Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5293/15.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: CAPACIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE
QUESTÕES NOVAS
EFEITOS DA CITAÇÃO
Nº do Documento: RP201809105293/15.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º679, FLS.2-32)
Área Temática: .
Sumário: I - Integram a capacidade jurídica das sociedades todos os direitos e obrigações que se revelem indispensáveis ou úteis à consecução do seu fim, que é o escopo lucrativo, ou noutra perspectiva, envolverá incapacidade da sociedade tudo aquilo que, não sendo limitado estatutariamente ou por deliberações da sociedade, exorbita do objecto social, não podendo, pois, vincular a sociedade para com terceiros, sujeitando-se ao regime da nulidade.
II - Não é contrário ao fim social o negócio celebrado pela sociedade que transfere o seu único estabelecimento de restauração para um terceiro, assumindo este o pagamento de todo o seu passivo superior a dois milhões de euros, quando não se encontra provado que o desenvolvimento da actividade daquela pressuponha necessariamente a exploração de um estabelecimento ou negócio que permita a prestação dos serviços de restauração.
III - Os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
IV - Face ao estatuído no artigo 381.º, nº 3 do CPCivil introduzido no anterior código pela Reforma Processual de 1961, a partir da citação na providência cautelar não pode a sociedade requerida executar a deliberação, sendo que, se o fizer os actos em que a mesma se consubstancie são nulos.
V - Porém, até à citação não há qualquer fundamento jurídico para questionar o direito da associação ou sociedade de executar a deliberação, bem como para sancionar tal execução, ou quem a leve a efeito, com quaisquer consequências.
VI - Não estando provada a existência de um crédito por parte do impugnante falha logo o primeiro dos requisitos para que se possa lançar mão do instituto jurídico da impugnação pauliana a que se referem os artigos 610.º e ss. do CCivil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5293/15.6T8VNG.P1-Apelação
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
................................................................
................................................................
................................................................
................................................................
*
I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
1. As Partes
B…, casado, titular do cartão do cidadão n.º …….. …., contribuinte fiscal n.º ………, residente na Rua …, …/…, Porto, intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra C…, Lda., NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, Sala …, …. - … Porto e D…, Unipessoal, Lda., NIPC ………, com sede na Rua …, n.º …, Sala …, …. - … Porto.
*
2. Pedido:
Seja declarada a nulidade do negócio celebrado entre as Rés, em 26 de Setembro de 2014, com todas as consequências legais. Caso assim não se entenda, seja declarada a ineficácia do negócio em relação à Sociedade C…, Lda.; caso assim não se entenda, seja declarada a nulidade do negócio celebrado entre as Rés por contrário aos fins sociais; caso assim não se entenda, seja declarada a ineficácia do negócio em relação ao crédito do Autor B… por efeito de impugnação pauliana.
*
3. Objecto do litígio:
Apurar a validade e eficácia do negócio celebrado entre as rés em 26 de Setembro de 2014 que se traduziu na alienação do estabelecimento comercial “E….” da primeira Ré C…, Lda. para a 2.ª ré D…, Unipessoal, Lda.
*
Realizou-se Audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador com identificação do objecto do litígio e, bem assim, dos temas da prova.
*
Teve lugar a audiência de julgamento com observância da formalidades legais tendo, a final, sido proferido decisão que julgou a acção totalmente improcedente por não provada absolvendo as Rés dos pedidos contra elas formulados.
*
Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
............................................................
............................................................
............................................................
*
Devidamente notificadas contra - alegaram as Rés concluindo pelo não provimento do recurso.
*
Corridos os vistos legais cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
*
No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita;
*
A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
................................................
................................................
................................................
*
III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
..................................................
..................................................
..................................................
*
A segunda questão que vem colocada no recurso consiste em:
b)- saber se a sua subsunção jurídica da matéria de facto dada como assente se mostra, ou não, correctamente efectuada.

Importa, antes de avançarmos em tal análise, sopesar que ela há-se ser aferida tendo em conta tão só e apenas a matéria factual que o tribunal recorrido deu como assente sendo, por isso, inócuas todas as conclusões formuladas pelo recorrente que não se situem dentro do referido quadro factual.
Isto dito, passemos à referida análise.
1- A questão da simulação.
O nº 1 do artigo 240.º C. Civil que enuncia o conceito de simulação dispõe “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.
Segundo a doutrina corrente, este preceito exige, para que haja simulação:
a)- Divergência entre a vontade real e a vontade declarada;
b)- Intuito de enganar terceiros; e
c)- O acordo simulatório.
Se, em determinado caso concreto não ocorrer circunstancialismo fáctico integrador dos três requisitos acabados de enunciar, poderá verificar-se qualquer falta ou vício da vontade, mas não seguramente o da simulação.
- A intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração.
Como diz Manuel Andrade[1] esta intencionalidade traduz-se logo na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real. Acresce, porém, que o declarante não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer ainda emiti-la nestes termos. Trata-se, portanto, duma divergência livre-querida e propositadamente realizada.
Por acordo simulatório, entende-se o pactum simulationis, isto é, o conluio-a mancomunação-consistente em as partes declararem intencional e concertadamente, ter realizado um acto que afinal não quiseram realizar.[2]
- Intuito de enganar terceiros.
Enganar quer dizer iludir. Como escreveu Beleza dos Santos[3] “O intuito de enganar terceiros, que torna a simulação inconfundível com as declarações não sérias consiste em pretender que pareça real o que no intuito das partes não é, criando para terceiros uma aparência”.
Portanto, se a simulação é a criação artificiosa do que não se quer ou a ocultação do que se quer, tem em si imanente o fim de enganar; quando se simula, isto é, se finge ou oculta, tende-se a enganar terceiros.
Postas estas considerações pergunta-se: face à matéria factual que se encontra provada nos autos pode dizer-se que o negócio celebrado entre as rés em 26 de Setembro de 2014 que se traduziu na alienação do estabelecimento comercial “E…” da primeira Ré C…, Lda. para a 2.ª ré D…, Unipessoal, Lda é nulo por ser simulado?
A resposta é, claramente, negativa.
Na opinião do recorrente a simulação seria absoluta, ou seja, não houve intenção por parte dos intervenientes da celebração de qualquer negócio.
Todavia para que assim fosse era necessário que tivesse resultado provado que o negócio havia sido gratuito e não teve outra intenção que não afastar o autor dos destinos do negócio desenvolvido pela primeira, que através desse negócio F… pretendeu apenas afastar os sócios da 1.ª ré de intervir na exploração do estabelecimento comercial “E… e que ao realizar este negócio não tiveram as rés a vontade real de o celebrar conforme declarado, mas antes e simplesmente a intenção de impedir os sócios da 1.ª ré de intervirem no negócio que criaram e fizeram crescer (cfr. pontos 1. a 2. e 4. do rol dos factos não provados), o que não aconteceu.
E não estando provado os referidos factos, da fundamentação factual também não constam quaisquer outros, e concretamente os pontos 22. e 25. referidos pelo recorrente, que permitam concluir pela verificação da factie species do referido instituto jurídico a que se refere o já transcrito artigo 240.º do CCivil.
*
2 - A questão da nulidade do negócio por contrário aos fins sociais
Alega, para esse efeito, que as sociedades comerciais visam o lucro, sendo que do contrato em causa não resultou qualquer lucro para a 1.ª Ré e, por outro lado, a referida Ré em consequência desse negócio, está impossibilitada de obter receita porquanto está despojada do único estabelecimento
Vejamos se assim é.
Dispõe o artigo 6.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) sob a epígrafe “Capacidade”[4] que:
1 - A capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, exceptuados aqueles que sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.
2 - As liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade, não são havidas como contrárias ao fim desta.
3 - Considera-se contrária ao fim da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justificado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo.
4 - (…)
5 - (…)”.
Estabelece, por sua vez, o artigo 294.º do CCivivil que “os negócios celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”.
Integram, assim, a capacidade jurídica das sociedades todos os direitos e obrigações que se revelem indispensáveis ou úteis à consecução do seu fim, que é o escopo lucrativo, ou, noutra perspectiva, envolverá incapacidade da sociedade tudo aquilo que, não sendo limitado estatutariamente ou por deliberações da sociedade, exorbita do objecto social, por isso estando sujeito ao regime da nulidade e não podendo vincular a sociedade para com terceiros[5] [cfr. artigos 980.º do CCivil e 2.º, 21.º, n.º 1, al. a), 22.º, 31.º, 33.º, 176.º, n.º 1, al. b), 217.º e 294.º, entre outros, do CSC].
Nesse pressuposto, as liberalidades e garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, em geral também gratuitas, contrariam, por princípio, esse fim social, constituindo actos praticados fora da normal prossecução do objecto social e, em regra, desnecessários e inconvenientes para a sociedade (cfr. nºs 2 e 3 do citado artigo 6.º do CSC).
Tais actos – liberalidades e ditas garantias – poderão considerar-se válidos se integrarem alguma das hipóteses referidas nos falados n.ºs do citado artigo 6.º, ou seja, serem considerados liberalidades normais (nº 2) ou, estando em causa as ditas garantias, haver justificado interesse próprio da sociedade em as prestar ou existir uma relação de domínio ou de grupo.
Postos este breves considerandos cumpre, então, dentro do quadro factual dado como assente, verificar se houve violação do citado normativo.
Vem dado como assente que em consequência do negócio a que se referem os pontos 14. a 16. da fundamentação factual, a 1.ª ré ficou despojada do estabelecimento comercial denominado E… (cfr. ponto 19. da fundamentação factual).
Mais se apurou que a 2.ª ré não pagou à 1.ª ré qualquer quantia por força desse negócio (cfr. ponto 22. da fundamentação factual).
Ora, não oferece dúvida de que os actos gratuitos[6] estão em regra–porque não necessários nem convenientes à prossecução do fim social, sendo mesmo contrários a este fim–fora da capacidade societária, enfermando, nessa medida, de vício de nulidade (cfr. artigo 294.º do CCivil), por afrontarem norma cogente.[7]
Acontece que, como se evidencia do contrato celebrado a 2.ª ré, assumiu todo o passivo que a 1.ª ré mantinha e que resultava do negócio e da exploração corrente do restaurante E…, ou seja, ao contrário do que defende o recorrente tal negócio não foi gratuito, porquanto houve assunção do passivo por parte da 2.ª ré, passivo esse que foi avaliado em €2.772.051,00.
Ora, como se pode considerar que um negócio que exonera a 1.ª ré de um passivo superior a dois milhões de euros é gratuito e contrário aos fins sociais dessa sociedade apenas porque aliena o único estabelecimento comercial explorava até então e que foi a origem desse passivo?
É que, não obstante a referida ré tenha, efectivamente, fica despojada do único estabelecimento comercial, o certo é que ficou também desonerada do pagamento de um passivo elevadíssimo.
E como dizer-se que isso impede a referida ré de poder relançar-se na exploração de um qualquer outro estabelecimento e/ou prosseguir qualquer outra actividade comercial abrangida pelo seu objecto social, tanto mais que não ficou provado, como o recorrente havia alegado, que o desenvolvimento da sua actividade pressupunha a exploração de um estabelecimento que permita a exploração de restauração (cfr. ponto 5. do elenco dos factos não provados).
Por outro lado, ao contrário do que alegou, o autor não provou que A 1.ª ré, após o aludido negócio, manteve todo o passivo avaliado em 2.600.000,00 e que foi ela que continuou a assumir e a assegurar o passivo (cfr. pontos 8. e 9. da fundamentação factual).
Resulta, pois, do exposto não estar o contrato celebrados entre as Rés ferido de nulidade por violação do princípio da especialidade do fim estatuído no citado artigo 6.º, nº 1 do CSC.
*
3- A questão da ineficácia do negócio em relação à 1ª ré por inexistência de deliberação válida.
Quanto a esta questão verifica-se que, tal como vem colocada em sede recursiva, se trata de uma questão nova.
Efectivamente, em sede petição inicial, o recorrente situou a referida questão apenas no âmbito da problemática da vinculação da 1ª Ré por falta de poderes do seu gerente F… para intervir no acto em questão, bem como na qualidade em que intervém não tendo sido aposto qualquer carimbo ou outra forma de identificação das sociedades no contrato em causa.
Acontece que, em sede recursiva, fez deslocar a referida questão para a problemática da validade da deliberação com base na qual foi celebrado o negócio objecto da acção, estribado no fundamento de que a mesma é nula, porquanto jamais poderia o dito F… intervir na sua votação por haver conflito de interesses nos termos estatuídos na alínea g) do n.º 1 do artigo 251.º do CSC, além de que tal deliberação foi objecto de providência cautelar o que impedia a 1ª ré de a executar após citação, tudo conforme determina o artigo 381.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
Porém, como supra se consignou, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”-artigo 608.º, nº 2 do CPCivil.
A problemática prende-se com a delimitação do objecto do recurso, ou seja, com os poderes do Tribunal da Relação na apreciação dos recursos de apelação.
Conforme sinteticamente refere Castro Mendes[8], em relação ao objecto do recurso, duas soluções são possíveis.
Primeira: entender-se que o “Objecto do recurso é a questão sobre que incidiu a decisão recorrida.”
Segunda: defender-se que o “Objecto do recurso é a decisão recorrida, que se vai ver se foi aquela que “ex lege” devia ser proferida.”
A primeira hipótese remete para um sistema de reexame, que permite ao tribunal superior a reapreciação da questão decidenda pelo tribunal a quo, isto é, permite um novo julgamento, eventualmente com recurso a factos novos e novas provas; enquanto o segundo caracteriza um sistema de revisão ou de reponderação, o qual apenas possibilita o controlo da sentença recorrida, ou seja, apenas permite aferir se a decisão é justa ou injusta, considerando os dados fácticos e a lei aplicável, tal como o juiz da 1.ª instância possuía no momento em que proferiu a decisão.
Apesar de não existirem sistemas absolutamente “puros”, ou seja, que apenas apliquem um ou outro sistema “tout court”, a doutrina e a jurisprudência portuguesa têm entendido que “O direito português segue o modelo do recuso de revisão ou ponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseados nos factos alegados e nas provas produzidas perante este”.[9]
Por via disso, repetidamente os tribunais superiores têm afirmado que os recursos são meios de modificar decisões e não de criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre, visando, assim, um reestudo das questões já vistas e resolvidas pelo tribunal recorrido e não a pronúncia sobre questões novas.
Por esse motivo, se entende que não é lícito invocar em sede de recurso questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido.
Esta regra decorre, designadamente, dos artigos 627.º, n.º 1, 635.º, n.º 3 e 665.º, n.º 2 e 5 do CPC, apenas excepcionada quando a lei expressamente determine o contrário[10] ou nas situações em que a matéria é de conhecimento oficioso.[11]
A questão reside, pois, em saber o que se entende por questões de facto ou direito já submetidas à apreciação do tribunal recorrido.
É comum mencionar-se a este respeito que “questões” não são argumentos, raciocínios jurídicos ou juízos de valor expostos na defesa das teses controvertidas em litígio, reservando-se tal menção apenas para os fundamentos fáctico-jurídicos em que as partes assentaram as suas pretensões, ou seja, para as questões que na perspectiva substantiva apresentam pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Em relação à parte activa, atender-se-á à causa de pedir e pedido e em relação à parte passiva, às excepções deduzidas.
É este, aliás, o raciocínio que subjaz à nulidade a que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPCivil quando prescreve a obrigatoriedade do juiz se pronunciar sobre as questões colocadas à sua apreciação.
Tentando, agora, aplicar estes considerandos ao caso presente, verifica-se que o autor recorrente nunca, na respectiva petição inicial nem na resposta, aduziu a questão pelo prisma supra referido, sendo que, se trata de questão que, na perspectiva substantiva, apresenta pontos de facto e direito relevantes para a solução do litígio.
Estamos, assim, perante argumentação nova que nunca tinha sido defendida pelo apelante, o que coloca o tribunal ad quem perante um novo julgamento, na medida em que este, na reponderação que iria fazer da decisão proferida, não se encontra em situação idêntica àquela em que se encontrou o juiz da 1.ª instância, sendo certo que se trata de questões que não são de conhecimento oficioso.
*
Mas ainda que assim não fosse e que, portanto, se considerasse a abordagem pelo prisma da instauração da providência cautelar único que, como iremos ver, podia dar origem a nulidade do negócio em causa sendo, por isso, de conhecimento oficioso, a resposta à questão colocada seria sempre pela sua improcedência.
Analisando.
O procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberações sociais (cfr. artigos 380.º e ss. do CPCivil), como qualquer outro procedimento cautelar, destina-se, a resolver provisoriamente um litígio que há-de ter a sua solução definitiva na causa principal e tem o escopo de prevenir e impedir os prejuízos que, para o requerente, adviriam da execução das deliberações durante a pendência da acção principal.
Acontece que este procedimento cautelar, não obstante a sua especial celeridade, comporta ele mesmo uma inevitável demora, susceptível de prejudicar os interesses do demandante.
Por essa razão, o artigo 381.º, nº 3 do CPCivil[12] que sob a epígrafe “Contestação e decisão” preceitua que “A partir da citação, e enquanto não for julgado em 1.ª instância o pedido de suspensão, não é lícito à associação ou sociedade executar a deliberação impugnada”, vise prevenir, em certa medida, esse “periculum in mora” da própria providência cautelar de suspensão.
Portanto, ao contrário do que sucede nos demos procedimentos cautelares, a citação no processo de suspensão de deliberações sociais já traz consigo específicos efeitos: a partir da citação, e, enquanto não for julgado o pedido de suspensão, não é lícito à sociedade executar a deliberação objecto da providência.
Mas qual o alcance do citado nº 3 do artigo 381.º?
Será que o legislador terá querido atribuir à citação da sociedade a totalidade dos efeitos da decretação da própria providência, antecipando, desse modo, a eficácia da deliberação impugnada?
Na resposta à referida questão desenham-se, quer na doutrina quer jurisprudência, duas orientações.
No entendimento do Prof. Vasco Xavier[13] a execução da deliberação mesmo após a citação reduz-se a uma simples ilicitude da execução, com a consequente responsabilidade civil do executor, se vier a ser anulada a deliberação.[14]
Contra este entendimento e, portanto, no sentido de que a citação referida opera a antecipação, em toda a linha, do efeito final do procedimento cautelar, tudo se passando como se a suspensão estivesse já decretada, militam Pinto Furtado[15], Raul Ventura e Brito Correia[16], Carlos Olavo[17], Lopes Cardoso[18] e Rodrigues Bastos[19] e, entre outros, Ac. STJ de 11/10/95; Acs. Rel. Lisboa de 22/11/90, Rel. Coimbra de 26/01/93, CJ, XVIII, I, 26)[20].
Pese embora a brilhante argumentação do Prof. Vasco Xavier, cremos que, efectivamente, a sociedade não poderá executar a deliberação.
Com a citação surge um impedimento, meramente provisório é certo, à execução da deliberação, pelo que, neste conspecto, a sociedade vê a sua actividade paralisada, não podendo, ser outro o entendimento a retirar do nº 3 do citado artigo 381.º, onde claramente se proclama que “não é lícito à sociedade executar a deliberação impugnada, a partir da citação e enquanto não for julgado o pedido de suspensão”.
E, não sendo lícita a execução da deliberação a partir da referida citação os actos que nessa decorrência venham a ser praticados e em que se consubstancie são nulos, por ser o nº 3 do artigo 381.º norma imperativa.[21]
Porém, até à citação não há, a nosso ver, qualquer fundamento jurídico para questionar o direito da associação ou sociedade de executar a deliberação, bem como para sancionar tal execução, ou quem a leve a efeito, com quaisquer consequências.[22]
Isto com base, por um lado, na clareza da letra da lei e, por outro, na ideia de que não é exigível à associação ou sociedade que preveja se irá ou não ser judicialmente impugnada por algum sócio a deliberação tomada.
Posto isto, verifica-se que no caso em apreço o negócio celebrado com base na deliberação objecto de suspensão tem data 26/09/2014, a providência cautelar tem data de entrada de 19/09/2014 e a carta para citação da requerida C… Ldª tem data de 29/09/2014.
Daqui resulta, sem margem para qualquer tergiversação, que a citação da requerida é posterior à data do negócio a que se referem os pontos 14. a 16.
Como assim, não podia com o referido fundamento ser o acto em causa declarado nulo e, portanto, até que seja proferida decisão definitiva na acção de declaração de nulidade ou de anulação da deliberação, não há fundamento para questionar a validade do referido acto.
Diga-se, aliás, que mesmo após a decisão definitiva na referida acção (de nulidade ou anulação da deliberação) sempre haverá que intentar nova demanda uma vez que nos termos do nº 2 do artigo 61.º do Código das Sociedades Comerciais a declaração de nulidade ou a anulação não prejudica os direitos adquiridos de boa-fé por terceiros, com fundamento em actos praticados em execução da deliberação, sendo que o conhecimento da nulidade ou da anulabilidade exclui a boa-fé.
*
4- A questão da ineficácia do negócio em relação ao autor.
Alega a este respeito o recorrente que o negócio é ineficaz em relação a si por efeito de impugnação pauliana, cujos requisitos estão integralmente verificados.
Invoca, portanto, o autor recorrente um meio de tutela (impugnação pauliana) dirigido à conservação da garantia patrimonial do credor, contra actos praticados sobre os bens do devedor susceptíveis de compreender aquela garantia, cujo regime se mostra vertido nos artigos 610.º e ss. do C.Civil.
Conforme decorre de tais preceitos legais, são requisitos da procedência da impugnação de actos celebrados pelo devedor em prejuízo dos credores:
a) A existência de um crédito;
b) Ser o crédito anterior ao acto que envolva a diminuição da garantia patrimonial ou, sendo posterior, ter sido realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do crédito;
c) Resultar do acto a impossibilidade para o credor de obter a satisfação plena do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;
d) Tratando-se de acto oneroso, a existência de má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro, entendendo-se por má fé a consciência do prejuízo que o acto cause ao credor;
e) Tratando-se de acto gratuito, a impugnação procede, ainda que devedor e terceiro tivessem agido de boa fé.
Mas será que estão provados nos autos os apontados requisitos como alega o recorrente?
Cremos, salvo o devido respeito, que a resposta é negativa.
Efectivamente, não está provado[23], desde logo, que o autor seja titular de um crédito sobre a 1ª ré.
Com efeito o que apenas se encontra provado é que o autor se arroga perante a sociedade, 1.ª ré, credor da quantia de €98.166,64 a título de créditos salariais e de €71.174,21 referente à venda de equipamentos a essa sociedade, tendo interposto duas acções em que se discute a existência desses créditos (cfr. pontos 23. e 24. da fundamentação factual).
Ora, tratando-se de créditos litigiosos e não os tendo a Ré reconhecido falha, desde logo, o primeiro dos apontados requisitos, ou seja, de que o autor é credor da 1ª ré pelos montantes supra referidos (cfr. os pontos 11. e 12. do rol dos factos não provados e que correspondiam à alegação dos artigos 97º a 99º da petição inicial).
*
Improcedem, assim, as conclusões 69ª a 115ª formuladas pelo recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
*
IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
*
Custas da apelação pelo Autor apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
*
Porto, 10 de Setembro de 2018.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
______
[1] In Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 169 e seguintes.
[2] Manuel de Andrade obra citada pag. 170, cfr. G. Telles, Dos Contratos em Geral, 2ª ed. 149 e P. de Lima e A. Varela Noções Fundamentais de Direito Civil vol I. 4ª ed. 321.
[3] In Simulação em Direito Civil, 1955, Vol. I, pág. 63
[4] Pese embora o “nomen legal”, parte da doutrina pátria vem considerando que o normativo em causa versa não propriamente sobre a problemática da capacidade jurídica da sociedade comercial, mas antes matéria atinente à legitimidade ou vinculação da sociedade pelos actos praticados–cfr., sobre a questão, Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 106 e seguintes, Oliveira ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, vol. III, pág. 70 e seguinte e Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, pág. 186 e seguintes.
[5] Cfr. para estas diferentes delimitações da “capacidade da sociedade”, Coutinho de Abreu, obra citada pag. 184 a 186 e Pinto Furtado, in “Comentário ao CSC”, págs. 232 a 245, respectivamente.
[6] Ou seja, na definição tradicional, aqueles em que só uma das partes aufere vantagens ou benefícios.
[7] Neste sentido, Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 318 e seguinte e Coutinho de Abreu, ob. citada, pág. 185, onde assinala que a imperatividade da norma visa tutelar sobretudo os interesses dos credores sociais e os respectivos sócios.
[8] Castro Mendes, Direito Processual Civil, Recursos, AAFDL, 1980, pág. 24. Veja-se, também, Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil III, Recursos, AAFDL, 1982, pág. 172 e Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º. Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2008, pág. 7-8.
[9] Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2008, 8.ª edição, pág. 147.
[10] Veja-se, assim, o disposto no artigo 665.º, n.º 2 do CPC que permite a supressão de um grau de jurisdição, desde que verificados os pressupostos ali mencionados.
[11] Conforme se alude expressamente na parte final do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
[12] Corresponde ao antigo artigo 397.º, nº 3 reintroduzido no nosso sistema processual civil pela reforma de 1961 e que reproduz o nº 4 do artigo 124.º do antigo Código Comercial.
[13] In Revista de Direito e Estudos Sociais, Ano XXII, pág. 195/282 “O conteúdo da providência de suspensão de deliberação social”.
[14] No mesmo sentido Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, 2º vol., pág. 96.
[15] In Código Comercial Anotado, Vol. II, tomo 2, pags. 613/614.
[16] In Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes das Sociedades por Quotas BMJ, 192, págs. 85/87.
[17] In Col. Jur. Ano XIII, 1988, Tomo III, pág. 30 e ss..
[18] In CPCivil Anotado, 1962.
[19] In Notas ao CPCivil, 1965, pag. 252.
[20] In, respectivamente, CJ(STJ), III, III, 60; CJ, XV, V, 125 e CJ, XVIII, I, 26.
[21] Cfr. neste sentido, entre outros, Rodrigues Bastos, obra citada pag. 258 e Lopes do Rego In Cometários ao Código de Processo Civil, Almedina pág. 291.
[22] A proibição de execução da deliberação questionada inicia-se com a citação da requerida-Comentários ao Código de Processo Civil, Lopes do Rego, Almedina, 1999, pág. 291. Cfr. tb. Ac. Rel. Porto de 27/10/2003 in www.dgsi.pt.
[23] Prova que, como é evidente, lhe competia (cfr. artigo 611.º do CCivil).