Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2341/15.3T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
CONCLUSÕES DA ALEGAÇÃO DE RECURSO
COMODATO
Nº do Documento: RP201811152341/15.3T8VLG.P1
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 684-A, FLS 58-71)
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo o recurso por objeto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, nos termos da alínea a) do nº 1 do art. 640º do Código de Processo Civil, obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
II - Essa especificação deve ser feita nas conclusões e não no corpo das alegações, já que são aquelas que balizam o objeto do recurso.
III - O incumprimento do referido ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento.
IV - O comodato precário, enquanto variante ou subtipo de comodato, tem como causa uma relação de cortesia, de complacência ou de mera tolerância do comodante, o que justifica que este lhe possa pôr termo a todo o tempo, ad nutum.
V - Significa isto, portanto, que no precário o prazo de duração do contrato fica totalmente dependente da vontade do comodante, sendo certo que dada a natureza de obrigação pura que reveste o dever de entrega para o comodatário, a interpelação para este cumprir essa obrigação pode ter lugar, designadamente, através de citação para a ação judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2341/15.3T8VLG.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Central Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
2ª Adjunta Desª. Maria Fernandes de Almeida
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

B... e C... intentaram a presente ação declarativa, sob processo comum, contra D... e E..., peticionando a condenação destes a reconhecer que os autores são os atuais donos e legítimos proprietários do prédio identificado no art. 3º da petição inicial e bem assim serem os mesmos condenados a restituir-lhes esse prédio e absterem-se de praticar quaisquer atos turbadores do seu direito de propriedade.
Para o efeito alegaram que são os únicos e universais herdeiros da herança aberta por óbito de F..., da qual faz parte o ajuizado imóvel, que constitui uma parcela de terreno para construção, tendo aquele anterior proprietário vivido na África do Sul, embora visitasse regularmente o seu país, e numa dessas ocasiões, nos finais dos anos 70 autorizou que os réus cultivassem aquela área de terreno, com a faculdade de colherem e fazerem seus os respetivos frutos, a título gratuito e com mero espírito de cortesia, com a obrigação de o restituírem quando tal lhes fosse solicitado.
Acrescentam que quando o referido F... faleceu, os autores concertaram entre si a venda desse prédio, tendo contactado uma imobiliária, altura em que o réu marido recusou o acesso ao interior do terreno e impediu a colocação de uma placa a anunciar a venda, recusando-se a restituir-lhes a posse do imóvel.
Citados os Réus apresentaram contestação, sustentando que estavam convencidos que o terreno era deles porque há mais de 30 anos que não têm qualquer contacto nem com o proprietário, nem com qualquer familiar, nem ninguém se arrogou de herdeiro do mesmo, estando convictos que teriam falecido os proprietários, desconhecendo descendência e pressupondo que nenhum familiar estivesse interessado no terreno, tendo usado e fruído do terreno como se fosse seu durante quase 50 anos, agindo sempre como donos, semeando-o, tendo lá animais de pasto, invocando a aquisição por usucapião.
Invocaram ainda a prescrição e, subsidiariamente o direito de usufruto, devendo-lhes ser concedida a possibilidade de se manterem na posse do imóvel até à morte do último.
Deduziram, ainda, reconvenção, pela qual pedem a condenação dos autores a pagarem-lhes a importância de €50.573,40, sendo €50.000,00 pelos danos materiais e não patrimoniais, por nunca terem providenciado em fazer limpezas do mato e pinhal no terreno, em proceder a arranjos nas vedações, devendo compensá-los pelos frutos e proveitos futuros que deixarão de auferir dos cultivos e colheitas que ficaram impedidos de fazer, pela dor e tristeza que irão sofrer, pelo agravamento dos problemas de saúde que lhes causará a restituição do imóvel, valor considerado mínimo para que possam adquirir um prédio rústico, correspondendo o remanescente valor de €537,40 ao pagamento que efetuaram à Câmara Municipal ..., por uma contra-ordenação, montante esse que deverá ser suportado pelos proprietários.
Os autores apresentaram réplica, impugnando os factos da reconvenção, concluindo como no articulado inicial.
Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual foi julgada improcedente a exceção da prescrição, sendo fixado o objeto do litígio, os factos assentes e os temas de prova.
Procedeu-se à realização da audiência final com observância do formalismo legal, vindo a ser proferida sentença que:
. “julgou a ação totalmente procedente e, consequentemente, condeno[u] os Réus a reconhecer que os AA são os actuais proprietários do prédio identificado no art. 3º da PI, bem como a restituir aos AA o identificado prédio, abstendo-se de nele praticar quaisquer actos turbadores do seu direito de propriedade.
. julgo[u] improcedentes os pedidos reconvencionais, deles absolvendo os Autores”.
Não se conformando com o assim decidido, vieram os réus interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentaram alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
118. O objeto do presente recurso é a impugnação da decisão proferida que pôs termo à causa, nomeadamente, quanto à convicção do tribunal na interpretação da prova produzida de haver prova bastante e suficiente para decidir pela posse precária subjacente ao contrato de comodato e não subsumível no usufruto (ainda que tivesse este sido adquirido por usucapião).
a) É sobre a posse exercida pelos Réus, aqui Apelantes, que se debruça a decisão da causa.
b) O Tribunal recorrido entendeu tratar-se de uma posse precária e baseou a sua convicção na prova testemunhal arrolada pelas partes.
c) Salvo devido respeito, foi feita uma interpretação restritiva e deficiente da prova produzida em audiência.
d) Não restam dúvidas, até pelos factos que foram dados como provados na douta sentença, de que o Réu D... agiu e ainda hoje age como usufrutuário do prédio.
e) Como já referido supra, foi o R. D... que procedeu à limpeza do prédio, que cortou todo o mato ali existente, que cortou o pinhal, que preparou as terras e que as cultivou e ainda hoje cultiva;
f) Durante mais de 40 anos, de forma ininterrupta, os RR, aqui Apelantes procederam à limpeza do mato e do silvado, ao cultivo, à produção e à colheita dos frutos semeados no terreno;
g) Sempre o fizeram com autorização dos legais proprietários, de plena boa-fé, e à vista de todos os familiares, dos que ali habitam as redondezas, e da população em geral que por ali passa;
h) Os RR por ali criaram os filhos e os netos;
i) Foram os RR que o conservaram e preservaram, foram eles que impediram o vandalismo e o abandono, sempre sem intenção de prejudicar quem quer que fosse;
j) Semearam durante dezenas de anos, e ainda hoje semeiam nesse terreno.
k) No que respeita ao facto de não ter sido provado o limite temporal, não se verificando um limite temporal ou um prazo, tem-se que sempre os Apelantes poderiam adquirir o direito de usufruto por usucapião.
l) Mas igualmente poderá verificar-se a usucapião do usufruto, ou por outras palavras, adquirir-se o usufruto por usucapião, tal como tentaram os RR/ Apelantes invocar nos autos.
m) Significa isto tudo que, numa ação com vista ao reconhecimento de aquisição de usufruto de uma coisa por usucapião, deve provar-se que a posse exercida sobre esta, deve corresponder ao usufruto, ou seja, é preciso demonstrar-se que a pessoa ou entidade se tem comportado em relação à coisa como se usufrutuário fosse, não só sob o ponto de vista de poder de facto sobre ela, mas também com a intenção de se comportar como titular desse direito real.
n) E, efetivamente os Apelantes sempre agiram como usufrutuários e não como meros comodatários e enquanto usufrutuários há que aferir dos limites temporais deste usufruto que igualmente não foram estabelecidos.
o) Desta forma, não têm de restituir a posse mal lhes seja exigido porque falta um requisito essencial para que se conclua pela existência do comodato que é a estipulação de que a posse é por tempo limitado, portanto, temporária e, definida por um prazo.
p) O próprio tribunal recorrido admite que “não se apurou qualquer convenção de um prazo certo de duração, nem que o bem tenha sido emprestado para um uso determinado, casos em que a restituição devia ser feita logo que decorresse o prazo ou logo que o uso terminasse”.
q) Nessa medida, nos termos dos artigos 1439º e seg. do CC, o usufruto poderia ser constituído por usucapião e com a duração máxima até à morte dos usufrutuários.
119. Também é objeto de recurso para apreciação a limitação da convicção do tribunal a quo baseado na prova testemunhal para concluir pela posse precária do comodato, sem oficiosamente ter ordenado o depoimento de parte (no caso, dos RR, aqui Apelantes) no sentido de perceber efetivamente o tipo de autorização concedida pelos proprietários do imóvel em apreço, que concomitantemente influiria na decisão sobre o tipo de posse exercida.
a) Porque se considera que tal falta influenciou diretamente a convicção formada pelo juiz do tribunal a quo, porque decidiu sem os ouvir, a decisão poderia ter sido distinta e, poderia o tribunal recorrido ter concluído que a posse exercida era de usufruto. E porque era essencial ouvir os Apelantes? Por duas razões:
I-Para perceber se foi estipulado um prazo para os Réus, aqui Recorrentes/ Apelantes exercerem a posse sobre o prédio e, em caso afirmativo, qual;
II-Para percecionar o tipo de autorização concedida aos Réus, aqui Apelantes, no sentido de concluir com certezas e não apenas baseado em meras suposições e com base no depoimento de testemunhas que não forem intervenientes na dita autorização.
b) Tendo inexistido este meio probatório o tribunal a quo baseou a sua convicção apenas na prova testemunhal que, salvo devido respeito, esta em nada veio comprovar nos pontos descritos nas alíneas do ponto anterior.
c) Nenhuma das testemunhas assistiu à autorização inicial dada por D... a D..., logo, não conseguem (muito menos com certezas) comprovar o tipo de posse existente e, muito menos qualquer das testemunhas declarou em audiência qualquer elemento respeitante aos prazos, eventualmente, estabelecidos para exercer essa mesma posse.
d) Salvo devido respeito, o Tribunal recorrido apenas se baseou para a sua convicção no depoimento das testemunhas, que são terceiros, não foram intervenientes diretos no objeto do litígio.
e) Sem que tivesse ouvido as partes que eram as únicas que poderiam esclarecer sobre o tipo de autorização, logo o tipo de posse existente, podemos concluir que o tribunal a quo possa ter-se equivocado nas conclusões que levaram à convicção de que se trata de uma posse precária, temporária e, por via disso que a restituição tenha de ser feita mal os legais proprietários o invoquem.
f) Teria sido essencial a audição dos Apelantes, fosse por depoimento de parte (para obter uma confissão), fosse por declarações de parte.
g) Não obstante não ter sido requerido pelas partes, sempre teria o Tribunal recorrido a faculdade de oficiosamente requerer o depoimento ou as declarações de parte.
h) Nos termos dispostos os artigos 452º e 453º do CPC, essa faculdade de requerer assiste às partes, mas também ao juiz. Desta forma, poderiam ter sido esclarecidos factos que influenciaram indubitavelmente a decisão da causa.
i) Nos termos dispostos na lei, “ o juiz pode, em qualquer estado do processo, determinar a comparência pessoal das partes para a prestação do depoimento de parte, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa”.
j) Da mesma forma que não foi requerido oficiosamente pelo tribunal o depoimento de parte (no caso, dos Apelantes) nem que fosse com o objetivo de obter deles uma confissão, estes são os únicos com conhecimento direto na causa, também não foram requeridas declarações de parte, nos termos do artigo 466º e 452º nº 1, ambos do CPC.
k) Fora das declarações por confissão, sempre existe ainda a faculdade de ouvir as partes nos termos dos artigos referidos no ponto antecedente. Nesse sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, sob o processo 24233/13.0 T2SNT-A.L1-6 datado de 20-11-2014, tendo como Relator a Mmª Juiz Desembargadora Ana de Azeredo Coelho.
120. A terceira questão para apreciação em recurso: a decisão sido tomada com base na prova testemunhal sem nenhuma das testemunhas arroladas conhecer o tipo de autorização concedida aos RR, tendo concluído que apenas o RR atuou como proprietário por sofrer de demência, sem que se esperasse ou perspetivasse tal decisão, não tendo assim sido ouvidos os RR/Apelantes, o que poderia ter influenciado a convicção do tribunal a quo ou para percecionar da existência de decisão de forma distinta, quaisquer depoimentos testemunhais que permitiriam compreender a vontade real ou intenção das partes nos contratos celebrados.
a) Baseou-se o douto tribunal apenas nas declarações de testemunhas arroladas pelas partes, sem ouvir diretamente as partes intervenientes.
b) Pelas declarações das mesmas ficou demonstrado e provado que os Réus usufruem do prédio em causa com autorização do titular.
c) Não se compreende porque não considerou o Tribunal a quo a ocupação do imóvel pertencente aos AA pelos RR, por contrato de usufruto, sem prazo ou uso determinado e optou pelo comodato, quando a prova testemunhal não vem fazer prova dessa diferente de ambos os regimes.
d) Mesmo não se tendo provado a propriedade adquirida pelos Apelantes por usucapião e, por outro lado, a sucessão dessa propriedade pelos sucessores dos proprietários originários, os AA, tendo estes beneficiado da presunção do registo nos termos do artigo 7º CRP.
e) O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define (art. 7º do CRP).
f) Não ficou demonstrado que tenha sido estabelecido um prazo, assim como não ficou demonstrado o tipo de posse que foi constituída a favor dos Apelantes e nesse sentido, sempre teremos de nos debruçar sobre os factos e não sobre meras presunções ou suposições.
g) Só os Apelantes poderiam esclarecer o tipo de autorização concedida pelo proprietário originário F..., assim como o tipo de posse que exerciam.
h) Estes são os únicos com conhecimento direto na causa. Já as testemunhas não o são.
i) Não se pode ter esta posse como precária e, nesse sentido nem seria de inverter essa posse, bastava que se provasse a efetiva posse.
j) E, efetivamente, os Apelantes sempre agiram como usufrutuários e não como meros comodatários e enquanto usufrutuários há que aferir dos limites temporais deste usufruto que igualmente não foram estabelecidos.
k) O tribunal também firmou a sua convicção no depoimento dos próprios filhos dos RR, que estes não entendiam/identificavam os pais como proprietários do prédio.
l) Mas não pode o tribunal recorrido confundir o que é propriedade da raiz do bem com a posse do mesmo.
m) Pois se fosse questionado aos filhos dos Réus, aqui Apelantes, se os pais eram usufrutuários ou comodatários e explicado o sentido e as diferenças de cada tipo de posse, não hesitariam em responder com verdade: que agiam como usufrutuários.
n) Não pode o douto tribunal apenas com tais depoimentos (de tais testemunhas) concluir que se trata de um comodato e não de um usufruto,
o) Nem pode valorar na sua convicção pelos depoimentos das testemunhas que afirmam que apenas o RR D... se comportaria como dono “por força da demência”, sem que tal tenha ficado provado.
p) De outra forma, poder-se-ia ter colocado em causa se os RR teriam capacidade para estar em juízo nessa qualidade, se teriam capacidade de entendimento para poder ser colocados na posição de Réus, o que inviabilizaria e colocaria em causa todo o processo.
q) A ter sido considerada e valorada essa eventual demência referida por uma das testemunhas, deveria ter sido requerida em sede própria o adequado exame pericial, da invocada incapacidade e consequentemente teria existido a necessidade de nomeação de um curador provisório.
r) O que não ocorreu, porque sem ouvir os Apelantes não foi possível determinar o estado de saúde física ou mental e a real perceção sobre a matéria controversa.
121. Assim, os recorrentes põem em causa a decisão proferida em 1ª instância, requerendo uma criteriosa análise das alegações e conclusões, em ordem a que seja alterada a sentença e em sua substituição seja proferida uma decisão a conceder aos Réus/ apelantes o direito como usufrutuários.
122. Já que, em suma:
a) Foi assim violado, por manifesto erro de interpretação e integração, a matéria de facto constante dos autos e foi feita uma incorreta interpretação desta matéria de facto na integração da matéria de direito.
b) Tendo sido reconhecido aos Réus apenas uma posse precária como comodatários com a consequente devolução imediata do bem, por consequência de não ter sido feita prova cabal sobre o tipo de autorização concedida, logo, o tipo de posse existente e,
c) Na dúvida sobre a existência de prazos ou no tipo de posse, deveriam ter sido oficiosamente chamados os Réus a prestar declarações para o esclarecimento da verdade material e boa decisão da causa.
d) Ao concluir o tribunal recorrido pelo comodato que sem estipulação de prazo de restituição classificou-o como tendo esta de ser operada pela denúncia e não por caducidade ou morte do comodatário, fez uma errada interpretação e integração da matéria de facto ao direito, já que teria de concluir pelo usufruto com extinção apenas à morte dos usufrutuários.
e) Na falta de estipulação de prazo, o tribunal a quo está a considerar a posse como precária, decorrente de um contrato de comodato e a impor, por via disso, a restituição imediata após denúncia dos proprietários.
f) Quando deveria ser aplicável como causa de extinção (mesmo que hipoteticamente se provasse tratar-se de um comodato), a morte do(s) comodatário(s).
g) No entanto, se o tribunal recorrido houvesse classificado a posse com base num usufruto, como entendem os Apelantes (e mesmo que este se considere adquirido por usucapião) as causas de extinção já seriam, distintas e, considerar-se-ia no caso em concreto, a morte do usufrutuário.
h) Mas igualmente poderá verificar-se a usucapião do usufruto, ou por outras palavras, adquirir-se o usufruto por usucapião, tal como tentaram os RR/ Apelantes invocar nos autos.
i) Significa isto tudo que, numa ação com vista ao reconhecimento de aquisição de usufruto de uma coisa por usucapião, deve provar-se que a posse exercida sobre esta, deve corresponder ao usufruto, ou seja, é preciso demonstrar-se que a pessoa ou entidade se tem comportado em relação à coisa como se usufrutuário fosse, não só sob o ponto de vista de poder de facto sobre ela, mas também com a intenção de se comportar como titular desse direito real.
j) O tribunal recorrido não tem elementos de prova para concluir, nem a real intenção do proprietário que concedeu a posse aos RR, já que se desconhece se efetivamente a intenção era a restituição imediata ou intenção que o usufruto fosse até á morte deste, nem sequer tem elementos concretos e diretos sobre a real intenção quanto à posse, por parte dos Apelantes.
123. Pelo exposto, deverá ser revogada a sentença e substituída por outra que reconheça aos Réus o direito de usufruto sobre o imóvel.
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Notificados os autores não apresentaram contra-alegações.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra corretamente feita.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. Os Autores são os únicos e universais herdeiros da herança aberta por óbito de F..., falecido em Joanesburgo, República da África do Sul, em 14/01/2013, no estado de casado, em segundas núpcias dele, com a aqui Autora B...;
2. Por sua vez, o falecido F... havia sido casado em primeiras núpcias de ambos com G..., falecida em Joanesburgo, República da África do Sul, em 04/02/1980, tendo como únicos herdeiros o referido F... e o filho de ambos, o também aqui Autor C...;
3. Daquelas heranças aberta por óbito do F... e da G... faz parte o prédio urbano composto de uma parcela de terreno para construção, com a área de 931,00 m2, medindo 20 metros de frente por 46,55 metros de fundo, a confrontar do norte com H..., do sul com I..., do nascente caminho e do poente com a Rua ..., na freguesia ..., concelho de Valongo, descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº 6937/20100507 e inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo 10547;
4. O supra identificado prédio foi adquirido pelo F..., no estado de casado com o seu primitivo cônjuge G..., por escritura pública outorgada em 28/07/1970 no Cartório Notarial de Valongo;
5. Os Autores pagam as contribuições e impostos que sobre o mesmo prédio incidem;
6. O referido prédio situa-se na zona central da cidade de Ermesinde, confrontando a poente com uma das suas principais artérias (Rua ...) e a norte e sul com edifícios destinados a habitação;
7. O referido prédio mostra-se inscrito na CRP de Valongo sob o nº 6937/20100507, a favor de F... desde a AP. 8 de 1974/05/11;
8. Os Autores, por si e através dos seus antepossuidores e anteproprietários, há mais de 20, 30 e 40 anos possuem o aludido prédio com a configuração e confrontações supra indicadas, à vista de toda a gente, sem qualquer interrupção, de forma pacífica, porque sempre exercida sem qualquer violência e sem oposição de ninguém, sem intenção de prejudicar quem quer que seja, com a convicção de que exercem um direito próprio;
9. O falecido F... e primitivo cônjuge encontravam-se radicados na República da África do Sul desde os anos sessenta do século passado, aí vieram a falecer, e visitavam regularmente o seu país, onde passavam temporadas e períodos de férias;
10. Logo após a escritura referida no ponto 4, o F... autorizou os aqui Réus a cultivarem aquela área de terreno, com a faculdade de colherem e fazerem seus os respectivos frutos, a título gratuito, com a obrigação de lho restituírem quando tal lhes fosse solicitado;
11. E foi assim que os Réus foram agricultando o identificado prédio, plantando e percebendo os frutos e, simultaneamente, mantendo-o limpo e desbastando o mato;
12. Sempre os Réus reconheceram o falecido F... como dono do aludido prédio quando este vinha a Portugal e se deslocava ao local;
13. Após o falecimento do F..., ocorrido em 14 /01/2013, os aqui Autores concertaram entre si a venda do identificado prédio, tendo para o efeito contactado com a sociedade imobiliária denominada “J..., LDA”, com estabelecimento na Rua ..., nº ..., em Ermesinde;
14. Nesse contexto, em Setembro de 2014, a Representante daquela sociedade imobiliária deslocou-se ao local, onde se encontrava o Réu marido e a quem comunicou o falecimento do anterior proprietário e transmitiu a vontade dos herdeiros em colocarem no terreno um placard a anunciar a venda daquele prédio;
15. Porém, o Réu marido não só recusou o acesso ao interior do terreno e impediu a colocação do placard a anunciar a venda do terreno, como bradou alto e a bom som que “ninguém se atreva a entrar aqui”;
16. Foi o R. D... que procedeu à limpeza do prédio, que cortou todo o mato ali existente, que cortou o pinhal, que preparou as terras e que as cultivou e ainda hoje cultiva;
17. Durante mais de 40 anos, de forma ininterrupta, os RR procederam à limpeza do mato e do silvado, ao cultivo, à produção e à colheita dos frutos semeados no terreno;
18. Sempre o fizeram com autorização dos legais proprietários, de plena boa-fé, e à vista de todos os familiares, dos que ali habitam as redondezas, e da população em geral que por ali passa;
19. Os RR por ali criaram os filhos e os netos;
20. Foram os RR que o conservaram e preservaram, foram eles que impediram o vandalismo e o abandono, sempre sem intenção de prejudicar quem quer que fosse;
21.Os RR tiveram de responder por um processo de contraordenação, na Câmara Municipal ..., tendo pago a pertinente coima no valor de 537,40€, que requereram o pagamento em prestações, tendo liquidado a quantia de forma integral;
22. Semearam durante dezenas de anos, e ainda hoje semeiam nesse terreno, batatas e outras hortícolas, têm árvores de diversos frutos, como pessegueiros, laranjeiras e macieiras e, nesse terreno, têm inclusivamente animais de pasto, como ovelhas;
23. O cultivo do terreno e a colheita dos bens alimentícios do mesmo sempre foram preponderantes no sustento dos filhos, e mais recentemente dos netos, já que se tratava de uma família bastante numerosa e de parcos recursos financeiros;
24. Por ali cuidam dos seus animais, como ovelhas;
25. Retirar a detenção do terreno aos RR além do desgosto, irá causar-lhes prejuízo, nesta fase da vida deles, com idade avançada de mais de 80 anos, não estando preparados mentalmente para essa perda;
26. Os RR já bastante idosos, com mais de 80 anos, reformados, passam os dias no campo (no terreno em causa), por ali passam o seu tempo no cultivo e colheita dos legumes hortícolas e frutos;
27. No Verão de 2006 o falecido F... esteve em Portugal e deslocou-se ao aludido prédio tendo, nomeadamente, aí dialogado com o Réu Marido, que lhe renovou o pedido de continuar a cultivar o terreno, colhendo os respectivos frutos e obrigando-se a restituí-lo quanto tal lhe fosse solicitado;
28. O falecido F... não só anuiu ao pedido do réu Marido como, ainda, se comprometeu a avisá-lo quanto pretendesse a restituição do prédio com a antecedência suficiente a fim de possibilitar que os réus colhessem os frutos e retirassem os animais e demais pertenças do local;
29. Os RR efectuaram no prédio obras clandestinas, sem autorização do proprietário, o que deu azo ao processo de contra-ordenação instaurado pela Câmara Municipal ... e que culminou com a demolição de um muro, ordenada e efectuada por administração directa pela própria Edilidade;
30. Os RR sempre colheram os respectivos frutos, que fizeram seus, deles retirando o correspondente benefício económico durante largos anos.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
1. Quando o proprietário do prédio rústico em apreço decidiu emigrar para a África do Sul, foi o próprio que solicitou aos RR que cuidassem, por si, do prédio em causa;
2. Foi o proprietário que colocou o prédio à disposição dos RR e que lhes disse que tratassem dele como se fossem os proprietários, o que fizeram até hoje;
3. Tendo-lhes dito que “fizessem dele o que quisessem”;
4. Há mais de trinta anos que os RR não têm qualquer contacto nem com o proprietário, nem com qualquer familiar, pois que até à data dos autos ninguém se arrogou de herdeiro ou legal proprietário do prédio;
5. Durante quase cinquenta anos os RR usavam e fruíram do terreno como se fosse seu;
6. Os RR estavam convencidos que o terreno era seu;
7. Pelo decurso das décadas decorridas sem contacto de ninguém se arrogando de legal proprietário, e sem contacto com aquele que eles conheceram como tal, entenderam ser deles, aquele terreno;
8. Há mais de trinta anos que o proprietário não visitava o terreno.
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Conforme resulta das alegações apresentadas pelos apelantes, o presente recurso, na essência, visa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Esta possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Desde logo, como deflui do nº 1 do art. 639º, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional passível de apelação autónoma fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular[2].
Assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursórias com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão prolatada pelo tribunal a quo.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja, no que à situação sub judice releva, a respeito dos concretos pontos de facto que o apelante considera que foram julgados de forma incorreta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do art. 640º, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à exegese das alegações apresentadas, primo conspectu, afigura-se-nos que não foi observado esse ónus de especificação dos concretos pontos de facto que os apelantes consideram terem sido incorretamente julgados pelo tribunal de 1ª instância, já que nas respetivas conclusões nenhuma referência lhes é feita.
Questão que se tem colocado é a de saber se tal especificação deve constar, formalmente, das conclusões recursórias ou se se bastará com a sua inclusão no corpo alegatório[3].
É certo que, aparentemente, a lei adjetiva não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do artigo 639.º, n.º 1 e 2.
No entanto, conforme vem sendo majoritariamente entendido[4], constituindo a especificação dos concretos pontos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões, por força do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugadamente com o art.º 640.º, n.º 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no n.º 1 do art.º 639.º.
Este posicionamento é, quanto a nós, aquele que se mostra em consonância com a ratio essendi das conclusões recursórias, qual seja a de delimitação do âmbito objetivo e subjetivo do recurso e, correspondentemente, da competência decisória da Relação.
De facto, como emerge do regime plasmado nos arts. 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nº 1, da sua natureza lógica de finalização resumida de um discurso, as conclusões têm um papel decisivo, não só no levantamento das questões controversas apresentadas ao tribunal superior como, sobretudo, na fixação do objeto do recurso, logo se compreendendo quão importantes elas são para o tribunal ad quem na definição dos seus poderes de cognição. Em suma: as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, como resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objeto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou.
Acresce, por outro lado, que, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados.
Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[5].
Com efeito, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo.
Portanto, como sublinha ANA LUÍSA GERALDES[6], o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente.
Cumpre, de igual modo, ressaltar que o objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é pura e simples repetição das audiências perante a Relação mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada.
Por via disso, a jurisprudência tem vindo a considerar que o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto terá de alegar, especificar e esclarecer o porquê da discordância, isto é, como e qual a razão por que é que determinados meios probatórios indicados e especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância. Encontra-se, pois, constituído no ónus, como se decidiu no acórdão do STJ de 15.09.2011[7], “de apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele, ou seja, obrigado está o recorrente a concretizar e a apreciar criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; (…) é exatamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida»”.
Certo é que, como deriva das alegações recursórias, os apelantes pretendem impugnar a decisão da matéria de facto convocando estritamente um meio probatório que nem sequer foi produzido na audiência final, não pondo em crise, através de uma efectiva análise crítica, os meios de prova que o tribunal de 1ª instância considerou para firmar a sua convicção, isto é, não efetuam qualquer esforço de demonstração de existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que, no caso, foram realizados no processo.
Com efeito, na perspectiva dos apelantes, o tribunal a quo deveria ter oficiosamente ordenado a audição dos réus “no sentido de perceber efectivamente o tipo de autorização concedida pelos proprietários do imóvel em apreço, que indubitavelmente influiria na decisão sobre o tipo de posse exercida” e bem assim “para perceber o estado de saúde dos réus, nomeadamente da saúde mental destes”.
Ora, tal como deflui do citado art. 640º, as funções atribuídas à Relação em sede de intervenção na decisão da matéria de facto restringem-se, primordialmente, a reapreciar a prova que foi produzida em 1ª instância a fim de verificar se foi (ou não) cometido um error in iudicando que deva ser corrigido, o que se justifica dado que o modelo do nosso sistema de recursos é o da reponderação e não o de reexame, dito de outro modo, a função do recurso ordinário de apelação é a reapreciação da decisão recorrida tendo por suporte a prova realizada no tribunal a quo, e não um novo julgamento da causa com consideração de meios probatórios que aí não foram produzidos.
Resulta, assim, manifesto o incumprimento por banda dos apelantes dos ónus estabelecidos nas als. a) e b) do nº 1 do citado art. 640º.
Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 desse normativo, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus[8].
Deste modo, perante o evidenciado inadimplemento, nenhuma alteração se poderá introduzir na matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada e não provada.
A apelação terá, por conseguinte, de improceder nessa parte.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO

Malgrado não se tenha procedido à alteração da matéria de facto provada e não provada, importa, ainda assim, dilucidar se existe fundamento bastante para alterar a decisão de direito.
Como emerge do ato decisório sob censura, o juiz a quo qualificou juridicamente a relação negocial estabelecida entre o falecido F... e os réus como contrato de comodato, nos termos do qual o primeiro autorizou, a título gratuito, que os segundos cultivassem o ajuizado imóvel de que era proprietário e fizessem seus os respectivos frutos, com a obrigação de o restituírem quando tal lhes fosse solicitado.
Os apelantes rebelam-se contra esse entendimento, sufragando que, efectivamente, o que foi estabelecido entre si e o identificado anterior proprietário foi antes um usufruto que teve por objecto mediato o referido imóvel.
Ora, perante o substrato factual que logrou demonstração (cfr., v.g., factos provados sob os nºs 10, 11, 12, 18 e 27) não se antolha válido fundamento para sustentar que a relação estabelecida entre os ora apelantes e o anterior proprietário do imóvel (entretanto falecido, tendo-lhe sucedido como únicos e universais herdeiros os autores) seja passível de ser qualificada como usufruto - desde logo por ausência das características de realidade inerentes a esse direito real de gozo -, configurando antes uma relação de comodato, por nela se reunirem todos os essentialia negotti que caracterizam este tipo contratual (cfr. art. 1129º do Cód. Civil).
Com efeito, a referida materialidade evidencia que os réus não assumiram perante o proprietário qualquer comportamento de oposição (o que poderia relevar para os efeitos do disposto no art. 1265º do Cód. Civil) à existência do direito de propriedade na esfera jurídica deste (que, aliás, expressamente reconheceram no articulado de defesa que apresentaram no âmbito do presente processo), sendo que durante todo o lapso temporal que vêm agricultando, a título gratuito, o imóvel, se têm comportado enquanto comodatários – portanto, como meros detentores precários[9] -, bem sabendo que, conforme ficou acertado com aquele, a qualquer momento lhes poderia ser exigida a sua entrega.
Estamos, pois, em presença do que se vem denominando de comodato precário[10], que, enquanto variante ou subtipo de comodato, tem como causa uma relação de cortesia, de complacência ou de mera tolerância do comodante, o que justifica que este lhe possa pôr termo a todo o tempo, ad nutum.
Significa isto, portanto, que no precário o prazo de duração do contrato fica totalmente dependente da vontade do comodante, sendo certo que dada a natureza de obrigação pura que reveste o dever de entrega para o comodatário, a interpelação para este cumprir essa obrigação pode ter lugar, designadamente, através de citação para a ação judicial, como foi o caso.
Consequentemente também inexiste razão válida para alterar a decisão de direito, devendo, assim, improceder a presente apelação.
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III. DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 15.11.2018
Miguel Baldaia de Morais
Fátima Andrade
Fernandes de Almeida
_______________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Sendo que, a este respeito, a casuística do Tribunal Constitucional (v.g. acórdãos nº 132/2002 e 403/2002, publicados, respetivamente, no DR, II série, de 29.05.2002 e de 16.12.2002) vem reiteradamente afirmando não ser incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes, desde que não sejam nem arbitrários nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão.
[3] O que, ainda assim, nem sequer ocorreu no caso em apreço.
[4] Cfr., inter alia, na jurisprudência, acórdãos do STJ de 19.02.2015 (processo 299/05.6TBMGD.P2.S1), de 18.05.2004 (processo nº 05A1334), de 1.03.2007 (processo nº 06S3405), de 13.07.2006 (processo nº 06S1079) e de 8.03.2006 (processo nº 05S3823), acórdãos desta Relação de 13.10.2015 (processo nº 127/12.3TVPRT.P1), de 22.09.2014 (processo nº 258/14.8TJPRT-B.P1) e de 3.06.2014 (processo nº 2438/11.9TBOAZ), acórdãos da Relação de Lisboa de 23.04.2015 (processo nº 3311/3.TBBRR.L2-6), de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdãos da Relação de Coimbra de 19.12.2012 (processo nº 2312/11.9TBLRA.C1), de 17.03.2010 (processo nº 2493/08.9PCCBR.C1) e de 3.06.2008 (processo nº 245-B/2002.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 584, AVEIRO PEREIRA, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, págs. 11 e seguintes, in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf e ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 133, onde afirma que “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
[5] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível em www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf.
[7] Processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1. No mesmo sentido se pronunciaram, inter alia, os acórdãos do STJ de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos desta Relação de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[8] A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 134 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; LOPES DO REGO, ob. citada, vol. I, pág. 585 e LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.06.2014 (processo nº 1218/10.3TBBCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Registe-se que sobre esta temática, ainda que no domínio da jurisdição penal, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se (v.g. acórdão nº 259/2002, publicado no Diário da República, II série, de 13.12.2002), decidindo pela compatibilidade constitucional de uma solução legislativa segundo a qual a falta de cumprimento dos ónus que impendem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir esses vícios.
[9] Qualidade que, qua tale, não lhes permite adquirir, por usucapião, qualquer direito real de gozo, designadamente o usufruto, tal como expressamente estatui o art. 1290º do Cód. Civil.
[10] Cfr., sobre a questão, por todos, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. III, 6ª ed., págs. 373 e seguinte, JÚLIO GOMES, Do contrato de comodato, in Cadernos de Direito Privado, nº 17 (janeiro/março de 2007), págs. 7 e seguintes e MARQUES DE MATOS, Contrato de comodato, 2006, págs. 48 e seguintes.