Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
686/11.0GAPRD-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: PENA DE MULTA
FALTA DE PAGAMENTO
ÓNUS DA PROVA
CONSTITUCIONALIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP20180124686/11.0GAPRD-G.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º4/2018, FLS.7-11)
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal na interpretação que faz recair sobre o condenado o ónus de alegar e provar que a falta de pagamento da multa lhe não é imputável não contraria os artigos 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
II - Nos termos desse artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, ao tribunal não cabe averiguar oficiosamente a situação económica do condenado, nem a razão da falta de pagamento da multa em questão. Mas, perante um requerimento de suspensão de execução de uma pena de prisão incompleto, pode convidar o requerente a completá-lo, sem se substituir a este. E deve mesmo fazer tal convite, para evitar que uma decisão tão grave como o cumprimento de uma pena de prisão acabe por depender de razões de ordem formal, da imperfeição de um requerimento, mais do que razões de ordem substancial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 686/11.0GAPRD-G.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 2 do Juízo Central Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que indeferiu o requerimento de suspensão da execução da pena de prisão, substituída por multa que não foi paga, em que foi condenado B….

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1 - O arguido B… foi condenado na pena de 1 ano de prisão, substituída por 360 dias de multa à taxa diária de €6,00.
Foi deferido o pagamento da multa em prestações.
A secção informou, porém, de que o arguido não efectuou o pagamento das 4.ª e 5.ª prestações.
O Tribunal, por entender que “a falta de pagamento de uma das aprestações importa o vencimento das restantes (…), efeito que tem lugar por força da lei, sem que se mostre necessária a prolação de qualquer despacho judicial a declara-lo (…); e,
Não tendo sido localizados bens penhoráveis;
Decidiu determinar que o condenado cumpra um ano de prisão.
2 - Porém, foi, também, ordenada a notificação do condenado, de que, dentro do prazo de 30 dias (…), poderá efectuar o pagamento da pena de multa que permanece em falta (€ 1440), ou se provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão ser suspensa, por um período de um ano a três anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro (art.º 49.º, n.º 3, do CP, ex vi art.º 43.º, n.º 2, do CP).
3 - O arguido B… veio requerer fosse determinado suspender a aplicação da pena de prisão de um ano, predispondo-se (…) a pagar o montante da pena de multa em falta até ao final do próximo mês. Alegando que não teve possibilidades económicas até esta data de realizar o pagamento do valor em falta, uma vez que se encontrava desempregado, tornando-se manifestamente inviável o cumprimento da sanção que lhe foi aplicada; e que começou recentemente a trabalhar em França, encontrando-se neste momento o arguido possibilitado de cumprir o pagamento do valor em dívida.
4 – O Tribunal, essencialmente, por entender que, estando em causa a aplicação da norma constante do art.º 49.º, n.º3, do CPenal, compete ao arguido o ónus da demonstração – não apenas invocação – de que o não pagamento da multa lhe não é imputável. - A demostração de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado pode naturalmente fazer-se por via da prova de factos positivos, de onde resulte essa não imputabilidade. Basta pensar, por exemplo, na apresentação de determinados documentos (declaração de rendimentos, recibo de subsídio de desemprego, atestado da Junta de Freguesia, declaração relativa a eventual internamento hospital, entre outros), dos quais se deduza não ser imputável ao condenado o não pagamento da multa em que foi condenado. - O condenado (…) nem sequer alega até quando esteve desempregado, quando iniciou o actual emprego e qual o seu vencimento, sendo que, em todo o caso, não demonstra nada do que alegou. - Acresce que no passado foi autorizado a pagar a multa em prestações, não tendo cumprido o plano estabelecido; Conclui o Tribunal, considerando que o condenado não explicou com a clareza mínima o que pode ter-se passado que o impediu de pagar as prestações correspondentes ao pagamento faseado da multa em que foi autorizado e que determinou o vencimento das restantes.
E, por isso se decidiu, não suspendo a execução da prisão.
5 - O Ministério Público não se conformando com o referido despacho dele vem interpor RECURSO, por entender que tal decisão viola;
- a previsão do art.º 49.º, n.º 3, do Código Penal;
- as normas constantes do art.º do art.º 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa; e,
- o art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP;
6 – Sobre a interpretação da norma do n.º 3, do art.º 49.º do Código Penal, de acordo com a doutrina e a jurisprudência. MAIA GONÇALVES, entendia que “o n.º 3 regula o caso de não pagamento, sem culpa do condenado. A execução da pena de prisão pode – trata-se de um poder-dever ou seja um poder vinculado – ser suspensa por um período a fixar entre 1 e 3 anos …”.
7 - PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE entende que “a conversão da pena de multa em prisão subsidiária só tem lugar se estiverem reunidos três pressupostos: - a pena ande multa não ter sido substituída por prestação de trabalho; - a pena de multa não tiver sido paga voluntariamente nem coercivamente, isto é não tiver sido executada; e, - o incumprimento da pena de multa ser culposo. … Se o condenado não cumprir a pena de multa por motivo que lhe não é imputável, o Tribunal ordena o cumprimento da prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços e suspende esta pena de prisão por um período até três anos”.
8 - Ambos os autores salientam a exigência de verificação de culpa do condenado, no incumprimento do pagamento da multa (49.º, n.º 3, do CP), como requisito para a não suspensão da pena de prisão subsidiária.
9 - No mesmo sentido se tem pronunciado a jurisprudência mais recente, designadamente o TRC, no acórdão de 06.02.2013, de acordo com o qual - se os elementos constantes dos autos permitirem concluir que os seus proventos económicos não são suficientes para o pagamento da multa, não deve o condenado ver-lhe negada a suspensão da execução da prisão subsidiária, prevista no n.º 3, do referido art.º 49º.
10 – Também o TRG, no acórdão de 19.05.2014, decidiu que – é pressuposto da suspensão da execução da prisão subsidiária que o não pagamento da multa tenha ocorrido por motivo não «imputável» ao condenado (art. 49 nº 3 do CPP).
11 – No acórdão do TRC de 18-03-2015, entendeu-se que - para aferir da suspensão da execução da pena de prisão, nos termos previstos no art. 49º, nº 3 do C. Penal, ainda que a arguida não tenha indicado prova do alegado, deve o tribunal considerar os factos assentes, para o efeito relevantes, que constem da sentença condenatória.
12 – Para Figueiredo Dias, a pena de multa “só pode ser considerada como “instrumento privilegiado da política criminal quando surja não apenas no seu enquadramento legal, mas também no conceito social formado à luz da sua aplicação, como autêntica pena criminal, antes que como mero “direito de crédito do Estado” – ainda que de natureza publicística – contra o condenado”.
13 - Pronunciando-se sobre o conceito de culpa, refere Figueiredo Dias que, “culpa é e há-de ser sempre censurabilidade”. “… a censurabilidade da culpa se não liga (…) a um tal poder (poder de agir de outra maneira), antes sim a um dever de responder às exigências éticas que se fazem (que faz o direito, como o fazem a moral e quaisquer outros ordenamentos normativos) à personalidade do agente”. “… perante uma acção pela qual a personalidade é, em princípio, plenamente responsável, se comprove uma sensível desconformarão entre aquilo que poderá chamar-se a censurabilidade externo-objectiva do facto e a essência de valor da personalidade que o fundamenta, resultante do conhecimento total do seu carácter e da sua “atitude” ou das suas “intenções” fundamentais. E que uma tal desconformação possa (…) atribuir-se a uma constelação exógena particularmente imperiosa, a momentos exteriores à própria pessoa, que não encontram nesta nenhum “eco” censurável, antes “estorvaram” ou mesmo “desviaram” o cumprimento normal daquelas intenções. Neste caso, pese à manutenção da substancial responsabilidade da pessoa pelas suas acções, não poderá falar-se de culpa jurídico-penal, justamente em atenção a uma ideia de inexigibilidade
14 - Para Germano Marques da Silva “o conceito de culpa, enquanto juízo de censura, equipara-se ao de exigibilidade. Atua com culpa a pessoa a que numa situação concreta pode exigir-se que actue em conformidade com os imperativos jurídicos contidos na norma.
15 - Entende-se, assim, que a melhor interpretação da norma do n.º 3, do art.º 49.º do CPenal, deverá ter em consideração a situação pessoal e económica, actual e concreta, do condenado para aferir se o pagamento da multa lhe era ou não exigível (se poderia ou não ter agido em conformidade com os imperativos jurídicos contidos na norma), para se decidir se o não pagamento da multa lhe é ou não imputável, culposamente.
16 - Da proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, que decorre do disposto nos art.ºs 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição. De acordo com o referido n.º 2, do art.º 6.º da CEDH “qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”.
17 - O Princípio da presunção de inocência tem, além do mais, o conteúdo da “Proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido”. “A presunção de inocência implica, em matéria de prova, que a prova da culpa recaia sobre o Ministério Público ou o assistente; no sistema inquisitorial, onde a procura da verdade incumbe ao Juiz, este princípio reclama para o acusado o benefício da dúvida”.
18 - O aludido princípio, que emana do aludido art.º 6.º, n.º 2, da CEDH, vigora na ordem interna nos temos do art.º 8.º, n.º 2, da Constituição. De facto, o art.º 8.º, n.º 2, “estabelece (…) um regime de recepção automática, mas condicionada, das nomas de DIP convencional internacionalmente vinculativas do Estado Português, ou seja dos tratados e acordos internacionais que abranjam Portugal, … . A Constituição exige que a convenção tenha sido regularmente aprovada ou ratificada (…) e tenha sido oficialmente publicada”.
19 - Por sua vez o art.º 32.º, n.º 2, da Constituição estabelece que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da condenação, …”. “O princípio da presunção a inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao Juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa”.
20 - No mesmo sentido se pronunciou o douto Ac. do STJ de 13.05.1999, de que foi relator o Sr. Conselheiro Sá Nogueira, no qual foi acordado, por unanimidade, que; Em processo penal, contrariamente ao que se verifica no processo civil, não existe a figura do ónus da prova sobre as "partes", até porque, nesse tipo de processo, não há "partes", e tão-somente "intervenientes processuais", e o único ónus que existe é o da averiguação oficiosa da verdade, embora dentro dos limites postos pelo âmbito da acusação ou da pronúncia.
21 - Assim, o douto despacho, ora recorrido, ao considerar que sobre o arguido B… impendia o ónus da demonstrar que o não pagamento da multa lhe não é imputável, violou as normas constantes dos art.ºs 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
22 - Da apreciação do douto despacho ora recorrido e da violação da norma constante do art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP: O douto despacho recorrido se funda-se não numa violação, culposa, do arguido, da obrigação de efectuar o pagamento da multa em que foi condenado, questão que não se mostra que tenha sido abordada no doutro despacho ora recorrido, mas apenas no facto de o arguido não ter explicado com clareza o que pode ter-se passado que o impediu de pagar as prestações correspondentes ao pagamento faseado da multa em que foi autorizado.
23 - Porém, a falta de comprovação pelo arguido da sua situação de desemprego, do período em que se verificou, da data em que conseguiu novo emprego em França e do montante do seu vencimento, não permite concluir que o não pagamento da multa pelo arguido resulta de um acto culposo seu.
24 - De facto a CULPA, como referem os mestres citados, está conexionada (equipara-se) com o conceito EXIGIBILIDADE. É culpado aquele a quem, numa situação concreta, pode exigir-se que actue em conformidade com os imperativos jurídicos contidos na norma.
25 - Os autos contêm já elementos bastantes para o Tribunal poder concluir que o arguido não tem, actualmente, uma situação económica desafogada. Que resulta, quer do teor da matéria de facto considerada provada no douto Acórdão condenatório, de que se salientam os factos de o arguido viver com a esposa e os 3 filhos do casal, presentemente com 13, 6 e 5 anos de idade, numa casa arrendada. … Teve um percurso profissional ligado à área da construção civil, tendo emigrado para diversos países por forma a garantir a subsistência do seu agregado familiar. Encontra-se em Portugal desde 17 de Abril de 2014, pretendendo voltar a emigrar assim que o presente processo terminar; Quer do relatório sobre a situação sócio económica do arguido, elaborado pela GNR, em 28.01.2017, de que se salienta, que o arguido trabalha em França, sendo desconhecidos a entidade patronal e salário do arguido, que a família do arguido é constituída pela esposa, que é costureira e aufere o salário mínimo, e por três filhos menores de 15, 9 e 8 anos de idade, todos estudantes, e que vivem em casa arrendada, na qual possuem o essencial à economia doméstica, com bens de valor diminuto.
26 - É certo que se ignora qual o actual salário do arguido em França. Porém, é facto notório, que já não estamos no tempo em que os emigrantes obtinham salários muito elevados, comparativamente ao rendimento médio português. De facto, actualmente, os emigrantes, em França, são pagos em euros e os salários, emboras superiores aos salários médios pagos em Portugal, têm, agora, um diferencial menor relativamente àqueles que são pagos em Portugal e, por outro lado, são maiores as despesas de transportes, alojamento e alimentação, em França.
27 - Mostra-se que os autos não revelam, suficientemente, que o não pagamento da multa possa ser imputado culposamente ao arguido. Na verdade, não resultam dos autos factos através dos quais possa concluir-se ser exigível ao arguido B… que actue, em conformidade com os imperativos jurídicos contidos na norma, efectuando o pagamento da multa, porquanto não se mostra que o mesmo tenha disposto, ou disponha actualmente, de meios económicos suficientes para o fazer, e, portanto, que lhe era exigível que tivesse efectuado o pagamento da multa.
28 - Caso se entenda que os elementos já juntos autos não comprovam suficientemente a incapacidade do arguido para que tivesse efectuado, tempestivamente, o pagamento das prestações da multa, a verdade é que o douto despacho ora recorrido não aponta factos de onde resulte que o não pagamento da multa pelo arguido B… lhe é imputável culposamente, designadamente, porque o arguido dispunha e dispõe de meios económicos suficientes para o fazer.
29 - Constata-se, assim, que o douto despacho, ora recorrido, violou, também, a norma constante do art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, porquanto se verifica ser insuficiente, para a decisão, a matéria de facto nele referida como provada.
30 - Das normas jurídicas violadas: A decisão ora recorrida interpretou a norma do art.º 49.º, n.º 3, do CPenal, no sentido de impor ao arguido o ónus de provar que o não pagamento da multa não resulta de culpa sua. Porém, tal interpretação, da norma em apreço, viola o disposto nos art.ºs 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição. Por outro lado, ao decidir-se pela não suspensa da prisão subsidiária, nos termos do art.º 49.º, n.º 3, do CPP, sem referir elementos de facto comprovativos de que o não pagamento da multa pelo arguido lhe é imputável culposamente, o Tribunal viola o disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.
31 - Deveria ter considerado que: 1 - face ao disposto nos art.ºs 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição, o arguido não está onerado com qualquer ónus da prova; 2 - os elementos juntos aos autos comprovam já suficientemente, salvo melhor opinião, que o arguido não dispôs, durante o período da suspensão, de meios económicos suficientes para efectuar o pagamento da multa; e, 3 - ter feito constar, do douto despacho ora recorrido, elementos de facto comprovativos de que o não pagamento da multa é imputável culposamente ao arguido.
32 - Deve pois, ser alterada a doutra decisão ora recorrida, que deverá ser substituída por outra na qual;
- Caso se entenda que os autos não revelam já, suficientemente, a incapacidade do arguido para que tivesse efectuado, tempestivamente, o pagamento das prestações da multa, se diligencie pela recolha de elementos, relativos à situação económica do arguido, durante o período concedido para o seu pagamento em prestações e posteriormente, que permitam habilitar o Tribunal a decidir se o não pagamento da multa, resulta, ou não, de acto que possa ser imputado culposamente ao arguido B…, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 49.º, n.º 3, do CPenal; e,
- Em conformidade com a matéria apurada, se decida, fundadamente, ou pela suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, ou pela não suspensão da execução de pena de prisão subsidiária.»

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento de suspensão de execução da pena de prisão, substituída por multa que não foi paga, em que B… foi condenado, deverá ser alterado no sentido do deferimento desse requerimento, por dos autos constarem elementos que revelam que não é imputável ao condenado (atendendo à sua precária situação económica) o não pagamento dessa multa; ou, caso assim não se entenda, se deverá tal despacho ser alterado no sentido de se ordenar a realização de diligências tendentes ao apuramento da situação económica do condenado de forma a determinar se essa falta de pagamento lhe é, ou não, imputável.

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:
«(…)
Da pena aplicada a B…:
Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão inicialmente substituída por multa ser suspensa por um período de 1 a 3 anos desde que suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro (cfr. arts. 43.º, n.º 2, e 49.º, n.º 3, do C.P.).
Como resulta do citado preceito legal para ter lugar a suspensão da execução da dita prisão é necessário que fique demonstrado que a razão do não pagamento da multa não é imputável ao condenado (cfr. art.º 491.º, n.º 3, do C.P.P.).
No entanto, trata-se de um regime excecional (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de março de 2013, processo n.º 125/07.1TACDR.P1, in www.dgsi.pt) segundo o qual não basta alegar que a razão do não pagamento da multa não é imputável ao condenado, tornando-se necessário provar a factualidade que terá que ser alegada para se poder extrair tal conclusão (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 28 de março de 2012, processo n.º 5816/09.0TAVNG, do extinto 4.º juízo criminal de Vila Nova de Gaia, de 14-03-2012, processo n.º 125/07.1TACDR.P1, este in www.dgsi.pt).
Assim, desde logo, terá que ser identificada e demonstrada a razão do não pagamento da multa desde a data de início do prazo para o seu pagamento até à atualidade, dado que o pagamento da multa poderá ser efetuado a todo o tempo (cfr. art.º 49.º, n.º 2, do C.P.), bem como que tal razão se impõe ao condenado, isto é, que não é por culpa sua que ela se manifesta.
No entanto, cumpre salientar que o dito preceito legal “(…) impõe ao condenado o ónus da demonstração - não apenas a invocação - de que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-02-2016, processo n.º 173/12.0GAPVZ-A.P1, in www.dgsi.pt e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 1 de outubro de 2013, in Coletânea de Jurisprudência, 2013, Tomo IV, pág. 250).
Quer isto dizer que, neste caso, o requerente não pode abrigar-se numa situação económica desfavorável, e esperar que o MP prove que ele podia pagar e não o fez. Exige-se mais ao condenado que não pagou a multa: que ele prove que a razão do não pagamento lhe não é imputável” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de março de 2013, processo n.º 125/07.1TACDR.P1, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, por decorrência desse regime, “não é ao tribunal que incumbe, em primeira linha, tal prova. A expressão legal "Se o condenado provar..." não deixa qualquer dúvida interpretativa. E assim é, porque estando o arguido obrigado ao cumprimento do sentenciado, está ele em condições, em melhores condições de não só alegar porque não satisfaz o quantitativo da multa, como de oferecer provas justificativas dessa alegação” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 19 de maio de 2014, processo n.º 355/12.4GCBRG-A.G1, in wwwdgsi.pt).
Compreende-se que a lei atribua ao condenado o ónus de comprovar a ausência de culpa na falta do pagamento da multa pois, por um lado, é ele o principal interessado em evitar as consequências do não pagamento, e por outro será ele quem em melhores condições se encontrará para fazer a demonstração da ausência de culpa (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2015, processo n.º 189/11.3PAPBL-B.C1, in www.dgsi.pt).
Acresce que é conforme a Constituição da República Portuguesa o citado preceito legal no segmento que faz recair sobre o condenado a incumbência de provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 491/2000, de 22-11-2000, in www.tribunalconstitucional.pt).
Convém salientar que no âmbito do referido recurso submetido à apreciação do Tribunal Constitucional havia sido invocado que era “muito difícil, se não impossível”, a prova de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado, dado tratar-se da demonstração de uma “factualidade negativa”. Ora, o Tribunal Constitucional aí considerou que “salta à vista a falta de procedência desta imputação. Na verdade, a demonstração de que o não pagamento da multa não é imputável ao condenado pode naturalmente fazer-se por via da prova de factos positivos, de onde resulte essa não imputabilidade. Basta pensar, por exemplo, na apresentação de determinados documentos (declaração de rendimentos, recibo do subsídio de desemprego, atestado da Junta de Freguesia, declaração relativa a eventual internamento hospitalar, entre outros), dos quais se deduza não ser imputável ao condenado o não pagamento da multa em que foi condenado”. Na verdade, o dito tribunal aí considerou também que “conclui-se, pois, que não é à prova de um facto ou (factualidade) negativo que o n.º 3 do artigo 49.º do Código Penal faz apelo, mas antes à demonstração dos factos, que regra geral serão positivos (insuficiência económica, doença, etc.), de onde se extrai a conclusão de que o não pagamento se deveu a causa não imputável ao condenado”.
E isto, obviamente, sem prejuízo, de não tendo o condenado feito prova do alegado, o tribunal atender aos elementos do processo, nomeadamente “(…) os factos assentes, para o efeito relevantes, que constem da sentença condenatória” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de março de 2015, processo n.º 189/11.3PAPBL-B.C1, in www.dgsi.pt).
O condenado alega que esteve desempregado, que recentemente ficou empregado, predispondo-se a pagar em prestações a multa seguindo um plano de pagamento que ele próprio estabeleceu. Não obstante, nem sequer alega até quando esteve desempregado, quando iniciou o atual emprego e qual o seu vencimento, sendo que, em todo o caso, não demonstra nada do que alegou.
Acresce que no passado foi autorizado a pagar a multa em prestações, não tendo cumprido o plano estabelecido.
Ora, predispondo-se o condenado a proceder ao pagamento da multa em prestações, embora tal possa traduzir a afirmação da impossibilidade de pagar a multa de uma só vez ou a dificuldade em fazê-lo, o certo é que, ao mesmo tempo, traduz inequivocamente o reconhecimento de ser possível proceder ao mesmo pagamento, diferido no tempo, de forma repartida (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14 de março de 2013, processo n.º 125/07.1TACDR.P1, in www.dgsi.pt).
Bem vistas as coisas o condenado não explicou com clareza mínima o que pode ter-se passado que o impediu de pagar as prestações correspondentes ao pagamento faseado da multa em que foi autorizado e que determinaram o vencimento das restantes.
Pelo exposto e ao abrigo dos citados preceitos, não suspendo a execução da prisão.»

IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente, Ministério Público, alegar que o despacho recorrido, que indeferiu o requerimento de suspensão de execução da pena de prisão, substituída por multa que não foi paga, em que B… foi condenado, deverá ser alterado no sentido do deferimento desse requerimento, por dos autos constarem elementos que revelam que não é imputável ao condenado (atendendo à sua precária situação económica) o não pagamento dessa multa; ou, caso assim não se entenda, deverá tal despacho ser alterado no sentido de se ordenar a realização de diligências tendentes ao apuramento da situação económica do condenado de forma a determinar se essa falta de pagamento lhe é, ou não, imputável. Alega que esse despacho, ao interpretar o artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal no sentido de impor ao condenado o ónus de provar que o não pagamento da multa não resulta de culpa sua, viola o disposto nos artigos 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição. Alega que, por esse motivo, por prescindir do apuramento da situação económica do condenado, esse despacho padece de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, a), do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 43.º, n.º 2 (este na versão vigente à data da prática do crime em questão, correspondente ao artigo 45., n.º 2, da versão actualmente vigente), e 49.º, n.º 3, do Código Penal, se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão inicialmente substituída por multa ser suspensa por um período de um a três anos desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro.
Impõe-se reconhecer que, ao contrário do que alega o recorrente, dos autos não constam elementos que nos permitam afirmar que o condenado B… dispõe de uma situação económica precária a ponto de se afirmar que a falta de pagamento da multa em questão lhe não é imputável. Na verdade, e como bem se refere no despacho recorrido, ele alega que esteve desempregado e só há pouco tempo começou a trabalhar em França, mas não diz quando começou a trabalhar e qual o montante do seu salário, sendo que também não apresentou prova desses factos que alega. Não basta a prova dos seus encargos familiares e da necessidade de emigrar para fazer face a tais encargos (factos que decorrem do acórdão da condenação) para concluir no sentido da insuficiência da situação económica do condenado para fazer face ao pagamento da multa em questão, independentemente do montante do salário por ele auferido em França.
O despacho recorrido indeferiu, por tal motivo, o requerimento de suspensão de execução da prisão substituída pela multa não paga pelo condenado por considerar que era sobre este que recaia o ónus de alegar e provar que essa falta de pagamento lhe não era imputável. Esta interpretação é a que decorre com clareza da letra do artigo 49,º, n.º 3, do Código Penal e tem suporte na jurisprudência que é citada nesse despacho. Além do apoio na letra da lei, essa interpretação também se justifica à luz da ratio do preceito, pois é o condenado quem está em melhores condições de alegar e provar os factos relativos à sua situação económica e aos motivos do seu incumprimento, não se justificando que caiba ao tribunal averiguar oficiosamente esses factos e motivos.
Alega, porém, o recorrente que essa interpretação, que faz recair sobre o condenado tal ónus, contraria o princípio da presunção de inocência do arguido e os seus corolários, princípios in dubio pro reo e da proibição da inversão do ónus de prova em desfavor do arguido, princípios que decorrem, todos eles, dos artigos 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
Não é assim, porém. Esses princípios dizem respeito à eventual condenação do arguido pela prática de um crime. Têm um campo de aplicação que vai para além da prova dos elementos típicos do crime – é certo – e se estende também à prova das causas de exclusão da ilicitude e da culpa, das circunstâncias modificativas e de ordem geral e à prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja uma condição indispensável de uma decisão suscetível de favorecer o arguido (ver, neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de novembro de 1998, in C.J.-S.T.J., 1998, III, pg. 201). Mas esse campo de aplicação não deixa de estar circunscrito à condenação pela prática de um crime. Ora, o campo de aplicação do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal já se situa fora do âmbito da condenação pela prática de um crime, situa-se no âmbito do incumprimento de uma pena já determinada e da razão desse incumprimento.
O artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal na interpretação que faz recair sobre o condenado o ónus de alegar e provar que a falta de pagamento da multa lhe não é imputável não contraria, pois, os artigos 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e 32.º, n.º 2, da Constituição.
No acórdão n.º 491/2000 (acessível in www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional considerou que a norma do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal não viola o princípio in dubio pro reo, antes impõe um dever de cooperação processual, cujo cumprimento é pressuposto da própria intervenção desse princípio (ou seja, uma vez cumprido tal dever, se subsistirem dúvidas, estas deverão beneficiar o condenado).
Há que considerar, porém, o seguinte.
Nos termos do artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal, ao tribunal não cabe averiguar oficiosamente a situação económica do condenado, nem a razão da falta de pagamento da multa em questão. Mas, perante um requerimento de suspensão de execução de uma pena de prisão incompleto, pode convidar o requerente a completá-lo, sem se substituir a este. E deve mesmo fazer tal convite, para evitar que uma decisão tão grave como o cumprimento de uma pena de prisão acabe por depender de razões de ordem formal, da imperfeição de um requerimento, mais do que razões de ordem substancial.
Assim, afigura-se-nos que o despacho recorrido deverá ser substituído por outro, que convide B… a completar o seu requerimento de suspensão de execução da pena de prisão em que foi condenado, especificando desde quando deixou de estar desempregado e passou a trabalhar e qual o salário que aufere, e juntando prova desses factos. Em face da reposta a tal convite, deverá o Mª Juiz a quo decidir a respeito desse requerimento e à luz do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal.
Nesta medida, deverá ser dado provimento parcial ao recurso.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando que o despacho recorrido seja substituído por outro, que convide B… a completar o seu requerimento de suspensão de execução da pena de prisão em que foi condenado, especificando desde quando deixou de estar desempregado e passou a trabalhar e qual o salário que aufere, e juntando prova desses factos. Em face da reposta a tal convite, deverá o Mª Juiz a quo decidir a respeito desse requerimento e à luz do disposto no artigo 49.º, n.º 3, do Código Penal.

Notifique

Porto, 24-01-2018
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo