o corpo no fundo das escadas com uma pedra caída ao seu lado, não se encontrando o sinistrado consciente após a queda.
N…, chefe de equipa da Ré e irmão do sócio gerente e que se encontrava na obra no dia em causa com o sinistrado que melhor poderia esclarecer o ocorrido, alegadamente, não terá assistido ao sinistro. Dizemos “alegadamente” porquanto o seu depoimento não nos convenceu conforme infra explicaremos.
Em primeiro lugar, importa salientar que esta testemunha é irmão do sócio-gerente da Ré e evidentemente, tal como este último, saberá as implicações financeiras que poderão decorrer, não só para a sociedade como para o sócio-gerente, de uma eventual procedência da ação. A inexistência de seguro e a eventual responsabilidade agravada por culpa da entidade patronal que a responsabilizará integralmente pelo sinistro poderá por em causa não só o seu posto de trabalho como a própria viabilidade da sociedade. Portanto, o seu depoimento considerou-se, no mínimo, parcial.
Posto isto, atente-se ao narrado pelo mesmo. A testemunha referiu que na altura do acidente estava em obra, tendo ido estacionar o carro e que quando se apercebeu, o sinistrado já estava no chão, acrescentando que havia uma pedra ao lado do corpo (presume que terá caído), tendo chamado ao local, o irmão, o INEM, ligando ainda para a G…; que o trabalho que se encontravam a fazer em obra era a retirada de entulho (escombros do telhado), pelo que só precisavam de botas e capacete, não sendo preciso prancha. Referiu que o inicio dos trabalhos é as 8h e que o acidente terá ocorrido por volta das 10 horas.
Enfatizou que o sinistrado não tinha ordens para subir, tinha capacete e os escombros eram lançados por uma manga, presumindo que o mesmo tenha caído de cima da cornija.
Por seu turno, a inspetora de trabalho O… que fez a investigação subscrevendo o inquérito ao acidente que se mostra junto aos autos a fls. 13 a 18 referiu ter-se dirigido à obra no dia 25 (dois dias após o acidente), não encontrando nenhum trabalhador da Ré, deparando-se, na altura, com a montagem de andaimes pela G…. Apresentou o registo fotográfico junto a fls. 26 dos autos, referindo que não havia vestígios de elementos de segurança individual, que o equipamento que existia no local era vassouras e mangueira, conforme mostra o local assinalado na foto 2 de fls. 26 e que havia chovido e as pedras do local e, nomeadamente, as de cima (local assinalado foto 1) tinham musgo.
Conjugado o seu depoimento com o relatório do acidente de trabalho junto a fls. 19 a 20 v feito segundo informações na altura prestadas pelo empregador em 04.06.2018 e que ali se encontram vertidas, resulta que na altura do acidente o trabalhador estava a efetuar a lavagem das pedras das cornijas do edifício quando a pedra em que estava apoiado partiu/caiu, fazendo com que o trabalhador caísse (cfr. ponto 2. “DADOS DO SINISTRADO”, “Actividade exercida no momento do acidente” – fls. 19 v, ponto 3. “DADOS DO ACIDENTE”, “Descrição do acidente” – fls. 20).
Segundo o inquérito efetuado, a testemunha N…, na altura, a única pessoa no local com o sinistrado, terá referido que “no momento do acidente só estava no estaleiro o sinistrado e a testemunha”, “A testemunha e o sinistrado vieram juntos para a obra”; “Cerca das 10.30h horas, o trabalhador acidentado encontrava-se na cornija onde procedida à limpeza da mesma utilizando água corrente através de uma mangueiras e vassouras”, “quando efetuava descargas dos equipamentos, a testemunha ouviu um estrondo, dirigiu-se ao local e viu o sinistrado já no … e muito sangue na zona da cabeça”. (fls. 14 v e 15 dos autos).
É ainda referido no âmbito do inquérito, a fls. 16 dos autos aquando da “Descrição/cronograma dos factos do acidente” que no dia 23.05.2018, cerca das 9h30 o sinistrado e a testemunha chegaram ao estaleiro temporário de construção civil e que o acidente terá ocorrido cerca das 10horas e 30 minutos.
Do registo fotográfico feito na altura da inspeção, é evidente (foto 3) o local onde o sinistrado terá sido encontrado após a queda, sendo assinalada na respetiva foto o local onde a pedra da cornija caiu, pedra essa que foi encontrada, segundo os depoimentos supracitados, ao lado do corpo do sinistrado. Por outro lado, vistas a foto 1 e 2, é evidente o material (vassouras e mangueiras) que estava a ser utilizado na ocasião pelo (s) trabalhador (es) para a realização dos trabalhos de limpeza e que foram encontrados por debaixo da parede onde se soltou a pedra da cornija. Assim, analisando o registo fotográfico e todo o demais circunstancialismo exposto bem como as gravidade das lesões apresentadas pelo sinistrado e descritas no relatório de autópsia (fls. 80 a 83) compatíveis com traumatismo de natureza contundente, é evidente que o sinistrado, momentos antes do acidente, se encontrava em cima da cornija, no local onde a pedra cedeu (conforme foto 1 e 3 de fls. 26) a efetuar trabalhos de limpeza utilizando para o efeito vassoura e mangueira. Desse desprendimento da pedra da cornija onde o mesmo estaria apoiado, terá resultado o seu desequilíbrio e posterior queda em altura de cerca de 4 metros que necessariamente lhe provocaram as lesões que vieram a originar a sua morte passado cerca de 2 meses.
Ao contrário do alegado pela testemunha N… em audiência de julgamento, não foi mencionado pelo próprio, nem pelo representante legal da Ré, nem pela própria inspectora do trabalho quando se dirigiu ao local ou por quaisquer testemunhas que acederam ao local após o sinistro, quaisquer vestígios da existência de uma manga por onde era enviado o entulho, nem da utilização por parte do sinistrado de um capacete (seria natural que o mesmo fosse encontrado no local, caso existisse).
Para corroborar ainda mais esta convicção sobre a dinâmica do acidente, temos a circunstância da tentativa de alteração por parte da Ré dos factos inicialmente comunicados à inspectora do ACT, ao apresentarem uma adenda em 10.10.2018 -quando o processo de acidente de trabalho já se tinha iniciado no Tribunal (após participação da viúva do sinistrado) e ter aquela mesma sido notificada para informar se tinha a sua responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para alguma seguradora, ou seja, quando tomou plena consciência da sua possível responsabilização pelo acidente face à inexistência de seguro.
Nesta adenda, de um modo totalmente incompreensível, foi referido que quem efetuou a descrição do acidente terá sido o Sr. D… que na altura se encontrava bastante transtornado com a situação ocorrida e que terá sido o Sr. N… a pessoa que se encontrava presente no local na data e hora do acidente, mas cujo depoimento não foi possível recolher na altura da elaboração do relatório. E segundo, a nova posição desta testemunha, esta terá nesse dia passado numa obra onde apanhou o sinistrado tendo ido para a obra do …; quando chegaram à obra o sinistrado saiu do veículo e este foi estacionar o mesmo e tirar a ferramenta; entretanto ouviu um barulho, foi ver o que tinha acontecido quando viu o sinistrado no chão.
Em primeiro lugar, temos como irrelevante esta alteração dos factos quando na altura do acidente, a entidade patronal e em momento subsequente ao acidente (poucos dias após o acidente), quando confrontado com o ocorrido e seguramente ainda não consciente da sua eventual responsabilidade, apresentou uma versão que seguramente a desfavorecia, mas que era verdadeira. De salientar na altura, o mesmo indicou o Sr. N… como testemunha do acidente, pelo que, mesmo que não se encontrasse presente na altura, a comunicação terá sido feito segundo a (s) pessoas (s) que lhe relataram o acidente, nomeadamente, o irmão do sócio-gerente.
Acresce ainda que não faz qualquer sentido o agora relatado. Em primeiro lugar, a obra já estava em curso há uns dias – dito pelo próprio sócio-gerente em sede de depoimento de parte, pelo próprio N… e por testemunhas que trabalhavam ao lado da obra, pelo que não faz qualquer sentido que o sinistrado tivesse vindo de outra obra.
Impõe-se ainda realçar que no inquérito feito pela Sra. Inspetora nada disso é referido – sobre uma chegada tardia à obra. É referido como hora de chegada à obra as 09.30h (em audiência de julgamento a testemunha N… até falou em 8h), pelo que à hora do sinistro, os trabalhos de limpeza estavam totalmente em curso até porque os instrumentos de trabalho – vassoura e mangueira – que estariam a ser utilizadas – foram encontradas perto do local onde o sinistrado estaria a trabalhar, o que reforça esse mesmo enquadramento.
Não faz qualquer sentido, a afirmação agora feita de que o mesmo estivesse a descarregar ferramenta e que, nesse pequeno hiato de tempo, o sinistrado tivesse subido para cima da cornija (sem qualquer necessidade e sem qualquer explicação) e sofrido uma queda (isto porque todos os elementos circunstanciais encontrados no local e aos quais supra aludimos, as lesões sofridas pelo sinistrado, a posição e local onde foi encontrado o corpo evidenciam que houve uma queda de vários metros de altura).
Por todo o exposto, não colhe a afirmação feita pela testemunha de não saber explicar como é que o sinistrado acedeu ao local nem o que estava a fazer (fls. 16 v). Toda a prova circunstancial conjugada com a prova testemunhal apontam que os trabalhos na obra – de limpeza das cornijas - estavam a decorrer e o sinistrado estaria na altura do acidente em plena execução os mesmos.
(…)
A resposta aos factos insertos na al. i), j), k) e n) dos factos não provados resultou da circunstância de ter ficado outra realidade e que supra exaramos, nomeadamente, sobre os trabalhos que estavam em curso (conforme descrição no relatório do acidente)- limpeza das cornijas – trabalho absolutamente necessário, segundo a inspetora de trabalho que averiguou o acidente, para que a obra pudesse prosseguir designadamente, para permitir a construção de uma estrutura por cima. Do depoimento da Sr. Inspetora, da análise dos relatórios e das próprias fotográficas tiradas no local, não há qualquer evidência de “superfícies absolutamente estáveis”, nomeadamente, ao nível do 1º andar. Aliás, a casa está totalmente oca, tendo apenas as paredes em tabique de pé. Por outro lado, é evidente pelas conclusões da própria (não só em sede de relatório como de audiência final) que, ao contrário do que alega a Ré, as medidas de proteção coletivas, nomeadamente, os andaimes, já eram necessárias para a execução dos trabalhos de limpeza em curso, em segurança.”
Cumprindo-nos proceder à reapreciação, e em primeiro lugar, diversamente do que se invoca, não se vislumbra, como aliás resulta diretamente do que dissemos anteriormente aquando da apreciação da invocada existência de decisão surpresa, o que chamamos pois aqui de novo integralmente em termos de prescindirmos de outras considerações porque desnecessárias, que ocorra qualquer contradição entre o que se deu por provado nos pontos 9. e 10. dos factos provados e os pontos 11., 16. e 17. seguintes. De facto, como então se disse, nada invalida, sendo até natural que aconteça, que parte do entulho provindo da demolição do telhado efetuada antes se possa encontrar na zona das cornijas, não procedendo, pois, esse argumento dos Recorrentes.
Como não procedem, do mesmo modo, adiante-se desde já também, em face da prova produzida – esclarecendo-se que para o efeito procedemos à reapreciação de toda a prova indicada, assim quer na motivação do Tribunal quer nas alegações, com audição integral dos registos da gravação no que aos depoimentos diz respeito –, os argumentos que dirigem à decisão para sustentarem existir erro de julgamento quanto à matéria de facto, assim nos pontos que se analisam.
Esclarecendo a afirmação anterior, diremos o seguinte:
Em primeiro lugar, importa ter presente que, em face da motivação avançada pelo Tribunal a quo, por contraponto aos argumentos indicados pelos Recorrentes, estes argumentos, traduzindo é certo uma diversa valoração da prova, o que é naturalmente legítimo, não evidenciam, importa dizê-lo, que a convicção firmada em 1.ª instância, motivada nos termos antes citados, não encontre adequado suporte na prova que foi atendida, toda ela pois, em aplicação do princípio da livre apreciação da prova que, como resulta da lei, aqui impera, ou seja, com base na análise de toda a prova produzida, que é indicada, de um modo a evidenciar a ponderação que foi realizada, de resto, ainda com apelo, que se percebe ter sido feito pelo mesmo Tribunal, às regras da experiência comum / normalidade das coisas – veja-se, desde logo, quando refere que “Não faz qualquer sentido, a afirmação agora feita de que o mesmo estivesse a descarregar ferramenta e que, nesse pequeno hiato de tempo, o sinistrado tivesse subido para cima da cornija (sem qualquer necessidade e sem qualquer explicação) e sofrido uma queda (isto porque todos os elementos circunstanciais encontrados no local e aos quais supra aludimos, as lesões sofridas pelo sinistrado, a posição e local onde foi encontrado o corpo evidenciam que houve uma queda de vários metros de altura)” –, sendo que, afinal, pretendendo afastar tal convicção, constata-se que os Recorrentes não cuidaram de indicar razões suficientemente válidas, em face de toda aquela prova, em termos de justificarem por que razão essa não deveria ter sido atendida do modo como o foi.
Ou seja, vigorando neste âmbito o princípio da livre apreciação da prova, sobre o qual nos pronunciámos já anteriormente, da sua aplicação ao caso, consideramos que não encontramos razões, em particular em face do que é indicado pelos Recorrentes, para não considerarmos que a decisão recorrida não tenha motivado e analisou, de forma ponderada, a globalidade da prova produzida, não padecendo, nomeadamente, de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis – sendo que, como se disse também, por outro lado, não resulta a nosso ver infirmada tal decisão, na alegação dos Recorrentes.
Na verdade, sem esquecermos ainda o confronto realizado com documentos juntos aos autos, assim fotografias constantes do relatório da ACT junto aos autos – e que permitem, apesar de não serem amplamente esclarecedoras, perceber minimamente a configuração do local / estado das obras levadas a efeito em que teria ocorrido o acidente –, sendo verdade que não se pode afirmar que qualquer das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento – a que se refere a motivação do Tribunal e ainda os Recorrentes, sendo que duas delas, aliás, depuseram ainda de novo noutra sessão do julgamento, assim em 18 de setembro – presenciou a queda do Sinistrado, não é menos verdade que, conjugada toda essa prova, até por apelo às regras da experiência comum, dessa não possa resultar a convicção afirmada pelo Tribunal que esteve na base da prova dos factos aqui em reanálise.
De facto, a testemunha M…, que nenhuma relação tinha com qualquer das partes, afirmando é certo que não viu o que tinha acontecido, também referiu, no entanto, o que lhe foi dito quando chegou ao local – assim que, chegado ao local, lhe foi dito por um dos funcionários que o Sinistrado caiu lá de cima cá para baixo… e que estavam a limpar o entulho… (minutos 7), que falou com um trabalhador ou encarregado… que não sabe identificar… (minutos 10), como ainda, a pergunta sobre a proveniência do entulho, que era do lado de cima… era o entulho das paredes…, que andavam em cima das pedras da parede… (minutos 11 a 13) –, sendo que, não obstante tratar-se de prova indireta quanto à queda a que alude, enquanto baseada no que lhe teria sido dito, também não deixa de ser afinal compatível com a perceção, esta direta, da situação com que se deparou nesse momento, sendo esta temos por compatível, afinal, em termos da normalidade das coisas, com a descrição que disse que lhe teria sido feita do que teria acontecido – veja-se que, de novo inquirido na sessão de 18 de setembro, referiu também: que andavam a demolir o piso de cima… (minutos 2), que já não havia telhado (minutos 3), que no dia do acidente andavam a limpar o que deitaram abaixo… (minutos 3), que no local existiam as paredes do que eles consideram o rés do chão… e por cima outro andar…, que estava em cima de um beiral… (minutos 5); ainda, a pergunta sobre como sabia que andavam a fazer limpeza, respondeu que havia água e tinham uma mangueira lá em cima… (minutos 7/8).
Do mesmo modo, ou seja pontado nesse mesmo sentido, o depoimento de O… (inspetora ACT), ao referir que lhe teria sido dito, quando se deslocou ao local, apenas dois dias após o acidente, que o trabalhador se encontraria a lavar a cornija… a fazer a limpeza… (minutos 3)…, a cerca de 4 metros de altura e que terá caído … (minutos 4), sendo que, não obstante ter também mencionado depois (quando questionada sobre quem o teria dito) que se teria baseado no que lhe fora dito pelo encarregado (que esse teria dito que não presenciou a queda) e pela entidade empregadora (minutos 5/6), também fez alusão à existência no local de vassouras e mangueira… (minutos 7) – sendo que, referindo é certo que não sabia se essas estavam lá no dia do acidente (minutos 16), importa ter presente que a testemunha M… referiu que aí estariam nesse momento – e que lhe deu a sensação de que estariam a fazer a limpeza das pedras (minutos 8), como ainda que sabia que o telhado já não existia (minutos 12), voltando de novo a repetir que falou mais tarde com quem estaria na obra com o sinistrado e, em particular, a instâncias do Ilustre mandatário dos agora Recorrentes que referiu que ninguém teria visto de onde caiu o Sinistrado, voltou a mencionar que aquilo que lhe foi dito foi que seria daquele local (minutos 18), a uma altura de cerca de dois pisos (minutos 20). De facto, baseando-se é certo o mencionado depoimento também no que teria sido dito à testemunha, não presenciando, pois, a mesma o que se teria passado, a realidade com que se deparou ao chegar ao local, no entanto, é compatível, ou seja adequa-se, ao relato que lhe teria sido feito.
Por último, agora sobre o depoimento da testemunha N…, que o Tribunal como se viu desvalorizou em termos de formação da sua convicção conforme resulta da motivação, desvalorização contra a qual se insurgem os Recorrentes, ouvido em sede recursiva esse depoimento, percebemos, afinal, as razões que estiveram na base dessa posição do Tribunal, que de resto, diga-se, gozou das virtualidades que resultam da imediação.
Na verdade, tal depoimento em si mesmo, ou seja, mesmo sem se considerarem outras razões, sequer é sequer consistente em si mesmo, em termos de regras da experiência comum, desde logo quando, tratando-se da pessoa que como o disse levava os trabalhadores para as diversas obras, assim incluindo no caso o Sinistrado, parece querer convencer que esse, por sua livre iniciativa, ou seja sem que lhe tivesse sido referido quais os trabalhos que deveria realizar, pudesse ter subido à cornija – assim quando referiu, na primeira sessão em que prestou depoimento, que se caiu… “eu suponho que tenha sido da cornija, … não tinha ordem para isso… (minutos 10), que o trabalho que ia fazer não implicava estar na cornija (minutos 12), dando como única explicação para tão arriscada atuação (dizemos arriscado pois que a própria testemunha refere a inexistência de segurança), se assim lhe poderemos chamar, que “ele era um bocado aventureiro…, se foi lá acima foi por sua livre iniciativa e vontade (minutos 17), como ainda na sessão de 18 de setembro, não saber por que teria subido, apesar de ter referido que as paredes estão ao alto sem segurança (minutos 6), para insistir de novo que iam remover apenas o entulho do telhado que estava no chão (minutos 8) e que a seguir é que iriam limpar, que as pedras só são limpas depois de reforçadas (minutos 9). Na verdade, tais explicações não se assumem sequer como razoáveis, em termos de suporte bastante para ser formada convicção positiva nesse sentido, pois que, a ser verdade que o Sinistrado fosse uma pessoa assim tão “aventureira”, mesmo em termos de normalidade das coisas, seria então expectável que a testemunha o tivesse deixado ir sozinho para a obra, ficando ele, passivamente afinal, segundo as suas declarações a arrumar a viatura e a fazer um telefonema. Como, do mesmo modo, sequer assumem as suas declarações consistência bastante em termos de prova quando, em face da realidade com que diz que se deparou, ou seja, o Sinistrado caído no chão, se limita a avançar com uma mera conjetura sobre o local de onde teria caído, assim da cornija, quando, já agora, para dar um mínimo de sustentação ao facto de apenas poder conjeturar, não referiu então de que outro local poderia ter caído o Sinistrado. De facto, em termos de regras da experiência e do senso comum, se uma pessoa se encontra caída no chão no estado em que o estaria o Sinistrado (com a agravante de aí se encontrar uma pedra da cornija), conjeturando-se que teria ocorrido uma queda, até por força das próprias leis da física, seria caso para se olhar para cima, ou seja, em termos de trajetória que se apresentasse como normal.
Refira-se, ainda, a respeito do apelo que se considera ter sido feito em 1.ª instância, nos termos antes mencionados, às regras da experiência comum, apelo esse que temos aqui também por justificado como o dissemos, que, socorrendo-nos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2016[40], diremos também, citando, que “a prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objeto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos”, mais se acrescentando que o uso “em processo civil, de regras de experiência comum, é um critério de julgamento, aplicável na resolução de questões de facto, mas não na interpretação e aplicação de normas legais[41], que fortalece o princípio da livre apreciação da prova, como meio de descoberta da verdade, apenas subordinado à razão e à lógica” – ainda que “a definição da hierarquia dos meios de prova de livre apreciação, pelo tribunal, e bem assim como a consideração de certas provas, em detrimento da desconsideração de outras, ou de determinados depoimentos, em primazia de outros, sustenta-se ainda no aludido princípio da convicção racional, que não afeta o princípio da igualdade processual das partes[42]”.
Neste contexto, tendo então por base o regime legal aplicável a respeito da nossa intervenção em sede de recurso – sobre o qual nos pronunciámos, mais uma vez, anteriormente e que por essa razão aqui não importa repetir –, em face pois de toda a prova produzida e que foi atendida, devidamente conjugada, até por apelo às regras da experiência comum, dessa não resulta fundamento para afastarmos a convicção afirmada pelo Tribunal recorrido, nomeadamente em termos de essa ser substituída por aquela que é defendida (mas não fundadamente, como se viu) pelos Recorrentes.
Nos termos expostos, improcedem os recursos dos Réus nesta parte.

2.2. Por decorrência do anteriormente apreciado e decidido, a base factual a atender, para dizermos de Direito, é aquela que, enquanto tal, foi firmada em 1.ª instância.

3. O Direito do caso
Por razões de lógica e ainda de utilidade, porque da eventual procedência dos recursos interpostos pelos Réus (principal e subordinado) decorrerá, por consequência, a desnecessidade de apreciação do recurso interposto pelas Autoras, começaremos então por apreciar aqueles, para de seguida, sendo esse o caso, ser apreciado este último.

3.1 Recurso dos Réus, principal e subordinado: da verificação sobre se estamos perante acidente de trabalho / descaraterização ou não do acidente
Das conclusões apresentadas pode retirar-se que os Rés / recorrentes, baseando-se também na alteração que sustentaram e defenderam em sede de matéria de facto, avançam no essencial, para defenderem que a sentença recorrida padece de erro na aplicação do direito, avançam com os argumentos seguintes:
- O acidente não teve qualquer relação com trabalhos que iam ser executados pelo falecido Sinistrado, de remoção do entulho da demolição do telhado, tendo ocorrido antes do início desses trabalhos e para a sua realização aquele sabia que não precisava de subir para a cornija – “ter-se-ia mantido com os pés bem assentes quer no piso do 1º andar quer no piso do rés-do-Chão se tivesse cumprido o plano estabelecido para a operação de remoção do entulho do telhado demolido, o qual apenas implicava a descida do entulho para o rés-do chão do edifício e depois para a viatura referida no ponto 11. dos factos provados, estacionada em frente do edifício” (recurso principal e subordinado);
- O artigo 56.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil em vigor, aprovado pelo Decreto 41821, de 11 de agosto de 1958, não refere a necessidade de utilização de andaimes, guarda corpos ou arneses pela simples razão de que os produtos da demolição são descidos ou arreados de cima para baixo com recurso a cordas, cabos, roldanas, guinchos ou outros processos apropriados” (recurso principal);
- Uma vez demonstrado que a remoção do entulho da demolição do telhado do edifício não implicava trabalhos em altura, é bem evidente que o facto de se ter provado que na altura do acidente não existiam andaimes, guarda corpos ou arneses (na pretensão implícita de que tinham de existir) não pode ter influência alguma na decisão desta causa que assenta na insinuada ofensa dos artigos 36.º a 42.º, do DL. 50/2005, de 25 de fevereiro” (recurso principal);
- O tribunal “a quo” falha na imputação do que assaca à Ré, pois que é diferente uma escada de um andaime, por exemplo, ficando-se sem saber qual o equipamento de segurança a que se refere, se apenas o andaime ou todos eles, e qual a disposição ou regra de segurança efetivamente violada por parte da Ré – para se concluir na conclusão seguinte que “não houve violação de nenhuma regra de segurança porque o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil ainda se mantém em vigor e, dado o princípio de que a lei especial derroga a lei geral, duvidas não poderão existir de que no caso em apreço aplicar-se-ão as regras constantes desse Regulamento em vez dos artigos 36º a 42º do DL 50/2005, de 25.02, que fundamentam a decisão de condenar a Ré” (recurso principal);
- Não se verificam os requisitos que a lei faz depender para o agravamento da responsabilidade da Ré (do art.18º, da Lei 98/2009, de 4 de setembro), designadamente, a falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, pelo que a ação deverá ser julgada totalmente improcedente (recurso principal);
- “Mostram-se, violados, entre outros, a al. d), nº1 do art.615º, do CPCiv., ex vi art.77º, do CPTrab., o nº1 do art.5º, do CPCiv, aplicável “ex vi” da al. a), nº2 do art.1º, do CPTrab., o nº3 e nº4 do art.607º, do CPCiv., assim como os arts 1º e56º e seguintes do Decreto 41821, de 11 de Agosto de 1958 (recurso principal e subordinado).
Defendendo as Autoras o acerto do julgado nesta parte, no que são acompanhadas pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, na apreciação que faremos de seguida começaremos por verificar, em primeiro lugar, se estamos ou não perante um acidente de trabalho (incluindo, sobre saber também se ocorre descaraterização enquanto tal), para de seguida, então sim, conhecermos da questão referente à existência ou não de responsabilidade agravada (artigo 18.º, da LAT).
A propósito destas questões, fez-se constar da sentença recorrida o seguinte:
“(…) Em face da factualidade apurada e tendo em consideração a definição prevista no artigo 8º da Lei 98/2009, de 04.09, entendemos que não subsistem dúvidas que o sinistro ocorrido consistiu num acidente de trabalho donde resultou a morte do sinistrado.
Na verdade, ficou provado que no dia 23 de maio de 2018, pelas 10h 30m, o trabalhador participava, segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda nos trabalhos de limpeza de escombros do telhado do edifício sito na Rua …, nº ../.., no Porto, usando para o efeito uma mangueira e vassoura, encontrando-se na cornija a efetuar tais trabalhos de limpeza apoiado numa pedra que partiu ou cedeu, tendo sofrido uma queda de cerca de 4 metros de altura (factos 9º e 10º ).
O sinistro ocorreu no local (considerando a natureza da actividade prestada pela entidade patronal do sinistrado, enquadra-se aqui a execução dos serviços fora da sede da empresa, mas numa obra que lhe foi adjudicada) e tempo de trabalho em conformidade com as definições indicadas nas al. a) e b) do nº 2 daquele normativo e com um trabalhador subordinado de outrem, tendo originado lesões que lhe determinaram a morte, face à factualidade provada sob os pontos 18 e 19.
As lesões sofridas pelo trabalhador e descritas no ponto 18, nomeadamente crânio-encefálicas, que tiveram origem na queda ocorrida no dia e local referenciados nos autos foram causa direta e necessária da sua morte que veio a ocorrer cerca de 2 meses após o acidente, a saber, em 29 de julho de 2018.
Não tendo a entidade patronal procedido à transferência da responsabilidade pela reparação emergente de acidentes de trabalho relativamente a este sinistrado conforme lhe é imposto pelo artigo 79º da Lei 98/2009, de 04.09, é exclusivamente sua a responsabilidade pelo pagamento das indemnizações por incapacidade temporárias, pensões decorrente da morte do sinistrado, despesas efetuadas com hospitalização e assistência clínica na medida do rendimento auferido pelo trabalhador (nº 5 do citado normativo e 71º do mesmo diploma).
In casu, ficou demonstrado que, na data do acidente, o trabalhador auferia o vencimento mensal de € 600 x 14 meses acrescido do subsidio de alimentação diário de €5,81, o que equivale a um rendimento anual de € 9.806,02 [€ 8400 + € 1406,02 (€ 5,81 x22dx11m)] e será essa a remuneração que servirá de base ao cálculo de uma pensão devida por morte do sinistrado e à indemnização por ITA.
Cumpre analisar ainda a quem cabe a responsabilidade pelo sucedido, nomeadamente, se o acidente adveio de acto ou omissão do próprio sinistrado que importe uma violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei, caso em que o acidente ficaria descaracterizado, não dando direito a qualquer reparação, nos termos do art. 14º, nº 1, al. a), da Lei nº 98/2009, de 04.09 ou se adveio da falta de observância, por parte da entidade patronal, de regras de segurança que se lhe impunham, caso em que a responsabilidade pela reparação do acidente recairá será agravada pelos montantes acrescidos do art. 18º, nº 1, da Lei 98/2009.
Passemos então à análise do respectivo acidente. O referido acidente consistiu em o sinistrado ter caído no solo de uma altura de cerca de quatro metros, quando se encontrava em cima da cornija apoiado numa pedra que cedeu ou partiu a executar trabalhos de limpeza de escombros do telhado do edifício, segundo ordens e instruções da Ré E…, Lda.
Constatou-se que, na altura, não havia na obra andaimes, guarda-corpos, não tendo sido colocados à disposição dos trabalhadores nem arneses, nem capacetes (facto 15º). É evidente que os trabalhos em curso estavam a ser realizados em altura e sem qualquer sistema de proteção individual e/ou coletiva por parte do trabalhador.
Não se provou de nenhum forma que o trabalhador tivesse qualquer tipo de instruções para não realizar as suas tarefas nos termos em que o estava a fazer (apoiado numa cornija), nem que para a sua execução, não precisasse de subir para cima da cornija, conforme alega a Ré no artigo 63º da contestação. Por outro lado, não só não ficou demonstrado que as medidas de proteção coletivas não eram necessárias para a execução dos trabalhos que estavam a ser executados, conforme alega à Ré, como podemos mesmo afirmar, que eram mesmo necessárias para que o trabalho fosse desenvolvido em segurança dos trabalhadores.
É evidente que os trabalhos que se encontrava a executar inseriam-se nos trabalhos necessários para a realização da obra que a Ré se propôs, sendo evidente que o risco de queda existia, pelo que a existência de medidas de segurança individuais e coletivas mostravam-se necessárias para a execução dos trabalhos em obra. Existia um motivo para o trabalhador estar no sítio onde estava. Porém, é evidente a total ausência de medidas de segurança para a realização dos trabalhos.
Não cremos ter ficado provado assim qualquer circunstancialismo suscetível de imputar a responsabilidade da ocorrência do acidente exclusivamente ao sinistrado, conforme alega a Ré, e de descaracterizar o acidente nos termos do artigo 14º da Lei 98/2009, de 04.09.
Invocam as AA. o disposto no artigo 15º e 5º, nº 1 do DL 102/2009, de 10.09 (Regime Jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho), bem como o disposto no artigo 281º do CT, alegando que à Ré enquanto entidade empregadora competia assegurar todos os meios de segurança pessoais e coletivos de prevenção de acidentes de trabalho, assim como fazer cumprir aos seus subordinados as regras de segurança em vigor e que a mesma: a) Não planificou nem dispunha de documento dessa planificação destinada à prevenção de sinistros laborais considerando a evolução técnica, a organização do trabalho e condições de trabalho; b) Não tinha identificado os riscos previsíveis em todas as atividades da empresa na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, nem na seleção de equipamentos destinados a evitar a sinistralidade no trabalho; c) Não tomou em consideração a necessidade de adaptar o tipo de trabalho ao trabalhador em causa; d) Não priorizou as medidas de segurança coletiva em relação às individuais; e) Não elaborou ou divulgou, dando-as a conhecer ao trabalhador sinistrado, instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
Mais concluem que o acidente ocorreu por falta de elementos coletivos de segurança, mormente por falta de guarda corpos.
A Ré, para além de entender que para a execução dos trabalhos em curso, não era preciso a implementação de medidas de segurança (argumentação que já afastamos), refere que a responsabilidade pela sua implementação estava reservada à empreiteira G….
Para o efeito invoca o disposto no artigo 20º do Dl.273/2003, de 29.10 (diploma que estabelece regras gerais de planeamento, organização e coordenação para promover a segurança, higiene e saúde no trabalho em estaleiros da construção e transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva nº 92/57/CEE, do Conselho, de 24 de Junho, relativa às prescrições mínimas de segurança e saúde no trabalho a aplicar em estaleiros temporários ou móveis e que estabelece como obrigações da entidade executante o dever de avaliar os riscos associados à execução da obra e definir as medidas de prevenção adequadas e, se o plano de segurança e saúde for obrigatório nos termos do nº 4 do artigo 5º, propor ao dono da obra o desenvolvimento e as adaptações do mesmo; elaborar fichas de procedimentos de segurança para os trabalhos que impliquem riscos especiais e assegurar que os subempreiteiros e trabalhadores independentes e os representantes dos trabalhadores para a segurança, higiene e saúde no trabalho que trabalhem no estaleiro tenham conhecimento das mesmas.
Independentemente da possível responsabilidade desta sociedade G… enquanto empreiteira da obra, nomeadamente, pela colocação dos andaimes nas fachadas do edifício de modo a permitir a execução dos trabalhos de limpeza das cornijas em segurança, tal não afasta uma responsabilidade da entidade patronal perante o sinistrado ao permitir a execução dos trabalhos em curso sem que aos trabalhadores estivessem asseguradas as medidas de segurança do ponto de vista individual e coletivo.
Ficou claro que os trabalhos de limpeza e remoção de entulho estavam a ser executados sem recurso a andaimes, guarda-corpos, não tendo sido ainda colocados à disposição dos trabalhadores arneses e capacetes (facto 15º).
Nos artigos 36º ao 42º do DL. 50/2005 de 25.02 mostram-se elencados os equipamentos de trabalhos que deverão ser utilizados para trabalho em altura de modo a assegurar as condições de trabalho seguras, devendo ser dada prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual. É regulado as técnicas de utilização das escadas, acesso e de posicionamento por cordas, utilização de andaimes de modo a minorar o risco de quedas e outro tipo de acidentes.
Em face do modo como estavam a ser executados os trabalhos de limpeza - sem utilizar qualquer equipamento de proteção individual e sem que existissem na obra medidas de proteção coletivas (andaimes, guarda-corpos), com o evidente conhecimento da entidade empregadora - já que o respetivo trabalhador estava a exercer as suas funções sob a sua ordens, direção e fiscalização e sendo a esta que compete assegurar, nos termos do artigo 15º do Dl. 102/2009, de 10.09, ao trabalhador condições de trabalho de segurança e saúde, nomeadamente, fornecendo-lhes o equipamentos de proteção individual e implementando (ou cuidando para que estivessem implementados aquando do inicio dos trabalhos por parte dos seus funcionários) as medidas de proteção coletiva, parece-nos evidente a atuação culposa por falta de observação das regras sobre a segurança e saúde no trabalho que se lhe impunham no caso concreto.
De acordo com o citado diploma, cabe à entidade patronal assegurar aos trabalhadores condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspectos relacionados com o trabalho.
A limpeza das cornijas do edifício feita sem qualquer proteção, sendo permitido ao trabalhador que acedesse àquelas para o efeito, evidencia uma total despreocupação pelas regras de segurança no trabalho e que à entidade patronal se impunha respeitar.
Parece-nos claro a existência de violação das regras de segurança e considerando o modo como o acidente ocorreu – o trabalhador encontrava-se em cima da cornija apoiado numa pedra que partiu ou cedeu, o que originou a sua queda ao solo –permite estabelecer o nexo de causalidade entre essa e o acidente.
Se tivessem sido estabelecidas regras de segurança, nomeadamente coletivas, seguramente teria sido permitido ao trabalhador executar os trabalhos de limpeza de outro modo e em segurança, evitando que o mesmo se apoiasse numa estrutura totalmente frágil e suscetível de ser abalada por falta de resistência e capacidade de suportar o impacto da movimentação/apoio do trabalhador conforme resulta do registo fotográfico de fls. 26 dos autos (e como veio a acontecer) e assim a sua queda, as graves lesões e subsequente morte do sinistrado.
De harmonia com a jurisprudência, constante e pacífica do Supremo Tribunal de Justiça (Cfr., por todos, o Acórdão de 14 de Março de 2007 -Revista n.º 1957/06-4.ª Secção, em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200703140019574.4), para ser imputada à entidade empregadora a responsabilidade infortunística, nos termos previstos nos artigos 18.º, n.º 1 e 79º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 04.09 (LAT), não basta que se prove ter ocorrido violação das regras segurança, exigindo-se, também, a demonstração de factos dos quais se possa concluir que foi o desrespeito por tais regras que deu origem ao evento danoso.
No caso que nos ocupa, cremos ser evidente que a queda do sinistrado teria sido evitada se houvesse elementos de proteção na obra, nomeadamente, coletivos, que lhe permitiria executar a limpeza de outro modo, nomeadamente, a existência de andaimes – que permitira aceder à estrutura em altura e limpá-la em toda a sua extensão, mas apoiado em elementos seguros, fixos e estáveis - e da proteção de guarda-corpos de modo a evitar uma queda em altura.
Assim, parece-nos ter ficado demonstrado que o que deu origem ao sinistro foi a ausência de cumprimento das regras de segurança em obra – dito de outro modo, que o acidente não teria acontecido se elementos protectores coletivos estivessem instalados junto às paredes e cornijas objeto de limpeza, permitindo esta, sem que o trabalhador tivesse necessidade de se empoleirar ou caminhar sobre aquelas para executar o seu trabalho, a mando da Ré.
Aliás, olhando à fragilidade da estrutura e ao estado da mesma, cremos que o risco de derrocada ou queda (caso alguém acedesse à mesma) era perfeitamente previsível e atenta a altura da mesma, haveria um perigo enorme de lesão grave ou morte para os operários que sobre ela, exerciam a sua actividade.
Cremos assim estar estabelecida a relação de causa e efeito entre as ditas infrações cometidas pela empregadora e o evento infortunístico.
A Ré invocou a descaracterização do sinistro por violação das regras de segurança estabelecidas pelo empregador, por parte do sinistrado, de modo a afastar a sua responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização decorrente do acidente que vitimou aquele, alegando que o mesmo subiu à cornija, sendo tal totalmente desnecessário para a realização dos trabalhos que tinha que executar que apenas se situavam no interior do edifício, não implicando uma subida ao telhado.
Não só não ficou provado o alegado [alíneas i), j) e k) dos factos não provados], como também entendemos que tal circunstancialismo jamais permitiria descaracterizar o acidente.
O disposto no artigo 14º, nº 1, al. a) da Lei 98/2009, de 04.09 exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstos na lei;
b) O seu desrespeito por parte do destinatário/trabalhador;
c) Uma atuação voluntária do sinistrado, embora não intencional, por ação ou omissão, e sem causa justificativa;
d) Que o acidente seja consequência, em termos de causalidade adequada, dessa conduta.
O trabalhador estava a desempenhar as suas funções mediante as condições que lhe foram criadas pela entidade empregadora e mediante ordens expressas, não havendo nenhum desrespeito de uma ordem expressa da sua entidade patronal. Por outro lado, os trabalhos em curso implicavam o acesso ao local onde o mesmo se encontrava antes do acidente – impunha-se a limpeza da totalidade da estrutura.
Assim, ainda que se pudesse considerar um comportamento temerário da sua parte – ao aceder sem qualquer proteção ao local donde posteriormente caiu, existia uma causa justificativa para que tal tivesse ocorrido: a execução do trabalho ordenado pela Ré, sendo certo que esta não alegou nem demonstrou ter estabelecido quaisquer regras que o mesmo tivesse desrespeitado e cujo cumprimento implicaria a não ocorrência do acidente.
Impõe-se a indagação se, por um lado, existe adequação causal (o acidente tem que resultar, numa relação causa –efeito, de ato ou omissão do sinistrado que configure afronta das condições de segurança existentes); por outro lado, há que indagar se o desrespeito das ditas condições de segurança assenta numa qualquer razão ou motivo que, no contexto, o possa justificar - nesse sentido AC. STJ de 19.11.2014, proferido no processo n.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, disponível in www.dgsi.pt
Inexiste, assim, qualquer facto provado, direta ou indiretamente, relacionado com a natureza do comportamento do sinistrado suscetível de lhe imputar uma qualquer responsabilidade pela ocorrência do acidente que o veio a vitimar.
Realce-se que a prova da inexistência de qualquer causa justificativa, competia aos Réus, era seu ónus, nos termos do artigo 342º, n.º 2, do Código Civil, por serem factos impeditivos do direito do trabalhador, no caso concreto, das duas beneficiárias, à reparação pelo acidente de trabalho (nesse sentido Acordão do STJ de 21.03.2013, disponível in www.dgsi.pt).
Nestes termos e por todo exposto, concluímos pela responsabilidade agravada pela reparação do sinistro da Ré entidade patronal, nos termos do atrás citado art. 18º, nº 1, da Lei 98/2009 de 04/09, abrangendo indemnizações a título de danos não patrimoniais, cujos danos as AA. logrem demonstrar (…).”
Vista a citada fundamentação, avançando desde já a nossa conclusão, consideramos que falecem, salvo o devido respeito, os argumentos apresentados pelos Réus, não se vendo razões para não se concordar com entendimento sufragado pelo Tribunal a quo.
Na verdade, e em primeiro lugar, quanto aos argumentos baseados na alteração da matéria de facto por que pugnaram, mas cujo objetivo não conseguiram alcançar, porque assim foi, aqueles caem necessariamente pela base – desde logo o argumento de que o acidente não teve qualquer relação com trabalhos que iam ser executados pelo falecido Sinistrado, de remoção do entulho da demolição do telhado, tendo ocorrido antes do início desses trabalhos e para a sua realização aquele sabia que não precisava de subir para a cornija –, do que decorre, em conformidade, não ocorrerem razões para afastarmos a conclusão a que se chegou na sentença de que estamos perante um acidente de trabalho, como ainda, do mesmo modo, que inexistem factos provados passíveis de fundar uma qualquer sua descaraterização.
Não obstante a suficiência do que se fez constar da sentença para termos por respondidas as questões levantadas pelos Réus / recorrentes, para melhor se perceber a nossa posição diremos ainda o seguinte:
Em primeiro lugar para deixarmos claro que os argumentos dos Recorrentes, incluindo sobre o enquadramento legal do caso a respeito das medidas de proteção coletiva que se impunham, partem em geral de um pressuposto que não se verifica, assim o de que não estariam a ser realizados trabalhos em altura – a factualidade provada, como bem o afirmou o Tribunal a quo, dá real sustentação ao contrário, ou seja que os trabalhos ocorriam em altura, assim o que resulta nomeadamente dos pontos 9.º e 10.º da factualidade provada) –, sendo que, porque assim é, a respeito da invocação que fazem do artigo 56.º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil (aprovado pelo Decreto 41821, de 11 de agosto de 1958), importaria que tivessem nomeadamente em conta o que consta antes do seu artigo 61.º (“Sempre que se torne necessário ou vantajoso, serão montados andaimes para a demolição. § 1.º Os andaimes serão construídos completamente desligados da zona em demolição, e de modo a poderem resistir, dentro de limites razoáveis, a pressões resultantes de desmoronamentos acidentais. § 2.º São proibidos os andaimes no exterior das paredes sobre consolas, salvo se forem destinados à remoção de materiais leves que não ponham em perigo a estabilidade daquelas. § 3.º Não é permitido que os operários trabalhem em cima dos elementos a demolir, a não ser que os serviços de inspecção reconheçam a impossibilidade de o fazerem por outra forma.”), razão pela qual, e desde logo, sequer com base nesse regime teria fundamento a afirmação que fazem de que “não refere a necessidade de utilização de andaimes, guarda corpos ou arneses pela simples razão de que os produtos da demolição são descidos ou arreados de cima para baixo com recurso a cordas, cabos, roldanas, guinchos ou outros processos apropriados”.
Por outro lado, e em segundo lugar, também aliás sem esquecermos o que dissemos anteriormente e em particular o que resulta efetivamente da factualidade provada, ou seja, estando afinal em causa uma realidade diversa daquela de que partem os Recorrentes sobre a atividade que estava realmente a ser realizada no momento do acidente pelo Sinistrado – não propriamente de remoção de entulhos do solo e sim, diversamente, de limpeza das cornijas do edifício, sendo que a sua queda foi de uma altura de cerca de 4 metros –, importará também ter então presente, como se refere na sentença recorrida, o que se dispõe nos artigos 36.º a 42.º do DL. 50/2005, de 25 de fevereiro, dos quais resulta, diversamente do que sustentam, em face mais uma vez da realidade factual que se provou e não pois da que referem, os equipamentos de proteção, designadamente os coletivos, a que aludem, se impunham no caso, sendo que, diga-se também, sequer se percebe a razão por que fazem referência a que “é diferente uma escada de um andaime, por exemplo, ficando-se sem saber qual o equipamento de segurança a que se refere, se apenas o andaime ou todos eles, e qual a disposição ou regra de segurança efetivamente violada por parte da Ré”. De facto, tal dúvida foi esclarecida na sentença, quando nessa se fez constar que “ficou claro que os trabalhos de limpeza e remoção de entulho estavam a ser executados sem recurso a andaimes, guarda-corpos, não tendo sido ainda colocados à disposição dos trabalhadores arneses e capacetes (facto 15º)”, como ainda, depois de nessa mesma sentença se fazer referência aos artigos 36.º ao 42.º do DL. 50/2005 de 25.02 (mas penas para se dizer que nesses se mostram “elencados os equipamentos de trabalhos que deverão ser utilizados para trabalho em altura de modo a assegurar as condições de trabalho seguras, devendo ser dada prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual” e que “é regulado as técnicas de utilização das escadas, acesso e de posicionamento por cordas, utilização de andaimes de modo a minorar o risco de quedas e outro tipo de acidentes”), para se afirmar expressamente que, “em face do modo como estavam a ser executados os trabalhos de limpeza - sem utilizar qualquer equipamento de proteção individual e sem que existissem na obra medidas de proteção coletivas (andaimes, guarda-corpos), com o evidente conhecimento da entidade empregadora”. Ou seja, como facilmente dessa se extrai, dado o modo como estavam a ser realizados os trabalhos e local em que se encontrava o Sinistrado, se imporia, o que não era o caso, que existissem, para além do equipamento de proteção individual, medidas de proteção coletivas, fazendo-se aí referência a “andaimes” e “guarda-corpos” e não pois, desde logo, a quaisquer escadas – o que, acrescentamos nós, se essas estivessem a ser utilizadas, mas tal não resulta da factualidade provada, justificaria também que se tivesse em conta o que resulta em particular do artigo 38.º do mencionado diploma legal. Por decorrência também do que antes se concluiu, acompanhamos também a decisão recorrida quando afirma, com os fundamentos que da mesma se fizeram constar, assim diversamente do que defendem os Recorrentes, que estão verificados os pressupostos da responsabilidade agravada, nos quadros do artigo 18.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT).
Por último, apenas uma breve nota se deixa, pois que sequer foi dirigido qualquer argumento nos recursos dos Réus a essa matéria, para deixar claro que, não obstante resultar da factualidade provada que a Ré aqui recorrente era subempreiteira na obra, sendo empreiteira a sociedade comercial G…, Lda., tendo sido esta, aliás, que foi a responsável pela instalação dos andaimes, o que veio a ocorrer dois dias após a ocorrência do acidente (pontos 7.º e 27.º da factualidade) – o que, diga-se, parece ter justificado a afirmação constante da sentença de que não é possível afirmar que era da sua responsabilidade (e, ainda, do Réu) a implementação das medidas de segurança coletiva, nomeadamente, a colocação de andaimes e guarda-corpos –, que daí não resulta a desresponsabilização da referida Ré, enquanto entidade patronal, pois que, diversamente, a lei é clara e objetiva no sentido de que é ao empregador, em caso de violação das regras sobre a segurança, a higiene e a saúde no trabalho, que cabe reparar os danos provindos do acidente de trabalho de que haja sido vítima o trabalhador ao seu serviço – artigo 18.º, nºs 1 e 3, da LAT –, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assista quando essa violação seja imputável a um terceiro (artigo 17º, nºs 1 e 4, da LAT).[43]
Não obtendo, assim, sustentação os argumentos que os Réus/Recorrentes avançam em contrário nas conclusões (recurso principal e subordinado), improcedem, nos termos antes expostos, os recursos que apresentaram, principal e subordinado.

3.2. Recurso das Autoras
3.2.1. Questão do valor do salário auferido
Sustentam as Autoras / recorrentes, em face das conclusões apresentadas, o que concretizam designadamente na conclusão P), que, “em conformidade com a alteração pugnada quanto à matéria da retribuição que consta do ponto 4 dos factos provados, nos termos referidos nas precedentes conclusões e, por efeito da realização de meras operações aritméticas, devem ser fixados os valores que vêm peticionados pelas AA. em conformidade com os pedidos formulados na alínea D) - a) pontos iii e v e b) ponto iv da petição inicial”;.
Cumprindo apreciar, sem prejuízo do que diremos infra aquando da apreciação da questão levantada pelo Exmo. Procurador-Geral Ajunto no parecer emitido, porque a procedência da pretensão das Recorrentes tinha como necessário pressuposto que obtivesse provimento o recurso quanto à alteração por que pugnaram em sede de matéria de facto.
Sendo assim, porque não lograram as Recorrentes alcançar, pelas razões que então afirmámos, tal objetivo, improcede em conformidade, sem necessidade de outras considerações, o recurso nesta parte.

3.2.2. Questão dos valores fixados referentes a direito à vida e danos não patrimoniais sofridos por cada uma das Recorrentes
Numa segunda questão, sustentam as mesmas Apelantes, assim na conclusão R), que se encontram desajustados e subavaliados (“à luz dos valores que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores – conforme resulta da vasta lista de arestos citados”) os valores que foram atribuídos pela perda do direito à vida e pelos danos não patrimoniais sofridos por cada uma das Autoras, devendo antes fixar-se em €100.000 (€50.000 para cada uma delas) a compensação devida pela perda direito à vida e em €50.000€ (25.000€ para cada uma delas) a compensação pelos danos sofridos pela morte do seu familiar (respetivamente, marido e pai).
Pugnando os Réus pela improcedência do recurso, no que são acompanhados pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto – sem prejuízo da questão que levanta no parecer emitido –, cumprindo-nos apreciar, fez-se constar da sentença recorrida, no que aqui importa, o seguinte:
“(…) Analisemos agora os pedidos formulados por cada uma das AA. a título de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do sinistrado e sofridos pelas próprias em consequência da morte daquele.
Reclamam cada uma, o pagamento de, respetivamente, de € 50.000,00 quanto ao primeiro dano invocado e € 25.000.00 quanto ao segundo dano invocado.
No que concerne aos danos não patrimoniais, comecemos por apreciar o dano morte ou perda do direito à vida.
O dano da morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros.
Impõe-se, pois, que essa lesão implique a indemnização do dano sofrido. E, efetivamente, a perda do direito à vida por parte da vítima da lesão constitui, nos termos do n.º 2 do art. 496º, um dano não patrimonial autónomo, suscetível de reparação pecuniária.
Assim, no quantum compensatório pela perda do direito à vida importará ter em conta a própria vida em si (bem supremo e base de todos os demais) e a própria vítima – vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.09.2007, disponível em www.dgsi.pt
O montante da indemnização – que cabe às AA, não por via sucessória, mas por direito próprio, nos termos do preceito citado, deve, também aqui, ser calculado segundo critérios de equidade, por apelo às seguintes circunstâncias: a idade da vítima, a saúde, o estado civil, os projetos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia-a-dia, incluindo a sua situação profissional e sócio-económica, como também a sua vontade e alegria de viver.
No caso, tendo em conta que a vítima tinha 57 anos de idade, ainda com vontade e alegria de viver: sem se lhe conhecerem doenças, era pessoa activa que trabalhava como servente da construção civil, vivia com a mulher, com quem era casado há 24 anos e a filha maior, estudante do ensino superior. O sinistrado juntamente com as AA constituíam uma família unida e feliz.
Tendo em consideração a jurisprudência actual do Supremo Tribunal de Justiça sobre o valor dano morte, no sentido de que a indemnização deve ser significativa e não meramente simbólica, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de compensação, conclui-se in casu por uma indemnização de €50.000,00 repartir em partes iguais pelas AA, para ressarcir a perda do direito à vida do sinistrado F… – artigo 496º, nº 2 do CC.
Finalmente, importa apreciar o pedido formulado pelas AA, no montante de € 25.000,00, cada a título de danos não patrimoniais próprios.
O artigo 496º, nº1 do Código Civil, admite a indemnização dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito.
Não se concretiza na disposição legal os casos de danos não patrimoniais que justifiquem uma indemnização. Refere-se tão só que esses danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Significa isto que cabe ao tribunal, no caso concreto, dizer se o dano é grave e se merece ou não a tutela do direito.
Conforme refere Bruno Bom Ferreira, num artigo publicado na Verbo Jurídico, sob o tema “A problemática da titularidade da indemnização por danos não patrimoniais em direito civil”, pág. 10:
«A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (essa apreciação deve ter em linha de conta as circunstâncias do caso concreto), devendo abstrair-se dos fatores subjetivos (“de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada”)».
Na concreta situação dos autos, resultou provada a estreita ligação física e afetiva que o sinistrado mantinha com o respetivo cônjuge e filha que, por força do falecimento do sinistrado, respetivamente, marido e pai daquelas, mergulharam numa profunda dor e saudade que se mantém até hoje.
Afigura-se-nos que estes danos que traduzem um intenso sofrimento, merecem a tutela do direito, tendo os autores, enquanto cônjuge e filha, direito ao seu ressarcimento, ao abrigo do nº2 do artigo 496º do Código Civil.
Mostra-se a nosso ver justa e adequada a indemnização de € 17.500,00 a atribuir em a cada uma.
Sobre as indemnizações fixadas a título de danos não patrimoniais, porque atualizadas nesta data, são devidos juros apenas a partir da data da decisão, à taxa legal de 4%, até integral pagamento da dívida. (…)”
Impondo-se-nos analisar e ponderar a questão levantada, bem como a resposta que a essa foi dada em 1.ª instância, desde já damos nota da circunstância de estar consolidada na jurisprudência a orientação de que, em caso de morte, podem ser atendidos, além de danos patrimoniais, o dano perda do direito à vida, o dano sofrido pela vítima no lapso temporal que antecedeu o seu falecimento e os danos próprios sofridos pelos familiares.
No que à tutela do direito à vida se refere, material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da nossa ordem jurídico-constitucional – reconhecido no artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa –, com tutela também expressamente reconhecida no artigo 70.º do CC, com relativa facilidade se compreende, em conformidade, que da lesão desse direito, absoluto, deva resultar a obrigação de indemnização por parte do responsável pela lesão. Nesta conformidade, como bem se afirma no recente Acórdão desta Secção do Tribunal da Relação do Porto de 23 de junho de 2021[44], com recurso a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que cita, daí decorre que, “pela morte da vítima, e sem prejuízo do direito de indemnização por danos não patrimoniais suportados em vida pelo falecido, a jurisprudência, sobretudo a partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Março de 1971[7], vem reconhecendo um direito de indemnização autónomo, nos termos consignados no art. 496º, do CC, abarcando, por um lado, a indemnização pela perda da vida, e, por outro, a indemnização pelos danos não patrimoniais que a morte é suscetível de provocar aos titulares do direito referidos nos nº2 e 3, daquele normativo.[8]”.
Como também foi entendido no citado Acórdão, mais uma vez com apelo a Jurisprudência STJ – ainda que, na aferição do quantum a atribuir, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deva “apreciar, essencialmente, se foram observados os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adotados, de molde a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade, dando assim satisfação ao comando legal do art. 8º, nº3, do CC” –, da análise da referida jurisprudência “colhe-se a orientação de que a indemnização do dano pela perda do direito à vida se situa, em regra, em valores que oscilam entre os € 50.000,00 e os € 80.000,00 (v., entre outros, os acs. do STJ de 4/6/2020, processo nº 2732/17, de 11.4.2019, processo nº 465/11.5TBAMR.G1.S1, de 21.3.2019, processo nº 20121/16.7T8PRT.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e a jurisprudência aí citada)”.
Partindo-se, pois, desse pressuposto, verifica-se que a sentença recorrida fixou a analisada indemnização no montante global de €50.000 e em €25.000 para cada uma das Autoras, sendo que, divergindo do assim decidido, defendem estas que o valor adequado será o de €100.000 (€50.000 para cada uma delas).
Volvendo então ao caso que se aprecia, resultando da matéria de facto provada que o Sinistrado, à data do seu falecimento, tinha 56 anos de idade (nasceu em 21 de julho de 1961 e o acidente ocorreu no dia 23 de maio de 2018), tendo agora em conta o antes referido e os parâmetros fornecidos pela Jurisprudência e, ainda, quanto à sua aplicação, o Acórdão desta Secção antes mencionado, no qual foi considerado, para uma vítima que tinha 52 anos de idade, ter como referência o montante global de €60.000,00, mas, aí, estando provado, ainda, que o sinistrado era uma pessoa saudável, tranquila, que vivia com alegria e que era estimada por familiares –, no caso, tendo o Sinistrado 57 anos de idade aquando do óbito e perante um quadro factual sem dúvidas menos esclarecedor a respeito do sentimento desse perante a vida – apenas se provou que constituía com as Autoras uma família unida e feliz –, consideramos ajustado fixar, como adequado, porque justo e equitativo, o montante global de €55.000 e, em conformidade, de €27.500 para cada uma das Autoras / recorrentes.
Por sua vez, agora a propósito dos danos não patrimoniais (próprios) sofridos pelas Autoras, que a sentença fixou em €17.500,00 em relação a para cada uma delas, e que aquelas defendem dever ser, diversamente, de €25.000, resultando da factualidade provada, com relevância para a concretização, que as Autoras e o sinistrado constituíam uma família unida e feliz, que ao terem conhecimento do sinistro, mergulharam numa profunda dor, que à medida que o tempo ia decorrendo, caíram num profundo desgosto, durante mais de dois meses, perderam a alegria de viver, andavam ansiosas e angustiadas com a situação do marido e do pai, que com a morte do sinistrado mergulharam numa profunda dor e saudade que se mantém até hoje (pontos 20.º a 23.º da factualidade), afiguram-se-nos equilibrados os montantes peticionados, pelo que, a título de indemnização pelos mencionados danos não patrimoniais sofridos pelas Autoras /recorrentes, se fixa, para cada uma delas, a quantia de €25.000.
Por decorrência do exposto, procedendo o recurso nessa parte, impõe-se alter a sentença, em conformidade, fixando-se em €55.000 o valor global da indemnização pelo direito à vida (€27.500 para cada uma das Autoras) e em € 25.000, para cada uma delas, o a indemnização pelos demais danos não patrimoniais peticionados.

3.2.3. Questão da responsabilização ou não do Réu, pessoa singular
Por último, dirigem as Autoras o recurso, a que destinam as conclusões S) a V), à sentença proferida, na parte em que absolveu o Réu D… (sócio gerente da Ré sociedade).
No essencial, como argumentos para alterar o decidido nesta parte, referem que, tendo o acidente de trabalho ocorrido por falta da implementação em obra dos elementos coletivos de segurança exigidos e sem que tivessem sido facultados pela entidade patronal ao sinistrado, seu trabalhador, não pode deixar de considerar-se que os deveres da entidade patronal se constituem como obrigações de quem essa administra, para mais tratando-se de uma sociedade unipessoal, sendo dela gerente o Réu – tanto por aplicação do disposto nos artigos 64.º, 73.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), como pelo disposto no artigo 18.º, n.º 1 da LAT (decorre da responsabilidade funcional como gerente e da qualidade de representante) –, pelo que o Réu é responsável solidário com a Ré na obrigação de pagamento de todos os valores em que esta seja condenada, devendo ser condenado da mesma maneira – sendo indiferente que a implementação dos elementos coletivos de segurança na prevenção de acidentes de trabalho coubesse ao empreiteiro e não à Ré, já que do mesmo modo que na sentença se considerou que sempre seria dever desta zelar pelo cumprimento de tal implementação em ordem a prevenir acidentes de trabalho dos seus trabalhadores, igual obrigação, inerente ao exercício do cargo de único gerente, cabia ao Réu, posto que era este quem teria que previamente saber se a obra reunia as condições de segurança, de modo a impedir (caso aqueles não se encontrassem implementados, como não estavam), que o trabalhador executasse as tarefas inerentes à sua função em obra, incluindo facultar-lhe os elementos individuais de segurança que à patronal incumbia colocar-lhe à disposição, evitando com o isso o sinistro que veio a sofrer, de cujas lesões lhe sobrevieram a morte.
Pronunciando-se os Réus pela improcedência do recurso, no que são acompanhados pelo Ministério Público no parecer emitido nesta Relação, tendo em vista a apreciação, constata-se que da sentença recorrida se fez constar o seguinte (transcrição):
“(…) Cremos porém, não existir factualidade suscetível de imputar ao Réu singular, D…, a responsabilidade do acidente, enquanto representante legal da 1ª Ré, não obstante ser o único sócio-gerente.
Nos termos do artigo 18º da Lei 98/2009, de 04.09 quando o acidente tiver sido provocado pelo representante da empregadora ou resulta da falta de observação das regras de segurança e saúde no trabalho, pode o mesmo ser responsabilizado pela totalidade dos prejuízos, patrimoniais ou não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares nos termos gerais.
Embora o representante legal da E…, Unipessoal, Lda seja individualizável, não cremos, em face da factualidade apurada e também pela não demonstrada [alínea h) dos factos não provados] ser possível apurar qualquer responsabilidade da sua parte pela ocorrência do acidente, nomeadamente, porque não é possível afirmar que era da responsabilidade de nenhum dos RR a implementação das medidas de segurança coletiva, nomeadamente, a colocação de andaimes e guarda-corpos.
O sinistro decorreu numa obra em que a Ré era subempreiteira conforme resulta do contrato junto aos autos a fls. 27 e ss.
Resulta da cláusula 12º do referido contrato que o subempreiteiro deve distribuir e obrigar todo o pessoal empregue na obra, ao uso obrigatório de todo o equipamento necessário, tal como capacete, luvas, máscaras, óculos protetores, auriculares, calçado adequado ou outros, nos termos regulamentares, pugnando sempre, através das chefias, pela sua efetiva utilização.
Esta obrigação decorre mesmo da lei, conforme já mencionamos – artigo 15º do Dl. 102/2009, de 10.09, ou seja, incumbe à entidade patronal que os seus trabalhadores executam as suas funções em estrito cumprimento das regras de segurança. E foi por não ter assegurado que os trabalhos e, nomeadamente, o adstrito ao sinistrado, decorriam dentro das regras de segurança que entendemos ser a mesma responsável nos termos do também já citado artigo 18º.
Diferente, é a situação de impender sobre ela, ou sobre o seu representante legal - imputação que é feita a este - a implementação em obra das medidas coletivas de proteção, nomeadamente, os andaimes e guarda-corpos.
Não ficou demonstrado que essa obrigação incumbisse à Ré sociedade e muito menos ao Réu, enquanto representante daquela (tanto assim é, que a seguir ao acidente, os andaimes foram colocados em obra pela empreiteira geral – G…, Lda).
Sendo a sua responsabilidade fundada no incumprimento dessa obrigação – de implementação dos meios necessários à proteção dos trabalhadores e cuja falta foi causal do acidente, os pedidos deverão improceder quanto ao mesmo. (...)
Apreciando, diremos o seguinte:
Desde logo, para evidenciarmos que a resposta a esta questão, mas com um sentido não propriamente coincidente com o que parece ser retirado pelas Autoras / aqui recorrentes, pode já ser encontrada no Acórdão proferido nos autos por esta Secção, de 17 de fevereiro de 2020[45], que, revogando a decisão que havia sido proferida em 1.ª instância, julgou o Réu pessoa singular parte legítima.
Na verdade, como nesse se fez então constar, não alterando o atual artigo 18.º o entendimento que vinha sendo sufragado anteriormente quanto ao conceito representante, “o qual abrangerá tanto o legal representante da sociedade empregadora, como outras pessoas físicas que, de algum modo, actuem em representação daquela entidade”, este preceito veio todavia “estender a responsabilidade pela reparação infortunística não apenas à entidade empregadora, mas também aos próprios representantes, nestes se incluindo o legal representante do empregador que seja pessoa colectiva e as pessoas incluídas no conceito alargado de representante [bem como à entidade contratada pelo empregador e à empresa utilizadora de mão de obra] quando o acidente tiver sido por eles provocado ou quando resulte da falta de observação, pelos mesmos, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, prevendo-se no preceito a responsabilidade individual ou solidária de ambos” (citação). Com base nesse regime, como mais uma vez se afirmou no mesmo Acórdão, sendo isso, como nesse se refere, “que determinou a decisão da sua ilegitimidade, foi que as AA. teriam alegado essa eventual responsabilidade de forma conclusiva”, no entanto, como então se afirmou também, “tal não se prende com a legitimidade, enquanto pressuposto processual da acção, mas sim com o próprio mérito da acção que, a ter-se como boa a argumentação da decisão recorrida, levaria à improcedência da acção quanto ao mencionado Réu, mas não à sua ilegitimidade.”
Ora, prendendo-se sem dúvidas a questão colocada com o mérito da ação, como bem se afirmou no aludido Aresto, devendo então ser na sentença, em face do que resultou provado, que se impunha verificar se o Réu, pessoa singular, dada a sua qualidade de único gerente da entidade patronal, poderia ou não ser responsabilizado, enquanto representante dessa, nos quadros do artigo 18.º da LAT, assim o fez o Tribunal a quo, justificando, nos termos antes citados, a solução a que chegou, assim de que aquele não poderia ser responsabilizado.
E, assim o consideramos, de um modo que temos por ajustado.
Na verdade, como aí se afirmou, a factualidade provada, a respeito da violação de regras de segurança (coletiva) que se consideraram verificadas (“a implementação em obra das medidas coletivas de proteção, nomeadamente, os andaimes e guarda-corpos”), não ficou sequer demonstrado que “essa obrigação incumbisse à Ré sociedade e muito menos ao Réu, enquanto representante daquela (tanto assim é, que a seguir ao acidente, os andaimes foram colocados em obra pela empreiteira geral – G…, Lda)”, sendo que, nesse contexto – e não pois com base em eventual violação de deveres genéricos de gestão ou sobre adequada representação, mas que não têm real apoio na factualidade provada, nomeadamente o que se prevê nas normas do CSC indicadas pelas Recorrentes –, como também se referiu na sentença e obtém a nossa concordância, “sendo a sua responsabilidade fundada no incumprimento dessa obrigação – de implementação dos meios necessários à proteção dos trabalhadores e cuja falta foi causal do acidente, os pedidos deverão improceder quanto ao mesmo”. Dito de outro modo, não resulta da factualidade, o que seria pressuposto, que o acidente, para além de não ter sido provocado por um qualquer ato seu, resulte também da violação, pelo mesmo, de um qualquer dever de implementação das regras sobre segurança que, nos termos que antes afirmámos, justificaram a atribuição da responsabilidade agravada ao empregador, sendo que essa qualidade apenas pode ser atribuída à Ré e não, pois, ao Réu.
Em face do exposto, claudicando os argumentos avançados, improcede o recurso nesta parte.

4. Intervenção oficiosa / artigo 74.º do CPT
No parecer que emitiu, sustentou o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, que, oficiosamente, em face do regime estabelecido no artigo 74.º do CPT, aplicável ao caso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis de leis, assim o previsto no artigo 18.º da LAT, deve a sentença ser alterada em sede de recurso: - Cabendo “à viúva: - a pensão anual e vitalícia, com inicio em 30 de julho de 2018, de 5.883,61€ (9.806,02x60%), não havendo qualquer alteração na idade de reforma); e, - à filha a pensão anual e temporária, até perfazer 25 anos, e desde 30 de julho de 2018, de 3.922,41%€, (9.806,02€x40%), (que reverterá para a mãe quando esta atingir 25 anos ou cessar o recebimento”; - “Quanto à indemnização por Incapacidade Temporária Absoluta – ITA – no valor global de 1.800,00€ (RA:365x67 dias :2), enquanto únicas herdeiras do sinistrado falecido, cabe, a cada uma delas (…): - à viúva a quantia de 900,00€, e, - à filha a quantia de 900,00€.”
Cumprido que se entende ter sido o contraditório, como consideramos ser devido antes da nossa pronúncia – tendo sido levantada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, foram as partes notificadas desse parecer, podendo, pois, caso o entendessem, como o fizeram as Autoras, exercer na resposta a esse parecer o contraditório –, diremos o seguinte:
Em primeiro lugar, para salientarmos que, em face da questão da responsabilidade agravada e seus pressupostos ter sido objeto do presente recurso, daí resulta que sobre a mesma não incide o caso julgado e, por consequência, também não se formou relativamente às demais questões ou sub-questões, como o são os valores da indemnização por incapacidade temporária e da pensão, que são mera consequência daquela[46].
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de dezembro de 2018[47], que com a devida vénia acompanhamos (citação):
“(…) O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no art. 59º, nº 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa.
Positivando este direito constitucional, estabelece o art. 283º, nº 1 do Código do Trabalho: “[o] trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional”, remetendo o art. 284º a regulamentação da referida reparação para legislação específica.
Preceitua por seu turno o art. 78.º da LAT: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.”
É por isso que nos termos do art. 114º do CPT, o acordo obtido na fase conciliatória do processo apenas é homologado pelo juiz “se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais”.
E que, estando “em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável” (art. 127º, nº 1 do CPT).
Estipula o art. 74º do CPT “[o] juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.
Este dever oficioso do juiz, privativo do processo laboral, nos termos do qual “[o] tribunal pode movimentar-se na acção, sem que a limitação dos termos em que foi proposta ou contestada constitua impedimento a fazer coincidir o que é direito” – pretensão substantiva – “com a intenção do demandante em pedir tudo a quanto tem direito” – pretensão processual – “eventualmente condenando em conformidade” ([3]), contrapõe-se ao princípio do dispositivo estabelecido no art. 264º do CPC, pese embora também este não seja absoluto, mesmo no regime processual civil, como resulta da ressalva do art. 608º, nº 2, in fine, do mesmo diploma. (…)
Como é referido no acórdão desta 4ª Secção de 30.09.2004 ([5]) «[t]êm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho do direito ao salário na vigência do contrato, considerando que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).
Nestes casos, a actividade do julgador não deve confinar-se ao pedido formulado pelo autor no seu aspecto quantitativo e qualitativo, pois tal equivaleria a frustrar o carácter público e a finalidade social daquelas leis pela aceitação tácita e implícita da sua renunciabilidade. Com o dever que impõe ao juiz de definir o direito material fora, ou para além, dos limites constantes do pedido formulado, o legislador pretendeu reduzir ao mínimo aquele risco».
“O direito de reparação por acidentes de trabalho é um direito que a lei quer não só que exista, como também que seja exercido. É nestes direitos que a vontade das partes se torna irrelevante, quer no plano prático, quer no plano jurídico.
O regime excepcional do artigo 74º do CPT só se justifica, realmente, considerando que a condenação em quantidade superior ao pedido, ou em objecto diverso dele, tem em vista o suprimento pelo juiz.
(…) Esta possibilidade de o magistrado judicial condenar para além do pedido, resulta da circunstância nada despicienda de estarmos na presença de direitos imbuídos de uma natureza muito específica. Respeitam a aspectos de assistência na doença e na invalidez. Buscam, portanto, a sua indisponibilidade absoluta em razões de interesse e de ordem pública, isto é, em interesses supra-individuais.
Destarte, é da mais elementar justiça material que, se o interessado não actua, exercendo os direitos com vista à indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional (reitere-se, direitos de exercício necessário), o juiz se lhe deve sobrepor, atribuindo-lhe e arbitrando-lhe as indemnizações resultantes de previsão legal no ordenamento jurídico-laboral nacional” ([6]).
Temos assim por assente que, tratando-se, como se trata de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.
Por consequência, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão sobre a matéria de facto e sobre a culpa da empregadora, ainda que a questão daqueles valores não tivesse sido suscitada, como foi, pelo Ministério Público no âmbito do disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, e apesar de nem a A. nem o MºPº terem apelado, deveria a Relação ter fixado a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte de acordo com as normas legais e os factos provados, nos termos dos arts. 74º, do CPT, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, ambos do CPC, estes “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT. (…)”
Respondendo a fundamentação transcrita, integralmente, à questão que aqui se analisa, assim em termos de estar fundada a nossa pronúncia, nos termos avançados no parecer do Ministério Público, de seguida procederemos, em conformidade com o regime legal aplicável, à necessária concretização.
Da sentença recorrida fez-se constar:
“(…) - O sinistrado faleceu no dia 29 de julho de 2018, com 57 anos;
- À data, era casado com a A. B… e tinha uma filha, C…, com 21 anos e a frequentar o ensino superior no curso de Economia da Universidade …;
- À data do acidente, auferia a retribuição anual corresponde a € 9806,02 [(€600 x14m)+ (€ 5,81x22dx11m)].
Desde logo, decorrente da morte do sinistrado, é devida uma pensão anual destinada a reparar aquela a fixar de acordo com o disposto no artigo 18º, nº 4, al. a) da Lei 98/2009, de 04.09 e que deverá equivaler à sua retribuição anual.
A respetiva pensão anual é devida desde 30 de julho de 2018, dia a seguir ao falecimento do sinistrado (artigo 56º, nº 2 da LAT) e deverá ser repartida pelos beneficiários de acordo com o disposto no artigo 18º, nº 5; 57º, nº 1; 59º, nº 1 e 60º, nº 1, al. c) e nº 2 do mesmo diploma.
Em face dos factos provados e supra descritos, a filha do sinistrado reúne as condições para ter direito a uma pensão correspondente a 20% da retribuição do sinistrado, já que é filha única, o que equivale ao montante anual de € 1961,20, desde 30 de julho de 2018 [artigo 61º, nº 1, al. c) e nº 2]. Tal pensão será devida até aos seus 25 anos, enquanto aquela frequentar o ensino superior ou equiparado, a ser paga anualmente em 14 meses, sendo duas vezes nos meses de Junho e Novembro de cada ano, até ao 3º dia de cada mês.
A viúva do sinistrado tem direito a uma pensão também desde 30 de julho de 2018 correspondente a 30% da sua retribuição até perfazer a idade da reforma por velhice (e que neste momento se situa nos 66 anos e 5 meses), ou seja, € 2.941,81 e 40% a partir daquela idade, ou seja, € 3.922,41. (…)”
Ou seja, vista a citada fundamentação e cálculos efetuados, não obstante ter-se referido que, “decorrente da morte do sinistrado, é devida uma pensão anual destinada a reparar aquela a fixar de acordo com o disposto no artigo 18º, nº 4, al. a) da Lei 98/2009, de 04.09 e que deverá equivaler à sua retribuição anual”, no entanto, como bem o salienta o Ministério Público, esquecendo-se afinal tal afirmação e comando legal, os cálculos efetuados de seguida esse comando não tiveram presente, aplicando-se antes o regime geral que resulta dos artigos 59.º e 60.º da LAT, ou seja, calculando-se a pensão, respetivamente, tendo por referência a retribuição do sinistrado, para a viúva em 30 % e para a filha em 20%. Como se refere no aludido parecer, “a norma legal aqui aplicável é o próprio artigo 18º da LAT”, sendo que “os artigos 59º e 60º da LAT, preveem o cálculo das pensões para a hipótese de acidente de trabalho de causa acidental, sem culpa de quem quer que seja”.
Sendo deste modo, por imperativo legal, assim o disposto no artigo 18.º, n.ºs 4, alínea a), e 5 – “4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por actuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes: a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição; (…) 5 - No caso de morte, a pensão prevista no número anterior é repartida pelos beneficiários do sinistrado, de acordo com as proporções previstas nos artigos 59.º a 61.º” –, os valores das pensões devidas terão de ser, respetivamente – provando-se que o sinistrado auferia “a retribuição ilíquida mensal de 600€ x 14 meses e o subsidio de alimentação diário de € 5,81” (ponto 4.º da factualidade), o que se traduz numa remuneração anual correspondente a €9806,02 [(€600 x14m)+ (€5,81x22dx11m)] –, com bem se refere no parecer emitido, de €5883,61 para a viúva e de €3922,41 para a filha, sendo que quando caducar o direito a pensão por parte da última (filha), a parte desta reverte para a primeira (viúva), que passará então a receber uma pensão correspondente à totalidade da retribuição anual auferida pelo seu falecido marido (n.º 6 do artigo 18.º: “No caso de se verificar uma alteração na situação dos beneficiários, a pensão é modificada, de acordo com as regras previstas no número anterior”).
Do mesmo modo, como mais uma vez o salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, também a indemnização por Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) – que é paga em relação a todos os dias, incluindo os de descanso e feriados, e começa a vencer-se no dia seguinte ao acidente, sendo o pagamento processado mensalmente (artigos 50.º/1 e 72.º/3, da LAT) – terá de ser oficiosamente alterada. De facto, sofrendo o sinistrado em consequência do acidente 67 dias de ITA, contados desde 23.05.2018 a 29.07.2018, porque nos termos do disposto no artigo 18.º, n.º 4, alínea a), tem o direito a receber uma indemnização diária igual à retribuição, o que se traduz num total de €1.800,00 (RA:365x67 dias), tem cada uma das Autoras direito (enquanto únicas herdeiras do sinistrado, como se salienta, nesta parte bem, na sentença) a €900,00 (€1.800,00 : 2).
*
Concluindo, a sentença recorrida será, em conformidade, alterada nos termos que anteriormente se afirmaram.
*
No que se refere a responsabilidade pelas custas: a referente aos recursos interpostos pelos Réus (principal e subordinado), impende sobre os mesmos; a referente ao recurso interposto pelas Autoras, impende sobre essas e os Réus na proporção de 2/3 para as primeiras e 1/3 para estes últimos (artigo 527.º do CPC).
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC), da responsabilidade exclusiva do relator:
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Social da Relação do Porto:
1. Quanto ao recurso interposto pelas Autoras, improcedendo na parte dirigida à impugnação da matéria de facto, da sua parcial procedência no âmbito da aplicação do direito, mas também por intervenção oficiosa desta Relação, mantendo-a no mais, em alterar a sentença recorrida, assim o que consta do seu dispositivo quanto à condenação da Ré E…, Lda., contante da alínea C), que será substituído pelo presente acórdão, em que se decide o seguinte (sublinhando-se o que é alterado neste presente acórdão):
«C) Condena-se a Ré E…, Lda., a pagar:
I. à Autora B…:
i. €27.500,00€ (vinte e sete mil e quinhentos euros) de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
ii. €25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
iii. €900,00 (novecentos euros) devidos pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado F…, acrescidos de juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;
iv. 2830,73€ a título de subsídio de morte do marido, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
v. desde 30 de julho de 2018, a pensão anual e vitalícia correspondente a 60% da retribuição do sinistrado, ou seja, de €5883,61 (cinco mil oitocentos e oitenta e três euros e sessenta e um cêntimos), acrescidos os correspondentes juros de mora desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida, passando a pensão a corresponder ao total daquela retribuição no momento em que caducar o direito à pensão por parte da sua filha, afirmando infra no ponto II, v);
vi. 1.887,72€ a título de despesas com o funeral e trasladação, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida.
II. à Autora C… (filha):
i. €27.500,00€ (vinte e sete mil e quinhentos euros) de danos não patrimoniais pela perda do direito à vida do seu falecido pai, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
ii. €25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) de danos não patrimoniais sofridos pela própria em consequência da morte do pai, acrescidos de juros desde a presente data até integral pagamento da dívida;
iii. 2.830,74€ a título de subsídio por morte do pai, acrescidos de juros desde a citação até integral pagamento da dívida;
iv. €900,00 (novecentos euros) devidos pelo período da incapacidade temporária e absoluta do malogrado F…, acrescidos de juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;
v. pensão correspondente a 40% da retribuição do sinistrado, no montante anual de €3922,41 (três mil novecentos e vinte e dois euros e quarenta e um cêntimos), desde 30 de julho de 2018 e até aos seus 25 anos, enquanto frequentar o ensino superior ou equiparado, a ser paga anualmente em 14 meses, sendo duas vezes nos meses de Junho e Novembro de cada ano, até ao 3º dia de cada mês, acrescidos dos correspondentes juros desde a data do respetivo vencimento até integral pagamento da dívida;»

2. Em declarar totalmente improcedentes os recursos interpostos pelos Réus, principal e subordinado.

Responsabilidade pelas custas: as referentes aos recursos interpostos pelos Réus (principal e subordinado), impende sobre os mesmos; as referentes ao recurso interposto pelas Autoras, impende sobre essas e os Réus na proporção de 2/3 para as primeiras e 1/3 para estes últimos.

Porto, 18 de outubro de 2021
(assinado digitalmente)
Nelson Fernandes
Rita Romeira
Teresa Sá Lopes
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[1] Relatora Desembargadora Maria Celina de Jesus de Nóbrega, in www.dgsi.pt.
[2] Como aí se refere expressamente, “tendo as partes, na tentativa de conciliação, aceitado o acordo promovido pelo Ministério Público, que foi homologado pelo Juiz e já transitou em julgado, tal implica que ficaram definitivamente fixados os direitos e obrigações de cada uma, o que impede que o sinistrado, posteriormente, proponha acção a invocar que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da empregadora e reclame indemnização por danos não patrimoniais, sem alegar a existência de fundamentos de anulação do acordo ou o conhecimento superveniente dos factos integradores da culpa da empregadora”
[3] apenas consta:
Com base nestes pressupostos de facto e ao abrigo do disposto no artº. 57, nº.1 al.a) e c), Artº 59 nº 1 al. a) da Lei 98/2009, de 04.09, reclama o seguinte:
Para si a pensão anual e vitalícia de 3.990,00€, devida desde o dia 30.07.2018, dia seguinte ao da morte, e actualizável a partir da idade da reforma, calculada com base no salário já referido e nos termos do Artº 59 nº 1 al. a) da Lei 98/09 de 04/09.
A título de reparação por despesas de funeral e com transladação a quantia de 1.887,72€.
A título de subsídio por morte a quantia de 2.830,74€, nos termos do artº. 65, nº.1,e 2 al.a) da mesma lei.
A título de ITA a quantia de 1.709,17€ (de 24.05.2018 a 29.07.2018 = 67 dias).
Finalmente a quantia de 30,00€ de transportes a este Tribunal.
Para a sua filha:
A pensão anual e temporária de 2.660,00€, devida desde o dia 30/07/2018, dia seguinte ao da morte, nos termos do artº.57, nº.1, al.c) da Lei 98/2009, até perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário, curso equiparado ou o ensino superior.
A título de subsídio por morte a quantia de 2.830,74€ cfr. Artº.65, nº.1,e 2 al.a) da mesma Lei. (…)”
[4] A tramitação desta fase, tendo em vista alcançar tal objetivo, compreende três fases, a primeira de instrução (tendo em vista a recolha e fixação de todos os elementos necessários à definição do litígio, de modo a indagar sobre a “(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo suscetível de ser homologado – artigos 104.º, n.º 1, 109.º, e 114.º do CPT), uma segunda que se consubstancia na realização do exame médico singular (devendo o perito médico “indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” – artigos 105.º e 106.º do CPT) e, finalmente, uma última, com a realização da tentativa de conciliação, presidida pelo Ministério Público, com o objetivo primordial de ser obtido acordo suscetível de ser homologado depois pelo Juiz – artigo 109.º, do CPT) – Seguindo-se de muito perto o Acórdão desta Relação e Secção de 18 de Dezembro de 2018 (APELAÇÃO n.º 3992/16.4T8AVR.P1, relator Desembargador Jerónimo Freitas, com intervenção do aqui relator e 1.ª adjunta), que por sua vez faz apelo a João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts..
[5] A segunda fase, que ao caso que se aprecia não importa, de natureza contenciosa, não já obrigatória, decorre perante o juiz/tribunal.
[6] Artigo 74.º do CPT.
[7] De facto, nos casos de falta de acordo, face ao estatuído nesse preceito, deve constar nos autos o seguinte: Consignação dos factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve acordo ou não acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída
[8] Como nota Alberto Leite Ferreira, “com o deflagrar do evento reativa-se, desde logo, a responsabilidade, até então dormente, da entidade patronal e da seguradora. Se assim é está naturalmente indicado que o responsável, sempre que para isso esteja habilitado, tome posição definida e concreta perante aqueles factos, com o que se alcança um duplo objetivo:
1º - Reduz-se o litígio àquelas questões acerca das quais não foi possível obter o acordo das partes, isto é, àqueles pontos que hão-de ser objeto da ação propriamente dita (fase contenciosa) … 2º - Fornece-se ao juiz os elementos necessários à fixação de pensões ou indemnizações provisórias sempre que seja caso disso…”. O que se diz para o responsável é válido para os beneficiários
[9] A título meramente exemplificativo, refere-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 06-03-2002, que, “se durante a fase conciliatória a questão do direito do sinistrado a indemnização por danos morais, não foi equacionada, nem se hipotizou, nem discutiu que o acidente tivesse ocorrido por culpa da entidade patronal, não pode agora o recorrente, pretextar a causa de pedir e formular, com base nela, o pedido de condenação da co-ré patronal numa quantia a titulo de danos morais.” – Acórdão da Relação do Porto de 07.09.2015, proc. 628/14.1TTPRT.P1.
[10] Como o dissemos, do regime legal vigente resulta que a atividade do juiz está vinculada à verificação sobre se o caso submetido à sua apreciação atendeu aos elementos que porventura resultem do processo, sendo que, aliás, existe um dever de conhecimento oficioso, por estar em causa a aplicação de preceitos inderrogáveis – em que como se sabe a condenação pode até exceder ou ir além do pedido, como ocorre com os acidentes de trabalho, matéria subtraída à disponibilidade das partes – artigo 12.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro (LAT), como ainda, que o dever de adequada instrução dos autos impõe-se expressamente também ao Ministério Público, sobre a direção do qual corre, como se disse, a fase conciliatória, bastando para o efeito ter presente o que se dispõe no artigo 104.º do CPT, em particular o seu n.º 1, ao estabelecer que “O Ministério Público deve assegurar-se, pelos necessários meios de investigação, da veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes, para os efeitos dos artigos 109.º e 114.º”.
[11] Em que se dispõe: “É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
[12] Cf. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pág. 92/93
[13] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 387
[14] In Comentário ao Código de Processo Civil, II, pág. 507
[15] No mesmo sentido, com idêntica relevância, Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183) quando escreveu: “Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
Ainda:
- Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 393), referindo que “Se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”;
- Anselmo de Castro (in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 134): “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º)”. Porém, depois de algumas reticências relativamente à aplicação do disposto no art.º 666.º a todas as decisões, acrescentou que aquela construção “não tem sequer sentido quanto àquelas nulidades de que o juiz não pode conhecer oficiosamente (todas as nulidades secundárias e as principais a partir do saneador”. Veja-se, o Ac. desta Relação e Secção de 10 de Outubro de 2016, Relator Desembargador Jerónimo Freitas, in www.dgsi.pt.
[16] Que igualmente procede à remissão para as respectivas disposições legais: a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º e 187º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194º)
[17] Nas palavras de Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 391), “Serão relevantes, segundo o critério estabelecido, quando a lei especialmente o declare ou quando possam influir no exame ou na decisão da causa”
[18] art.ºs 196.º e 197.º n.º1, do CPC
[19] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, 3ª ed., Coimbra Ed., 2014, pág. 9.
[20] Porém, como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, I, 2013, Almedina, 2012, pág. 50, não se trata aqui de uma atividade como que “assistencial à parte carenciada”, destinando-se antes, apenas, citando, “a sinalizar caminhos para a descoberta a verdade, de acordo com a estratégia heurística servida pelo processo, mantendo-se desimpedidas as vias processuais, bem como a manter a parte informada sobre os desenvolvimentos processuais que posam influenciar a sua estratégia processual, no sentido de pôr fim ao processo o mais adequada e rapidamente possível”.
[21] Fernando Pereira Rodrigues, “O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes”, 2013, Almedina, pág. 49
[22] Que igualmente procede à remissão para as respectivas disposições legais: a ineptidão da petição inicial (art.º 186.º e 187º); a falta de citação, seja do réu seja do Ministério Público, quando deva intervir como parte principal (art.º 188.º); a preterição de formalidades essenciais à citação (art.º 191.º); o erro na forma de processo (art.º 193.º); e, a falta de vista ou exame do Ministério Público, quando a lei exija a sua intervenção como parte acessória (art.º 194º)
[23] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. Cit., pág. 10.
[24] Sendo os factos essenciais aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção, os factos complementares são os que serão indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas que não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte, sendo que, integrando ambos a categoria de factos principais, enquanto necessários à procedência aquela ação ou exceção, por contraposição, os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos – Veja-se Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, pág. 77.
[25] “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”
Também na instância recursiva, nesse caso por referência às conclusões da alegação do recorrente, delimitativas do objeto do recurso, conforme resulta dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal.
[26] Relator Conselheiro Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt.
[27] Socorrendo-nos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de novembro de 2014 (Relator Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt.), por merecer a nossa plena concordância, diremos também (citando) que “constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil (actualmente, artigo 608.º, mantendo-se inalterada a redacção do n.º 2 antigo) (...), sendo que, “omitindo o tribunal este dever de julgamento, quando o juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respectiva decisão é nula – artigo 668.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil [actualmente, artigo 615.º, mantendo a alínea d) a redacção da antiga alínea)] (...)”.
[28] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222
[29] Op. cit., p. 235/236
[30] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[31] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[32] www.dgsi.pt
[33] Processo nº 220/13.8TTBCL.G1.S1 (disponível igualmente em www.dgsi.pt
[34] Processo 110/08.6TTGDM.P2.S1, mais uma vez em www.dgsi.pt
[35] Constando do mesmo Acórdão, em apoio do decidido, a referência à posição também já afirmada nos Acórdãos STJ de 01/10/2015 (p.824/11.3TTLRS.L1.S1), 11.02.2016 (p. 157/12.8 TUGMR.G1.S1), 22.09.2015 (p. 29/12.6TBFAF.G1.S1) e 4.03.2015 (p. 2180/09.0TTLSB.L1.S2), 26.11.2015 (p. 291/12.4TTLRA.C1.S1), 3.12.2015 (p. 3217/12.1TTLSB.L1.S1), 3.03.2016 (p. 861/13.3TTVIS.C1.S1)
[36] Relator Conselheiro Gonçalves Rocha, também em www.dgsi.pt.
[37] em “Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, p. 196
[38] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[39] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[40] Relator Conselheiro Hélder Roque, disponível em www.dgsi.pt.
[41] [4] STJ, de 1-10-96, Pº nº 96B053, www.dgsi.pt
[42] [5] STJ, de 18-5-2004, Pº nº 04A1417, www.dgsi.pt
[43] Cfr. Ac. STJ de 15 de janeiro de 2021, Relatora Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, in www.dgsi.pt
[44] Relatora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt.
[45] Relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho, também disponível em www.dgsi.pt
[46] Cfr. Ac. STJ de 19 de dezembro de 2018, Relator Conselheiro Ribeiro Cardoso, in www.dgsi.pt.
[47] Identificado na nota que antecede.