Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
588/14.9T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: PUBLICITAÇÃO
SENTENÇA CONDENATÓRIA
LEI DA TELEVISÃO
Nº do Documento: RP20170524588/14.9T9MTS.P1
Data do Acordão: 05/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 717, FLS 127-134)
Área Temática: .
Sumário: Verificada a previsão do artº 91º, nº 1 da lei 27/2007 de 30/7 - sentença condenatória transitada em julgado, por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos, e requerimento do ofendido ou do Mº Pº para a sua difusão pelo respectivo operador da parte decisória - deve ser deferido o pedido de difusão televisivo da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 588/14.9T9MTS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos – JL Criminal – J2

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Matosinhos – JL Criminal – J2, processo supra referido, em que é arguida/condenada B..., foi proferido Despacho com o seguinte teor:
“Veio a assistente formular pedido nos termos do art. 91º, n1º da Lei 8/2011, de 11 de Abril, tendente à difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, por crime cometido através de serviços de programas televisivos.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do art. 91º, nº1 da Lei nº 8/2011, a requerimento do Ministério Público ou do ofendido, e mediante decisão judicial, a parte decisória das sentenças condenatórias transitadas em julgado por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido, assim como a identidade das partes, é difundida pelo respectivo operador.
Ora, tendo a presente sentença condenatória, transitado em julgado, bem como o teor da sua fundamentação de facto, segue isento de dúvidas que a lesão dos bens jurídico-penais tutelados, se fez através de difusão televisiva das declarações da arguida em programa da C....
Tais factos contribuíram para a agravação da moldura penal abstracta do crime de difamação pelo qual a arguida foi acusada e viria a ser condenada.
Impõe-se agora aquilatar da necessidade/proporcionalidade/adequação de publicitação do dispositivo da sentença transitada e da identidade das partes, através do órgão de comunicação social que veiculou as declarações da arguida.
Antes de mais, convém notar que a publicitação por meio de difusão televisivo, na senda de uma certa raiz teleológica de direito de reposta é um plus sancionatório que deriva intrinsecamente do modo de execução do crime.
A sentença, após a sua leitura, torna-se pública (ainda que não obrigatória ou imperativamente publicitada, ou seja difundida em larga escala na comunicação social).
Assim, entende este tribunal que o art 91.º, nº1 em apreço, não contém um efeito automático ou imediato de publicitação da condenação.
Nesse sentido, depõe o elemento literal do preceito, definindo o momento do pedido (desde logo prescrevendo o legislador uma aplicação oficiosa de tal plus sancionatório) a cabo do Ministério Público ou do ofendido e a existência de uma decisão judicial.
O que implica, desde logo, a alternatividade lógica entre a procedência ou a improcedência do pedido.
A prevenção geral de integração assenta na ideia de que, primordialmente, a finalidade visada pela pena há de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto (a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada).
Tanto a Constituição da República Portuguesa, como o Código Penal consagram o princípio da não automaticidade das penas acessórias.
Na verdade, prescreve a CRP no nº1 do art. 30º que “Não pode haver penas nem medidas de segurança privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”, aditando no nº4 que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”.
Em obediência ao comando constitucional, o nº1 do art. 65º do Cód. Penal repete que “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”.
Pese embora a publicitação prevista no referido art. 91º, nº1, não consubstancie formalmente uma pena acessória, certo é que provocará um efeito sancionatório acrescido, na medida das circunstâncias do caso particular.
Conforme resultou de toda a prova produzida em juízo, e igualmente foi exarado em sede de motivação da matéria de facto da sentença, transpareceu desde o início da audiência, um clima de grande crispação e animosidade no seio da família da arguida e da assistente, composta por dez irmãos vivos e cuja simpatia se encontra completamente dividida, consoante o grau de proximidade de cada elemento com cada uma delas (quer a arguida, quer a assistente).
Ora, entende o tribunal que a requerida difusão televisiva do teor da sentença condenatória provocaria o reacendimento dessa animosidade e conflito familiar, o que se revelaria manifestamente contrário aos objetivos de pacificação social que presidem à aplicação da pena nos presentes autos.
Acresce ainda, que conforme se apurou em julgamento, nem todos os membros daquela família alargada, visionaram o programa, quer no momento da sua difusão, quer posteriormente.
É consabido que a prevenção geral de integração assenta na ideia de que, primordialmente, a finalidade visada pela pena há de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto.
Mas também não se pode esquecer que essa tutela é aqui perspetivada, não num sentido retrospetivo, face a um crime já verificado, mas com um significado prospetivo, de futuro, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada e do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
Assim sendo, considerando que, atentas as particularidades do caso em concreto, a aplicação do disposto no referido art. 91º, nº1 da Lei nº8/2011, de 11 de Abril, faria perigar o restabelecimento da paz jurídica, traindo os desígnios da aplicação da própria pena em que a arguida foi condenada, indefiro ao requerido pela assistente.”
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Deste Despacho recorreu a assistente D..., formulando as seguintes conclusões:
“1a Em 18/03/2014, a arguida, sem qualquer razão que o justificasse, foi ao programa da manhã da C..., de E..., programa televisivo de grande audiência, onde difamou, publicamente e com a repercussão que a C... tem, extensível a todo o país, a aqui recorrente/assistente, com mentiras e falsidades, perpetradas contra ela e que muito a amachucaram, conforme resulta da gravação do referido programa, junta aos autos a fls. 47, e que aqui se dá por integralmente reproduzida, para os legais efeitos.
2a Tais difamações publicitadas pela C..., tiveram especial incidência na assistente/recorrente e foram objecto de comentários na área onde a assistente e a arguida residem, e bem assim no círculo de pessoas conhecidas e amigos, sendo que todas aquelas mentiras e calúnias, que foram ditas pela arguida naquele programa de televisão, deixaram a recorrente/assistente e seu agregado familiar, muito amachucados, pois que, além de não corresponderem à realidade, denegriram, enormemente, a sua honra, dignidade e imagem, como filha da falecida F... e pessoa de bem.
3a Depois de produzida a prova e antes das alegações orais finais, a assistente, ora recorrente, requereu, a fls. que, caso fosse proferida sentença condenatória nos presentes autos - o que era expectável face à prova produzida a mesma fosse difundida televisivamente, nos termos do art. 91°. n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril.
4a Posteriormente, foi proferida sentença, a fls...., que condenou a arguida pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180° do C. Penal, agravado nos termos do art. 182°, n.° 2, do mesmo diploma legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00.
5a Pese embora a referida condenação, o M.° Juiz do Tribunal "a quo" indeferiu a requerida difusão televisiva da sentença, por entender que, no caso concreto, tal difusão "provocaria o reacendimento" da "animosidade e conflito familiar", porquanto, O M.° Juiz do Tribunal "a quo" entendeu que o art. 91°, n.°l, da Lei 8/2011, de 11 de Abril, não contém um efeito automático ou imediato de publicitação da condenação, fundamentando o seu despacho de indeferimento, com base no art. 30°, n.° 1, da C.R.P., que consagra o princípio da não automacidade das penas acessórias.
6a Como é reconhecido pelo próprio Tribunal "a quo", a publicitação prevista no citado art. 91°, n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril, não consubstancia, nem formal, nem materialmente, uma pena acessória, pelo que o art. 30°, n.° 1, da C.R.P., trazido à colacção pelo M.c Juiz, para fundamentar a sua decisão de indeferimento, não tem qualquer aplicação "in casu".
7a A publicitação requerida pela recorrente/assistente, não visa provocar qualquer efeito sancionatório, mas apenas desfazer, dentro do possível, o alarme social que a arguida causou com as inverdades que imputou à ora recorrente, no programa da C..., de E..., e que, tal como se encontra provado na douta sentença, foi do conhecimento de familiares, amigos e pessoas conhecidas.
8a Não se tratando de qualquer pena acessória, a difusão televisiva da sentença condenatória proferida nos presentes autos, visa dar a conhecer e a "contra-informar" todos aqueles que ouviram a arguida a imputar à recorrente/assistente as expressões constantes da douta sentença de fls. ... e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, para os legais efeitos, e que, atenta a sua falsidade, muito amachucaram a assistente e o seu agregado familiar.
9a Na verdade, perante o comportamento da arguida e atentos os factos dados como provados na douta sentença de fls. a difusão televisiva da douta sentença proferida nos autos, será o único meio de "colocar um travão" ao comportamento difamatório da arguida, para que a mesma não volte a incorrer em tão temerarias difamações, sendo que, ao invés do que é vertido no douto despacho que se recorre, "in casu", a tão almejada paz jurídica só poderá ser alcançada com a reposição da verdade, que passa, necessariamente, pela divulgação da sentença condenatória, no próprio programa onde a arguida vexou e humilhou a sua irmã, aqui recorrente, beliscando, gravemente, a sua reputação e o seu bom nome.
10a Contrariamente ao douto entendimento do Tribunal "a quo", o art. 91°, n.° 1, em apreço, contém, de facto, um efeito automático de publicitação da condenação, sendo suficiente para que tal difusão televisiva ocorra, que haja requerimento, nesse sentido, por parte do Ministério Público ou do ofendido, não estando, tal decisão, dependente do livre arbítrio do Tribunal.
11a De facto, é o próprio elemento literal do preceito legal em apreço que prescreve que "a requerimento do Ministério Público ou do ofendido... a parte decisória das sentenças condenatórias transitas em julgado por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos..., assim como a identidade das partes, é difundida pelo respectivo operador."
12a Por outro lado, não se poderá olvidar que o que está aqui em causa é a honra, a dignidade e a imagem da recorrente/assistente, tao vilmente amachucadas pela arguida naquele programa televisivo, pelo que o reconhecimento da dignidade humana como valor supremo da ordenação constitucional democrática impõe que a o Tribunal "a quo" ordene a publicitação da sentença condenatória, dando, assim, prevalência aos direitos de personalidade da recorrente/assistente, nada justificando, "in casu", uma solução oposta, porquanto a recorrente tem direito que a verdade seja reposta, em defesa da sua dignidade enquanto pessoa e filha, que, contrariamente ao que foi, falsamente, afirmado pela arguida, sempre cuidou bem da mãe, mantendo-a limpa, asseada e permitindo que os seus irmãos visitassem a mãe na sua casa.
13a Assim é que, estando, em causa, a lesão, por parte da arguida, do direito à honra, ao bom nome e à reputação da assistente/recorrente, não poderia o Tribunal "a quo" olvidar que estamos perante direitos de personalidade da assistente e que os mesmos configuram direitos absolutos, oponíveis "erga omnes ", na medida em que impõem aos outros sujeitos um dever geral de respeito, não havendo, no caso "subjudice", qualquer colisão de direitos que justifique o indeferimento da difusão televisiva da sentença condenatória, oportunamente requerida pela recorrente/assistente.
14a Genericamente, a honra resolve-se no direito que cada cidadão tem de exigir que, a seu respeito, não sejam emitidos juízos ou imputações imerecidas, vilipendiosas ou degradantes. Por isso, todos têm direito à protecção jurídica da sua honra e consideração, bem como da sua privacidade, palavra e imagem, pelo que, atenta a actuação da arguida, a recorrente só verá o seu bom nome, a sua dignidade e a sua honra repostos, quando for reposta a verdade, perante o público, com a divulgação da sentença condenatória, que condenou a arguida pelo crime de difamação agravada na pessoa da assistente, sua irmã.
15a Deverá, assim, o questionado despacho sob recurso ser revogado e substituído por outro, que ordene a difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, pelo crime de difamação agravada, cometida pela arguida através de um serviço de programa televisivo, nos termos do art. 91°, n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril.
Termos em que e nos melhores de direito, deve, o douto despacho de que se recorre, ser revogado e ser substituído por outro, que que ordene a difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, pelo crime de difamação agravada, cometida pela arguida através de um serviço de programa televisivo, nos termos do art. 91°, n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril, tudo com as legais consequências”.
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Em resposta, o MºPº em 1ª Instância, defendeu a improcedência do recurso, concluindo:
“1. O nº 1 do art.º 91º da Lei nº 8/2011, de 11 de abril onde se preceitua que: “A requerimento do Ministério Público ou do ofendido, e mediante decisão judicial, a parte decisória das sentenças condenatórias transitadas em julgado por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido, assim como a identidade das partes, é difundida pelo respetivo operador”, não é de aplicação imediata;
2. Ora, os factos apesar de terem sido praticados naquele contexto e através de difusão televisiva, vertidos nas declarações ai prestadas pela arguida em programa da C..., foram já tidos para a agravação da moldura penal abstrata do crime de difamação pelo qual a arguida veio a ser condenada;
3. Por outro lado, não podemos olvidar, tal como resulta da fundamentação de facto da sentença condenatória, que existe um clima de grande crispação e animosidade no seio da família da arguida e da assistente, composta por dez irmãos e que nem todos os membros daquela família alargada visionaram o programa, quer no momento da sua difusão, quer posteriormente;
4. A esse facto acresce a circunstância de que a pena pela qual a arguida B... foi condenada se encontra extinta por despacho de fls. 300, datado de 10-10-2016;
5. Ora, o julgamento foi público e a sentença, após a sua leitura, tornou-se pública, pelo que nada impede à recorrente de a publicitar pelos meios que assim o entender;
6. Pese embora não se trate de uma pena acessória, o certo é que se poderá aplicar, em termos analógicos, o nº 4 do artº 30º da Constituição da República Portuguesa e o nº 1 do artº 65º do Código Penal onde se consagra o princípio da não automaticidade das penas acessórias;
7. Por outro lado, pese embora, no nº 4 do artº 30º da CRP proíba que uma pena tenha por efeito necessário a perda de certos direitos, o certo é que uma pena envolve necessariamente a perda de direitos, quando ela consiste diretamente nisso ou quando seja acompanhada automaticamente de uma pena acessória que nisso consista, o que não é o caso;
8. Acresce que o nº 1 do art.º 30º da CRP consagra também o princípio da natureza temporária, limitada e definida das penas, como expressão do direito de liberdade, da proibição de penas cruéis, degradantes e desumanas e, finalmente, da ideia de proteção da segurança jurídica, ínsita no princípio do Estado de direito;
9. Ora, a ser deferida a pretensão da recorrente traduzir-se-ia numa amputação ou numa restrição temporal da esfera de direitos da arguida, injustificável, no nosso entendimento, nesta fase processual e
10. Por último, considerando que, atentas as particularidades do caso em concreto, como se induz da factualidade dada como provada e da sua fundamentação e como se refere no despacho recorrido, a aplicação do disposto no referido art.º 91º, nº 1 da Lei nº 8/2011, de 11 de abril, faria perigar o restabelecimento da paz jurídica, traindo os desígnios da aplicação da própria pena em que a arguida foi condenada, pelo que, nesta fase, se estaria a “comprar” uma guerra desnecessária.”
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso, escrevendo nomeadamente:
“(…)
11. Quanto ao mérito do recurso, estamos convictos que assiste inteira razão à recorrente.
12. Com efeito, dispõe o art. 189° do C. Penal que "1 - Em caso de condenação, ainda que com dispensa de pena, nos termos do artigo 183.°. da alínea b) do n.° 2 do artigo 185.º, ou da alínea a) do n.° 2 do artigo 187.°, o tribunal ordena, a expensas do agente, o conhecimento público adequado da sentença, se tal for requerido, até ao encerramento da audiência em 1.ª instância, pelo titular do direito de queixa ou de acusação particular. 2 – O tribunal fixa os termos concretos em que o conhecimento público da sentença deve ter lugar"
13. Por sua vez, o n.° 1 do art. 91° da Lei 27/2007, de 30 de Julho [a redacção da Lei 8/2011, de 11.04] prescreve que "A requerimento do Ministério Público ou do ofendido, e mediante decisão judicial, a parte decisória das sentenças condenatórias transitadas em julgado por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido, assim como a identidade das partes, é difundida peto respectivo operador." e o seu n.° 4 que "A difusão da parte decisória das sentenças a que se referem os números anteriores deve efectuar-se de modo a salvaguardar os direitos de terceiros".
14. Quer a lei geral penal, quer a lei que especificamente regula o exercício da actividade televisiva convergem no sentido de que a publicitação da decisão condenatória, no caso de crimes cometidos, através de meios de comunicação social, mormente, o de difamação [como acontece nos autos], terá lugar, desde que tal seja solicitado pelo ofendido ou MP, antes do encerramento da audiência.
15. Estão preenchidos todos os requisitos de que depende o deferimento da pretensão da assistente, motivo por que somos de parecer que o recurso deve ser julgado procedente”.
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Colhidos os vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que a recorrente D... pretende a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro “que ordene a difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, pelo crime de difamação agravada, cometida pela arguida através de um serviço de programa televisivo, nos termos do art. 91°, n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril”.
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Em síntese, resulta dos autos o seguinte:
- Por Sentença de 18.05.2016, transitada em julgado, a arguida B... foi condenada “pela prática, em autoria material, de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180° do Cód. Penal, agravado nos termos do art. 183°, n°2 do mesmo diploma legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 5,00”;
- Foi ainda condenada a pagar à assistente/demandante D... a quantia de 500€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, gerados pela prática do crime;
- O crime foi cometido num programa da televisão C..., apresentado por E...;
- Em momento anterior ao encerramento da Audiência foi formulado., pela assistente, pedido de publicitação da decisão condenatória, nos termos do art. 91°. n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril), se esta viesse a ter lugar, tendo a respectiva decisão sido relegada para momento posterior ao trânsito da Sentença;
- Transitada a Sentença, foi apreciado “o pedido nos termos do art. 91º, n1º da Lei 8/2011, de 11 de Abril, tendente à difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, por crime cometido através de serviços de programas televisivos”;
- Esta pretensão da assistente foi indeferida com os seguintes fundamentos, em síntese:
“O art 91.º, nº1 em apreço, não contém um efeito automático ou imediato de publicitação da condenação”, perante “o elemento literal do preceito, definindo o momento do pedido (desde logo prescrevendo o legislador uma aplicação oficiosa de tal plus sancionatório) a cabo do Ministério Público ou do ofendido e a existência de uma decisão judicial”;
“Pese embora a publicitação prevista no referido art. 91º, nº1, não consubstancie formalmente uma pena acessória, certo é que provocará um efeito sancionatório acrescido, na medida das circunstâncias do caso particular”;
“A requerida difusão televisiva do teor da sentença condenatória provocaria o reacendimento dessa animosidade e conflito familiar, o que se revelaria manifestamente contrário aos objetivos de pacificação social que presidem à aplicação da pena nos presentes autos”;
“Conforme se apurou em julgamento, nem todos os membros daquela família alargada, visionaram o programa, quer no momento da sua difusão, quer posteriormente”;
“Atentas as particularidades do caso em concreto, a aplicação do disposto no referido art. 91º, nº1 da Lei nº8/2011, de 11 de Abril, faria perigar o restabelecimento da paz jurídica, traindo os desígnios da aplicação da própria pena em que a arguida foi condenada.”
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Contra esta Decisão se insurge a assistente D... argumentando em síntese:
- A publicitação requerida “não visa provocar qualquer efeito sancionatório, mas apenas desfazer, dentro do possível, o alarme social que a arguida causou com as inverdades que imputou à ora recorrente, no programa da C..., de E..., e que, tal como se encontra provado na douta sentença, foi do conhecimento de familiares, amigos e pessoas conhecidas”;
- Não se tratando de pena acessória, a difusão televisiva da Sentença “visa dar a conhecer e a "contra-informar" todos aqueles que ouviram a arguida a imputar à recorrente/assistente as expressões constantes da sentença” que “atenta a sua falsidade, muito amachucaram a assistente e o seu agregado familiar”;
- “O art. 91°, n.° 1, em apreço, contém, de facto, um efeito automático de publicitação da condenação, sendo suficiente para que tal difusão televisiva ocorra, que haja requerimento, nesse sentido, por parte do Ministério Público ou do ofendido, não estando, tal decisão, dependente do livre arbítrio do Tribunal”;
Termina pedindo a revogação do Despacho proferido, e a sua substituição por outro “que ordene a difusão televisiva da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, pelo crime de difamação agravada, cometida pela arguida através de um serviço de programa televisivo, nos termos do art. 91°, n.° 1, da Lei 8/2011, de 11 de Abril”.
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Apreciando:
Como se vê, estamos perante uma divergência na interpretação da Lei.
Interpretar a Lei é fixar-lhe o seu sentido e alcance. Para isso o intérprete não se deve cingir à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada – art. 9º do C. Civil.
Significa isto que, à apreensão literal do texto – o ponto de partida de toda a interpretação – se devem juntar, numa tarefa de interligação e valoração, a integração da norma no conjunto normativo em que se integra (ou seja, ter presente o seu contexto); ter em conta as fontes da lei e os trabalhos preparatórios; a razão de ser da norma e o fim visado pelo legislador ao criá-la.
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A norma cuja interpretação está aqui em causa, consta da denominada Lei da Televisão – aprovada pela Lei 27/2007, de 30 de Julho, alterada pela Lei 8/2011, de 11 de Abril, em obediência ao imperativo de transposição para o Direito interno da Directiva n.º 2007/65/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro.
No art. 1º desta Lei da Televisão, se define o seu objecto (na parte que para aqui interessa): “regular o acesso à actividade de televisão e o seu exercício”.
Inserido no Capítulo VII – Responsabilidade; Secção III - Disposições especiais de processo; e tendo como epígrafe - Difusão das Decisões, é a seguinte a redacção deste n.° 1, do art. 91°:
“A requerimento do Ministério Público ou do ofendido, e mediante decisão judicial, a parte decisória das sentenças condenatórias transitadas em julgado por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido, assim como a identidade das partes, é difundida pelo respectivo operador”.
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O art. 91, nº 1 tinha a seguinte redacção original, na Lei 27/2007 de 30/07: “A requerimento do Ministério Público ou do ofendido, e mediante decisão judicial, a parte decisória das sentenças condenatórias transitadas em julgado por crimes cometidos através da televisão, assim como a identidade das partes, é difundida pela entidade emissora”.
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Na Directiva 89/552/CEE do Conselho, de 03/10/1989, transposta para o Direito interno pela mencionada Lei, figura entre outros considerandos que a justificam: “Considerando que, se os organismos de radiodifusão televisiva estão normalmente obrigados a velar por que as emissões apresentem lealmente os factos e os acontecimentos, é todavia importante que eles sejam submetidos a obrigações precisas em matéria de direito de resposta ou de medidas equivalentes para que qualquer pessoa lesada nos seus direitos legítimos na sequência de uma alegação feita no decurso de uma emissão de televisão possa efectivamente fazer valer esses direitos.”
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A Directiva n.º 2007/65/CE, tem como finalidade a uniformização da regulamentação “dos serviços de comunicação social audiovisual tradicionais – como a televisão – e os serviços de comunicação audiovisual a pedido emergentes”, “visando evitar distorções da concorrência, aumentar a segurança jurídica, contribuir para a realização do mercado interno e facilitar a criação de um espaço único da informação, pelo menos um conjunto mínimo de regras coordenadas, seja aplicado a todos os serviços de comunicação social audiovisual, tanto a radiodifusão televisiva como os serviços de comunicação audiovisual a pedido”. Consta dos respectivos considerandos que a justificam, a consagração do “direito de resposta ou medidas equivalentes” é considerado “um instrumento jurídico adequado para a radiodifusão televisiva”, para garantir, nomeadamente, a “dignidade humana” (ver recomendação 53). Pretende assegurar “um elevado nível de protecção de objectivos de interesse geral, em especial a protecção dos menores e da dignidade humana”, “em conformidade com o princípio da proporcionalidade” por forma a não “ceder o necessário para alcançar aqueles objectivos” (ver recomendação 67).
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Assim, entre a redacção original e a actual redacção, a única diferença é o acrescentar das expressões: «(…) “de serviços de programas televisivos e de serviços audiovisuais a pedido”, assim como a identidade das partes, é difundida “pelo respectivo operador”», sendo evidente que apenas se procurou adaptar a norma à nova realidade dos “serviços de comunicação audiovisual a pedido”, mantendo a mesma o seu sentido original.
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Perante este traçado enquadramento, do elemento literal, sistemático, teleológico e histórico da interpretação da norma, se alcança o seguinte:
- A Lei (denominada Lei da Televisão) em que a norma se insere visa regular o acesso à actividade de televisão e o seu exercício;
- A norma destina-se directamente às Televisões, inserindo-se no Capítulo sobre as suas responsabilidades, e visa assegurar “medida equivalente ao direito de resposta” para que “qualquer pessoa lesada nos seus direitos legítimos na sequência de uma alegação falsa feita no decurso de uma emissão de televisão” possa fazer valer o seu direito de repor a verdade;
- Opera “opelegis” (por força da lei), por contraposição ao funcionamento “ope judicis” (por poder do Juiz);
- Trata-se de uma norma imperativa, verificada a sua previsão: Sentença condenatória transitada em julgado, por crimes cometidos através de serviços de programas televisivos, e requerimento do ofendido ou do MºPº para a difusão pelo respectivo operador da parte decisória, impõe-se a sua estatuição;
- Ao Juiz cabe apenas verificar se a previsão se mostra preenchida, e em caso positivo, desencadear essa estatuição.
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Do inicialmente resumido, conclui-se que a previsão da norma se verifica no caso, mostrando-se a mesma violada pela decisão de indeferimento sob recurso.
A norma não pode ser encarada – tal como o é na decisão – como uma pena acessória ou como um “efeito sancionatório acrescido”.
Ainda que a norma não operasse “ope legis”, e ao Juiz assistisse alguma margem discricionária, os argumentos que servem de fundamento à decisão – evitar o “reacendimento da animosidade e conflito familiar” - são de cariz especioso e meramente especulativo, nada tendo a ver com os interesses protegidos pela norma.
O recurso merece provimento.
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Nos termos relatados, decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se o Despacho recorrido, e determinando-se a sua substituição por outro que, nos termos do art. 91°, n.° 1, dana Lei 27/2007 de 30/07 (na redacção da Lei 8/2011, de 11 de Abril),ordene a difusão televisiva pelo operador em causa (C...) da parte decisória da sentença condenatória, já transitada em julgado, pelo crime de difamação agravada, cometida pela arguida através de um serviço de programa televisivo.
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Sem custas.
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Porto, 24/05/2017
José Piedade
Airisa Caldinho