Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2548/20.1T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE BURLA
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
Nº do Documento: RP202301252548/20.1T9VFR.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A disposição patrimonial, que se constitui como um dos elementos objetivos do crime de burla, pode ocorrer por via de comportamento passivo.
II - Tal conduta passiva deve, todavia, corresponder a um ato voluntário e consciente de disposição patrimonial.
III - Verificando-se que o requerimento para abertura da instrução não contém uma narrativa acusatória que descreva corretamente os elementos objetivos e subjetivos do crime imputado, impedindo deste modo a delimitação do objeto do processo, não pode a mesma ser introduzida por convite ao aperfeiçoamento e também não pode ser acrescentada na decisão instrutória sob pena de nulidade, por corresponder a uma alteração substancial dos factos descritos no requerimento para abertura de instrução.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 2548/20.1T9VFR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 1


Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito dos autos de Inquérito n.º 2548/20.1T9VFR, a correr termos na Comarca de Aveiro, 2.ª Secção do DIAP de Aveiro, foi proferido despacho de arquivamento dos autos quanto ao apuramento da responsabilidade criminal do denunciado AA pela eventual prática do crime de prevaricação de advogado ou de solicitador, p. e p. pelo art. 370.º, n.º 1, do CPenal, por prescrição desse mesmo procedimento criminal.
Perante este despacho, o queixoso BB requereu a sua constituição como assistente, que foi deferida, e a abertura da instrução, pedindo, a final, a pronúncia do arguido AA pela prática de um crime de burla qualificada, na forma continuada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 2, al. a) e d), do CPenal.
Por despacho de 11-03-2022, o Senhor Juiz de Instrução decidiu rejeitar o requerimento para abertura da instrução, por inadmissibilidade legal da instrução.
*
Inconformado com esta decisão, recorreu o assistente, solicitando que seja revogado o despacho recorrido e seja o mesmo substituído por outro que admita o requerimento para abertura da instrução que apresentou e declare aberta a instrução, organizando, nesse sentido, as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. O Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelo Ofendido, contém, discriminadamente, todos os elementos da tipicidade objectiva e subjectiva da norma incriminadora do crime de burla, imputado ao arguido na forma agravada e continuada, previsto e punido pelo artº 217º, nº 1 do C.P.
2. Pelo que não é nulo e, consequentemente, tem que ser admitido.
Nomeadamente:
3. Está descrita a intenção do agente obter um enriquecimento indevido para si.
4. Enriquecimento que deriva do engano intencional, deliberado e consistente em que o Arguido induziu e manteve o Ofendido pelo período necessário a garantir a prescrição do crime de prevaricação de advogada que inicialmente lhe foi imputado.
5. Condicionando e determinando a sua conduta - uma inacção prolongada no tempo,
6. Com a intenção conseguida de, por essa via, se eximir a ser sujeito ao referido processo crime e de “fugir” ao pagamento da indemnização por si devida ao Ofendido por, no exercício da sua actividade profissional como Advogado, ter deixado prescrever os direitos e créditos laborais do mesmo; por esta via enriqueceu o Arguido o seu património, evitando assumir obrigações, responsabilidades, despesas e encargos – o que é uma forma de enriquecimento.
7. Está descrito o emprego de astúcia pelo agente – conforme reconhecido no Despacho de rejeição.
8. Está descrito o erro ou engano em que a vítima incorreu, decorrente dessa atuação – conforme reconhecido no Despacho.
9. Sendo que foi esse erro que determinou, directa e necessariamente, a conduta do Ofendido burlado, melhor descrita no RAI que para o presente efeito aqui se tem por integralmente reproduzido.
10. Que, sumariamente, consistiu em cumprir instruções e responder a todas as solicitações de documentos e de informações que este lhe fez ao longo de anos, na convicção de que estava em curso a acção judicial.
11. E nessa convicção (astuciosa e intencionalmente criada, mantida e já admitida pelo Arguido) abster-se de, em tempo útil, acionar criminalmente o arguido pelo crime de Prevaricação de advogado em que este incorreu, p.p. pelo artº 370º do C.P. – que terá prescrito a 10 de Novembro de 2019 – e aí reclamar dele a indemnização a que tinha direito pela prática do crime.
12. Está descrita qual foi a conduta da vítima, adoptada em consequência do erro ou engano em que foi induzida e que determinou a diminuição do seu património – elemento este consubstanciado na conduta acima descrita que aqui se reproduz e melhor descrita no RAI (nomeadamente, pontos 9 a 14)
13. Está descrita a verificação de prejuízo patrimonial da vítima – já admitido e reconhecido no Despacho de que se recorre – prejuízo esse que ocorre por culpa única e exclusiva do Arguido – perda dos créditos salariais e outras regalias da mesma natureza.
14. Está explícito o nexo de causalidade necessário e suficiente, entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de actos conducentes à diminuição do seu património.
15. Está explícito o nexo de causalidade necessário e suficiente, entre a conduta do burlado e a efetiva verificação do seu prejuízo patrimonial.
16. Do RAI resulta que foi a conduta dolosa do arguido que determinou e constrangeu a conduta (actos jurídicos) do Ofendido, que se traduz nomeadamente numa abstenção de agir.
17. E que foi esta conduta do Ofendido que determinou prejuízo patrimonial de que foi vítima e o correspondente enriquecimento do Arguido, na medida em que ilegitimamente enriqueceu o seu património, abstendo-se de indemnizar o assistente pelos prejuízos que lhe causou.
18. Não colhe, pois, o entendimento do M.P. ao afirmar que o prejuízo se verificou independentemente da actuação do Ofendido.
19. Também não colhe o argumento de que “não resulta do RAI uma concreta e individualizada intenção de obter para si um enriquecimento ilegítimo” porquanto tal intenção fica suficientemente explícita no conjunto do articulado e, mais especificamente, no conteúdo dos artº 25ºa 29º que aqui se têm por integralmente reproduzidos.
20. Permitindo, nos termos em que se encontra, uma adequada defesa ao Arguido, se assim o entender.
21. Do que se conclui que o RAI apresentado não é nulo.
22. E, consequentemente, a abertura da Instrução é legalmente admissível, o que deverá ser reconhecido.
23. Assim não entendendo, o douto despacho recorrido viola ou interpreta erradamente as disposições dos artº 217º, nº 1 do C.P., bem como as dos artºs 137º, 287º, nº 2 e 283º, nº 3, al b) e c) do C.P.P.»
*
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido pugnou pela improcedência do recurso, defendendo que o requerimento para abertura da instrução não cumpre os requisitos formais exigidos por lei.
Sintetiza os seus argumentos da seguinte forma (transcrição):
«1. Quando o requerimento de abertura de instrução, como é o caso, omite total ou suficientemente os elementos objectivos e subjectivos do tipo penal incriminador que pretende fazer vingar em decisão instrutória (e ao que está obrigado de acordo com os arts. 283.º, n.º 3, al. b) ex vi art. 287.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal), sendo aquele requerimento a peça que define o thema decidendum, do qual se não pode afastar essencialmente o Tribunal, designadamente acrescentando esses elementos, sob pena de nulidade da decisão instrutória, deve considerar-se que o requerimento é legalmente inadmissível.
2. Ora, por reporte ao crime de burla qualificada (artigos 217.º, n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea a) e d) do Código Penal) indicado no RAI rejeitado, não se encontra descrito qualquer acto do qual decorresse o empobrecimento do ofendido com a conduta apontada ao arguido, mas apenas uma referência conclusiva implausível, e sem suporte factual descrito, à intenção de enriquecimento do agente.
3. Estando em causa a não propositura de uma acção laboral por parte de advogado, em suma, não só estão omissos os factos concretos demonstrativos da intenção de enriquecimento concreta, como tal não é descortinável sequer, e sempre estaria em causa um empobrecimento possível, virtual, por não se poder defender que propor uma acção laboral equivale a ganhá-la. O nexo de causalidade exigido pelo crime não está assim descrito em concreto.
4. Ademais, sendo doloso o crime de burla, inexistindo tipo negligente, toda a descrição factual parece, talvez confundindo a questão cível com a criminal, assentar na falta de cuidado do advogado em cuidar dos interesses do Assistente de um modo oportuno e consequente, o que nos afasta sobremaneira de qualquer possibilidade de resultar o esquisso acusatório numa acusação material que corresponda aos preceitos legais aplicáveis.»
*
Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, secundando e desenvolvendo a resposta apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.
*
Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente apresentou resposta, reiterando a posição assumida no recurso.
*
Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
*

II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se é incorrecta a decisão do Senhor Juiz de Instrução que rejeitou o requerimento para abertura da instrução, por inadmissibilidade legal da instrução.

Para análise da questão que importa apreciar releva desde logo a decisão de rejeição do RAI que constitui o seu objecto e que é do seguinte teor (transcrição):
«O Tribunal é o competente [art. 17.º, 19.º n.º 1, 288.º n.º 2 do CPP e art. 119.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26/08, na redação atualmente em vigor e art. 68.º n.º 1 al. g) e Anexo Mapa III do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27/03, na redação atualmente em vigor].
*

Da Inadmissibilidade Legal da Instrução:
No termo do Inquérito a que respeitam os presentes autos, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no artigo 277.º n.º 1 parte final do Código de Processo Penal, relativamente aos factos denunciados que seriam suscetíveis de consubstanciar, em abstrato, a prática pelo Arguido AA de um crime de prevaricação de Advogado, previsto e punido pelo artigo 370.º n.º 1 do Código Penal (fls. 99 a 104).
Na verdade, decidiu o Ministério Público, entre o mais, que:
“(…) o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime participado é de cinco anos, contados desde a data da prática do ilícito (cfr. artigo 118.º, n.º 1 – alínea c), e artigo 119.º, do Código Penal).
A data da prática dos factos ocorreu a 1 de junho de 2014 (data em que ocorreu o termo do prazo para instaurar a competente acção no Tribunal de Trabalho) e a participação dos factos, para efeitos de procedimento criminal, ocorreu a 20 de dezembro de 2020. Constata-se, assim, que nesta data já tinham decorrido mais de cinco anos desde a prática dos factos.
Face ao exposto, tendo em atenção que o prazo de prescrição do procedimento criminal relativo ao crime denunciado é de 5 anos, que o termo deste prazo ocorreu em data anterior à instauração dos presentes autos e que não se verificou nenhuma causa de suspensão ou interrupção da prescrição do procedimento criminal (artigos 119.º e 120.º, do Código Penal), declaro extinto, por prescrição, o respetivo procedimento criminal, e determino o arquivamento dos autos, por inadmissibilidade legal, nos termos do artigo 277.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal”.
Inconformado, veio o Assistente BB requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal (doravante CPP).
Alegou, para tanto e em síntese, que dos autos resultam suficientemente indiciados um conjunto de factos subsumíveis à prática pelo Arguido de um crime de prevaricação de Advogado, previsto e punido pelo artigo 370.º n.º 1 do Código Penal, admitindo a prescrição do mesmo.
Não obstante, entende igualmente que as condutas do Arguido integram, além do mais, a prática de um crime de burla qualificada, em autoria material e na forma consumada, nos termos do artigo 218.º n.º 2 alínea a) e d) do Código Penal, pugnando pela respetiva pronúncia, a final.
Importa, pois, apreciar o requerimento para abertura de Instrução, que cumpre rejeitar, pelas razões que de seguida se expõem.
*
No presente caso, tendo sido requerida pelo Assistente, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, tal como consta do artigo 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 287.º n.º 1 alínea b) do CPP o seguinte: “1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (…) b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação”.
Tal requerimento do Assistente não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o Requerente pretende que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do Assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º (cfr. artigo 287.º n.º 2 do CPP).
Neste particular, importa sublinhar que, conforme dispõe o artigo 283.º n.º 3 alíneas b) e c) do CPP, tal como a acusação do Ministério Público, o RAI (requerimento de abertura de instrução) deverá conter, sob pena de nulidade,: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “c) A indicação das disposições legais aplicáveis”.
Como se conclui da análise das disposições legais citadas, o RAI apresentado pelo Assistente, em caso de arquivamento pelo Ministério Público, equivalerá em tudo a uma acusação. Portanto, tal como a acusação, o RAI tem de conter, por si só, todos os elementos essenciais constitutivos de um crime e a imputação do mesmo a um determinado agente.
Finalmente, importa ainda referir que o Juiz de Instrução Criminal, apesar de poder praticar oficiosamente quaisquer atos de instrução que entenda relevantes (cfr. artigo 291.º n.º 1 do CPP), encontra-se vinculado pelo objeto do processo, fixado pela acusação ou pelo requerimento de abertura de instrução (consoante seja apresentado pelo Arguido ou pelo Assistente), em obediência ao princípio da vinculação temática, densificado, quanto à fase de instrução, no artigo 303.º do CPP, o qual, por sua vez, é concretizador do princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.º n.º 5 da CRP.
Donde, o RAI condiciona e limita a atividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, como resulta do disposto nos artigos 303.º n.º 1 e 309.º n.º 1 do CPP.
Isto é, o RAI tem que definir o thema decidedum a submeter à comprovação judicial, em respeito ao modelo acusatório: não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e atuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução, não o podendo extravasar.
Assim, o RAI constitui o elemento fundamental para a definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas autónoma dentro do tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução.
Tal como doutamente referido no Ac. TR Porto de 12/10/2011, Relatora: Des. Eduarda Lobo, Proc. n.º 855/08.0PAVNG.P2., “Aqui chegados podemos afirmar, com segurança, que entre o requerimento de abertura de instrução e a decisão instrutória tem que haver uma correspondência material, no sentido de que os factos invocados no primeiro terão que estar tratados na segunda e que apenas os factos invocados no primeiro podem ser conhecidos na segunda”.
Com efeito, na decisão instrutória a proferir apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303.º do CPC de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: art. 309.º n.º 1 do CPP.
Como refere Germano Marques Da Silva, in “Curso de Processo Penal, III”, pp. 125 e sgs, “Se o tribunal pudesse considerar outros factos substancialmente diversos dos da acusação, por maiores que fossem as possibilidades concedidas ao arguido para deles se defender, sempre seria posta em causa a função especificamente judicial. A instrução é uma atividade materialmente judicial e não de investigação. Ao admitir-se a alteração da acusação por iniciativa do juiz de instrução frustrar-se-ia a própria finalidade da instrução, tal como foi concebida pelo legislador do Cód. Proc. Penal 87: controlo negativo da acusação e não complemento da investigação prévia à fase de julgamento”.
Só deste modo se garante a estrutura acusatória do processo e a defesa do arguido que, sabendo concretamente quais os factos e os crimes que lhe são imputados, pode exercer convenientemente o contraditório.
*
Como resulta da análise do requerimento de abertura de instrução, constata-se que o mesmo contraria o disposto no artigo 283.º n.º 3 alínea b) do CPP, porquanto não contém a narração de factos concretos e individualizados que possam fundamentar a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança (não contém, desde logo, a narração perfeita e global de factos que consubstanciem crime).
De facto, é o requerimento imperfeito, além do mais, nalguns elementos objetivos e subjetivos que integram a prática do crime de burla qualificada, elementos esses essenciais do ilícito típico do crime e sem a verificação dos quais o crime não existe.
Vejamos, em concreto.
Em primeiro lugar, o crime de burla qualificada imputado pelo Assistente ao Arguido vem previsto e punido no artigo 218.º n.º 2 alínea a) e d) do Código Penal, o qual funciona numa relação de especialidade com o crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217.º n.º 1 do mesmo diploma legal, o qual reza o seguinte:
“1 - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
O bem jurídico protegido pela norma incriminatória corresponde ao património de outra pessoa – vide, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da C.R.P. e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3.ª Ed., p. 847.
Estamos perante direitos tutelados quer do ponto de vista constitucional, quer do ponto de vista civil, conforme resulta dos artigos 62.º e 35.º da Constituição da República Portuguesa e Livro II do Código Civil (arts. 397.º e sgs.).
A tipicidade objetiva consiste nos seguintes itens: a) Uso de erro ou engano sobre factos;
b) Factos esses astuciosamente provocados; c) Determinar outrem à prática de atos;
d) Atos esses que causem à vítima ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.
A dimensão típica remete, pois e no tocante particularmente ao item c), para a configuração do crime de burla enquanto um crime com participação da vítima, isto é, um delito onde a saída dos valores da esfera da disponibilidade fáctica do legítimo titular decorre, em último termo, de um comportamento do sujeito passivo/vítima, tendo necessariamente de haver lugar à prática de um ato de disposição – neste sentido, ver Miguez Garcia e Castela Rio, in “Código Penal Parte geral e especial”, Almedina, 2015, pp. 959 e 967.
Acresce que este comportamento da vítima terá que ser a causa adequada e necessária a lhe causar um prejuízo patrimonial ou a terceiro (item da alínea d).
Em relação ao tipo subjetivo, estamos perante um crime doloso (dolo genérico), o qual admite qualquer das formas de dolo previstas no artigo 14.º do Código Penal. Todavia, exige-se ainda uma concreta intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, enquanto conduta enganosa e astuciosa – a qual se aferirá através de palavras, gestos, atos concludentes, nomeadamente através de uma encenação fraudulenta.
Volvendo ao caso concreto, do requerimento de abertura de instrução, ainda que se possa considerar que os factos respeitantes às alíneas a) e b) do tipo legal de crime se encontram adequadamente descritas, já o mesmo não sucede quanto às alíneas c) e d).
Na verdade, da factualidade elencada no requerimento de abertura de instrução resulta, em síntese, que o Ofendido formulou pedido de apoio judiciário, entre o mais na modalidade de nomeação de patrono, o qual foi deferido, tendo-lhe sido nomeado o Advogado (aqui Arguido), Dr. AA, tendo em vista a instauração de ação judicial contra a entidade patronal do Ofendido, intitulada “E..., Lda”, por despedimento ilegal e falta de comunicação e pagamento dos descontos legalmente obrigatórios para a Segurança Social.
Após vários pedidos de informação relativamente ao processo por parte do Ofendido, informações essas alegadamente erradas e incorretas prestadas pelo Arguido/Advogado, e após vários anos, aquele contactou o Tribunal de Trabalho e obteve a informação que não havia qualquer processo a correr em Tribunal, bem como da impossibilidade de reclamar os respetivos créditos, pois o prazo que dispunha para o efeito já se encontrava há muito ultrapassado.
Se da leitura destes factos é possível retirar a descrição do uso de erro ou engano sobre factos, factos esses astuciosamente provocados pelo Arguido, bem como a ocorrência de um prejuízo patrimonial para o Ofendido, já não vislumbramos a descrição factual, individual e concretizada da prática de um ato de disposição do Ofendido, nem vem mencionado no RAI o nexo de causalidade adequada entre este ato de disposição (pois não vem o mesmo descrito) e aquele prejuízo patrimonial.
Com efeito, o Ofendido não praticou qualquer ato de disposição, nem a atuação do Arguido determinou que o Ofendido praticasse qualquer ato.
Diferentemente seria se, por exemplo, o Arguido/Advogado tivesse informado o Ofendido talqualmente descrito no RAI e, simultaneamente, lhe solicitasse a transferência de quantias monetárias para efetuar o pagamento de custas e encargos com o processo (quando o processo nunca foi intentado). Neste exemplo e caso tal constasse descrito no RAI, aí sim seria possível afirmar a existência da descrição deste elemento objetivo do tipo legal de crime.
Por outro lado, para além de haver necessidade de determinar outrem à pratica de um ato, a norma incriminadora exige ainda que esse ato cause à vítima ou a outra pessoa um prejuízo patrimonial.
Ora, reitera-se, não vem alegado qualquer ato praticado pelo Ofendido (sendo que as expressões utilizadas “25. E que este, intencional, deliberada, dolosa e ativamente ocultou do denunciante, levando-o à prática de ações e omissões que lhe determinaram graves perdas patrimoniais (…)” é totalmente conclusivo.
O que sucedeu, na realidade, foi que o Arguido/Advogado alegadamente deixou passar o prazo legal para intentar a competente ação para reclamação dos seus créditos laborais no Tribunal do Trabalho.
Esta conduta omissiva do Arguido/Advogado, e não a conduta do Ofendido, (determinada pelas explicações dadas pelo Arguido/Advogado) é que, alegadamente e tal como vem descrito no RAI, foi a causa necessária e adequada ao prejuízo patrimonial, avaliado pelo Ofendido na quantia global de 8.505,00 EUR (oito mil, quinhentos e cinco euros).
Utilizando um exemplo, em tudo semelhante ao dos presentes autos, veja-se o que diz Miguez Garcia e Castela Rio, op. cit., p. 968: Para negar a burla, aponta-se o exemplo do médico que alta noite é chamado à residência distante de um paciente mediante telefonema falso, aproveitando os delinquentes a sua ausência provocada para lhe pilharem a casa. Na hipótese, não houve qualquer disposição patrimonial do médico, não obstante a tramoia em que caiu: os ladrões é que subtraíram as coisas e cometeram o furto”.
No caso em apreço, também não houve qualquer disposição patrimonial do Ofendido, não obstante as várias explicações alegadamente fraudulentas do Arguido/Advogado: houve antes falta de diligência, inverdades ou, quanto muito, a prática do crime de prevaricação de advogado, caso tenha intencionalmente prejudicado a causa entregue (cujo crime já prescreveu).
Dito de outro modo, e para que não restem dúvidas, o crime de burla carece de intervenção do Ofendido para a sua consumação, devendo ainda ser causa adequada do prejuízo patrimonial verificado. O prejuízo verificou-se, independentemente da atuação do Ofendido.
Finalmente, também não se descortina uma correta descrição do elemento subjetivo (dolo específico) imputado ao Arguido, sendo conclusiva a expressão “25. (…) a fim de, simultaneamente fazer precludir e eximir-se à sua responsabilidade, assim obtendo um ganho patrimonial manifestamente ilícito”.
Não vem assim descrita uma concreta e individualizada intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. Aliás, o Ofendido, no respetivo RAI, também não esclarece de forma individualizada e concreta qual o alegado enriquecimento ilegítimo que o Arguido pretendia.
Pergunta-se, qual era a intenção do Arguido/Advogado? Qual o alegado benefício/enriquecimento que teve, para si, com a sua atuação? O Ofendido, no RAI, não o descreve, nem explicita, apenas faz à referência ao prejuízo patrimonial que alegadamente teve, mas não ao benefício/enriquecimento que adveio ao Arguido pela sua atuação.
A falta de descrição individual e concreta de todos estes elementos objetivos e subjetivos previstos no artigo 217.º n.º 1 do Código Penal conduz inexoravelmente à rejeição do requerimento de abertura de instrução, uma vez que o mesmo não respeita as formalidades previstas no artigo 287.º n.º 2 e 283.º n.º 3 alínea b) e c) do CPP, sendo, portanto, nulo.
A consequência da falta de descrição de todos os elementos da tipicidade objetiva e subjetiva da norma incriminadora não é pacífica, quer na jurisprudência, quer na doutrina, havendo, pelo menos, quatro conceções distintas:
1. Nulidade: sendo aplicável ao requerimento do Assistente o preceituado no artigo 283.º n.º 3 alíneas b) e c) do CPP, por força do artigo 287.º n.º 2 e 308.º n.º 2, todos do CPP, estará ajustado afirmar consequenciar o vício da nulidade do RAI, nesses casos – neste sentido, ver Ac. TR Porto de 23/05/2001, CJ, 2001, T. III, p. 239;
2. Carência de objeto: Face ao requerimento de abertura de instrução, sem articulação de factos, o Arguido ficou sem saber quais os factos de que teria de se defender, e, por essa razão, ficou o juiz impedido de realizar a instrução, carecendo a instrução de objeto – neste sentido, ver Ac. STJ de 05/05/1993, CJ, 1993, T. III, pp. 243 e sgs.;
3. Inexistência jurídica: A omissão das razões de facto e de direito no requerimento instrutório acarreta, por falta de objeto da instrução, o vício de inexistência jurídica – neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 1987, anotação ao artigo 287.º;
4. Não estamos perante um caso de inadmissibilidade legal da instrução, se circunscrevem aos casos de instrução formulada no âmbito de um processo especial ou por quem não tenha legitimidade para tanto – neste sentido, ver Simas Santos e Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, Vol. II, 2000, p. 163 e Ac. TR Lisboa de 12/07/1995, CJ, 1995, T. IV, p. 140 (todas melhor explanadas Acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 7/2005) – contra, ver Maia Costa, in “Código de Processo Penal Comentado”, org. Henriques Gaspar et alia, Almedina, 2014, p. 1003 e ainda Ac. TR Coimbra de 15/05/2019, Relator: Des. Orlando Gonçalves, Proc. n.º 1229/17.8PBVIS.C1.
Aderimos à primeira conceção, pelos motivos infra expostos.
Com efeito, não é viável a realização da instrução, pois nunca poderia o Arguido ser condenado com base apenas nos factos alegados em tal requerimento, não podendo, pois, ser pronunciado apenas por esses factos (cfr. artigo 308.º n.º 1 do CPP).
Nem poderiam ser considerados em hipotético despacho de pronúncia outros factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no requerimento para abertura de instrução apresentado, em obediência ao princípio da vinculação temática, densificado, quanto à fase de instrução, no artigo 303.º do CPP, o qual, por sua vez, é concretizador do princípio do acusatório, consagrado no artigo 32.º n.º 5 da CRP.
Conforme anteriormente mencionado, o RAI condiciona e limita a atividade de investigação do Juiz e a decisão instrutória, sob pena de nulidade desta última – artigo 309.º n.º 1, em conjugação com o artigo 1.º alínea f), ambos do CPP – neste sentido, ver Ac. TR Porto de 23/05/2001, CJ, T. III, p. 239, que ora se transcreve: “É que, se de acordo com a definição do art. 1º, al. f), do Cód. Proc. Penal há alteração substancial dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente quando a nova factualidade tem por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso, por maioria de razão existirá alteração substancial dos factos sempre que os descritos naquele requerimento não integrem qualquer crime e os novos, por si só ou conjugados com aqueles, passem a integrá-lo”.
Acresce que não é possível ao Tribunal proceder ao convite ao aperfeiçoamento do RAI, porquanto foi fixada jurisprudência no sentido de que: “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” – ver Acórdão do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 7/2005, publicado em D.R., I Série-A, n.º 212, 04/11/2005.
Dir-se-á ainda que, uma instrução que peque por défice enunciativo de factos suscetíveis de conduzir à pronúncia do Arguido titularia um ato inútil, que a lei não admite (artigo 137.º do CPC).
Em conclusão, só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no artigo 287.º n.º 2 do CPP. Por conseguinte, conclui-se que o RAI apresentado pelo Assistente é nulo, dado que do mesmo não resulta a descrição de factos suscetíveis de integrar todos os pressupostos legais do crime imputado, implicando a inadmissibilidade legal da instrução.
Não obstante, sublinhe-se, tal como afirmado pelo Assistente, que dos factos alegados emerge responsabilidade civil, designadamente responsabilidade civil profissional e contratual do Advogado, a qual poderá dar origem ao ressarcimento dos danos em que se traduziu o alegado prejuízo patrimonial para o Ofendido de 8.505,00 EUR, no âmbito de uma ação declarativa a intentar.
*
Em face do exposto, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeito o requerimento para o efeito apresentado pelo Assistente BB.

Condeno o Assistente nas custas processuais, que se fixam em 1 UC, nos termos do disposto no artigo 8.º n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique (art. 287.º n.º 5 do CPP).

Deposite e dê baixa.»
*
Vejamos.
De acordo com o disposto no art. 287.º, n.º 2, do CPPenal, o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º.»
Por seu turno, o art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), do CPPenal estabelece que a acusação contém, sob pena de nulidade, «b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e «c) A indicação das disposições legais aplicáveis».
Resulta do conjunto destas normas que o requerimento para abertura da instrução deve ter a estrutura de uma acusação, sendo «[o]s factos (da acusação e da sentença) (…) “enunciados linguísticos descritivos de acções”: da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.»[2]

Ora, compulsado o requerimento para abertura da instrução (doravante, RAI) apresentado pelo recorrente verificamos que, na realidade, tal como se descreve na decisão recorrida, o mesmo é omisso quanto à descrição de parte dos elementos objectivos e, principalmente, subjectivos do crime burla que considera ter sido cometido pelo arguido ali requerido.
Quanto aos elementos objectivos mostra-se particularmente omissiva e conclusiva a descrição factual respeitante à disposição patrimonial e ao prejuízo patrimonial, tal como se fez notar na decisão recorrida.
Com efeito, depois de descrever os actos do arguido através dos quais este foi sucessivamente levando o recorrente a laborar em erro quanto à efectiva propositura de uma acção contra a sua anterior entidade patronal, concluiu que o arguido:
«25. (…) intencional, deliberada, dolosa e activamente ocultou do denunciante, levando-o à prática de acções e omissões que lhe determinaram graves perdas patrimoniais, induzindo-o e mantendo-o em erro, a fim de, simultaneamente fazer precludir e eximir-se à sua responsabilidade, assim obtendo um ganho patrimonial manifestamente ilícito.
26. O que fez de forma consciente e continuada,
27. Induzindo a vítima em erros sucessivos, com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, mediante o emprego de astúcia – o que resultou em graves prejuízos patrimoniais e não patrimoniais para o ofendido.
28. Que ficou privado de subsídio de desemprego, viu prejudicado o seu tempo de descontos para a segurança social, nomeadamente para efeitos de reforma, e não logrou receber os créditos laborais a que tinha direito.
29. Sendo certo que sobre o arguido impendia um dever jurídico que pessoalmente o obrigava a evitar tal resultado.»

Como se pode observar, o recorrido não concretizou quais as acções e omissões a que foi determinado pelo engano e astúcia do arguido e que conduziram a uma disposição patrimonial e que graves perdas patrimoniais foram as que alegou ter tido.
É verdade que no início do seu requerimento o aqui recorrente alude a €8505 a título de salários e trabalho suplementar que reclamou junto do Tribunal de Trabalho. Mas esse é o único valor que poderia ser aproveitado em eventual responsabilização criminal do arguido, pois nada mais vem especificado, sendo certo que o direito a um tal crédito é ainda eventual, pois a mera propositura da acção não dá ganho de causa, como bem salienta o Ministério Público na resposta ao recurso.
É verdade também que a disposição patrimonial, que se constitui como um dos elementos objectivos do crime de burla, pode ocorrer por via de comportamento passivo.
Como explica M. Miguez Garcia[3], «[é] o erro que deverá provocar no sujeito passivo uma vontade de disposição, sendo indiferente que tal vontade se traduza num comportamento ativo ou passivo. No fundo, é indiferente a modalidade da conduta. Trata-se de qualquer comportamento voluntário (por conseguinte: com carácter de autorização ou mesmo só omisso do enganado), que provoca uma diminuição patrimonial ao próprio ou em património alheio.
Deste modo, representa uma disposição patrimonial a renúncia a um crédito por parte do credor que a isso é induzido enganosamente.»
O problema é que a narrativa que é feita no RAI não é explicita sobre quais são as acções e omissões do recorrente que o conduziram à disposição patrimonial e quais os concretos prejuízos que para si daí advieram (ressalvada a indicação dos €8505).
O que decorre da descrição factual do RAI, contrariamente à solução pretendida no recurso, é que o recorrente não teve um acto voluntário de disposição patrimonial, simplesmente porque não teve consciência de que não estava efectivamente a reclamar os créditos que entendia ter direito perante a sua anterior entidade patronal, assim como também não teve noção de que estava a caminhar em direcção à preclusão do direito à sua reclamação.
Diferente seria se o arguido tivesse, mediante engano sobre factos astuciosamente provocados, convencido, erradamente, o recorrente, sob um qualquer falso pretexto, a não intentar a pretendida acção para reclamar créditos, e este, por força disso, aceitasse e visse assim precludida a possibilidade de reivindicar esses créditos.
Neste caso, sim, estaríamos perante uma disposição patrimonial voluntária decorrente de engano astuciosamente provocado.
Por isso, tem toda a razão o Tribunal a quo quando afirma que «[o] que sucedeu, na realidade, foi que o Arguido/Advogado alegadamente deixou passar o prazo legal para intentar a competente ação para reclamação dos seus créditos laborais no Tribunal do Trabalho.
Esta conduta omissiva do Arguido/Advogado, e não a conduta do Ofendido, determinada pelas explicações dadas pelo Arguido/Advogado) é que, alegadamente e tal como vem descrito no RAI, foi a causa necessária e adequada ao prejuízo patrimonial, avaliado pelo Ofendido na quantia global de 8.505,00 EUR (oito mil, quinhentos e cinco euros).

Na situação em apreço, como o recorrente não tinha consciência de que não estava a reclamar créditos perante a sua entidade patronal, quebra-se o nexo que deve existir entre a conduta enganosa e astuciosa do agente e a prática de actos de disposição pelo burlado e entre estes e o prejuízo patrimonial.

De igual modo, tal como se descreve na decisão recorrida, falha a referência ao elemento subjectivo consubstanciado na intenção específica de enriquecimento ilegítimo, que não se mostra concretizado no RAI, sendo apenas utilizada a expressão legal intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo, daí não se depreendendo, explicita ou implicitamente, que enriquecimento é esse.
Posteriormente, em sede de recurso, procurando corrigir esta omissão, alegou o recorrente que o «enriquecimento resulta do factos de, através do engano intencional e deliberado em que o Arguido induziu e manteve o Ofendido, condicionando e determinando-o a uma inacção (conduta) prolongada, ter-se eximido e “fugido” a uma acção judicial (pela prática do crime de Prevaricação de advogado, p.p. pelo artº 370º do C.P) e ao pagamento de uma indemnização que sabia ser por si devida ao Ofendido, por, no exercício da sua actividade profissional como Advogado, ter deixado prescrever o direito a créditos salariais e outros direitos laborais que aquele tinha contra a antiga entidade patronal; por essa via, tendo enriquecido o seu património.»
Salvo o devido respeito, esta alegação, que não pode suprir a omissão detectada no RAI, baseia-se num raciocínio em circuito fechado onde o prejuízo provocado é em si mesmo o fundamento da intenção de enriquecimento ilegítimo.
Porém, a intenção de enriquecimento e os actos astuciosamente provocados que podem gerar erro no destinatário precedem cronologicamente a disposição patrimonial que este vai realizar e, consequentemente, o prejuízo que venha a ser causado.
Por outro lado, mesmo no âmbito da lógica do recorrente, tão-pouco está descrito no RAI que aqui se analisa que as informações falsas prestadas pelo arguido ao recorrente tiveram início apenas após a preclusão da possibilidade de reclamação por este dos créditos que alega ter sobre a anterior entidade patronal, o que inquina, também por esta via, a lógica da intenção subjacente à conduta do arguido, que, nessa perspectiva, nunca poderia existir antes da ocorrência do prejuízo, sendo que este só é configurável após impossibilidade de reivindicação legal dos créditos.

Como bem salienta o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, «é pacífico que está indiciado que o arguido devido à sua inércia não cuidou, como era seu dever profissional, dos interesses do assistente».
E essa descrição é a única que está verdadeiramente completa em termos factuais no RAI, mostrando-se o demais invocado, com vista à composição de uma acusação pela prática de um crime de burla qualificada, conclusivo ou omisso, nos termos indicados.

Não obstante a tentativa do recorrente de, através da motivação de recurso, compor uma narrativa baseada nos elementos referidos no requerimento para abertura da instrução, a verdade é que neste não se encontra formulada qualquer acusação quanto ao crime de burla qualificada na forma continuada.
E se a imputação não for clara e assertiva os arguidos não têm, sequer, possibilidade de se defender. Daí a importância da existência de uma narrativa factual que todos possam identificar como sendo a acusação que lhes é imputada e que baliza o objecto do processo.

Impõe-se, pois, concluir, à semelhança da decisão recorrida, que acolhemos na íntegra, que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo recorrente no âmbito do presente processo não cumpre as formalidades a que se reporta o art. 283.º, n.º 3, als. b) e c), ex vi art. 287.º, n.º 2, ambos do CPPenal.
E não cumprindo estas formalidades, a decisão a proferir no âmbito da fase de instrução nunca poderia ser de pronúncia, por omissão de elementos essenciais, que deviam ter sido apresentados pelo requerente da instrução com vista a tal finalidade.
O não cumprimento destas formalidades, posto que torna escusada a tramitação subsequente, já que o resultado pretendido – despacho pronúncia – nunca poderá ser alcançado, deve ser enquadrado como inadmissibilidade legal da instrução, à luz da regra da proibição de actos inúteis (art. 130.º do CPCivil ex vi art. 4.º do CPPenal).
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009[4] abordou esta questão, argumentando-se aí o seguinte:
«Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito … e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.º do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.º do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287º”.
Também os tribunais da Relação vem decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr, entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21-06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN.
Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.»

E também o acórdão n.º 35/2012 do Tribunal Constitucional, de 25-01, em consonância com o acórdão n.º 636/2011 do mesmo Tribunal, veio acolher a solução apontada, considerando que a incompletude ou narração inadequada dos factos que gerariam responsabilidade criminal dos arguidos não pode ser qualificada como uma mera preterição de um formalismo legalmente exigido antes deve ser equiparada ao incumprimento – ou, pelo menos, ao cumprimento deficiente – de um ónus de natureza material, neste caso, a falta de narração adequada dos factos ilícitos que consubstanciariam a responsabilidade penal dos arguidos, razão pela qual naquele aresto se decidiu «Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada “no sentido de, em caso de narração incompleta dos factos, ser justificada a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução”.»

Em face das deficiências detectadas no RAI quanto à descrição dos elementos objectivos e subjectivos do crime que o assistente pretende imputar ao arguido, não tinha o Senhor Juiz de Instrução alternativa à decisão que proferiu de rejeição do requerimento para abertura da instrução.
E não existe forma de salvar tal peça processual por força do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12-05-2005[5], segundo o qual:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.»

O já mencionado acórdão n.º 35/2012 do Tribunal Constitucional, de 25-01, citando o acórdão n.º 636/2011, acolhe igualmente a posição de que não é possível no contexto em análise o convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução:
«“Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do ato praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do nº 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a protecção das garantias de defesa), não é jurídico-constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afetar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspectos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.”»

E o acórdão n.º 175/2013 do Tribunal Constitucional, de 20-03, fazendo apelo às decisões proferias nos acórdãos n.º 389/2005 e 636/2011, veio a decidir «Não julgar inconstitucional a norma resultante do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, com referência ao artigo 283.º, nº 3, alíneas b) e c), do mesmo Código, segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objeto fáctico da pretendida instrução».

Em suma, constatando-se, como ocorre no caso em apreço, que o requerimento para abertura da instrução não contém uma narrativa acusatória que descreva correctamente os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado, impedindo deste modo a delimitação do objecto do processo, não pode tal narrativa ser introduzida por convite ao aperfeiçoamento por força do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 7/2005, cuja jurisprudência acolhemos, e nunca poderia ser acrescentada na decisão instrutória sob pena de nulidade, por corresponder a uma «alteração substancial dos factos descritos (...) no requerimento para abertura de instrução» - art. 309.º, n.º 1, do CPPenal.
Nenhuma censura merece, pois, o despacho impugnado ao decidir pela inadmissibilidade legal da instrução, por omissão de apresentação no requerimento para abertura da instrução de uma narrativa factual que encerre a descrição da totalidade dos elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido, já que nenhuma nulidade foi cometida através da análise realizada pelo Tribunal a quo.
Deve, assim, ser negado total provimento ao recurso.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso apresentado por AA e em manter a decisão recorrida.

Custas pelo assistente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º do RCP e tabela III anexa).

Porto, 25 de Janeiro de 2023

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
______________________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-06-2017, Proc. n.º 171/14.9GDEVR.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[3] In O Direito Passo a Passo, Volume II, Almedina, 2.ª edição – 2015, pág. 227.
[4] Cf. Proc. 08P3168, acessível in www.dgsi.pt.
[5] Proc. n.º 430/2004 – 3.ª Secção (DR 212 Série I-A, de 05-11-2005).