Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9051/09.9TDPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ELSA PAIXÃO
Descritores: CRIME DE PECULATO
FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
EXAME CRÍTICO
ELEMENTO SUBJECTIVO
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RP201410019051/09.9TDPRT.P2
Data do Acordão: 10/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A fundamentação da sentença tem uma tripla finalidade: legitimação democrática do exercício da jurisdição e maior confiança do cidadão na justiça; o autocontrolo da autoridade judiciária que profere a decisão, e garantir o exercício do direito de defesa na dedução do recurso.
II - Através da indicação das provas opera-se o controle da conformidade legal dos meios de prova utilizados, de modo a que só seja usada prova legal e licita;
III – No exame critico o tribunal deve explicar a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir, permitindo ao tribunal superior saber o porquê da decisão tomada e assim se a decisão tomada emerge de um procedimento de convicção lógico e racional, e decisão sobre os factos não foi arbitrária, dominada por meras impressões ou se afastou das regras da experiência;
IV - Na falta de prova directa, a prova do elemento subjectivo relativo ao facto intimo ou do foro íntimo do agente resolve-se decidindo que o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente;
V - São elementos do crime de peculato:
- o crime patrimonial (a apropriação ou oneração do bem)
- e o abuso da função pública ou equiparada e o nexo relacional entre estes: há abuso de função pelo facto de o agente se apropriar ou onerar bens de que tem a posse em razão das suas funções, violando a relação de fidelidade pré-existente;
- o agente seja um funcionário e que em razão das suas funções tenha a posse do bem objecto do crime;
- o funcionário esteja no exercício das suas funções;
- o objecto é o dinheiro ou coisa móvel (valores ou objectos) que está na sua posse ou lhe é acessível em razão das suas funções;
VI – o crime consuma-se quando o agente inverte o título de posse e passa a agir como proprietário da coisa móvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 9051/09.9TDPRT.P2
4ª Vara Criminal do Círculo do Porto

Acordam, em Conferência, as Juízas desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
Na 4ª Vara Criminal do Círculo do Porto, no processo comum colectivo nº 9051/09.9TDPRT, foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo sido proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Assim, e pelo exposto, acordam os juízes que constituem o Tribunal Colectivo da 4ª Vara Criminal do Porto em julgar a acusação procedente e, consequentemente:
1. Pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal, condenam o arguido B… na pena de 1 ano e 9 meses de prisão.
2. Pela prática, em autoria material e concurso efectivo com o anterior ilícito, de um crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal, condenam o arguido B… na pena de 6 meses de prisão.
3. Em cúmulo jurídico de tais penas parcelares condenam o arguido na pena única de 2 anos de prisão, cuja execução suspendem por igual período, com a condição de o arguido se submeter a acompanhamento pela DGRS, nos termos previstos nos artigos 50º, 53º e 54º do Código Penal.
4. Condenam ainda o arguido em 4 UC de taxa de justiça e nas custas do processo.
Proceda ao depósito do acórdão.
Oportunamente, comunique à DSIC e à DGRS e notifique a associação “C…” para requerer o levantamento da quantia depositada pelo arguido a favor da mesma.
***
Inconformado com a decisão condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1º-O Acórdão recorrido padece de vício de manifesta falta de fundamentação da decisão de facto, concretamente os Pontos 10, 15, 19, 20, 27, 28, 29, 30, 34, 35, 40, 41 e 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido.
2º-Da motivação da decisão de facto inserta no Acórdão recorrido, não se vislumbram as razões que objectivamente levaram o Tribunal a quo a dar como provado aqueles concretos pontos da matéria de facto, pois não é dado a conhecer ao arguido em que concretos elementos de prova, quer documental, quer testemunhal, os Meritíssimos Juízes a quo se fundamentaram para formar a sua convicção e darem como provado que o arguido e o falecido D… “…em conjugação de esforços e de intentos…conceberam um plano…” e que “…na execução desse plano traçado com o arguido…” o falecido D… levantou 33.000,00 € e depositou na conta do arguido a quantia de 15.000,00 €.
3º-Não se conhece também a lógica de raciocínio seguido pelo Tribunal a quo e das razões que objectivamente determinaram a sua convicção para dar como provado que os mapas de quilómetros apresentados pelo arguido para justificar o recebimento dos 15.000,00 € contêm “…deslocações e quilómetros que bem sabia não ter realizado e não correspondiam à realidade…”.
4º-O arguido desconhece em concreto e de forma objectiva as razões que levaram o Tribunal a quo a proferir aquela decisão de facto, pelo que está impedido de avaliar a sua justeza e razoabilidade, o que tem como consequência que o Acórdão proferido, nesta parte, seja nulo, por manifesta falta de fundamentação - art.379º, nº1, al. a), do CPP.
5º-A assim não se entender, sempre o Tribunal a quo incorreu em erro grosseiro no julgamento de facto daqueles concretos pontos da matéria de facto, impondo-se face à prova produzida que os Pontos 10, 15, 19, 20, 27, 28, 29º, 30, 34, 35, 40, 41 e 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido sejam dados como não provados.
6º-Nenhuma prova foi produzida nos autos, quer documental, quer testemunhal, que minimamente sustente que entre o recorrente e o Dr. D… tenha havido um plano ou conjugação de esforços para se apropriarem de verbas da C….
7º-Nenhuma prova existe nos autos que demonstre ou indicie que o arguido ficcionou viagens nos mapas de quilómetros apresentados para justificar o recebimento das verbas que lhe foram pagas.
8º-Provou-se que o arguido realizou inúmeras viagens, conforme resulta dos Pontos 21, 22, 23, 24, 25 e 26 dos Factos Provados no Acórdão recorrido.
9º-Não se provou uma única viagem/despesa que o arguido não tivesse realizado
10º-A viagem a Portalegre, identificada pela Acusação como exemplo duma viagem «inventada» pelo arguido para preencher o mapa de quilómetros, foi efectivamente realizada, conforme Ponto 22 dos Factos Provados.
11º-Tal como no primeiro Acórdão proferido nos presentes autos, entretanto anulado por este Venerando Tribunal, também o Acórdão ora recorrido se limita a discriminar as viagens que o arguido efectivamente fez, quando o que deveria fazer era discriminar as viagens e despesas que não fez.
12º-Nada foi concretizado e discriminado no Acórdão recorrido, em termos de viagens não realizadas e despesas não efectuadas pelo arguido, porque nada ficou provado.
13º-A testemunha E… era funcionária administrativa da C… em part time (das 09 às 13 horas), pelo que a sua razão de ciência se limita a esse concreto período de tempo, desconhecendo, como afirmou, se da parte da tarde o arguido se deslocava à sede.
14º-A versão da testemunha E…, de que o arguido só se deslocava à sede da C… duas ou três vezes por mês, para além daquela limitação temporal, é infirmada não só pelos depoimentos das testemunhas F… e G… e restantes testemunhas de defesa, mas também pelo depoimento da testemunha de acusação H…, cuja razão de ciência resulta do facto de há data dos factos ser membro da Direcção da C…, que era presidida pelo arguido, exercendo as funções de tesoureiro, conforme resulta dos excertos do seu depoimento supra transcrito.
15º-Não é verdade o referido pela testemunha E… de que a divida à Segurança Social ainda estava por liquidar em Outubro de 2007, data em que foi efectuado o pagamento ao arguido.
16º-Esta afirmação é posta em causa pelo depoimento da testemunha H… e pela certidão da Segurança Social, junta aos autos no início da audiência de julgamento de 12.12.2013, o que abala, nesta parte, seriamente a credibilidade, nesta parte, do seu depoimento.
20º-A própria testemunha E…, confirmou no seu depoimento que o arguido efectuou inúmeras viagens ao serviço da C…, usando sempre a sua viatura e que não teve conhecimento que alguma vez lhe tivessem sido pagas as respectivas despesas, sendo ainda peremptória ao afirmar que desconhecia se as viagens descritas nos mapas de quilómetros apresentados pelo arguido tinham ou não sido realizadas e que essas deslocações eram pagas ao quilómetro, de acordo com o que estava definido na lei, conforme resulta dos excertos do seu depoimento supra transcritos.
21º-A testemunha H…, cuja razão de ciência não pode ser posta em causa, pois era Tesoureiro da C…, no período em que o arguido era Presidente da Direcção, para além de confirmar as inúmeras deslocações do arguido, referiu também que este só foi reembolsado das despesas em Outubro de 2007 e não antes por não falta de dinheiro, conforme resulta dos excertos do seu depoimento supra transcrito.
22º-Os depoimentos das testemunhas de acusação supra transcritos, devidamente valorados, impõe uma diferente decisão sobre aqueles concretos pontos da matéria de facto, que se pretendem ver reapreciados neste recurso.
23ºTodas essas razões, elencadas na página 24, parágrafo quinto e seguintes do Acórdão recorrido, não têm consistência suficiente para sustentar a prova dos factos essenciais sob julgamento e uma condenação do arguido.
24º-Anormal e censurável seria o arguido, presidente da direcção, ter sido reembolsado das suas despesas e não o ser um funcionário da C…, o I….
25º-A C… foi objecto duma inspecção pela IGSS, relativamente ao período em que o arguido foi presidente da direcção, cujo relatório se encontra junto aos presentes autos, pelo que se o arguido tivesse tido outros reembolsos no ano de 2006 e até Outubro de 2007, não deixaria de haver registos desses pagamentos, o que manifestamente não existe, porque o arguido nada recebeu da C… até Outubro de 2007.
26º-As testemunhas E… e H… confirmaram nos seus depoimentos que o arguido nada recebeu até Outubro de 2007, por conta das despesas tidas com as suas deslocações ao serviço da C…, como resulta dos excertos dos seus depoimentos supra transcritos.
27º-A C… passava por dificuldades económicas neste período e sendo o Dr. D… o director com um papel mais activo, gerindo inclusivamente os pagamentos da C…, afigura-se-nos perfeitamente natural e lógico que privilegiasse os seus pagamentos e do seu motorista em detrimento dos pagamentos ao arguido, o que justificará que os pagamentos por ele efectuados em Outubro de 2007, com o Dr. D… a receber 8 mil euros e a pagar ao arguido 15 mil euros, pois como aquele já tinha recebido ao longo do tempo, recebeu menos que o arguido, que ainda não tinha sido reembolsado de nada.
28º-Os 15.000,00 € recebidos pelo arguido não correspondem a despesas efectivas desse montante, mas a reembolsos dos quilómetros efectuados na sua viatura ao serviço da C…, que tem a ver com gastos efectivos e determinados, como despesas de combustível, mas essencialmente com gastos não determináveis, isto é, gastos que têm a ver com o desgaste e desvalorização da viatura pelos quilómetros efectuados, cujo valor apurado teve como referência o valor pago por quilómetro aos funcionários públicos, como referiu a testemunha E…, conforme excerto do seu depoimento supra transcrito.
29º-Não faz, assim, sentido a conclusão do Tribunal a quo quanto à impossibilidade económica do arguido poder suportar estas despesas.
30º-A divida à Segurança Social foi paga em Dezembro de 2006, conforme se comprova da certidão emitida pela Segurança Social junta no início da audiência de julgamento do dia 12.12.2013, pelo que a utilização do dinheiro do empréstimo para outros fins não carecia de qualquer deliberação dos órgãos directivos.
31º-Altamente censurável era se o arguido fosse reembolsado com o dinheiro do empréstimo, como foi, sem que a divida à Segurança Social estivesse paga, o que não sucedeu.
32º-O pagamento ao arguido era do conhecimento de todos os membros da direcção, como referiu o tesoureiro, testemunha H…, conforme resulta dos excertos do seu depoimento supra transcrito.
33º-O pagamento dos 950,00 € e 1.524,18 €, estão devidamente documentados através dos respectivos documentos de suporte, como atestou a testemunha E…, conforme resulta dos excertos do seu depoimento supra transcrito.
35º-A matéria alegada nos itens 44º, 45º e 58º da Contestação, devem ser dados como provados e acrescerem aos factos provados no Acórdão recorrido.
36º-Todas as testemunhas revelaram conhecimento directo das inúmeras deslocações que o arguido fazia na sua viatura ao serviço da C….
37º-Todas as testemunhas de defesa afirmaram que o arguido tinha uma agenda de bolso, onde anotava cada uma das viagens e correspondentes quilómetros e que pagava do seu bolso as inerentes despesas.
38º-Impõe-se, assim, dar como provado a matéria alegada nos itens 44º, 45º e 58º da Contestação, aditando-se aos factos provados o seguinte:
-Nas suas deslocações, o arguido usou sempre a sua viatura, pois a C… não tinha nenhuma viatura ao serviços dos seus directores:
-O arguido apontava numa agenda de bolso as deslocações e despesas efectuadas.
-As despesas efectuadas pelo arguido eram conhecidos dos restantes elementos da direcção.
23º-Conjugada o conjunto da prova produzida e a falta de consistência das razões fundadas nas regras da experiência invocadas pelo Tribunal recorrido, impõe-se uma alteração da decisão da matéria de facto, dando-se como não provados os Pontos 10, 15, 19, 20, 27, 28, 29º, 30, 34, 35, 40, 41 e 42 dos Factos Provados e o arguido ser absolvido dos crimes em que foi condenado.
24º-Os depoimentos das testemunhas de acusação supra transcritos, devidamente valorados, impõe uma diferente decisão sobre aqueles concretos pontos da matéria de facto que se pretendem ver reapreciados neste recurso.
25º-O grau de certeza que tem de estar subjacente a qualquer condenação penal sai fortemente abalado pela total falta de prova dos factos sob julgamento e da falta de consistência dos argumentos aduzidos no Acórdão recorrido para dar como provados os factos sob julgamento.
26º-A entender-se que o arguido não tinha direito a ser reembolsado das quantias recebidas, afigura-se-nos que ainda assim não poderá ser condenado, por inexistência de culpa, por ter actuado sem consciência da ilicitude, não podendo o erro ser-lhe censurado-art.17º do Cód. Penal.
40º-Os Estatutos da C… prevêem o direito dos seus directores serem reembolsados das despesas efectuadas no exercício do cargo, conforme Ponto 9 dos Factos provados.
41º-Os directores da C… sempre foram ressarcidos das despesas das deslocações em viatura própria através de mapas de quilómetros, conforme referido pelas testemunhas E…, H… e J…-vid. excertos dos seus depoimentos supra transcritos.
42º-O arguido fez aquilo que era habitual fazer-se, elaborou esses mapas de quilómetros onde constam as viagens efectuadas, com dia, quilómetros e local, e a instituição pagou-lhe o valor apurado de acordo com o valor por quilómetro pago aos funcionários públicos, razão pela qual o arguido não tinha como duvidar da legalidade e legitimidade em receber tais quantias.
43º-Foi com esta legitima convicção que o arguido recebeu essas quantias, que estava a receber o que lhe era devido, não que estava a receber o que não era devido e a extorquir dinheiro à C….
44º-Esta convicção foi arguido foi reforçada pelas sucessivas interpelações do Vice-Presidente, Dr. D…, para que tomasse nota dos quilómetros que ia fazendo na sua viatura, pois teria que ser reembolsado, como referiu a testemunha H…, conforme excertos do seu depoimento supra transcritos.
45º-E ainda pelo facto do própria contabilista nenhuma objecção ter colocado aos mapas de quilómetros para suportar tais despesas-vid. excerto do depoimento da testemunha E… supra transcrito.
47º-O depósito efectuado do valor total das quantias recebidas no início da primeira audiência de julgamento não tem subjacente um assumir por parte do arguido que de facto tinha consciência da ilicitude da sua conduta ao receber aquelas quantias, mas apenas uma prova da sua boa fé, uma prova em como recebeu porque julgava que tinha esse direito, não querendo de forma alguma que fiquem quaisquer tipo de duvidas de que alguma vez quis prejudicar a C…, instituição à qual tem três décadas de dedicação.
46º-É, assim, notório a inexistência de culpa, o que tem como consequência que a conduta do arguido não possa ser punida, devendo ser dado como não provado o Ponto 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido.
37º-O Acórdão recorrido violou, entre outros, o disposto nos artigos 374, nº2, do CPP e 17º do CP.
Termos em que, deve o presente recurso proceder, julgando-se nulo o Acórdão recorrido, por insuficiente fundamentação, ou, caso assim se não entenda, ser revogado o Acórdão recorrido e proferido novo Acórdão que absolva o arguido dos crimes em que foi condenado, por assim, ser da mais inteira JUSTIÇA.
***
Em resposta ao recurso do arguido o Ministério Público pugnou que seja negado provimento ao mesmo e consequentemente mantido acórdão recorrido.
***
O recurso foi admitido.
***
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
***
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo sido deduzida resposta.
***
Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO
Passemos agora ao conhecimento das questões alegadas no recurso interposto da decisão final proferida pelo tribunal colectivo.
Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida (transcrição):
2. Fundamentação
2.1. Matéria de facto provada
Instruída e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A associação C… é uma instituição particular de solidariedade social (IPSS), reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, com sede na Rua …, n.º .., ..º andar, nesta cidade do Porto (fls. 850 a 852).
2. Associação essa, sem fins lucrativos, que tem por objectivo o apoio à família, a crianças, jovens e idosos (fls. 852).
3. Sendo financiada por comparticipações da Segurança Social e por donativos de particulares.
4. De acordo com os seus estatutos, são órgãos da C…, uma assembleia-geral, uma direcção e um conselho fiscal.
5. A direcção era constituída por um presidente e um vice-presidente, competindo ao presidente, em geral, dirigir superiormente a associação, tomando todas as decisões ao funcionamento dos serviços.
6. No período temporal compreendido entre 25 de Janeiro de 2006 a 05 de Abril de 2008, o arguido B… (doravante B…) exerceu funções de presidente da direcção da associação C….
7. Sendo, nesse período temporal, vice-presidente, D… (doravante D…), entretanto falecido, no dia 19 de Maio de 2010.
8. Estes cargos não eram remunerados.
9. Embora os estatutos da associação previssem a possibilidade de pagamento de despesas decorrentes dos cargos exercidos (fls. 355).
10. Fazendo-se valer desta possibilidade, o arguido B… e o falecido D…, conceberam um plano que consistiu em permitirem a apropriação pelo menos pelo primeiro de quantias monetárias pertencentes à associação C…, que justificariam com a aparência de se tratarem de pagamentos de despesas decorrentes do cargo exercido.
11. No dia 08 de Outubro de 2007 foi celebrado um contrato de mútuo entre a K… e a C…, esta última representada pelo arguido e pelo falecido D… (fls. 834 e seguintes).
12. Por via do qual a … recebeu a quantia de € 36.000,00 (trinta e seis mil euros), a título de empréstimo (fls. 834 e seguintes).
13. Quantia essa que ficou disponível na conta n.º …………., de que a C… era titular na K…, no dia 09 de Outubro de 2007 (fls. 507 e 508).
14. Tal conta podia ser movimentada pelo arguido, pelo falecido D… e por H…, este último, tesoureiro da associação (fls. 792).
15. Nesse mesmo dia, na agência da K… localizada junto ao …, o falecido D…, na execução do plano traçado com o arguido, levantou a quantia de €33.000,00 da conta da C… e, na posse de tal quantia, nesse mesmo dia, depositou a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) na conta n.º …………….., titulada pelo arguido B… (fls. 704, 567 e 590).
16. Que a recebeu e a utilizou em seu proveito pessoal.
17. Para justificar o recebimento da sobredita quantia de €15.000,00 o arguido B…, em data não concretamente apurada mas posterior a 9 de Outubro de 2007, entregou na sede da C… os mapas de quilómetros de deslocações em viatura própria, cujas cópias constam de fls. 214 a 233 do anexo I.
18. Tais mapas de quilómetros compreendem tabelas onde consta o dia da deslocação, a descrição da deslocação e os quilómetros percorridos.
19. Tabelas essas que o arguido preencheu, colocando deslocações e quilómetros que bem sabia não ter realizado e não correspondiam à realidade, a par de outras que, efectivamente, efectuara.
20. O que fez, apenas, para justificar o depósito de €15.000,00 na sua conta bancária.
21. As deslocações que o arguido efectivamente realizou e que estão descritas nos referidos mapas foram as que aquele efectuou para estar presente em reuniões de direcção, na sede da associação, nomeadamente:
No dia 25 de Janeiro de 2006;
No dia 24 de Fevereiro de 2006;
No dia 19 de Abril de 2006;
No dia 20 de Abril de 2006;
No dia 24 de Abril de 2006;
No dia 4 de Maio de 2006;
No dia 11 de Maio de 2006;
No dia 15 de Maio de 2006;
No dia 7 de Junho de 2006;
No dia 12 de Junho de 2006;
No dia 26 de Junho de 2006;
No dia 6 de Julho de 2006;
No dia 13 de Julho de 2006;
No dia 26 de Julho de 2006;
No dia 22 de Setembro de 2006;
No dia 3 de Outubro de 2006;
No dia 3 de Novembro de 2006;
No dia 15 de Novembro de 2006;
No dia 20 de Novembro de 2006;
No dia 21 de Novembro de 2006;
No dia 23 de Novembro de 2006;
No dia 29 de Novembro de 2006;
No dia 12 de Dezembro de 2006;
No dia 29 de Dezembro de 2006;
No dia 2 de Janeiro de 2007;
No dia 17 de Janeiro de 2007;
No dia 16 de Fevereiro de 2007;
No dia 13 de Março de 2007;
No dia 20 de Março de 2007;
No dia 26 de Março de 2007;
No dia 29 de Março de 2007;
No dia 11 de Abril de 2007;
No dia 4 de Junho de 2007;
No dia 30 de Julho de 2007;
No dia 4 de Agosto de 2007;
No dia 31 de Agosto de 2007;
No dia 27 de Setembro de 2007;
22. Bem como a realizada a Portalegre, em 1 de Setembro de 2006, e ainda a realizada a Lagoa e Estombar, com partida em 24 de Agosto.
23. Bem como a que consta do dia 13 de Novembro de 2006, a Vila Real e …, Santa Marta de Penaguião (conforme relatado na acta n.º 19, de 20 de Novembro).
24. O arguido efectuou ainda deslocações a vários estabelecimentos pertencentes à Associação C…, nomeadamente em Espinho, Fontarcada, Amarante, Porto e S. João de Ver, em datas não concretamente apuradas mas anteriores a 7 de Janeiro de 2007, para mostrar a um sacerdote católico, L…, e a uma sobrinha deste, alguns dos estabelecimentos da “C…”, uma vez que aquele pretendia deixar os seus bens à referida associação, tendo-se deslocado na sua viatura, e pago as refeições.
25. Ainda para tratar assuntos da associação o arguido deslocou-se, em datas não concretamente apuradas, na companhia do seu cunhado F…, a Barcelos, ao Caramulo, a Póvoa do Lanhoso (Fontarcada) e a Santa Marta de Penaguião.
26. Já na companhia de G… deslocou-se, para tratar de assuntos da associação, a Lisboa, ao Caramulo, a Santa Marta de Penaguião, a Barcelos e a Guimarães (estando pendente, no tribunal judicial desta comarca, um processo judicial); com o engenheiro M… o arguido deslocou-se, também para tratar de assuntos da associação, ao Caramulo, a Viseu e a Tondela (numa mesma viagem), a Espinho e a Amarante; e com N… a Amarante e a Ponte de Lima.
27. Para além dessas deslocações o arguido preencheu os referidos mapas de quilómetros com deslocações que não correspondiam à realidade das deslocações que fez, tendo sido o meio por ele encontrado para dar uma aparência de realidade ao recebimento da sobredita quantia de €15.000,00, que recebeu nos termos acima expostos.
28. O arguido agiu em colaboração de esforços e de intentos com o falecido D…, aproveitando-se do cargo que desempenhava na C… para fazer sua a quantia de € 15.000,00, a que sabia não ter direito a receber, ciente de que, assim, causava um prejuízo equivalente a tal associação, o que quis e logrou conseguir.
*
29. Aproveitando-se ainda da circunstância de os estatutos da C… preverem o pagamento de despesas derivadas do cargo exercido, o arguido D… decidiu apropriar-se de mais importâncias monetárias pertencentes a tal associação.
30. Na concretização desse propósito, em data não concretamente apurada mas situada no início do mês de Março de 2008, o arguido, valendo-se da sua qualidade de presidente da direcção da C…, deu ordem na sede desta associação para que fosse emitido um cheque no montante de €1.800,00 que o mesmo disse destinar-se a reforçar o saldo disponível em caixa, já que, normalmente, como bem sabia o arguido, o caixa apenas dispunha de pequenas quantias monetárias para pagamento de pequenas despesas correntes.
31. Na sequência dessa ordem, veio a ser emitido o cheque n.º ………., datado de 06 de Março de 2008, sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no banco O… e titulando a quantia de €1.800,00 (fls. 509).
32. No dia 08 de Março de 2008, tal quantia de €1.800,00 ficou disponível em caixa e, nessa data, o arguido solicitou, na sede da C…, que lhe fosse entregue, em numerário, a quantia de €950,00 alegando que tal quantia lhe era devida a título de despesas decorrentes do seu cargo (cfr. extracto de fls. 511 e extracto de fls. 241 e 242 do anexo I).
33. Assim agindo, logrou o arguido receber e fazer sua a quantia de € 950,00, que usou em seu proveito pessoal (Cfr. fls. 510).
34. Não havendo qualquer despesa que justificasse o pagamento de tal quantia.
35. Tanto assim que o arguido não apresentou qualquer comprovativo que justificasse o pagamento de tal quantia.
36. Ainda em execução do mesmo plano apropriativo, em data não concretamente apurada de finais de Março de 2008, o arguido deu ordens na C… para que fosse emitido um cheque pelo montante de € 1.524,18, alegando que se destinava ao pagamento de despesas suas decorrentes do cargo de Presidente da Direcção.
37. Nessa sequência, veio a ser preenchido o cheque n.º……….., sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no Banco O…, pelo referido montante de €1.524,18 e datado de 03 de Abril de 2008 (cfr. cheque de fls. 859).
39. Tal cheque foi apresentado a pagamento pelo arguido, no dia 07 de Abril de 2008, na agência do O… localizada em Lourosa, tendo nessa data, o arguido recebido tal quantia que usou em seu proveito pessoal (fls. 858 e 859).
39. Para justificar a emissão de tal cheque, o arguido entregou na C… os recibos que constam do anexo V referentes a portagens, abastecimentos de combustível e facturas de restaurantes, sem descriminação do cliente.
40. Não havendo qualquer razão que justificasse o pagamento ao arguido de tal quantia de € 1.524,18.
41. O arguido aproveitou-se das funções de presidente da direcção da C… que, na altura, desempenhava para fazer sua a quantia global de € 2.474,18 que usou em seu proveito pessoal, o que quis e fez, apesar de saber que tal quantia era pertença da associação que presidia.
42. Agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabedor da punibilidade e censurabilidade da sua actuação.
*
43. O arguido B…, pertence a família de origem de S João de Ver, constituída pelos pais e por oito irmãos, dos quais é o penúltimo.
44. Para além da lavoura e criação de gado, a subsistência familiar dependia do salário do pai, encarregado de obras dos Caminhos-de-ferro e, simultaneamente, avaliador de terrenos.
45. Desde cedo ajudava os pais no cultivo das terras.
46. A progenitora faleceu quando o arguido tinha quinze anos de idade, passando, desde então a assumir um papel de maior responsabilidade no desenvolvimento dos trabalhos de lavoura, com apoio de jornaleiros, ao mesmo tempo que acompanhava o progenitor no exercício sua actividade de avaliador de imóveis.
47. A partir de certa altura, funcionava como motorista do progenitor no desempenho dessas tarefas. Tal proximidade, favoreceu a aprendizagem, permitindo-lhe o assumir esta actividade aquando do falecimento do seu pai, quando tinha cerca de 20 anos de idade.
48. Prosseguiu a sua vida escolar para além do ciclo preparatório, efectuando alguns estudos do antigo curso geral de comércio, em regime nocturno, sem concluir este grau de ensino.
49. Após o serviço militar contraiu matrimónio com P…, de quem viria a ter três filhos.
50. A esposa era costureira e o arguido explorava urna pequena mercearia numa casa arrendada, casa que se constituiu como morada da família.
51. Paralelamente, o arguido fazia avaliação de imóveis, sendo solicitado por particulares para resolução de assuntos nas repartições de finanças, município, entre outras.
52. A esposa passou a trabalhar a tempo inteiro na mercearia, com apoio do arguido na gestão do negócio.
53. Iniciaram a construção de casa própria, em terreno da família do cônjuge, mas a sua construção foi suspensa há vários anos devido a diferendo familiar relacionado com as dimensões do terreno.
54. Não obstante mantendo padrões de vida referidos como modestos, conseguiram realizar algumas viagens (Açores, Madeira, França...) em resultado de sorteios de produtos vendidos na mercearia.
55. Paralelamente, B… manteve envolvimento comunitário no processo de criação e dinamização de uma obra social ligada à sua Paróquia, contribuindo em diligências de divulgação e de obtenção de donativos que possibilitaram, designadamente, a aquisição de terrenos e construção das instalações do designado Q… (em …, S. João de Ver), da Associação C…, associação sem fins lucrativos, para apoio a crianças, onde mais tarde, entre 2006 e 2008, o arguido viria a desempenhar funções de presidente da direcção e de onde viria a ser afastado após esse período.
56. O presente processo resulta de factos que estão relacionados com o período em que desempenhou as funções de presidente da direcção da Associação C….
57. Nessa altura mantinha o enquadramento residencial actual, onde o seu agregado familiar sempre viveu e onde tiveram a mercearia que, entretanto, foi encerrada há cerca de sete anos por falta de movimento.
58. Trata-se de uma moradia antiga, de dois pisos, arrendada (70 euros mensais) e de construção relativamente modesta para os padrões actuais.
59. A casa está ligada a um terreno amplo, murado, do qual apenas uma parte muito reduzida é cultivada para consumo próprio.
60. Entre 2006 e 2008, o seu agregado familiar era constituído pelo casal e três filhos.
61. Actualmente, o mais velho tem 31 anos de idade e é engenheiro civil e as duas gémeas têm 26 anos de idade, sendo que uma está a efectuar o mestrado na área da economia e a outra é solicitadora, com escritório na residência do agregado familiar.
62. A esposa do arguido chegou a trabalhar no Q… em S. João de Ver, como auxiliar e empregou-se, posteriormente, como auxiliar de actividades ocupacionais numa instituição de solidariedade social de Lourosa (S…), onde se mantém, obtendo um salário próximo dos 500 euros.
63. O arguido está colectado como “perito avaliador” em nome individual, para efeitos fiscais, desde 2003.
64. Trabalha por solicitação de particulares ou de entidades judiciais, em colaboração com outros profissionais, na área da engenharia civil e finanças, designadamente, sendo da responsabilidade destes as avaliações técnicas e cabendo-lhe a si efectuar a avaliação do valor de mercado.
65. Para além disso, colabora a pedido de particulares na resolução de assuntos nas diferentes repartições e serviços, sendo referido como pessoa com conhecimentos e particularmente experiente e diligente.
66. Refere retirar desta actividade um rendimento irregular e pouco expressivo, pelo que o salário da esposa continua a ser muito importante para a economia doméstica.
67. O arguido não tem antecedentes criminais.
*
68. A direcção anterior àquela presidida pelo arguido não fez a passagem do testemunho, impugnando mesmo o acto eleitoral.
69. Nas deslocações efectuadas o arguido utilizava sempre automóvel próprio, uma vez que a “C…” não tinha viaturas próprias para esse efeito.
70. O arguido promoveu a candidatura ao programa “T…” do estabelecimento da “C…”, sito em S. João de Ver, Santa Maria da Feira, denominado “Q…”, candidatura que veio a ser aprovada, tendo sido assinado o respectivo contrato de participação financeira em 23 de Junho de 2007 (fls. 938 a 944).
71. Promoveu ainda a candidatura ao mesmo programa de, pelo menos, outro estabelecimento da “C…” – aquele sito em Espinho – que acabou por não ter seguimento.
72. Em 7 de Janeiro de 2007 um sacerdote católico chamado L… outorgou testamento em favor da “C…”, conforme documento de fls. 945 e 945 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
73. Em data não apurada faleceu uma criança no patronato “U…”, sito em Vila Nova de Gaia, o que implicou a deslocação do arguido a este estabelecimento para apurar o sucedido.
74. O arguido exerceu as funções de presidente da C… de forma empenhada.
75. Era prática corrente da “C…” os directores serem reembolsados das despesas sob a forma de mapas de quilómetros.
76. Em 17 de Fevereiro de 2006 a direcção da “C…” formulou pedido de auditoria à instituição à Inspecção Geral da Segurança Social.
77. Em 4 de Dezembro de 2012 o arguido efectuou o depósito autónomo da quantia 17.750,00 €, destinando-a à “C…”.
*
2.2. Matéria de facto não provada

Com relevo para a decisão da causa, já não resultaram provados quaisquer outros factos, designadamente constantes da contestação apresentada pelo arguido, e designadamente:
- Que o arguido fosse alheio aos pagamentos efectuados pela “C…”, nunca tendo assinado um cheque da instituição, sendo o vice-presidente o único que dava ordens de pagamento;
- Que o arguido tivesse efectuado deslocações relacionadas com a “C…” praticamente todos os dias, nomeadamente a Aveiro, Porto, Braga e Vila Real;
- Que no âmbito das candidaturas aos programas “T…” o arguido tenha efectuado inúmeras reuniões e contactos com Municípios, serviços de finanças e conservatórias, arquitectos e com o responsável pelo programa em causa;
- Que tenha tido várias reuniões com uma empresa proprietária de um prédio confinante com o referido “U…”;
- Que o arguido tivesse adiantado do seu bolso as despesas relacionadas com as deslocações que efectuou enquanto presidente da direcção da “C…”, as quais nunca lhe foram reembolsadas até ao dia 9 de Outubro de 2007;
- Que em 2006 o arguido tenha percorrido, na qualidade de presidente da direcção, 21.950 kms e que em 2007 tenha percorrido 20.650 kms;
- Que não tenha sido o arguido a elaborar os mapas de quilómetros entregues para efeitos contabilísticos;
- Que os documentos relacionados com o recebimento da quantia de 950,00 € tivessem sido entregues na agência de contabilidade da associação;
- Que o arguido tivesse justificado as despesas que apresentou nos termos aconselhados pelo contabilista e pelas técnicas da segurança social;
- Que o arguido recebeu as verbas descritas na acusação na convicção plena de que actuava dentro da legalidade.
*
Não ficou provado qualquer outro facto com relevo para a decisão da causa, constante da acusação ou da contestação apresentada pelo arguido, para além dos que se encontram descritos na factualidade provada ou que com eles se mostrem incompatíveis.
*
2.3. Motivação da decisão de facto

A convicção do tribunal, relativamente aos factos considerados provados, baseou-se nos seguintes meios de prova, livremente apreciados (art. 127º do CPP):
- Nas declarações prestadas pelo arguido, que admitiu ter recebido os montantes constantes da acusação, que lhe foram pagos pela Associação C…, de cuja direcção era o presidente, alegando, contudo, que tais pagamentos visaram o reembolso de despesas de deslocações efectuadas ao serviço daquela entidade, mas por si suportadas, tendo sido deliberado pela Associação o reembolso das suas despesas.
- Referiu, ainda, que naquele período dedicava-se à sua actividade de perito judicial e avaliador, o que fazia diariamente, sobretudo de manhã cedo e ao final do dia, com o que auferia cerca de 600/650 € mensais - sendo desta remuneração e da auferida pelo cônjuge (de valor mais ou menos equivalente) que subsistia o seu agregado familiar, composto por si, pela mulher e por três filhos, deles dependentes.
- Disse também que durante cerca de dois anos suportou todas as despesas de deslocação que efectuou ao serviço da “C…”, e que excederam o montante global de 15.000 €, explicando que não recebeu previamente aquele montante por falta de meios financeiros da referida entidade. E que recebeu apenas o referido montante – 15.000 € -, embora o seu crédito fosse de valor superior, por ter sido esse o valor o definido para ser pago, tendo prescindido do restante.
- Referiu que os mapas de deslocações foram elaborados pelo técnico de contas (V…), com base nas anotações que fazia inscrever numa agenda.
- Confirmou a celebração do contrato de mútuo com a K…, esclarecendo que a Associação precisava de dinheiro para satisfazer determinadas obrigações – uma dívida à Segurança Social e dívidas a fornecedores; mas como o empréstimo levou muito tempo a ser concedido, a dívida à Segurança Social acabou por ser liquidada pela Casa da Póvoa do Lanhoso, talvez ainda durante o ano de 2006.
- Disse, ainda, que o dinheiro proveniente do empréstimo concedido pela K… esteve bastante tempo creditado na conta bancária da Associação, até lhe ser paga aquela quantia.
- Não apresentava mensalmente as despesas por si suportadas à “C…”, limitando-se a anotá-las na agenda, que depois facultou ao técnico de contas. Os mapas de deslocações foram entregues antes do recebimento da quantia de € 15.000,00.
- Referiu ainda que uma parte daquele valor constituía despesas efectivas (gasóleo, portagens e alimentação), sendo certo que se deslocava sempre no seu próprio veículo automóvel; o resto tratava-se de compensação dos kms percorridos – tendo sido tal pagamento determinado numa reunião da Direcção da associação, por sugestão do contabilista e do Vice-Presidente, Dr. D….
- Logo a seguir à tomada de posse foi a Lisboa, a uma reunião, ao serviço da Associação. Foi também ao Caramulo, Viseu e Tondela; a Vila Real, à Régua, a Lamego e a Santa Marta de Penaguião; a Portalegre e ao Crato; ao Algarve e a Amarante. Em 2006 vinha todos os dias ao Porto, onde se situa a sede da Associação.
- Tanto quanto sabe, a elaboração dos mapas de quilómetros era a forma usual de reembolso dos directores da associação, reportando-se o último por si apresentado ao mês de Dezembro de 2007.
- Quanto ao recebimento das restantes importâncias aludidas na acusação referiu que um dos cheques tinha que ver com o pagamento de um frigorífico para apoio à cozinha e refeitório, tendo sido reembolsado dessa despesa por si previamente suportada, após prévia entrega da respectiva documentação de suporte.
- Relativamente ao cheque de 1.524,18 €, referiu já não se recordar que tipo de despesas se destinava a pagar, mas acrescentou que todos os pagamentos por si reclamados foram precedidos da prévia entrega da documentação de suporte, tendo ocorrido, porém, um extravio de documentação.
- No teor dos documentos constantes dos autos – particularmente dos que se encontram junto de fls. 39 e seguintes (relatórios de acções inspectivas realizadas pelo Serviço de Fiscalização – Norte da Segurança Social); fls. 108 e 184, 246/250 e 266; fls. 350/370 (estatutos da “C…”); elementos bancários de fls. 507, 508, 509, de fls. 566 a 578, de fls. 580 a 584, de fls. 588 a 590, de fls. 791 a 794 e de fls. 796 (cópia do cheque emitido a favor do arguido no montante de € 1.524,18); documentos de fls. 510 e 511 (comprovativos de saída de caixa do montante de 950 € para “despesas presidente Direcção”); cópia de recibos/facturas de fls. 514 a 523; listagem de despesas recebidas pela testemunha I… (fls. 799); declarações de IRS do arguido B… e mulher referentes aos anos de 2006 e 2007 (fls. 805/810); cópia do contrato de mútuo celebrado entre a associação e a K… (fls. 834/840); publicações no DR dos estatutos da associação C… e respectivas alterações (fls. 849/852); fls. 868 (cópia da acta nº 29 da Assembleia Geral); cópia do contrato celebrado com a segurança social ao abrigo do programa T… (fls. 938/944) e do testamento outorgado por padre L… (fls. 945); documentos comprovativos de pagamentos efectuados à segurança social (fls. 1193/1197); elementos documentais constantes do Anexo I – com destaque para os mapas de quilómetros apresentados pelo arguido e constantes de fls. 213 a 239; elementos documentais constantes dos Anexos II e III – actas da direcção da C…; elementos documentais constantes do Anexo V – facturas e recibos - e do Apenso I – tudo em conjugação com os depoimentos prestados na audiência de julgamento pelas seguintes testemunhas:
- W… – inspectora da Segurança Social, que procedeu a uma acção inspectiva à Associação “C…”, na sequência de uma denúncia recebida nos serviços de fiscalização.
- Explicou que não foi encontrada qualquer deliberação da direcção da associação, que estivesse documentada e permitisse o pagamento das referidas quantias ao arguido e/ou a qualquer outro membro dos órgãos directivos.
- Extraiu cópia de todos os documentos de suporte fornecidos para suportar aquelas despesas e anexou-os ao relatório por si elaborado. Constatou que nenhum documento de suporte das despesas se encontrava anexo à contabilidade da Associação referente ao ano de 2006. Assim, pela análise da contabilidade verificou que os documentos de suporte das despesas apenas foram apresentados com o pagamento ou, no mínimo, com o documento de autorização do pagamento. Porém, as despesas efectuadas num determinado ano têm de entrar na contabilidade desse ano, embora possam ser pagas apenas mais tarde.
- Finalmente, reiterou todas as conclusões contidas no relatório que elaborou, subsequente à acção inspectiva realizada.
- E… – que exerceu as funções de directora de serviços da “C…”, desde 31/1/2006.
- Referiu que o arguido tomou posse como Presidente da Associação pouco tempo antes de ter começado ali a trabalhar.
- Havia dívidas elevadas à Segurança Social, tendo sido contraído um empréstimo junto da K… no valor de cerca de 33.000,00 €. Sempre foi sua convicção que o empréstimo contraído serviria, fundamentalmente, para liquidar aquela dívida. Foi, assim, com surpresa que acompanhou o vice-presidente da associação – Dr. D… – ao banco, no dia em que foi levantada a quantia de € 33.000. Este disse-lhe para elaborar duas declarações comprovativas do recebimento pelos vice-presidente e presidente da direcção dos montantes em causa, para justificar o reembolso de despesas por eles anteriormente efectuadas, designadamente decorrentes das diligências efectuadas em período eleitoral.
- Em assembleia geral tinha sido referida a necessidade de contrair um empréstimo para pagar a dívida à segurança social (que ultrapassava os 40.000,00 €), tendo havido uma deliberação nesse sentido.
- Referiu a testemunha que exercia funções de secretariado, para além do acompanhamento e gestão da sede da “C…”. No exercício das suas funções estava na dependência quer do arguido, quer do Dr. D… – respectivamente presidente e vice-presidente da associação, que geriam em conjunto.
- Disse que o vice-presidente ia praticamente todos os dias à sede da associação, onde ela se encontrava; o arguido fazia-o mais esporadicamente, talvez duas ou três vezes por mês. Deslocavam-se ambos nos seus próprios veículos.
- O Dr. D… apresentava mensalmente uma lista com as despesas efectuadas. Pagava-lhe directamente do caixa: se houvesse saldo e se fosse um valor reduzido. Podia também ser emitido um cheque, assinado por ambos.
- As despesas de deslocação eram pagas através de mapas de quilómetros.
- Quanto aos cheques indicados na acusação e cujo pagamento foi determinado pelo arguido, referiu que havia falta de comprovativos em relação às despesas reclamadas. Mesmo assim cumpriu a ordem recebida e pagou-lhe os 950 €, montante que retirou do caixa. O outro cheque foi tratado com o estabelecimento de S. João de Ver.
- Referiu que o arguido nunca lhe entregou mapas de despesas, como fazia o vice-presidente, e que, antes das situações atrás descritas, nunca tinha procedido ao pagamento de despesas ao arguido – embora tal pudesse ter sucedido através do estabelecimento de S. João de Ver, situação que não pode confirmar.
- Confirmou o facto de estarem pendentes acções judiciais, nas quais intervinha a associação “C…”, e de terem sido apresentadas candidaturas ao programa “T…” – pelo menos os estabelecimentos de S. João de Ver e, mais tarde, o de Espinho.
- Soube que o arguido efectuou deslocações ao serviço da associação, embora não possa descrevê-las com exactidão. Efectuou diligências no âmbito do programa T…; deslocou-se ao estabelecimento de Gaia, na sequência da morte de uma criança; houve reuniões e contactos com a Junta de Freguesia de Santa Marta de Penaguião, com o arguido e o vice-presidente Dr. D….
- Os mapas entregues pelo arguido B… foram entregues à contabilidade, mas muito depois do recebimento do dinheiro. Aquelas despesas foram incluídas nas contas da associação do ano de 2007, embora os mapas se reportassem também a despesas relativas a anos anteriores (2005 e 2006).
- H… – electricista de automóveis, actualmente reformado.
- Amigo do arguido há 30 anos, tendo exercido as funções de tesoureiro da associação até 2008, cargo que ocupou a convite do arguido. Nessa qualidade participou em diversas reuniões, no Porto.
- Referiu que as questões institucionais ficavam a cargo do arguido, ocupando-se o Dr. D… das questões administrativas.
- O arguido efectuou muitas diligências quando tomou posse para avaliar a situação (designadamente, patrimonial) em que se encontrava a instituição – em conservatórias, paróquias, etc.
- Inicialmente, o arguido vinha todos os dias ao Porto. Depois, quando a situação da associação começou a ficar regularizada, com menor frequência.
- O arguido era perito avaliador e encarregado de venda, tendo descurado a sua actividade profissional.
- X… – em meados de 2008 foi convidada para participar na direcção da associação – vogal -, a convite do Dr. D…. Tinha por função proceder à análise financeira da instituição.
- Nunca conheceu pessoalmente o arguido B…; quem se deslocava diariamente para fazer o acompanhamento dos estabelecimentos da instituição era o Dr. D….
- Y… – administrador da casa da Póvoa do Lanhoso, integrada na associação “C…”, desde final de 1998.
- Em 2006 o arguido integrou a direcção da C…, tendo assumido o cargo de presidente e a testemunha assumiu o cargo de secretário da direcção, embora continuasse a exercer as funções anteriores no estabelecimento de Póvoa do Lanhoso.
- Naquele período o arguido deslocou-se 2/3 vezes ao estabelecimento da Póvoa do Lanhoso, tendo-o feito com maior frequência o vice-presidente da direcção (Dr. D…), desconhecendo outras deslocações efectuadas pelo arguido.
- Referiu ainda não ter conhecimento da forma como eram pagas as despesas de deslocação, sendo certo que nem tomou conhecimento do pagamento do montante de 15.000 € ao arguido B….
- Disse, ainda, não ter ideia de ter sido através de verbas da casa da Póvoa do Lanhoso que foi paga a dívida à segurança social. Contudo, entregou muitas vezes montantes elevados ao Dr. B…, a pedido do mesmo, desconhecendo a que fim se destinavam.
- I… – administrativo da “C…”, função que começou por desempenhar, em 1998, no patronato de Amarante.
- Acompanhava o Dr. D… e vinha com ele, no veículo do mesmo, quase todos os dias ao Porto. Estas despesas de deslocação eram pagas com base numa folha de quilómetros que elaborava e apresentava, em regra, no final de cada mês, na sede da associação, no Porto. Nestas despesas incluía quilómetros, portagens e alguns almoços. Entregava na contabilidade os mapas com os respectivos documentos de suporte (talões, facturas, etc), após o que recebia os pagamentos respectivos da testemunha E…, que lhe entregava o dinheiro para pagar as despesas.
- No total, naquele período, via o arguido cerca de 10 vezes por mês na sede da associação, no Porto.
- Referiu, ainda, não ter conhecimento do pagamento do montante de € 15.000 ao arguido, desconhecendo também a forma como, em concreto, lhe eram pagas as despesas de deslocação – sempre tendo presumido que tal sucedia através do sistema atrás descrito, que era o adoptado pelo vice-presidente da associação.
- Z… – geógrafo de profissão, tendo integrado os corpos directivos da C… – entre 2006 e 2008 foi presidente da Assembleia Geral; entre 2008 e 2011 foi presidente da direcção, mantendo-se como vice-presidente o Dr. D…. Antes disto (em 2005 e 2006) já estava ligado à associação, participando activamente como associado.
- Referiu que se deslocava pontualmente à sede da associação, no Porto, na companhia do Dr. D…. Este dava-lhe conta das suas deslocações aos vários estabelecimentos da associação espalhados pelo país – ou sozinho, ou na companhia do arguido B…, presidente da direcção, mas sempre em carro próprio, conduzido por um funcionário da C…, não tendo tomado conhecimento de deslocações efectuadas, individualmente, pelo arguido.
- Tomou conhecimento do pagamento de despesas efectuadas pelo vice-presidente da direcção com base nos mapas de deslocações e despesas. Além disso, recorda-se de ter sido tomada uma deliberação pela assembleia geral, no sentido de ser contraído um empréstimo junto da K…, sendo certo que havia dívidas que provinham da direcção anterior, relacionadas com a falta de pagamento de contribuições à segurança social.
- N… – advogado, amigo do arguido B….
- Referiu que no ano de 2006, quando o arguido foi eleito presidente da direcção, a pedido deste começou a prestar apoio num estabelecimento da C…, em Espinho, tendo sido nomeado vice-presidente do mesmo.
- O processo eleitoral foi muito conturbado, tendo sido apresentada uma providência cautelar pela anterior direcção.
- Neste período, os contactos com o arguido eram muito regulares, tendo notado que o mesmo estava a descurar a sua actividade profissional normal – dedicava-se diariamente à C…. Até teve algum litígio com o arguido por causa disto – o arguido prestava-lhe serviços de solicitadoria, que muitas vezes atrasou e deixou de fazer, alegando que estava ocupado com os assuntos da associação.
- Tem conhecimento de que o arguido visitava com regularidade estabelecimentos da C… – ia com frequência a Espinho e a S. João de Ver. Havia processos de despedimento de funcionários, problemas laborais, que ele acompanhava de perto. Chegou a acompanhá-lo a Amarante e a Ponte de Lima, para tratar de assuntos da associação. Também tem conhecimento de que o arguido se deslocava com regularidade à sede, no Porto.
- Pretendiam realizar obras nas instalações de Espinho, o que determinou várias diligências pelo arguido, nomeadamente junto da segurança social, para tratar do programa “T…”.
- Deslocou-se várias vezes a Coimbra e a Aveiro para tratar destas questões, que implicavam diligências nas conservatórias, na segurança social e nos municípios.
- O arguido deslocava-se no seu próprio veículo, tendo chegado a deslocar-se, na viatura dele, ao serviço da C….
- Os cargos não eram remunerados, mas estava prevista a compensação de despesas efectuadas ao serviço da associação, mediante a apresentação de folhas de quilómetros na contabilidade da mesma.
- Não sabe se o arguido foi recebendo valores para o compensar das despesas suportadas com as deslocações.
- AB… – enfermeira.
- Referiu que o seu tio – padre L… – deixou um legado à C…, em testamento outorgado em 2007, tendo sido neste contexto que conheceu o arguido, que integrava a direcção daquela associação.
- No ano de 2006 o arguido deu-lhes a conhecer os vários estabelecimentos da C… (nomeadamente em S. João de Ver, Espinho, Fontarcada, Amarante e Porto) – acompanhou várias vezes o tio nessas deslocações. Noutras ocasiões, foi o seu tio, sozinho, com o arguido. Todas as deslocações foram efectuadas no veículo do arguido.
- F… – funcionário judicial e cunhado do arguido.
- Exerceu as funções de presidente do estabelecimento de S. João de Vêr, em 2006. Nesta altura, o arguido era presidente da direcção da associação, funções que acumulava com a direcção do estabelecimento de S. João de Vêr.
- O acto eleitoral foi muito conturbado – a anterior direcção recusava-se a abandonar as instalações e chegou a arrombar portas.
- O arguido, seu cunhado, passou a deslocar-se às instituições, que não conhecia, diariamente, ou quase. Aliás, abandonou praticamente as suas obrigações profissionais e até chegou a ser condenado em multa nalguns processos judiciais em que intervinha como perito.
- Fez viagens com o arguido a Estombar (Algarve) e ao Crato (Portalegre) para tratar de assuntos da associação, onde pernoitaram.
- Também foi a Barcelos, à Póvoa do Lanhoso (Fontarcada), ao Caramulo e a Santa Marta de Penaguião com o arguido, na viatura deste, para tratar de assuntos da C….
- Apresentou candidatura ao programa T…, em representação da associação, tendo efectuado diligências neste âmbito.
- Foi também o arguido que tratou do assunto relacionado com a morte de uma criança no estabelecimento de Gaia e deslocou-se a Braga para tratar de processos da associação.
- Além disso, o arguido apresentou despesas e ele próprio emitiu o cheque de 1.524,18 € para reembolso das mesmas.
- Quando foram ao Algarve e a Portalegre foi o arguido que suportou todas as despesas.
- Não sabe se durante este período ele foi sendo reembolsado das despesas efectuadas.
- O arguido tinha um mini-mercado e era perito judicial. A mulher trabalhava na instituição de S. João de Vêr.
- G… – amigo do arguido há 25 anos e aposentado da função pública; exerceu as funções de vogal da direcção do estabelecimento de Espinho da C…, naquele período temporal e durante cerca de dois anos.
- Deslocou-se a Lisboa na companhia do arguido; também ao Caramulo, a Santa Marta de Penaguião, a Barcelos e a Guimarães (aqui, havia um processo judicial em curso).
- Vinha quase todos os dias ao Porto, à sede, com o arguido, muitas vezes logo pela manhã. E também quase todos os dias era necessário ir aos estabelecimentos.
- O arguido anotava numa agenda as deslocações que fazia, para depois fazer contas com o Dr. D…. Mas a associação tinha dificuldades financeiras, decorrentes de dívidas deixadas pela direcção anterior. Pelo que sabe, o arguido ficou muito tempo sem receber o dinheiro, embora fosse apresentando os mapas.
- M… – engenheiro civil e amigo do arguido há vários anos.
- Referiu que, a determinada altura, a C… pretendia realizar obras, motivo pelo qual se deslocou várias vezes aos estabelecimentos de S. João de Vêr e de Espinho.
- Também foi na companhia do arguido ao Caramulo e aproveitaram para ir a Viseu (à repartição de finanças) e a Tondela. Também acompanhou o arguido a Amarante, altura em que conheceu o Dr. D….
- Todas as deslocações foram efectuadas na viatura do arguido.
- J… – foi membro da direcção da C… entre 2000 e 2003 (foi director de um dos estabelecimentos da associação e presidente do conselho fiscal), não tendo, contudo, acompanhado a instituição entre 2006 e 2008.
- Referiu que não havia veículos ao serviço dos elementos da direcção, pelo que se deslocavam nas próprias viaturas.
- Os directores apresentavam os quilómetros: folha excel, com demonstração dos quilómetros percorridos – data, local de deslocação e quilómetros percorridos.
- Apresentavam mapas do tipo dos constantes do Anexo I (fls. 214 e seguintes), que lhe foram exibidos.
- Referiu que ele próprio apresentava os mapas de kms – sem despesas adicionais – com regularidade: semanalmente ou mensalmente.
*
Relativamente às condições pessoais, sócio-económicas e familiares do arguido, o tribunal valorou o relatório social elaborado pela DGRS, constante dos autos, complementado pelas declarações por ele prestadas na audiência de julgamento.
Finalmente, o Tribunal atendeu ao teor do CRC do arguido igualmente junto aos autos.
*
Relativamente à actuação dolosa do arguido - nos moldes que vieram a resultar provados e coincidentes, no essencial, com a descrição constante da acusação -, o tribunal baseou a sua convicção na generalidade da prova produzida, analisada em função de critérios de normalidade, decorrentes das regras da experiência.
Assim, e desde logo, importa salientar que se afiguraram incongruentes e totalmente inverosímeis à luz das regras da experiência comum as declarações prestadas pelo arguido relativamente à explicação apresentada para justificar o recebimento do montante de € 15.000 – ou seja, a circunstância de ter estado durante cerca de dois anos a custear a expensas suas todas as despesas de deslocação que invocou, sem nunca desse valor ter sido reembolsado pela C….
Com efeito, é plena convicção do tribunal, em face da prova produzida, que não só o arguido incluiu nos mapas que apresentou deslocações que não realizou, por forma a justificar o recebimento daquela quantia, como mesmo em relação às deslocações efectivamente realizadas não era credor das quantias reclamadas.
É certo que algumas das testemunhas mencionam diversas deslocações efectuadas pelo arguido ao serviço da instituição a que presidia, deslocações que, segundo tais depoimentos, seriam diárias. Contudo, e com excepção das viagens realizadas pelas próprias testemunhas, na companhia do arguido, o conhecimento de quase todas as restantes, na sua globalidade, mostrou-se vago - fundamentalmente baseado no que ouviram dizer ao próprio arguido – e até exagerado (como claramente sucedeu com os depoimentos prestados pelas testemunhas F… e G…), exagero eventualmente motivado pela circunstância de se tratarem de amigos e pessoas próximas do arguido. De resto, a profusão das referidas deslocações não encontrou suporte na prova documental produzida nos autos, sendo de salientar que apenas uma parte das deslocações à sede da associação, sita no Porto, descriminadas pelo arguido nos mapas por ele apresentados, foi efectivamente realizada, como se constata das actas constantes do Anexo III.
Verifica-se, assim, que razão assiste à testemunha E… que referiu que, em média, o arguido deslocava-se à sede da associação, onde a testemunha trabalhava, duas ou três vezes por mês.
Por outro lado, foi produzida prova segura no sentido de demonstrar que era procedimento habitual o reembolso das despesas de deslocação realizadas pelos membros da direcção da associação: o vice-presidente D… recebia periodicamente quantias destinadas a compensá-lo das despesas efectuadas ao serviço da instituição (como relataram as testemunhas E…, I… e Z… e decorre da prova documental constante dos autos), como já antes havia sucedido com membros de anteriores direcções (tal como explicou a testemunha J…). De resto, até a testemunha I… – que conduzia o veículo utilizado pelo vice-presidente para se deslocar ao serviço da associação – recebeu quantias destinadas a reembolsá-lo das despesas efectuadas, como se constata dos documentos constantes do Anexo I.
Não havia, assim, nenhuma razão para que o arguido – presidente da direcção – tivesse de custear, a expensas suas e durante anos, as despesas realizadas ao serviço da associação. De resto, o próprio arguido não apresenta qualquer justificação suficientemente plausível para tal situação – por si alegada mas não demonstrada -, limitando-se a invocar que a “associação não tinha dinheiro”. Como é óbvio, se tal fundamento fosse verdadeiro também não teria sido reembolsado, pelo menos, o funcionário I….
E nem se percebe como é que o arguido, com os seus parcos rendimentos – atente-se nas suas próprias declarações e no teor das declarações de IRS constantes dos autos – poderia suportar despesas que, nalguns dos meses, excediam em muito o seu rendimento mensal (cfr., por exemplo, os mapas de quilómetros de fls. 215, 216, 218, 222, 223, 230, 231 e 234).
É claro que se todo o procedimento tivesse sido lícito e transparente, como invoca o arguido, o pagamento de um montante tão elevado e que implicava um desvio à finalidade que presidiu ao pedido de concessão do empréstimo (liquidar dívidas, designadamente à Segurança Social) teria sido submetido a prévia análise e decisão dos órgãos directivos da associação. Mas tal decisão (invocada pelo arguido) nunca existiu, como se constata da análise da prova documental junta aos autos e foi sublinhado pela testemunha W…, Inspectora da Segurança Social.
Na verdade, o que sucedeu foi exactamente o que foi descrito pela acusação: em execução do plano traçado com o arguido, o vice-presidente da associação, D…, levantou a quantia de 33.000 € da conta bancária da C…, logo no próprio dia em que o valor de 36.000 €, concedido pela K…, a título de empréstimo, ali ficou disponível, e depositou o montante de 15.000 € na conta bancária do arguido, que a recebeu e utilizou em proveito pessoal. E fê-lo o arguido, apesar de saber que a tal montante não tinha direito e que, ao assim proceder, prejudicava a associação C…, cujos interesses lhe competia defender.
Ficou ainda provado que o arguido prosseguiu os seus intentos apropriativos, logrando apropriar-se das quantias de 950 € e de € 1.524,18, pertencentes à associação, e que integrou no seu património, mais uma vez sem qualquer razão justificativa.
De resto, relativamente a estes montantes o próprio arguido referiu, num primeiro momento, não se recordar a que título é que os mesmos foram por si reclamados e recebidos, acrescentando, no final da audiência de julgamento, que a entrega da quantia de 950 € se destinava a reembolsá-lo do montante por si despendido na compra de um frigorífico para a associação.
Quanto ao primeiro dos referidos montantes é inequívoco que o mesmo foi pago sem que o arguido tivesse entregue qualquer documento que justificasse tal recebimento, como foi salientado pela testemunha E….
Por seu turno, a quantia de 1.524,18 € foi-lhe paga pela testemunha F… – cunhado do arguido e vice-presidente do estabelecimento de S. João de Ver da C… –, com base em documentos (os constantes do Anexo V) insusceptíveis de justificar despesas que pudessem ser reembolsadas.
Com efeito, e por um lado, não fica demonstrada a relação entre as despesas pagas pelo arguido e o exercício das suas funções de presidente da direcção da associação, reportando-se muitos dos documentos apresentados a refeições servidas no período nocturno (jantares) e a várias pessoas, sem indicação do nome do cliente e sem que o arguido tivesse justificado aquela relação. Por outro lado, os documentos (legíveis) constantes do Apenso V apenas totalizam a quantia de cerca de 700 €, equivalente a cerca de metade do valor efectivamente recebido. Mesmo assim, e com base em tais documentos e sem que tivesse justificado a proveniência das aludidas despesas e a sua relação com o cargo que exercia, o arguido logrou obter o pagamento do referido montante de € 1.424,18, o que bem evidencia a falta de rigor no tratamento dos assuntos financeiros da associação e comprova a pouca credibilidade que, nesta parte, o depoimento da testemunha F… mereceu ao tribunal.
*
No que concerne à matéria de facto considerada não provada, tal ficou a dever-se à circunstância de nenhuma prova ou nenhuma prova suficientemente consistente se ter produzido acerca da mesma pelas razões já explicitadas.
***
Enunciação das questões a decidir no recurso em apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal [Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal” III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada]. [Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95].
Assim, face às conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, importa decidir as seguintes questões:
- Nulidade do acórdão por falta de fundamentação – artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal;
- Impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada;
- Falta de consciência da ilicitude, por erro não censurável.
Passemos a analisar a primeira das questões elencadas e que contende com a nulidade do acórdão por falta de fundamentação (cfr. artigo 379º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal).
Argumenta o recorrente que “O Acórdão recorrido padece de vício de manifesta falta de fundamentação da decisão de facto, concretamente os Pontos 10, 15, 19, 20, 27, 28, 29, 30, 34, 35, 40, 41 e 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido”. E defende que “desconhece em concreto e de forma objectiva as razões que levaram o Tribunal a quo a proferir aquela decisão de facto, pelo que está impedido de avaliar a sua justeza e razoabilidade, o que tem como consequência que o Acórdão proferido, nesta parte, seja nulo, por manifesta falta de fundamentação - art.379º, nº1, al. a), do Código de Processo Penal”.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o nº2 do artigo 374º do Código de Processo Penal: «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”, sendo a inobservância total ou parcial de qualquer desses segmentos cominada com a nulidade [art. 379º, n.º 1, al. a)].
Esta exigência de fundamentação pode dizer-se que constitui, de modo mediato, um corolário do princípio do estado de direito democrático e, de modo imediato, um corolário da exigência constitucional nos termos da qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei [Artigo 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa]
O processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal, no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (assegurando-lhe todas as garantias de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas.
A fundamentação da decisão constitui uma exigência com vista à realização de uma tríplice finalidade: seja lograr a legitimação democrática do exercício da iuris dictio e, por via dela, uma maior confiança do cidadão na justiça; seja, permitir o autocontrolo à própria autoridade judiciária que profere a decisão; seja garantir o exercício do direito de defesa na dedução do recurso.
Uma decisão fundamentada ajuda, desde logo, à compreensão e, depois, à aceitação e à convicção por parte dos destinatários, sejam estes os imediatos – as partes, os sujeitos processuais -, seja, mediatamente, a comunidade social.
Já o autocontrolo – dizer também, a necessidade de justificar a decisão – pelo esforço em garantir e demonstrar a apreciação racional da prova, garantirá, à outrance, que a convicção não se formou a partir de meras conjecturas ou suspeitas. Ao motivar a decisão, o julgador indica, desde logo, os meios probatórios e, por via deles, consente o juízo da legalidade da prova produzida, que o mesmo é dizer consente a avaliação quanto a ter sido produzida ou não valoração ilícita de prova ou ter sido utilizado ou não meio de prova proibido.
Mas para além da indicação dos meios de prova compete-lhe tornar claro o iter formativo da convicção, de modo a que a sentença revele os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, levaram a que os valorasse de determinada forma.
O segmento final do n° 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal, acima transcrito, exige a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Indicação das provas, desde logo, de modo a que, como se deixou já referido, o destinatário imediato da decisão, como o tribunal de recurso, possam aferir da conformidade legal dos meios de prova utilizados e/ou das provas produzidas em sede de julgamento, seja no sentido de obviar à valoração de prova proibida, seja no sentido de obviar à valoração ilícita de prova.
À indicação das provas, acresce a exigência do «exame crítico das provas», exame crítico que deverá consistir “Na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.” (Ac. do S.T.J. de 30.01.2002, proferido no Proc. n° 3063/01).
Como bem se compreende, o exame crítico da prova reveste especial relevo já que é aí que o tribunal explica a convicção adquirida e qual o caminho percorrido para a atingir.
Para tanto, não necessita de realizar exposições doutrinárias, citações jurisprudenciais ou sequer descrever (por súmula ou desenvolvidamente) o teor de cada uma das provas produzidas. Basta que exprima com clareza e rigor as circunstâncias que determinaram a opção efectuada, tornando perceptível aos intervenientes processuais e aos cidadãos em geral, as razões da sua íntima convicção.
O exame crítico das provas deverá, em síntese, permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, do processo lógico que lhe serviu de suporte de modo a poder o mesmo tribunal de recurso concluir se sim ou não, na decisão posta em causa, se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, se a decisão sobre a matéria de facto não foi arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.
Citando Paulo Pinto de Albuquerque, “o dever de fundamentação da sentença exige a indicação dos motivos de credibilidade em testemunhas, documentos ou exames (Ac. STJ 30.01.2002 in SASTJ nº57, 69) e, designadamente, a indicação dos motivos por que não se atende a provas de sentido contrário (….) ou, dito de outro modo, a indicação dos motivos por que se preferiu uma versão dos factos em detrimento de outra (Ac. TEDH Gul v. Turquia, de 14.12.2000)”(in Comentário do Código de Processo Penal, Pág. 946).
Revertendo para o acórdão em crise, e que o recorrente argumenta ser nulo, por falta de fundamentação, verifica-se que o mesmo sintetiza as declarações prestadas pelo arguido e os depoimentos prestados pelas testemunhas, especificando em que medida mereceram (ou não) credibilidade. Faz também referência à prova documental e esclarece como as provas foram valoradas. Toda esta matéria foi analisada em quase catorze páginas do acórdão (pág. 14 a 27).
Efetivamente, atentas as considerações expostas, não pode concordar-se com a invocada falta de fundamentação do acórdão recorrido, já que do mesmo consta a enumeração dos factos provados e não provados, bem uma exposição concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. E, na motivação o tribunal a quo explicou, de forma sucinta, a credibilidade atribuída a cada uma das pessoas ouvidas (arguido e testemunhas), os meios de prova considerados para o efeito e os motivos que lhe presidiram, bem como as circunstâncias que teve em conta para ultrapassar (ou não) as divergências detectadas. Da peça em causa consta uma motivação da decisão de facto com uma apreciação crítica da prova satisfatoriamente esclarecedora das razões subjacentes à deliberação tomada.
Acresce que, os elementos do tipo subjectivo provam-se – prova indirecta a partir da constatação dos factos objectivos, conjugada com as regras da experiência comum: da situação objectiva se há-de retirar o elemento subjectivo, a intenção de actuação do arguido.
Com efeito é conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99. Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.
Assim sendo, do supra exposto, resulta que o acórdão recorrido está satisfatoriamente fundamentado, ao contrário do defendido pelo recorrente, não padecendo o mesmo da invocada nulidade aludida no artigo 379, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
Passemos à análise da segunda questão supra elencada e que contende com a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto provada e não provada.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do Código de Processo Penal, no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, de conhecimento oficioso, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do Código de Processo Penal, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal, como sejam o de especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e o de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, além da indicação das provas a renovar, se for caso disso.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (Sobre estas questões, v. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, disponíveis em www.dgsi.pt.).
Temos, pois, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
Mas se o recurso que incide sobre matéria de facto implica a reponderação, pelo Tribunal da Relação, de factos pontuais incorrectamente julgados, essa reponderação não é realizada se este tribunal se limitar a ratificar ou “homologar” o julgado (por exemplo, com a simples constatação, a partir do acolhimento da fundamentação, da correcção do factualmente decidido), em vez de fazer um verdadeiro exercício de julgamento, embora de amplitude menor.
Como faz notar o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 30.11.2006 (www.dgsi.pt/jstj), “em sede de conhecimento do recurso da matéria de facto, impõe-se que a Relação se posicione como tribunal efectivamente interveniente no processo de formação da convicção, assumindo um reclamado «exercício crítico substitutivo», que implica a sobreposição, ou mesmo, se for caso disso, a substituição, com assento nas provas indicadas pelos recorrentes, da convicção adquirida em 1.ª instância pela do tribunal de recurso, sobre todos e cada um daqueles factos impugnados, individualmente considerados, em vez de se ficar por uma mera atitude de observação aparentemente externa ao julgamento” [No mesmo sentido, o acórdão do STJ de 15.10.2008 (www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Henriques Gaspar) em que se escreveu que “a reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global e muito menos um novo julgamento da causa, também se não poderá bastar com declarações e afirmações gerais quanto à razoabilidade do julgamento da decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada (ou, melhor, uma nova ponderação), em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória das provas que serviram de suporte à convicção em relação aos factos impugnados, para, por esse modo, confirmar ou divergir da decisão recorrida (cf. Ac. n.º 116/07 do TC, de 16-02-2007, DR, II série, de 23-04-2007, que julgou inconstitucional a norma do art. 428.º, n.º 1 do CPP «quando interpretada no sentido de que, tendo o tribunal de 1.ª instância apreciado livremente a prova perante ele produzida, basta para julgar o recurso interposto da decisão de facto que o tribunal de 2.ª instância se limite a afirmar que os dados objectivos indicados na fundamentação da sentença objecto de recurso foram colhidos da prova produzida.]
É esse exercício que procuraremos fazer de seguida, mas não pode olvidar-se que uma das grandes limitações do tribunal de recurso quando é chamado a pronunciar-se sobre uma impugnação de decisão relativa a matéria de facto, sobretudo quando tem que se debruçar sobre a valoração, efectuada na primeira instância, da prova testemunhal, decorre da falta do contacto directo com essa prova, da ausência de oralidade e, particularmente, de imediação.
Também não se pode esquecer que o julgador pode recorrer a presunções naturais ou hominis no processo de formação da sua convicção, uma vez que se trata de um meio de prova admitido na lei (cf. art. 125º do Código de Processo Penal), sendo que de acordo com o disposto no art. 349º Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou julgador extrai de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido. Consistem, pois, em raciocínios lógico-dedutivos, ou demonstrativos, que o julgador elabora, a partir da prova indiciária, para alcançar a verificação dos “factos juridicamente relevantes”.
Está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta (Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt), também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Para avaliar da racionalidade e da não arbitrariedade da convicção sobre os factos, há que apreciar, de um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro, a natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais, utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.
O duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão da matéria de facto não tem, portanto, a virtualidade de abalar o princípio da livre apreciação da prova que está conferido ao julgador de primeira instância.
É que se afigura indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Note-se, aliás, que o legislador, consciente das limitações que o recurso da matéria de facto necessariamente tem envolver, teve o cuidado de dizer que as provas a atender pelo Tribunal ad quem são aquelas que “impõem”e não as que “permitiriam” decisão diversa (cfr. artigo 412º, nº 3, al. b) do Código de Processo Penal).
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
E diga-se que o recorrente cumpriu o ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do Código de Processo Penal.
O recorrente argumenta que foram incorrectamente julgados os pontos 10, 15, 19, 20, 27, 28, 29º, 30, 34, 35, 40, 41 e 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido, que defende sejam dados como não provados. Pretende ainda que a matéria alegada nos itens 44º, 45º e 58º da contestação seja dada como provada.
Atentemos no que se fez constar na Motivação da Matéria de Facto da sentença recorrida.
E atentemos também nos argumentos invocados pelo recorrente.
O Tribunal da Relação procedeu à análise da totalidade da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal e documental, sendo que os segmentos dos depoimentos referidos na motivação de recurso e aí transcritos pelo recorrente, correspondem apenas a parte do que por todos eles foi dito na audiência de julgamento.
Comecemos pelas declarações prestadas pelo arguido e com interesse para a questão ora em análise, que admitiu ter recebido os montantes constantes da acusação, que lhe foram pagos pela C…, de cuja direcção era o presidente, alegando, contudo, que tais pagamentos visaram o reembolso de despesas de deslocações efectuadas ao serviço daquela entidade, mas por si suportadas, tendo sido deliberado pela Associação o reembolso das suas despesas. Referiu, ainda, que naquele período dedicava-se à sua actividade de perito judicial e avaliador, o que fazia diariamente, sobretudo de manhã cedo e ao final do dia, com o que auferia cerca de 600/650 € mensais - sendo desta remuneração e da auferida pelo cônjuge (de valor mais ou menos equivalente) que subsistia o seu agregado familiar, composto por si, pela mulher e por três filhos, deles dependentes. Disse também que durante cerca de dois anos suportou todas as despesas de deslocação que efectuou ao serviço da “C…”, e que excederam o montante global de 15.000 €, explicando que não recebeu previamente aquele montante por falta de meios financeiros da referida entidade. E que recebeu apenas o referido montante – 15.000 € -, embora o seu crédito fosse de valor superior, por ter sido esse o valor o definido para ser pago, tendo prescindido do restante. Declarou que não apresentava mensalmente as despesas por si suportadas à “C…”, limitando-se a anotá-las na agenda, que depois facultou ao técnico de contas. Os mapas de deslocações foram entregues antes do recebimento da quantia de € 15.000,00. Referiu ainda que uma parte daquele valor constituía despesas efectivas (gasóleo, portagens e alimentação), sendo certo que se deslocava sempre no seu próprio veículo automóvel; o resto tratava-se de compensação dos kms percorridos – tendo sido tal pagamento determinado numa reunião da Direcção da associação, por sugestão do contabilista e do Vice-Presidente, Dr. D…. Afirmou que logo a seguir à tomada de posse foi a Lisboa, a uma reunião, ao serviço da Associação. Foi também ao Caramulo, Viseu e Tondela; a Vila Real, à Régua, a Lamego e a Santa Marta de Penaguião; a Portalegre e ao Crato; ao Algarve e a Amarante. Em 2006 vinha todos os dias ao Porto, onde se situa a sede da Associação. Tanto quanto sabe, a elaboração dos mapas de quilómetros era a forma usual de reembolso dos directores da associação, reportando-se o último por si apresentado ao mês de Dezembro de 2007. Quanto ao recebimento das restantes importâncias aludidas na acusação referiu que um dos cheques tinha que ver com o pagamento de um frigorífico para apoio à cozinha e refeitório, tendo sido reembolsado dessa despesa por si previamente suportada, após prévia entrega da respectiva documentação de suporte. Relativamente ao cheque de 1.524,18 €, referiu já não se recordar que tipo de despesas se destinava a pagar, mas acrescentou que todos os pagamentos por si reclamados foram precedidos da prévia entrega da documentação de suporte, tendo ocorrido, porém, um extravio de documentação.
A testemunha E…, que exerceu as funções de directora de serviços da “C…”, desde 31/1/2006, referiu que havia dívidas elevadas à Segurança Social, tendo sido contraído um empréstimo junto da K… no valor de cerca de 33.000,00 €. Sempre foi sua convicção que o empréstimo contraído serviria, fundamentalmente, para liquidar aquela dívida. Foi, assim, com surpresa que acompanhou o vice-presidente da associação – Dr. D… – ao banco, no dia em que foi levantada a quantia de € 33.000. Este disse-lhe para elaborar duas declarações comprovativas do recebimento pelos vice-presidente e presidente da direcção dos montantes em causa, para justificar o reembolso de despesas por eles anteriormente efectuadas, designadamente decorrentes das diligências para o processo que culminou nas eleições, despesas anteriores ao acto eleitoral. Disse que o vice-presidente ia praticamente todos os dias à sede da associação, onde ela se encontrava; o arguido fazia-o mais esporadicamente, talvez duas ou três vezes por mês. Esclareceu que trabalhou neste local em part time até Abril de 2008, data em que passou a trabalhar a tempo inteiro, estando lá até à uma da tarde, desconhecendo se depois desse horário o arguido lá ia ou se ia a algum lado (“… das nove à uma da tarde sei que não esteve todos os dias, depois da uma da tarde não sei”. Adiantou ainda que o arguido fez muitas viagens, fez um périplo pelo país a investigar as casas que tinham pertencido à C… e, embora ela não tivesse ido viu documentos de finanças disso…alguns estabelecimentos do centro e sul do pais estavam desactivados, em tempos a C… tinha 27 estabelecimentos, hoje tem 7 ou 8, estão desactivados 20 ou 21 estabelecimentos. Deslocavam-se ambos nos seus próprios veículos, confirmando que “a C… não tinha carros afectos à sede”. O Dr. D… apresentava mensalmente uma lista com as despesas efectuadas. Pagava-lhe directamente do caixa: se houvesse saldo e se fosse um valor reduzido. Podia também ser emitido um cheque, assinado por ambos. As despesas de deslocação eram pagas através de mapas de quilómetros (“O que me passou pelas mãos era pago ao quilómetro, no caso do Dr. D…, só mais tarde no caso do Sr. B… é que verifiquei essa situação, era o valor que estava inscrito na lei para aquele ano. No caso do Dr. D… ele chegava ao final do mês e apresentava a lista dos quilómetros do mês, as portagens, os almoços e outras, algumas vezes pagava do caixa, outras vezes era por cheque, eu apenas preenchia o cheque”. Referiu que o arguido nunca lhe entregou mapas de despesas, como fazia o vice-presidente, e que, antes das situações atrás descritas, nunca tinha procedido ao pagamento de despesas ao arguido (“o Sr. B… justificou as verbas com os mapas, com as despesas dos quilómetros”), acrescentando que os 15.000€ foram justificados com os mapas de quilómetros. Perguntado que lhe foi se sabia se alguma destas viagens dos mapas de quilómetros era falsa, respondeu “Eu não posso afirmar se são falsas ou não”.
Quanto aos cheques indicados na acusação e cujo pagamento foi determinado pelo arguido, referiu que havia falta de comprovativos em relação às despesas reclamadas. Mesmo assim cumpriu a ordem recebida e pagou-lhe os 950€, montante que retirou do caixa. O outro cheque foi tratado com o estabelecimento de S. João de Ver.
Confirmou o facto de estarem pendentes acções judiciais, nas quais intervinha a associação “C…”, e de terem sido apresentadas candidaturas ao programa “T…” – pelo menos os estabelecimentos de S. João de Ver e, mais tarde, o de Espinho. Soube que o arguido efectuou deslocações ao serviço da associação, embora não possa descrevê-las com exactidão. Efectuou diligências no âmbito do programa T…; deslocou-se ao estabelecimento de Gaia, na sequência da morte de uma criança; houve reuniões e contactos com a Junta de Freguesia de Santa Marta de Penaguião, com o arguido e o vice-presidente Dr. D…. Os mapas entregues pelo arguido B… foram entregues à contabilidade, mas muito depois do recebimento do dinheiro. Aquelas despesas foram incluídas nas contas da associação do ano de 2007, embora os mapas se reportassem também a despesas relativas a anos anteriores (2005 e 2006).
A testemunha H…, amigo do arguido há 30 anos, tendo exercido as funções de tesoureiro da associação até 2008, cargo que ocupou a convite do arguido referiu que este efectuou muitas diligências quando tomou posse para avaliar a situação (designadamente, patrimonial) em que se encontrava a instituição – em conservatórias, paróquias, etc. Inicialmente, o arguido vinha todos os dias ao Porto. Depois, quando a situação da associação começou a ficar regularizada, com menor frequência. Acentuou que inicialmente arguido vinha todos os dias ao Porto, à sede, depois quando a coisa normalizou já não vinha todos os dias, mas vinha muitas vezes, porque por vezes acontecia que ele estava numa instituição e telefonavam-lhe de outra a dizer que havia lá um problema porque os antigos directores tinham ido para lá criar problemas e dizer que nós não mandávamos nada, eles é que mandavam, isto ainda demorou vários meses…muitas vezes ele estava numa instituição e tinha que ir a outra…em 2006 foi quase sempre, muitas vezes ele ia de manhã e só vinha à noite (“ele deslocava-se lá praticamente todos os dias, muitas vezes eu não vinha, mas ele vinha…os problemas existiram não só na sede como nas instituições..”). Acrescentou que, neste período de tempo, desde que iniciou funções até Outubro de 2007, essas deslocações e despesas não foram inicialmente pagas, nem periodicamente, porque não havia dinheiro, não eram pagas mensalmente nem periodicamente, só mais tarde, inicialmente não havia dinheiro. Acrescentou ainda que “…O Dr. D… dizia sempre ao Sr. B…, veja lá, veja os quilómetros, apresente os mapas, você faz muitos quilómetros, quando a instituição tiver dinheiro paga-lhe…eu ouvi o Dr. D… várias vezes nas reuniões a chamar a atenção do Sr. B…” e que “…o Dr. D… estava sempre a dizer, ò Sr. B… tome nota dos quilómetros, você vai com o seu carro, tem despesas” e ainda que “Falava-se constantemente, como eu disse à bocado, o Dr. D… estava sempre a dizer, ò B… veja lá, você tome nota das despesas, porque quando houver dinheiro você tem de receber”.
A testemunha F…, cunhado do arguido e que exerceu as funções de presidente do estabelecimento de S. João de Vêr, em 2006, altura, em que o arguido era presidente da direcção da associação, funções que acumulava com a direcção do estabelecimento de S. João de Vêr, referiu que o arguido passou a deslocar-se às instituições, que não conhecia, diariamente, ou quase. Fez viagens com o arguido a Estombar (Algarve) e ao Crato (Portalegre) para tratar de assuntos da associação, onde pernoitaram. Também foi a Barcelos, à Póvoa do Lanhoso (Fontarcada), ao Caramulo e a Santa Marta de Penaguião com o arguido, na viatura deste, para tratar de assuntos da C…. Apresentou candidatura ao programa T…, em representação da associação, tendo efectuado diligências neste âmbito. Foi também o arguido que tratou do assunto relacionado com a morte de uma criança no estabelecimento de Gaia e deslocou-se a Braga para tratar de processos da associação. Além disso, o arguido apresentou despesas e ele próprio emitiu o cheque de 1.524,18 € para reembolso das mesmas. Quando foram ao Algarve e a Portalegre foi o arguido que suportou todas as despesas. Não sabe se durante este período ele foi sendo reembolsado das despesas efectuadas.
A testemunha G…, amigo do arguido há 25 anos e que exerceu as funções de vogal da direcção do estabelecimento de Espinho da C…, naquele período temporal e durante cerca de dois anos referiu que se deslocou a Lisboa na companhia do arguido; também ao Caramulo, a Santa Marta de Penaguião, a Barcelos e a Guimarães (aqui, havia um processo judicial em curso). Afirmou que vinha quase todos os dias ao Porto, à sede, com o arguido, muitas vezes logo pela manhã. E também quase todos os dias era necessário ir aos estabelecimentos. O arguido anotava numa agenda as deslocações que fazia, para depois fazer contas com o Dr. D…. Mas a associação tinha dificuldades financeiras, decorrentes de dívidas deixadas pela direcção anterior. Pelo que sabe, o arguido ficou muito tempo sem receber o dinheiro, embora fosse apresentando os mapas.
A testemunha M…, amigo do arguido há vários anos referiu que, a determinada altura, a C… pretendia realizar obras, motivo pelo qual se deslocou várias vezes aos estabelecimentos de S. João de Vêr e de Espinho. Também foi na companhia do arguido ao Caramulo e aproveitaram para ir a Viseu (à repartição de finanças) e a Tondela. Também acompanhou o arguido a Amarante, altura em que conheceu o Dr. D…. Todas as deslocações foram efectuadas na viatura do arguido.
A testemunha Y…, administrador da casa da Póvoa do Lanhoso, integrada na associação “C…”, desde final de 1998 referiu que em 2006 o arguido integrou a direcção da C…, tendo assumido o cargo de presidente e a testemunha assumiu o cargo de secretário da direcção, embora continuasse a exercer as funções anteriores no estabelecimento de Póvoa do Lanhoso. Naquele período o arguido deslocou-se 2/3 vezes ao estabelecimento da Póvoa do Lanhoso.
A testemunha I…, administrativo da “C…”, função que começou por desempenhar, em 1998, no patronato de Amarante que referiu que acompanhava o Dr. D… e vinha com ele, no veículo do mesmo, quase todos os dias ao Porto. Estas despesas de deslocação eram pagas com base numa folha de quilómetros que elaborava e apresentava, em regra, no final de cada mês, na sede da associação, no Porto. Nestas despesas incluía quilómetros, portagens e alguns almoços. Entregava na contabilidade os mapas com os respectivos documentos de suporte (talões, facturas, etc.), após o que recebia os pagamentos respectivos da testemunha E…, que lhe entregava o dinheiro para pagar as despesas. No total, naquele período, via o arguido cerca de 10 vezes por mês na sede da associação, no Porto.
A testemunha N…, amigo do arguido B… referiu que no ano de 2006, quando o arguido foi eleito presidente da direcção, a pedido deste começou a prestar apoio num estabelecimento da C…, em Espinho, tendo sido nomeado vice-presidente do mesmo. Tem conhecimento de que o arguido visitava com regularidade estabelecimentos da C… – ia com frequência a Espinho e a S. João de Ver. Havia processos de despedimento de funcionários, problemas laborais, que ele acompanhava de perto. Chegou a acompanhá-lo a Amarante e a Ponte de Lima, para tratar de assuntos da associação. Também tem conhecimento de que o arguido se deslocava com regularidade à sede, no Porto. Pretendiam realizar obras nas instalações de Espinho, o que determinou várias diligências pelo arguido, nomeadamente junto da segurança social, para tratar do programa “T…”. Deslocou-se várias vezes a Coimbra e a Aveiro para tratar destas questões, que implicavam diligências nas conservatórias, na segurança social e nos municípios. O arguido deslocava-se no seu próprio veículo, tendo chegado a deslocar-se, na viatura dele, ao serviço da C… do os cargos não eram remunerados, mas estava prevista a compensação de despesas efectuadas ao serviço da associação, mediante a apresentação de folhas de quilómetros na contabilidade da mesma.
A testemunha AB… referiu que o seu tio – padre L… – deixou um legado à C…, tendo sido neste contexto que conheceu o arguido, que integrava a direcção daquela associação. No ano de 2006 o arguido deu-lhes a conhecer os vários estabelecimentos da C… (nomeadamente em S. João de Ver, Espinho, Fontarcada, Amarante e Porto) – acompanhou várias vezes o tio nessas deslocações. Noutras ocasiões, foi o seu tio, sozinho, com o arguido. Todas as deslocações foram efectuadas no veículo do arguido.
A testemunha J… referiu que foi membro da direcção da C… entre 2000 e 2003 (foi director de um dos estabelecimentos da associação e presidente do conselho fiscal), não tendo, contudo, acompanhado a instituição entre 2006 e 2008. Referiu que não havia veículos ao serviço dos elementos da direcção, pelo que se deslocavam nas próprias viaturas. Os directores apresentavam os quilómetros: folha excel, com demonstração dos quilómetros percorridos – data, local de deslocação e quilómetros percorridos. Apresentavam mapas do tipo dos constantes do Anexo I (fls. 214 e seguintes), que lhe foram exibidos. Referiu que ele próprio apresentava os mapas de kms – sem despesas adicionais – com regularidade: semanalmente ou mensalmente.
Tais depoimentos, prestados em audiência de julgamento, têm que ser conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos, particularmente os que se encontram juntos de fls. 39 e seguintes (relatórios de acções inspectivas realizadas pelo Serviço de Fiscalização – Norte da Segurança Social); fls. 108 e 184, 246/250 e 266; fls. 350/370 (estatutos da “C…”); elementos bancários de fls. 507, 508, 509, de fls. 566 a 578, de fls. 580 a 584, de fls. 588 a 590, de fls. 791 a 794 e de fls. 796 (cópia do cheque emitido a favor do arguido no montante de € 1.524,18); documentos de fls. 510 e 511 (comprovativos de saída de caixa do montante de 950 € para “despesas presidente Direcção”); cópia de recibos/facturas de fls. 514 a 523; listagem de despesas recebidas pela testemunha I… (fls. 799); declarações de IRS do arguido B… e mulher referentes aos anos de 2006 e 2007 (fls. 805/810); cópia do contrato de mútuo celebrado entre a associação e a K… (fls. 834/840); publicações no DR dos estatutos da associação C… e respectivas alterações (fls. 849/852); fls. 868 (cópia da acta nº 29 da Assembleia Geral); cópia do contrato celebrado com a segurança social ao abrigo do programa T… (fls. 938/944) e do testamento outorgado por padre L… (fls. 945); documentos comprovativos de pagamentos efectuados à segurança social (fls. 1193/1197); elementos documentais constantes do Anexo I – com destaque para os mapas de quilómetros apresentados pelo arguido e constantes de fls. 213 a 239; elementos documentais constantes dos Anexos II e III – actas da direcção da Associação C…; elementos documentais constantes do Anexo V – facturas e recibos - e do Apenso I
Ora, as referidas testemunhas, cujo depoimento nos pareceu coerente e imparcial confirmaram a realização pelo arguido de inúmeras viagens por várias zonas do país (que identificaram), enquanto presidente da direcção, sendo que nenhuma das testemunhas ouvidas afirmou que o recorrente não tivesse realizado uma qualquer viagem. Pelo contrário, as testemunhas que se pronunciaram sobre tal assunto, todas elas confirmaram ao Tribunal que o arguido realizou inúmeras viagens ao serviço da C… e nenhuma confirmou a falta de veracidade de tais deslocações ou dos mapas de quilómetros apresentados.
E de acordo com tais depoimentos, conjugados com a prova documental junta aos autos, nomeadamente os mapas de quilómetros juntos a fls. 214 a 236 do apenso I não resulta com segurança que o arguido não tenha efectuado todas as deslocações que incluiu nos referidos mapas.
Ao invés, se atentarmos com cautela nesses mapas, verificamos que uma parte das deslocações aí referidas e descriminadas à sede da associação, sita no Porto, foi realizada, como se constata das actas constantes do Anexo III (as actas das reuniões da direcção juntas aos autos (nomeadamente no anexo III) que relatam a presença do arguido nas mesmas, na sede da associação, em datas coincidentes com os seus apontamentos sobre deslocações ao Porto). As demais, embora sem precisão da data, foram referidas pelas testemunhas, de acordo com os respectivos depoimentos já acima escalpelizados.
Pelo que, não pode este tribunal concluir, como fez o tribunal a quo, de que “não resulta que o arguido tenha efectuado todas as deslocações que incluiu no mapa, com exclusão daquelas que o tribunal considerou terem-se realizado”.
Até porque a testemunha E…, testemunha cujo depoimento se revelou essencial para o tribunal a quo, para além de ter sido a única que referiu que, em média, o arguido se deslocava à sede da associação, onde a testemunha trabalhava, duas ou três vezes por mês, também referiu que ela só lá estava até às 13 horas, desconhecendo se, a partir dessa hora o arguido se deslocava lá.
Por outro lado, foi produzida prova no sentido de demonstrar que era procedimento habitual o reembolso das despesas realizadas pelos membros da direcção da associação e ao serviço desta sob a forma de mapas de quilómetros, era habitual os directores serem reembolsados das despesas de deslocações com base em mapas de quilómetros, onde constava os quilómetros, o dia e o local da deslocação (como relataram as testemunhas E…, I… e Z… e decorre da prova documental constante dos autos), como já antes havia sucedido com membros de anteriores direcções (tal como explicou a testemunha J…).
Neste contexto, pouco relevante se mostra o argumento adiantado pelo tribunal a quo quando refere que “não havia nenhuma razão para que o arguido – presidente da direcção – tivesse de custear, a expensas suas e durante anos, as despesas realizadas ao serviço da associação …”.
É que o arguido justifica o não reembolso de tais despesas com o facto de a “associação” ter falta de meios financeiros, não ter dinheiro disponível para esse efeito. E de facto, tais dificuldades foram também atestadas pela testemunha H…, G… e E…. E do depoimento desta última testemunha resulta ainda que o arguido até então (Outubro de 2007) não tinha apresentado quaisquer despesas.
E nem se defenda que o arguido não poderia suportar essas despesas que, nalguns dos meses, excediam o seu rendimento mensal, pois nenhuma das testemunhas referiu em momento algum que o arguido não tinha condições económicas para suportar os custos inerentes a todas as viagens efectuadas no período em causa ao serviço da C…. Acresce que os 15 mil euros recebidos pelo arguido se referem ao reembolso de quilómetros, efectuados na sua viatura ao serviço da C…, que tem a ver com gastos efectivos e determinados, como despesas de combustível, mas também com gastos não determináveis, isto é, gastos que têm a ver com o desgaste e desvalorização da viatura pelos quilómetros efectuados, cujo valor apurado teve como referência o valor pago por km aos funcionários públicos, como referiu a testemunha E….
Por outro lado, não se atende ao argumento do tribunal recorrido no sentido de que “se o reembolso ao arguido tivesse sido lícito e transparente e uma vez que o empréstimo tinha como finalidade o pagamento à Segurança Social, teria sido submetido a deliberação dos órgãos directivos, o que não sucedeu”.
É que a divida à Segurança Social foi paga em Dezembro de 2006, conforme se comprova da certidão emitida pela Segurança Social e junta de fls. 1163 (no início da audiência de julgamento do dia 12.12.2013), pelo que em Outubro de 2007 não havia dívidas a Segurança Social, não resultando de qualquer documento junto aos autos que a utilização do dinheiro do empréstimo para outro fim que não o pagamento à Segurança Social carecia de qualquer deliberação dos órgãos directivos.
Concordamos, pois, com o recorrente quando defende que “Altamente censurável era se o arguido fosse reembolsado com o dinheiro do empréstimo, como foi, sem que a divida à Segurança Social estivesse paga, o que não sucedeu”.
Ademais, conforme já referimos, o pagamento ao arguido era do conhecimento dos membros da direcção, como referiu o tesoureiro, a testemunha H….
Sabemos que as provas não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.
Importa, pois, recorrer ao conjunto de toda a prova produzida, valorando-a e relacionando-a.
E, numa visão conjunta e integrada de toda a prova produzida, atentas as regras da experiência comum e da normalidade não pode este tribunal concluir, com segurança, que o arguido preencheu os referidos mapas de quilómetros com deslocações que não correspondiam à realidade das deslocações que fez, tendo sido o meio por ele encontrado para dar uma aparência de realidade ao recebimento da sobredita quantia de €15.000,00, que recebeu, ou seja, que as “tabelas que o arguido preencheu, colocando deslocações e quilómetros que bem sabia não ter realizado, não correspondiam à realidade, a par de outras que, efectivamente, efectuara, o que fez, apenas, para justificar o depósito de €15.000,00 na sua conta bancária”.
E não se pode escamotear que, de acordo com os mapas de quilómetros (também utilizados pelo vice-presidente e motorista para documentar o reembolso de despesas pelos quilómetros efectuados) relativos aos anos de 2006 (cujo valor ascende a 8.211,50€) e de 2007 (cujo valor ascende a 7.112,08), o montante global das despesas ascende a 15.233,58€ (superior a 15.000€).
Efetivamente, a testemunha J…, que foi Presidente do Conselho Fiscal da C… há cerca de dez anos, referiu no seu depoimento que já no seu tempo era habitual os directores serem reembolsados das despesas de deslocações com base em mapas de quilómetros, onde constava os quilómetros, o dia e o local da deslocação, que foi sempre esse o procedimento na C…, conforme resulta dos excertos do seu depoimento que se transcreve: “…A C… não tinha veículos ao serviço dos seus directores… eles deslocavam-se em viaturas próprias… eles apresentavam que faziam à instituição… através de uma folha feita no computador, onde eram retratadas as deslocações, os quilómetros, o dia e o local da deslocação”. E perguntado se sabe se isso era habitual, se já era assim antes, se sempre foi assim?, respondeu que “O conhecimento que eu tinha era que aquilo era feito, portanto, era o corrente, o habitual”. Confrontado com os mapas de quilómetros de fls. 214 a 233, apresentados pelo arguido, confirmou que eram esses documentos que era habitual fazer-se.
Esta versão de que o reembolso de despesas na C… aos seus directores era feito através da apresentação de mapas de quilómetros foi confirmada também pela testemunha H….
Também a testemunha I… referiu que as despesas de deslocação eram pagas, em regra, no final de cada mês, na sede da associação, no Porto, entregando-se na contabilidade os mapas com os respectivos documentos de suporte (talões, facturas, etc.), após o que recebia os pagamentos respectivos da testemunha E…, que lhe entregava o dinheiro para pagar as despesas, depoimento esse corroborado pelo documento junto a fls. 799.
Por outro lado, as testemunhas H…, N…, AB…, F…, G… e M…, para além de relataram as inúmeras viagens em que acompanharam o arguido em deslocações ao serviço da C…, todas elas referiram que o arguido tinha uma agenda de bolso, onde anotava cada uma das viagens e correspondentes quilómetros. Mais concretamente, a testemunha H… referiu que “Ele tinha uma agenda onde apontava os quilómetros… era uma agenda de bolso, trazia no bolso, onde se deslocava ele anotava os quilómetros, onde se deslocava, onde era e essas coisas todas”.
Aqui chegados e, reportando-nos aos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo, estando em causa a prova dos factos que realizam o tipo subjectivo do crime, que como processo psíquico, pertence ao foro interno do agente, sendo insusceptível de apreensão directa, e por isso, tem de ser inferido dos factos materiais que, provados e apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência, face a todo o exposto e, no que se refere à quantia de 15.000€, não pode este tribunal concluir que o arguido agiu aproveitando-se do cargo que desempenhava na C… para fazer sua a quantia de € 15.000,00, a que sabia não ter direito a receber, ciente de que, assim, causava um prejuízo equivalente a tal associação, o que quis e logrou conseguir e, muito menos, que o fez em colaboração de esforços e de intentos com o falecido D… (em co-autoria).
Na verdade, o facto de ter sido efectuado em simultâneo um pagamento ao recorrente e ao Dr. D… não significa forçosa e necessariamente que entre eles tenha havido um qualquer plano para esse efeito, provado que está até que foi o Dr. D… que levantou o dinheiro e depositou 15.000,00€ na conta do recorrente, sem que se tenha provado qualquer interferência do arguido nesta acção (cfr. ponto 15 dos factos provados). Ademais, a divisão da quantia em causa não seria igualitária!
Em conformidade, este tribunal considera que não se provaram os seguintes factos:
- que fazendo-se valer dessa possibilidade, o arguido B… e o falecido D…, conceberam um plano que consistiu em permitirem a apropriação pelo menos pelo primeiro de quantias monetárias pertencentes à associação C…, que justificariam com a aparência de se tratarem de pagamentos de despesas decorrentes do cargo exercido (ponto 10 dos Factos Provados);
- que o falecido D…, levantou a quantia de €33.000,00 da conta da C… na execução do plano traçado com o arguido (ponto 15 dos Factos Provados);
- que essas tabelas que o arguido preencheu, colocando deslocações e quilómetros que bem sabia não ter realizado e não correspondiam à realidade (ponto 19 dos Factos Provados);
- O que fez, apenas, para justificar o depósito de €15.000,00 na sua conta bancária (ponto 20 dos Factos Provados);
- que para além dessas deslocações o arguido preencheu os referidos mapas de quilómetros com deslocações que não correspondiam à realidade das deslocações que fez, tendo sido o meio por ele encontrado para dar uma aparência de realidade ao recebimento da sobredita quantia de €15.000,00, que recebeu nos termos acima expostos (ponto 27 dos Factos Provados);
- que o arguido agiu em colaboração de esforços e de intentos com o falecido D…, aproveitando-se do cargo que desempenhava na C… para fazer sua a quantia de € 15.000,00, a que sabia não ter direito a receber, ciente de que, assim, causava um prejuízo equivalente a tal associação, o que quis e logrou conseguir (ponto 28 dos Factos Provados).
Por outro lado, considerando a matéria alegada nos itens 44º, 45º e 58º da Contestação, impõe-se aditar aos factos provados os seguintes:
- O arguido apontava numa agenda de bolso cada uma das viagens que efectuava e correspondentes quilómetros;
- Tais despesas efectuadas pelo arguido eram conhecidas dos restantes elementos da direcção.
No que se refere à matéria alegada no item 44º da contestação (que nas suas deslocações, o arguido usou sempre a sua viatura, pois a C… não tinha nenhuma viatura ao serviço dos seus directores), e que o recorrente pretende que seja dada como provada, a mesma consta já do artigo 69º da Matéria de Facto Provada.
Aqui chegados, importa analisar a situação atinente ao recebimento pelo arguido das quantias de 950,00€ e 1524,18€, em 31 de Março e 3 de Abril, respectivamente.
Defende o recorrente que “relativamente ao pagamento de 950,00€ e 1.524,18 €, estão devidamente documentados através dos respectivos documentos de suporte, isto é, recibos e facturas…”
Vejamos.
Comecemos por dizer que o recorrente não impugnou que na sequência de uma ordem sua foi emitido o cheque n.º ………., datado de 06 de Março de 2008, sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no banco O… e titulando a quantia de €1.800,00 (fls. 509) e que no dia 08 de Março de 2008, tal quantia de €1.800,00 ficou disponível em caixa e, nessa data, o arguido solicitou, na sede da C…, que lhe fosse entregue, em numerário, a quantia de €950,00 alegando que tal quantia lhe era devida a título de despesas decorrentes do seu cargo (cfr. extracto de fls. 511 e extracto de fls. 241 e 242 do anexo I). Assim agindo, logrou o arguido receber e fazer sua a quantia de € 950,00, que usou em seu proveito pessoal (Cfr. fls. 510).
Tal como não impugnou que em data não concretamente apurada de finais de Março de 2008, o arguido deu ordens na C… para que fosse emitido um cheque pelo montante de € 1.524,18, alegando que se destinava ao pagamento de despesas suas decorrentes do cargo de Presidente da Direcção. Nessa sequência, veio a ser preenchido o cheque n.º ………., sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no Banco O…, pelo referido montante de €1.524,18 e datado de 03 de Abril de 2008 (cfr. cheque de fls. 859). Tal cheque foi apresentado a pagamento pelo arguido, no dia 07 de Abril de 2008, na agência do O… localizada em Lourosa, tendo nessa data, o arguido recebido tal quantia que usou em seu proveito pessoal (fls. 858 e 859). Para justificar a emissão de tal cheque, o arguido entregou na C… os recibos que constam do anexo V referentes a portagens, abastecimentos de combustível e facturas de restaurantes, sem descriminação do cliente.
Ora, relativamente aos montantes de 950€ e 1.524,18€ o próprio arguido referiu, num primeiro momento, não se recordar a que título é que os mesmos foram por si reclamados e recebidos, acrescentando, no final da audiência de julgamento, que a entrega da quantia de 950 € se destinava a reembolsá-lo do montante por si despendido na compra de um frigorífico para a associação, tinha que ver com o pagamento de um frigorífico para apoio à cozinha e refeitório, tendo sido reembolsado dessa despesa por si previamente suportada, após prévia entrega da respectiva documentação de suporte.
Relativamente ao cheque de 1.524,18 €, referiu já não se recordar que tipo de despesas se destinava a pagar, mas acrescentou que todos os pagamentos por si reclamados foram precedidos da prévia entrega da documentação de suporte, tendo ocorrido, porém, um extravio de documentação.
Quanto ao primeiro dos referidos montantes é inequívoco que o mesmo foi pago sem que o arguido tivesse entregue qualquer documento que justificasse tal recebimento, como foi salientado pela testemunha E… que disse que, quanto aos cheques indicados na acusação e cujo pagamento foi determinado pelo arguido, havia falta de comprovativos em relação às despesas reclamadas (esses cheques tinham problemas, por não terem despesas que os suportassem, referiu a mesma testemunha). Mesmo assim cumpriu a ordem recebida e pagou ao recorrente os 950€, montante que retirou do caixa.
E de facto nos autos não se vislumbra qualquer documento (recibo ou factura) que suporte ou comprove qualquer montante despendido pelo arguido na compra de um frigorífico para a associação.
Relativamente à quantia de 1.524,18€ foi paga ao arguido pela testemunha F… – cunhado do mesmo e vice-presidente do estabelecimento de S. João de Ver da C… –, com base em documentos (os constantes do Anexo V). Esta testemunha referiu que o arguido apresentou despesas e ele próprio emitiu o cheque de 1.524,18 € para reembolso das mesmas.
E verificados tais documentos, não podemos deixar de referir que a maior parte das despesas apresentadas dizem respeito a refeições, muitas delas jantares (tendo em conta a hora da emissão da factura), servidas a várias pessoas (por exemplo de 30 de Março de 2008, no valor de 36,40 € e 1 de Abril de 2008, no valor de 27,10 €, pelo que nunca seria justificado o seu pagamento), sem indicação do nome do cliente e sem indicação da sua relação com o exercício pelo arguido das suas funções como presidente da direcção, ou seja, sem indicação da sua relação concreta com actividades praticadas ao serviço da associação.
Ora, neste contexto, os referidos documentos - recibos entregues pelo arguido e que constam do anexo V referentes a portagens, abastecimentos de combustível e facturas de restaurantes, sem descriminação do cliente – são insusceptíveis de demonstrar a relação entre as despesas eventualmente pagas pelo arguido e o exercício das suas funções como presidente da direcção da associação.
Acresce que, os documentos (legíveis) constantes do Apenso V apenas totalizam a quantia de cerca de 700 €, equivalente a cerca de metade do valor efectivamente recebido.
Assim sendo, não se pode concluir que o mesmo tivesse direito a ser ressarcido de tais despesas, admitindo que foi ele que as efectuou.
Quer dizer, não se vislumbra qualquer razão que justificasse o pagamento ao arguido de tal quantia de 1.524,18€.
E mesmo assim, e com base em tais documentos, sem que deles resulte a relação entre a proveniência das aludidas despesas com o cargo que exercia, o arguido logrou obter o pagamento do referido montante de € 1.524,18, o que bem evidencia espelha a falta de rigor no tratamento dos assuntos financeiros da associação.
E, considerando que o recorrente durante quase dois anos não apresentou nenhumas despesas (2006 até Outubro de 2007), não deixa de ser estranho que o mesmo tenha recebido as duas quantias (950€ e 1.524,18) com um pequeno intervalo de tempo (cerca de um mês) e em fase final de mandado, numa altura em que sabia que havia a probabilidade de não ser reeleito – o que veio a acontecer poucos dias depois (foi em finais de Março de 2008 que o arguido deu ordens na C… para que fosse emitido um cheque pelo montante de € 1.524,18, alegando que se destinava ao pagamento de despesas suas decorrentes do cargo de Presidente da Direcção, cheque esse com o n.º ………., sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… era titular no Banco O…, pelo referido montante de €1.524,18 e datado de 03 de Abril de 2008, tendo sido apresentado a pagamento pelo arguido, no dia 07 de Abril de 2008, na agência do O… localizada em Lourosa, tendo nessa data, o arguido recebido tal quantia que usou em seu proveito pessoal).
É que não se pode escamotear que, conforme resulta das actas de reuniões da direcção, em 5 de Abril de 2008 foram realizadas eleições para a direcção tendo a lista do arguido perdido (o que com certeza já se antevia em Março de 2008 e já sabia quando recebeu a quantia de 1.524,18€).
Pelo que, face a todo o exposto, neste contexto, na conjugação de toda a prova produzida, atentas as regras da experiência comum e do normal acontecer, é plena convicção do tribunal que o arguido prosseguiu os seus intentos apropriativos, logrando apropriar-se das quantias de 950€ e de 1.524,18€, pertencentes à associação, e que integrou no seu património, sem qualquer razão justificativa.
Aqui chegados, passamos a reportar-nos aos factos atinentes ao elemento subjectivo do tipo.
Está em causa a prova dos factos que realizam o tipo subjectivo do crime. E para se apurar o elemento subjectivo do crime, não tem de o mesmo resultar da confissão do arguido, pois se tal fosse necessário, não existiriam crimes.
O dolo, como processo psíquico, pertence ao foro interno do agente, sendo insusceptível de apreensão directa, e por isso, na ausência de confissão (ou de confissão congruente), tem de ser inferido dos factos materiais que, provados e apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência.
Ao julgador exige-se, então, que decida a questão de facto de forma a concluir, ou não, se o agente agiu internamente da forma como o revelou externamente. E essa conclusão assentará, não num juízo de certeza absoluta – esse dificilmente se obterá fora da confissão e mesmo esta pode não ser verdadeira – mas num juízo que vença ou ultrapasse a dúvida razoável.
As vicissitudes da prova da intenção são comuns à generalidade dos crimes, sendo que os factos que integram o dolo constituem um exemplo frequente de demonstração por prova indirecta.
Os actos interiores ou factos internos, que respeitam à vida psíquica, raramente se provam directamente. Na ausência de confissão, em que o arguido reconhece ter sabido e querido os factos que realizam um tipo objectivo de crime, a prova do dolo terá de fazer-se por ilações, a partir de indícios, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.
O julgador resolve, então, a questão de facto (do facto íntimo ou do foro íntimo) decidindo que (ou se) o agente agiu internamente da forma como o terá revelado externamente. A tudo procedendo sem “descontinuidade ou incongruências” na explicação clara do acórdão do STJ de 06-10-2010 (Rel. Henriques Gaspar).
Efectivamente os elementos do tipo subjectivo provam-se – prova indirecta a partir da constatação dos factos objectivos, conjugada com as regras da experiência comum: da situação objectiva se há-de retirar o elemento subjectivo, a intenção de actuação do arguido.
Com efeito é conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Curso de Processo Penal, 3ª ed., II vol., p. 99. Aquela incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar. Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, como acima se disse, terá que ser sempre objectivável e motivável.
Ora, no caso em apreço, não estando em causa a inimputabilidade do agente, sabendo-se que o arguido, nas circunstâncias relatadas, recebeu as quantias de 950€ e 1.524,18€, é manifesto que o recorrente agiu com intenção de usar tais quantias em seu proveito pessoal e assim causar prejuízo à associação, o que quis e fez, apesar de saber que as referidas quantias eram pertença da associação que presidia, agindo livre, voluntária e conscientemente.
Face ao exposto, considerando os factos materiais provados e apreciados com a livre convicção do julgador e conjugados com as regras da experiência comum outra não pode ser a conclusão de que houve uma intenção por parte do arguido de causar prejuízo à associação, actuando livre, voluntária e conscientemente, sabendo que da punibilidade e censurabilidade da sua actuação.
Pelo que, analisada e avaliada em conjunto toda a prova produzida, na ponderação lógica e racional de todos os elementos probatórios, face às regras da experiência comum, não pode senão concluir-se que a argumentação e prova indicadas pelo recorrente, nesta parte, não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada descrita nos pontos 29, 30, 34, 35, 40, 41 e 42, decidida pelo Tribunal a quo.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
Defende o recorrente que “A entender-se que o arguido não tinha direito a ser reembolsado das quantias recebidas, afigura-se-nos que ainda assim não poderá ser condenado, por inexistência de culpa, por ter actuado sem consciência da ilicitude, não podendo o erro ser-lhe censurado - art.17º do Cód. Penal.”
Argumenta que “Os Estatutos da C… prevêem o direito dos seus directores serem reembolsados das despesas efectuadas no exercício do cargo”, sendo que, “Os directores da C… sempre foram ressarcidos das despesas das deslocações em viatura própria através de mapas de quilómetros … e o arguido fez aquilo que era habitual fazer-se, elaborou esses mapas de quilómetros onde constam as viagens efectuadas, com dia, quilómetros e local, e a instituição pagou-lhe o valor apurado de acordo com o valor por quilómetro pago aos funcionários públicos, razão pela qual o arguido não tinha como duvidar da legalidade e legitimidade em receber tais quantias. Foi com esta legitima convicção que o arguido recebeu essas quantias, que estava a receber o que lhe era devido, não que estava a receber o que não era devido e a extorquir dinheiro à C…”.
E nas conclusões reitera que:
41º-Os directores da C… sempre foram ressarcidos das despesas das deslocações em viatura própria através de mapas de quilómetros, conforme referido pelas testemunhas E…, H… e J…-vid. excertos dos seus depoimentos supra transcritos.
42º-O arguido fez aquilo que era habitual fazer-se, elaborou esses mapas de quilómetros onde constam as viagens efectuadas, com dia, quilómetros e local, e a instituição pagou-lhe o valor apurado de acordo com o valor por quilómetro pago aos funcionários públicos, razão pela qual o arguido não tinha como duvidar da legalidade e legitimidade em receber tais quantias.
43º-Foi com esta legitima convicção que o arguido recebeu essas quantias, que estava a receber o que lhe era devido, não que estava a receber o que não era devido e a extorquir dinheiro à C….
44º-Esta convicção foi arguido foi reforçada pelas sucessivas interpelações do Vice-Presidente, Dr. D…, para que tomasse nota dos quilómetros que ia fazendo na sua viatura, pois teria que ser reembolsado, como referiu a testemunha H…, conforme excertos do seu depoimento supra transcritos.
45º-E ainda pelo facto do própria contabilista nenhuma objecção ter colocado aos mapas de quilómetros para suportar tais despesas-vid. excerto do depoimento da testemunha E… supra transcrito.
46º-É, assim, notório a inexistência de culpa, o que tem como consequência que a conduta do arguido não possa ser punida, devendo ser dado como não provado o Ponto 42 dos Factos Provados no Acórdão recorrido.
Ora, considerando o acima decidido, no que se refere à quantia de 15.000€ e respectivos mapas de quilómetros apresentados pelo arguido para justificar o recebimento de tal quantia, despiciendo se torna abordar a questão atinente à invocada inexistência de culpa, por falta de consciência da ilicitude (cfr. artigo 17º do Código Penal).
E as quantias de 950€ e 1.524,18€ foram recebidas pelo recorrente, sem ter apresentado qualquer comprovativo que justificasse o seu pagamento (950€) ou mediante a entrega pelo mesmo dos recibos que constam do anexo V referentes a portagens, abastecimentos de combustível e facturas de restaurantes, sem descriminação do cliente.
Resultou provado que os cargos de presidente e vice-presidente da direcção da associação não eram remunerados, embora os estatutos da associação previssem a possibilidade de pagamento de despesas decorrentes dos cargos exercidos (fls. 355).
No entanto, embora os estatutos da associação previssem a possibilidade de pagamento de despesas decorrentes dos cargos exercidos (cfr. fls. 355), as despesas em causa necessitavam de ser documentadas.
Ora, entende-se que os documentos apresentados pelo recorrente e constantes do anexo V, pelos motivos já expostos, são insusceptíveis de demonstrar a relação entre as despesas eventualmente pagas pelo arguido e o exercício das suas funções como presidente da direcção da associação.
E o recorrente, presidente da direcção da associação, não podia deixar de saber que nem todos os almoços e jantares, nem todos os abastecimentos de combustível que fazia e/ou qualquer despesa que efectuava, podiam servir como despesas decorrentes do cargo por ele exercido. Só aquelas que efectivamente decorressem do exercício do cargo que desempenhava. E desses documentos por ele apresentados isso não resulta. O mínimo que se pode exigir é que se identifique o cliente, se faça constar o nome do cliente a quem o serviço é prestado!! Senão qualquer pessoa pode/podia, querendo, utilizar os recibos em causa para os mais diversos fins.
Não podia, pois, o arguido desconhecer, até pela sua experiência, conforme o mesmo alega, enquanto sócio activo da C…, muitos deles como director, que tais documentos não podiam fazer a prova das despesas em causa.
Pelo que não colhe qualquer argumentação no sentido da inexistência de culpa (cfr. invocado artigo 17º do Código Penal).
Aqui chegados, tendo em conta as alterações fácticas efectuadas por este tribunal e considerando a restante matéria definitivamente fixada pelo tribunal a quo, cumpre proceder, agora, ao seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido vem condenado pela prática, em co-autoria material, de um crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal, bem como pela prática, em autoria material e concurso efectivo com o anterior ilícito, de um crime de peculato, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal.
Dispõe o aludido preceito – resultante da revisão de 1995 do Código Penal -, nos seus nºs 1, 2 e 3:
“1. O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel, pública ou particular, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2. Se os valores ou objectos referidos no número anterior forem de diminuto valor, nos termos da alínea c) do artigo 202º, o agente é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
3. Se o funcionário der de empréstimo, empenhar ou, de qualquer forma, onerar valores ou objectos referidos no n° 1, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Como salienta Conceição Ferreira da Cunha (“Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo III”, página 687), é dupla a protecção concedida pelo tipo legal de peculato: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro lado, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração, ou, por outras palavras, a “intangibilidade da legalidade material da administração pública” (FIGUEIREDO DIAS, Actas 1993 438), punindo abusos de cargo ou função. Assim, o peculato integra dois elementos: o crime patrimonial e o abuso duma função pública (ou equiparada, nos termos do art. 386°).
Mas, para se preencher o presente tipo legal, estes dois elementos terão de se relacionar entre si; assim, há abuso de função pelo facto do agente se apropriar (ou onerar) de bens de que tem a posse em razão das funções que exerce, violando, com esse comportamento, a relação de fidelidade pré-existente — o agente “viola os limites intrínsecos do exercício da posse que lhe foi conferida em razão do seu ofício ou serviço” (CRESPI / STELLA / ZUCCALÀ).
Ao nível do tipo objectivo de ilícito do art. 375º, nº 1, importa desde logo acentuar que, agente do presente tipo legal terá de ser um funcionário (de acordo com a previsão do art. 386º). Não basta, no entanto, que se trate de um funcionário; necessário é que o funcionário, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objecto do crime. É esta qualidade do agente (e esta relação do agente com o objecto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto (tipo legal que o peculato consome, salvo nos casos do art. 204°-2). Trata-se, assim, de um crime específico impróprio; por outro lado, também é a qualidade de funcionário no exercício das suas funções — crime praticado no exercício de funções públicas — que distingue o crime de peculato do crime previsto no art. 205°-5 (abuso de confiança qualificado). Por fim, também é esta qualidade o principal traço distintivo em relação ao crime de descaminho (cf. art. 355°).
Objecto do crime de peculato é o “dinheiro”, a “coisa móvel”, ou seja, os “valores ou objectos”, propriedade do Estado ou que estão na posse legítima do Estado.
Tem de se tratar de bens que tenham sido entregues, estejam na posse ou sejam acessíveis ao agente, em razão das suas funções.
Portanto, é preciso provar essa ligação do agente aos bens (“dinheiro ou qualquer outra coisa móvel”), ligação essa que assenta na relação de fidúcia estabelecida entre o Estado e o agente (ou seja, é por causa das funções do agente, decorrentes do cargo que ocupa, que o bem lhe é entregue, chega à sua posse ou lhe é acessível).
Estando em causa um título de crédito (v.g. um cheque com cobertura), a apropriação tanto incide sobre o documento (coisa móvel), como sobre a quantia nele titulada (dinheiro), caso seja levantado e, portanto, passe para a disponibilidade do agente que em relação a ele passou a agir como se fosse o proprietário.
O dinheiro ou a coisa móvel podem ser públicos ou particulares, embora estejam sujeitos, ainda que temporariamente, ao poder público, mas terão, obviamente, de ser bens alheios (ou seja, não serem propriedade do agente).
A “ilegítima” apropriação aludida no n° 1, do artigo 375° do Código Penal significa que o agente ilegitimamente faz sua (passando a dela dispor como se fosse o proprietário, quer o faça em seu proveito ou de outra pessoa que será terceiro, mas não o Estado) a coisa móvel que detinha (material ou juridicamente) em razão das suas funções, violando o seu dever de fidelidade.
A consumação do crime previsto no n.º 1 do artigo 375° do CP ocorre quando o agente inverte o título de posse, passando a agir como se fosse proprietário da coisa que recebeu e detinha precariamente.
Se, na mesma ocasião, o agente se apropria das várias coisas móveis que recebeu por causa das suas funções comete um só crime de peculato, não obstante esses objectos pertencerem a diferentes proprietários. O que se justifica considerando-se que, dessa forma, afectou o bem jurídico predominante da fidelidade no exercício de funções quando estão em causa direitos patrimoniais do Estado, ainda que reflexamente tivessem sido atingidos direitos individuais de diferentes pessoas.
Finalmente, saliente-se o facto de o agente dever ter conhecimento de todos os elementos do tipo, sob pena de não se preencher o elemento intelectual do dolo (art. 16°-1) — saber que é funcionário, ter consciência de que se trata de bem alheio de que tem a posse em razão das suas funções e que o está a usar (ou a permitir o seu uso) para fins alheios àqueles a que se destina. Em relação aos elementos normativos do tipo legal, o agente terá de ter apenas o denominado “conhecimento paralelo na esfera do leigo” (por exemplo, em relação aos conceitos de “funcionário”, “bem alheio”, “posse”), podendo ainda assim ser necessário o conhecimento de normas ou princípios extrapenais, mormente no que se refere ao destino que deve ser dado aos bens.
Assim, face às considerações expostas e atenta a alteração da matéria fáctica apurada, não restam dúvidas de que a mesma conduz, inevitável e inequivocamente, à absolvição do arguido pela prática, em co-autoria, de um crime de peculato, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal – o crime referente ao recebimento da quantia de 15.000€.
Por outro lado, e no que se refere às quantias de 950€ e 1.524,18€ todos os elementos do tipo de crime em causa estão preenchidos, sendo que o conceito de “funcionário” está preenchido na pessoa do arguido, nos termos do disposto no artigo 386º, nº 1, alínea c) do Código Penal.
Efetivamente ficou demonstrado que, aproveitando-se ainda da circunstância de os estatutos da C… preverem o pagamento de despesas derivadas do cargo exercido, o arguido B… decidiu apropriar-se de mais importâncias monetárias pertencentes a tal associação.
Na concretização desse propósito, em data não concretamente apurada mas situada no início do mês de Março de 2008, o arguido, valendo-se da sua qualidade de presidente da direcção da C…, deu ordem na sede desta associação para que fosse emitido um cheque no montante de € 1.800,00.
Na sequência dessa ordem, veio a ser emitido o cheque n.º ………., datado de 06 de Março de 2008, sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no banco O… e titulando a quantia de € 1.800,00. No dia 08 de Março de 2008, tal quantia de €1.800,00 ficou disponível em caixa e, nessa data, o arguido solicitou, na sede da C…, que lhe fosse entregue, em numerário, a quantia de €950,00 alegando que tal quantia lhe era devida a título de despesas decorrentes do seu cargo.
Assim agindo, logrou o arguido receber e fazer sua a quantia de € 950,00, que usou em seu proveito pessoal, não havendo qualquer despesa que justificasse o pagamento de tal quantia.
Ainda em execução do mesmo plano apropriativo, em data não concretamente apurada de finais de Março de 2008, o arguido deu ordens na C… para que fosse emitido um cheque pelo montante de € 1.524,18, alegando que se destinava ao pagamento de despesas suas decorrentes do cargo de Presidente da Direcção.
Nessa sequência, veio a ser preenchido o cheque n.º ………., sacado sobre a conta n.º ……….. de que a C… é titular no Banco O…, pelo referido montante de €1.524,18 e datado de 03 de Abril de 2008.
Tal cheque foi apresentado a pagamento pelo arguido, no dia 07 de Abril de 2008, na agência do O… localizada em Lourosa, tendo nessa data, o arguido recebido tal quantia que usou em seu proveito pessoal, não havendo qualquer razão que justificasse o pagamento ao arguido de tal quantia de €1.524,18.
O arguido aproveitou-se das funções de presidente da direcção da C… que, na altura, desempenhava para fazer sua a quantia global de €2.474,18 que usou em seu proveito pessoal, o que quis e fez, apesar de saber que tal quantia era pertença da associação que presidia.
Agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sabedor da punibilidade e censurabilidade da sua actuação.
Cometeu, assim, o arguido, em autoria material, um crime de peculato (integrado por dois actos apropriativos em momentos temporais próximos e em execução da mesma resolução criminosa), previsto e punível pelo art. 375º, nº 1 do Código Penal, por referência ao art. 386º, nº 1, alínea c), do mesmo diploma legal, tal como foi decidido pelo tribunal a quo.
Subsiste, assim, a condenação do arguido na pena de 6 meses de prisão, aplicada pelo tribunal a quo.
Pelo que, em conformidade com o decidido pelo tribunal a quo e considerando que o arguido é primário, efectuou o depósito da quantia de 17.750€, destinando-a à C… e se encontra socialmente inserido, desempenhando com regularidade uma actividade profissional e beneficiando de suporte familiar, entendemos que se mostra indicada a aplicação de uma pena substitutiva, de carácter não detentivo.
De facto, o juiz deve substituir a pena de prisão por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem.
Decide-se, assim, nos termos do art. 50º do C. Penal, e por ser mais favorável à recuperação social do arguido e ainda suportável ao nível da comunidade, suspender a execução da pena de prisão aplicada pelo período de 1 ano, na confiança de que o arguido se manterá afastado da criminalidade.
A suspensão da execução da pena fica, porém, condicionada à obrigação de o arguido se submeter a acompanhamento pela DGRS, em conformidade com o plano individual de readaptação social que venha a ser elaborado por tal entidade, nos termos previstos nos artigos 53º e 54º do C. Penal.
***
III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido e, em consequência:
a) Alterar a matéria de facto provada, eliminando-se dos Factos Provados os seguintes factos, que passarão para os Factos Não Provados:
- que fazendo-se valer dessa possibilidade, o arguido B… e o falecido D…, conceberam um plano que consistiu em permitirem a apropriação pelo menos pelo primeiro de quantias monetárias pertencentes à associação C…, que justificariam com a aparência de se tratarem de pagamentos de despesas decorrentes do cargo exercido (ponto 10 dos Factos Provados);
- que o falecido D…, levantou a quantia de €33.000,00 da conta da C… na execução do plano traçado com o arguido (ponto 15 dos Factos Provados);
- que essas tabelas que o arguido preencheu, colocando deslocações e quilómetros que bem sabia não ter realizado e não correspondiam à realidade (ponto 19 dos Factos Provados);
- O que fez, apenas, para justificar o depósito de €15.000,00 na sua conta bancária (ponto 20 dos Factos Provados);
- que para além dessas deslocações o arguido preencheu os referidos mapas de quilómetros com deslocações que não correspondiam à realidade das deslocações que fez, tendo sido o meio por ele encontrado para dar uma aparência de realidade ao recebimento da sobredita quantia de €15.000,00, que recebeu nos termos acima expostos (ponto 27 dos Factos Provados);
- que o arguido agiu em colaboração de esforços e de intentos com o falecido D…, aproveitando-se do cargo que desempenhava na C… para fazer sua a quantia de € 15.000,00, a que sabia não ter direito a receber, ciente de que, assim, causava um prejuízo equivalente a tal associação, o que quis e logrou conseguir (ponto 28 dos Factos Provados).
b) Aditar à Matéria de Facto Provada os seguintes factos:
- O arguido apontava numa agenda de bolso cada uma das viagens que efectuava e correspondentes quilómetros;
- Tais despesas efectuadas pelo arguido eram conhecidas dos restantes elementos da direcção.
c) Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de um crime de peculato, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 375º, nº 1, 386º, nº 1, alínea c), 72º, nº 1 e nº 2, alínea c) e 73º, nº 1, alínea a) e b), todos do Código Penal (recebimento da quantia de 15.000€).
d) Suspender a pena de 6 meses de prisão aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo pelo período de um ano com a condição de o mesmo se submeter a acompanhamento pela DGRS, nos termos previstos nos artigos 50º, 53º e 54º do Código Penal.
e) Manter, quanto ao demais, a decisão recorrida.
Sem tributação.
***
Porto, 01 de Outubro de 2014
Elsa Paixão
Maria dos Prazeres Silva