Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
127/18.2GAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LILIANA DE PÁRIS DIAS
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
Nº do Documento: RP20200304127/18.2GAVFR.P1
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, e que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
II - “Alteração não substancial” constitui uma divergência ou diferença de identidade que não transformem o quadro da acusação em outro diverso no que se refere a elementos essenciais, mas apenas, de modo parcelar e mais ou menos pontual, e sem descaracterizar o quadro factual da acusação, e que, de qualquer modo, não têm relevância para alterar a qualificação penal ou para a determinação da moldura penal; a alteração, para ser processualmente considerada, tem de assumir relevo para a decisão da causa.
III - A alteração introduzida pelo Tribunal na descrição dos factos resultantes da acusação particular (uma simples precisão relativamente à chamada telefónica efetuada pelo arguido/recorrente e atendida pela assistente, pormenorizando a circunstância de ter sido num novo telefonema, ocorrido no mesmo dia, que foram proferidas as expressões insultuosas já anteriormente relatadas, mantendo-se rigorosamente a restante descrição factual descrita nessa acusação.) afigura-se de tal forma inócua e irrelevante para a decisão da causa, que nem sequer atinge o patamar de uma alteração não substancial, que devesse ser comunicada ao arguido/recorrente, nos termos previstos no art. 358.º do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 127/18.2GAVFR.P1
Recurso Penal
Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I. Relatório
No âmbito do processo comum colectivo que, sob o nº 127/18.02GAVFR, corre termos pelo Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira, B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento após ter sido acusado da prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao art. 131.º, todos do Código Penal, para além de dois crimes de injúria e de dois crimes de difamação, respectivamente previstos e punidos pelos artigos 181.º e 180.º, do Código Penal.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente reproduzida, foi proferido o acórdão datado de 21/10/2019 e na mesma data depositado, tendo o arguido B… sido condenado pela prática de dois crimes de ameaça agravada e de um crime injúria, na pena única de 120 dias de multa, à taxa diária de €6,00, e absolvido dos restantes ilícitos.
Tendo sido considerado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por C…, foi o arguido B… condenado no pagamento de uma indemnização no valor de €500,00, acrescida de juros de mora à taxa legal.
Inconformado com a descrita decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido B… para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]:
1º O presente recurso tem como objecto a matéria de direito vertida no Acórdão proferido nos autos, que condenou o arguido na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros) e julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, condenando o Arguido a pagar àquela a quantia de €500,00 (quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento.
Da nulidade da acusação particular
2º Entende o Arguido que a acusação deduzida pela Assistente deveria ter sido rejeitada in totum, porquanto ela enferma de nulidade, por ser manifestamente infundada.
3º A estrutura acusatória do processo penal obriga a que se fixe na Acusação (pública ou particular), com rigor e clarividência, o objecto do processo sob pena de ser posto em crise o direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado nos termos do art. 32.º, n.º 1, da C.R.P.
4º Os crimes de injúria e difamação são crimes dolosos, que obrigam a que, além da preenchimento dos elementos objectivos, se preencham também o elemento subjectivo, ou seja o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime, assim como o elemento emocional exigido pelo dolo, que se traduz no conhecimento e consciência da ilicitude da conduta.
5º Pois a afirmação do dolo não fica preenchida com o conhecimento e vontade de realização do tipo, já que ele exige ainda que o agente tenha conhecimento e consciência do carácter ilícito da sua conduta.
6º Como ensina Figueiredo Dias, “o dolo só existirá quando o agente actue com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilicito e com conhecimento ou consciência da ilicitude da sua actuação,”, in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 199/204 e «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», in «Jornadas de Direito Criminal», «O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar», edição do Centro de Estudos Judiciários, págs. 72/73.
7º Ora, na acusação deduzida pela assistente, é manifesta a falta destes elementos subjectivos integrantes do dolo, pois
8º Quanto aos factos constantes dos artigos 8º a 11º da acusação particular, nenhuma referência fez a Assistente quanto ao elemento subjectivo, pois ali não fez constar que o arguido quisesse, ao proferir as expressões que lhe imputa, ofender a sua honra, consideração e bom nome, nem fez constar que o arguido tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
9º Já quanto ao facto constante do artigo 13º da acusação particular, a Assistente apenas fez constar que “... pretendendo com isto, o que conseguiu, humilhar e diminuir a Assistente, imputando-lhe comportamentos desleais e desonrosos”, não tendo feito constar que o Arguido tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, como se impunha para o preenchimento do elemento emocional integrante do dolo.
10º Quanto ao facto constante do artigo 15º da acusação particular, a Assistente apenas referiu que “... com o que pretende humilhar, vilipendiar e injuriar a Assistente, imputando-lhe factos falsos, torpes e que afectam o seu bom nome, reputação e honra”, não tendo feito constar que o Arguido tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, como se impunha para o preenchimento do elemento emocional integrante do dolo.
11º Não aceita o Arguido o preenchimento de tais elementos com o conteúdo do artigo 17º da acusação particular, quando refere “O Arguido bem sabe que os seus comportamentos são proibidos e previstos e punidos na lei Penal, mas apesar disso não se coíbe de os praticar, porquanto pretende o resultado”, pois
12º O que ali se afirma é que, no presente, o arguido sabe que ....., não se coíbe de os praticar, ... pretende o resultado, o que não é o mesmo que afirmar que o Arguido, na altura dos factos, sabia ...., não se coibiu ... e pretendeu o resultado.
13º Nem o artigo 18º da acusação particular contem todos os elementos integrantes do dolo, pois que ao afirmar “Agindo assim com dolo directo, de humilhar e vilipendiar, diante de terceiros, a honra, bom nome e consideração da Assistente” a Assistente enunciou um conceito de direito (o dolo directo), não tendo, mais uma vez, feito constar que o Arguido tenha actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, como se impunha para o preenchimento do elemento emocional integrante do dolo.
14º A falta de descrição dos elementos que caracterizam a atuação dolosa do Arguido ao não estarem patentes na Acusação equivalem à não verificação do elemento subjetivo dos tipos legais dos crimes de que o Arguido vinha acusado.
15º E não constando da acusação todos os factos integradores do dolo, designadamente o seu elemento emocional (o ter actuado de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei), estes não poderiam ser susceptíveis de prova em julgamento, nem o juiz poderia suprir tal falta, o que constitui violação da estrutura acusatória do processo penal.
16º Veja-se a este propósito a doutrina contida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2015, de 20.11.2014, publicado no DR nº 18, I Série, de 27.1.2015, quando afirma que “() a acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo, tem de conter os aspetos que configuram os elementos subjetivos do crime, nomeadamente, os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo da culpa (), englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção, actuando assim, conscientemente contra o direito.”
17º De facto, o Art.º 283º nº 3 alínea b) do CPP prevê que deverão ser narrados na acusação os factos que fundamentem a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança, sob pena de nulidade.
18º Nulidade que é do conhecimento oficioso, não estando por isso dependente de arguição, podendo ser conhecida, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final, como aliás tem sido entendimento dominante na jurisprudência, nomeadamente o Acórdão do TRG, proferido em 6.2.2017, no processo nº 149/15.5PBCHC.G1 e o Acórdão do TRC, proferido em 22.5.2013, no Processo nº 368/07.8TALRA.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.
19º Pelo que se impunha e impõe a rejeição da acusação por a mesma ser manifestamente infundada por omissão de factos essenciais nos termos do Art. 311º n.º2 al. a) e n.º3 al. b) do CPP.
20º E, consequentemente se impunha e impõe também o indeferimento liminar do pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, com absolvição do Réu da instância, uma vez que os factos em que se fundamenta são os mesmos que constam da acusação particular, e sendo esta declarada nula, fica prejudicado o conhecimento dos mesmos nestes autos.
21º Assim, violou o Tribunal a quo os Arts. 283º, n.º3 al. b) e 285.º n.ºs 1 e 2, todos do Código Processo Penal e ainda do Art. 32º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Nulidade do acórdão
22º O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no Art.º 379 nº 1, al. b) do CPP, porquanto,
23º Condenou o Arguido por factos diversos dos descritos na acusação particular, pois que desta consta nos factos 8º e 9º o seguinte: “8º - Sem prejuízo de muitas outras situações em que o Arguido humilhou e vilipendiou verbalmente a Assistente, o certo é que no dia 25 de Janeiro de 2018, em resultado do internamento hospitalar da filha do casal, esta, enquanto mãe, prontificou-se a avisar o pai da situação clínica da menor. 9º - No decurso dessa chamada telefónica, e estando a Assistente acompanhada do seu atual companheiro, e porquanto o telemóvel se encontrava em voz alta, foi ouvido por todos, o Arguido a chamar a Assistente de “puta", "vaca" e "chula".”
24º Ora, no douto acórdão recorrido, o Tribunal a quo deu como provado que foi no decurso de uma nova chamada telefónica que tais factos ocorreram, como se vê do ponto 2. dos factos provados da acusação particular.
25º Tal facto, porque prova que a chamada telefónica em que alegadamente foram proferidas as ameaças e injúrias não foi a primeira chamada que a Assistente fez ao Arguido, mas antes uma nova chamada que o Arguido terá feito para a Assistente, constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação particular, sendo que tal alteração não foi comunicada pelo Tribunal a quo ao Arguido.
26º A propósito do que seja alteração substancial de factos, decidiu-se no Tribunal da Relação de Guimarães em Acórdão de 21-05-2007, no processo 605/07-1, disponível em www.dgsi.pt que “Sempre que ao pedaço individualizado da vida, trazido pela acusação, se juntem novos factos e dessa alteração resulte uma imagem ou valoração não idênticas àquela criada pelo acontecimento descrito na acusação, ou que ponha em causa a defesa, estaremos perante uma alteração substancial dos factos."
27º Ora, muito embora não seja imputada ao Arguido a prática de crime diverso daquele porque vinha acusado pela assistente, o certo é que se verifica que existiu uma alteração espácio-temporal da prática do facto que “ab initio” puseram em causa a defesa do Arguido (Art.º 32º n.º1 CRP).
28º Não podendo, pois, ser considerada em julgamento uma nova ação, levada a cabo pelos mesmos meios (via telefónica), ulterior, dado que tal facto consubstancia de “per si” uma nova conduta e concomitantemente, a imputação de um novo crime, autónomo em relação ao primeiro.
29º Pois decorria da acusação pública e particular que as expressões alegadamente dirigidas à Assistente teriam ocorrido em chamada anterior, que, como se compreende do texto da decisão veio efetivamente a existir, embora não se tenha provado que nessa anterior comunicação telefónica tenham sido proferidas quaisquer expressões ameaçadoras ou injuriosas.
30º E “ao deduzir-se a acusação está-se a delimitar e definir o âmbito de conhecimento do juiz e a dar a conhecer ao arguido os factos que lhe são imputados e dos quais tem que se defender, sendo nesta fase que bem se evidencia o denominado efeito da vinculação temática que integra os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo se deve manter o mesmo da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade (segundo o qual o processo deve ser conhecido e julgado na sua totalidade) e da consunção, (segundo o qual o processo se considera irrepetivelmente decidido).”, como também se decidiu no acórdão do TRG atrás citado.
31º Fosse a alteração dos factos substancial ou mesmo não substancial, sempre estaria o Tribunal a quo obrigado a dar cumprimento ao artigo 358º ou 359º do CPP, comunicando essas alterações ao Arguido, por forma a que este pudesse exercer a sua defesa e o direito que lhe assiste ao contraditório, dado ser aquela uma formalidade processual que pretende evitar as denominadas “decisões surpresa”.
32º Destarte, o Acórdão recorrido é nulo nos termos do disposto no artigo 379, n° 1, al. b) dado que condenou o Arguido por factos diversos dos descritos na acusação, ao considerar que a acção ocorreu durante uma nova chamada telefónica e não naquela em que a Assistente alegadamente dava conta da situação clínica da menor, como verteu na Acusação Particular, sem que tenha feito a comunicação ao arguido da alteração dos factos, em violação do disposto nos artigos 358° e 359° do CPP;
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O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Exmo. Magistrado do Ministério Público na 1ª instância e da assistente/recorrida C…, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e confirmação da decisão recorrida, salientando, quanto ao mérito do recurso, a inexistência das nulidades e dos vícios decisórios invocados pelo recorrente, para além da conformidade da decisão com o princípio in dubio pro reo.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art. 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art. 410º, nº 2 ou o art. 379º, nº 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).
Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes:
1) A acusação particular enferma de nulidade, por ser manifestamente infundada?
2) O acórdão condenatório enferma da nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP?
3) O acórdão enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto, de contradição insanável de fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, tendo ainda sido violado o princípio in dubio pro reo?
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Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.
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Factos provados e não provados (transcrição dos factos que se afiguram relevantes para a decisão do recurso) [2]:
Da acusação pública
1. O arguido B… e a assistente C… (doravante, C1…) estão casados desde 5 de Outubro de 1996, mas separaram-se, de facto, em Maio de 2017.
2. No dia 25 de Janeiro de 2018, cerca das 20h00, a assistente C1… encontrava-se na residência sita na Rua …, n.º .., em …, quando o arguido B… lhe ligou para o telemóvel e aquela atendeu.
3. Nessa circunstância, B… dirigiu-se a C1… dizendo-lhe: “Dou-te um tiro na cabeça”.
4. Nesse momento, D… (doravante, D1…), companheiro da assistente, retirou-lhe o telemóvel, pegou no mesmo e manteve uma conversa com o arguido B…, tendo este dito àquele: “Tanto estou aqui como aí, dou-lhe um tiro no meio da testa”, referindo-se à assistente.
5. Com as expressões proferidas, o arguido B… quis dizer que haveria de atentar contra a vida da assistente, bem sabendo que as mesmas eram idóneas a provocar em C1… e em D1… medo e inquietação, tendo estes receado que viesse a atentar contra a vida da assistente, e a afetá-los na sua tranquilidade individual e liberdade de determinação, o que quis e conseguiu, sabendo ainda que D1… e a assistente viviam, à data, em comunhão de mesa, cama e habitação, como se de marido e mulher se tratassem.
6. B… atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Da acusação particular
1.No dia 25 de Janeiro de 2018, em resultado do internamento hospitalar da filha do casal, esta, enquanto mãe, prontificou-se a avisar o pai da situação clínica da menor.
2. No decurso de nova chamada telefónica realizada nesse mesmo dia, pelas 20h30m, estando a Assistente acompanhada do seu atual companheiro, e porquanto o telemóvel se encontrava em voz alta, foi ouvido por ambos o Arguido a chamar a Assistente de “puta", "vaca" e "chula".
3. Nesse dia, e em decorrência dessa injúria, e tendo o actual companheiro da Assistente, ficado indignado, tomou conta do telemóvel, tendo falado com o Arguido, com vista a o acalmar.
4. Logo aquele, referindo-se à Assistente, disse: “Essa puta de merda, tanto estou aqui como estou aí, dou-lhe um tiro no meio da testa".
8. O Arguido bem sabe que os seus comportamentos são proibidos e previstos e punidos na lei Penal, mas apesar disso não se coíbe de os praticar, porquanto pretende o resultado.
9. Agindo assim para humilhar e vilipendiar, diante de terceiro, a honra, bom nome e consideração da Assistente.
Da contestação do arguido
(…)
Da condição socioeconómica e antecedentes criminais do arguido:
(…)
Do pedido de indemnização civil
1.Com o seu comportamento, o Arguido diminuiu e humilhou, ofendeu e desonrou a Assistente, o que a deixou agastada, revoltada e envergonhada.
2. Vive em contínuo sobressalto e com medo de atender chamadas e que seja o Arguido com o propósito de a humilhar e diminuir.
2b) - Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos, constantes da acusação pública/particular/pedido de indemnização civil ou da contestação, que não se encontrem descritos como provados ou que sejam contraditórios em relação aos mesmos, designadamente:
1 - No mês de Junho de 2018, e estando a filha a falar com o pai, através do telemóvel e em alta voz, o Arguido disse à filha que queria falar com a mãe da menor, ao que logo, dirigindo-se à Assistente, lhe disse que a filha de ambos não era filha dele, pretendendo com isto, o que conseguiu, humilhar e diminuir a Assistente, imputando-lhe comportamentos desleais e desonrosos.
2. No pretérito dia 16 de Setembro de 2018, pelas 21:00 horas, enquanto falava com a Assistente, repetiu que a filha do casal não era filha dele, com o que pretende humilhar, vilipendiar e injuriar a Assistente, imputando-lhe factos falsos, torpes e que afectam o seu bom nome, e honra.
3. A Assistente é pessoa reputada, respeitada e respeitadora, que em toda a sua vida nunca teve quaisquer incidentes ou dissídios com quem quer que seja, sendo pessoa pacata e cordata.
4. Com o seu comportamento, o Arguido deixa a Assistente sem capacidade de poder levar uma vida íntegra.
5. Sendo que, tal afecta o seu dia-a-dia, pois não consegue viver os seus dias em paz, serenidade, tranquilidade e descanso que merece e para o qual tanto trabalha.
6. Vivendo sobressaltada, envergonhada e diminuída perante a filha e o companheiro, assim como anda nervosa, incomodada e revoltada, por se ver humilhada em qualquer situação e em qualquer lugar, o que muito agasta a Assistente.
7.Tanto que o Arguido informa, a quem quer ouvir, que a qualquer momento se deslocará a Portugal, o que assusta veementemente a Assistente.
8. Que por força disso vive num pranto, de poder ser surpreendida pelo Arguido, e assim novamente humilhada, desonrada e injuriada em qualquer lugar.
9. O que lhe tira a tranquilidade, sossego e noites bem dormidas.
10. A assistente, logo desde uma fase prematura da relação, começou a apresentar distúrbios emocionais e psicológicos que se mantiveram ao longo do tempo de vivência conjunta do casal.
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Improcede, desta forma, o presente fundamento recursório.
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C) Vícios decisórios e observância do princípio in dubio pro reo.
Defende o recorrente que a decisão recorrida enferma dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo.
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Por outro lado, vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação [3], tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de primeira instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados. Com efeito, no processo de formação da convicção do juiz "desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (cfr, no sentido apontado, o acórdão desta Relação, de 29 de Setembro de 2004, in C.J., ano XXIX, tomo 4, pág. 210 e ss).
No presente caso, o tribunal a quo explicitou claramente e de forma perfeitamente lógica e sustentada na prova produzida, as razões pelas quais, no confronto da versão dos factos trazida, por um lado, pela assistente – cuja versão foi corroborada, de forma isenta e credível, pela testemunha D1… -, e, por outro, pelo arguido, conferiu maior credibilidade à primeira.
É de notar que a circunstância de a assistente ter prestado declarações de forma titubeante, como é referido na decisão recorrida, não significa, por si só, que não tenha sido considerada credível pelo tribunal a quo. O modo titubeante (isto é, hesitante) como prestou declarações pode ter ficado a dever-se a muitos factores, nomeadamente a nervosismo, não significando, necessariamente, que o seu depoimento fosse desprovido de congruência e credibilidade.
Do mesmo modo, não resulta minimamente da leitura da decisão recorrida que o tribunal a quo tenha ficado convencido que a assistente não ficou com medo de que o recorrente concretizasse a ameaça proferida – ou, pelo menos, que tivesse ficado com dúvidas relativamente à verificação de tal factualidade. Aliás, a assistente declarou que ficou com verdadeiro receio de que tal viesse a suceder, o que foi corroborado pela testemunha D1…, com quem vivia maritalmente.
O tribunal explica de forma coerente o motivo pelo qual se convenceu de que o arguido/recorrente adoptou os comportamentos descritos no acórdão recorrido, sendo da análise conjugada do depoimento prestado pela testemunha D1… e das declarações da assistente - mostrando-se, no essencial, tais meios de prova coerentes e congruentes entre si - que retira a sua convicção.
O recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mas em nenhum momento demonstra que a decisão recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova.
Nenhuma censura merece, assim, a convicção do tribunal a quo quanto à demonstração da factualidade integrante dos crimes de ameaça e de injúria por que o recorrente foi condenado, mostrando-se esta decisão congruente com a prova produzida e descrita na decisão recorrida, aferida segundo juízos de normalidade decorrentes das regras da experiência comum (e, portanto, com o princípio da livre apreciação da prova), e perfeitamente suportada pelo princípio in dubio pro reo (sendo certo que o tribunal de 1ª instância, desde logo, não enuncia qualquer dúvida relativamente à verificação desta factualidade, que pudesse ter resolvido de modo desfavorável ao arguido/recorrente) [4].
Em suma, concluímos pela inexistência de “erro notório na apreciação da prova” e pela preservação do princípio in dubio pro reo.
Improcede, assim, na totalidade o presente recurso, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
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III – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigos 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).
Notifique.
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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 4 de Março de 2020.
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[2] Mantendo-se a ortografia original do texto.
[3] Como justamente é salientado no acórdão deste TRP, datado de 9/11/2016 (e disponível em www.dgsi.pt), “(…) para tanto, não basta apontar disparidades, divergências, incongruências ou até contradições entre os vários depoimentos.
A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, tem de aceitar ou rejeitar cada um dos depoimentos na globalidade. A sua tarefa é dilucidar, em cada um deles o que merece crédito e o que lhe suscita reservas ou mesmo descrédito.
Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, testemunhal, ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.”.
[4] O “in dubio pro reo”, sendo uma das várias dimensões do princípio basilar da presunção de inocência, configura-se, basicamente, como uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos - ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável e irresolúvel sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o nº 2 do art. 410º do CPP, a eventual violação do in dubio pro reo há-de-resultar, claramente, do texto da decisão recorrida e, portanto, ocorrerá quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto.
Cfr., neste sentido, os acórdãos do STJ de 29/5/2008 (Relator: Conselheiro Rodrigues da Costa) e de 15/12/2011 (Relator: Conselheiro Raúl Borges), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Assim, consta do sumário deste último acórdão do STJ o seguinte:
XVII - Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, num caso em que, como o presente, o Tribunal da Relação se encontra no âmbito de um recurso da matéria de facto restrito aos vícios previstos no art. 410.°, n.º 2, do CPP, a mesma deve resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos referidos vícios. Ou seja, só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido - pela prova em que assenta a convicção.