Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
296/08.0PDVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
TIPICIDADE
Nº do Documento: RP20101006296/08.0PDVNG.P1
Data do Acordão: 10/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Preenche o tipo objectivo do crime de violência doméstica do art. 152º, nºs 1, al. a), e 2, do Código Penal o cônjuge marido que:
• Desde 2004 vem tendo com a mulher discussões regulares, as quais termina chamando-lhe puta;
• Numa dessas discussões, no ano de 2004, bateu na mulher dando-lhe murros, que lhe causaram dores, numa altura em que se encontrava deitada na cama;
• A partir de Fevereiro de 2008, altura em que a mulher lhe comunicou querer divorciar-se, os insultos de puta e as agressões físicas passaram a ser mais frequentes;
• No dia 25/04/2008, encontrando-se os dois já a viver em moradas diferentes, dentro da antiga casa de morada de família, na presença dos dois filhos, agrediu a mulher dando-lhe um murro na cara e pontapés nas pernas e apertando-lhe os braços com força, ao mesmo tempo que lhe chamava puta;
• No dia 07/07/2008, junto à sua residência, quando a mulher ali foi buscar os filhos, na presença destes, a agarrou pelo pescoço e pelos braços, puxando-a com força, no momento em que ela se preparava para entrar no automóvel.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº n.º 296/08.0PDVNG.P1
Acordam, em conferência, na 4.ª sec. (2.ª sec. criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi o arguido B………, devidamente identificado nos autos a fls. 88, condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p.p. nos termos do art. 152.º, n.ºs 1, al. a), e 2, do Código Penal, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, bem como, na parcial procedência do pedido cível formulado pela ofendida/demandante cível C………, a pagar a esta uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais nos montantes de, respectivamente, €160,00 e €1.200,00, o que perfaz a quantia global de €1.360,00.
Inconformado com a decisão, dela interpôs recurso o arguido, cuja motivação concluiu nos termos seguintes:
………….
………….
………….
X X X
Terminou pedindo a nulidade da sentença recorrida e a anulação de todo o processado, a fim de se proceder a um novo julgamento, a alteração da matéria de facto dada como provada, que deve ser expurgada dos vícios a que alude o n.º 2 do art. 410.º do C. P. Penal, ou, então, a sua absolvição, sem mais.
X X X
Na 1.ª instância respondeu o M.º P.º pronunciando-se pelo não provimento do recurso.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto suscitou a questão prévia da intempestividade do recurso e, para o caso de assim não vir a ser decidido, a sua improcedência.
Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do C. P. Penal, nenhuma resposta foi junta ao processo.
No despacho liminar a que alude o n.º 1 daquela disposição legal, o ora relator pronunciou-se no sentido de que o recurso foi interposto fora de prazo, tendo, em consequência, proferido a decisão sumária que se transcreve:
Nos termos do art. 411.º do C. P. Penal, o prazo para a interposição do recurso é de 20 ou 30 dias, consoante trate apenas de questões de direito ou tenha por objecto a reapreciação da prova gravada, e, tratando-se de sentença, como é o caso, conta-se a partir do respectivo depósito na secretaria. A sentença, a cuja leitura o arguido esteve presente, foi lida e depositada na secretaria no dia 4 de Dezembro de 2008. No dia 14 de Janeiro de 2009 o arguido requereu a entrega de uma cópia do CD com a gravação da prova, uma vez que equacionava recorrer da matéria de facto. Na motivação do recurso e respectivas conclusões o arguido invocou, para além do mais, o erro de julgamento da matéria de facto provada, pelo que o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias. O requerimento de interposição do recurso e a respectiva motivação deram entrada, via fax, no tribunal recorrido, no dia 27 de Janeiro de 2009, às 22h48. Por considerar que o dia 27 de Janeiro de 2008 era o terceiro dia posterior ao do termo do prazo para a interposição do recurso, o arguido requereu a emissão de guias para pagamento da multa correspondente, encontrando-se junto aos autos o respectivo comprovativo.
Estabelece o n.º 1 do art. 103.º do C. P. Penal que os actos processuais se praticam nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judiciais. No decurso do prazo para a interposição do recurso por parte do arguido decorreram as férias do Natal – 22 de Dezembro de 2008 a 3 de Janeiro de 2009. Fazendo-se a contagem do prazo para a interposição do recurso com o desconto do período das férias do Natal, verifica-se que o termo do prazo normal para a interposição do recurso ocorreu no dia 22 de Janeiro de 2009. Porque o arguido efectuou o pagamento da multa, o termo passou para o dia 26 do mesmo mês e ano (24, sábado; 25, domingo) Porque o requerimento de interposição do recurso e respectiva motivação só deram entrada no tribunal recorrido no dia 27 de Janeiro de 2009, conclui-se que, mesmo tendo sido efectuado o pagamento da multa supra referida, o recurso foi interposto fora do prazo.
Deste modo, ao abrigo do disposto nos arts. 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, al. b), ambos do C. P. Penal, rejeita-se o recurso.
Condena-se o arguido na taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.
X X X
Porto, 2010/04/14
X X X
Notificado desta decisão, veio o arguido reclamar para a conferência, com o fundamento de que o último dia do prazo para a interposição do recurso era o dia 27 de Janeiro de 2009 e não o dia 26 do mesmo mês e ano, conforme foi entendido na decisão sumária.
Notificados do requerimento do arguido o M.º P.º e a ofendida, o M.º P.º apôs um visto nos autos e a ofendia nada alegou ou requereu.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre decidir.
Tem razão o arguido quando alega que o recurso foi interposto em tempo. Na verdade, podia efectuar o pagamento de uma multa nos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, o que fez. Acontece que o ora relator, por lapso, considerou aquele prazo de três dias como se corresse aos sábados, domingos e feriados e não apenas nos dias úteis, como estabelece o n.º5 do art. 145.º do C. P. Civil.
Assim sendo, vai-se conhecer do recurso e dá-se sem efeito a condenação do arguido na taxa de justiça referida na decisão sumária.
Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas delimitam o seu objecto, temos que o arguido suscitou as questões do erro de julgamento da matéria de facto provada e da violação do art. 32.º da CRP, tendo em conta a forma como foi apreciada, do errado enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, mas tendo por base aquela que considera erradamente julgada, e do montante da indemnização. Na verdade, no que diz respeito à primeira das apontadas questões, embora o arguido tenha feito referência ao art. 410.º, n.º 2, als a) e c) do C. P. Penal e aos vícios previstos em tais alíneas, parecendo assim querer invocar os vícios a que aludem aquelas disposições legais – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova, este por via da violação do princípio in dubio pro reo -, o certo é que do conjunto da motivação resulta que o que efectivamente pretendeu foi invocar o erro de julgamento da matéria de facto provada, confundindo o vício do erro notório na apreciação da prova com o erro de julgamento da matéria de facto provada, coisas distintas mas que com muita frequência são confundidas pelos recorrentes.
Vejamos.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem a ver com a insuficiência da prova para a matéria de facto provada, que é aquilo que, ao fim e ao cabo, o arguido alega, e que, a verificar-se, configura um erro de julgamento da matéria de facto provada.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da matéria de facto constante da decisão resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ter sido indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição – Leal-Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, tomo II, pág. 737, em anotação ao art. 410.º
Associado ao vício do erro notório na apreciação da prova invocou o arguido o princípio in dubio pro reo sem, contudo, alegar de forma expressa que a senhora juíza ficou com dúvidas sobre a prática, por si, de determinados factos e que, apesar disso, decidiu em seu desfavor.
Este princípio tem a ver com a apreciação, pelo juiz, da prova produzida na audiência de julgamento e não com as dúvidas que eventualmente se suscitem quer aos intervenientes processuais quer a outras pessoas.
Ocorreria a sua violação caso a senhora juíza tivesse ficado com dúvidas sobre a prática, pelo arguido, de determinado facto que lhe é desfavorável e que, apesar disso, tivesse decidido positivamente, o que, como já acima foi referido, o arguido não alegou, como, também, não resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida.
O erro notório na apreciação da prova é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio de apercebe com facilidade, que é patente, ou seja quando se dá como provado algo que não podia ter acontecido.
Ambos os vícios, como decorre da norma em causa e é jurisprudência pacífica, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos, mesmo que constantes do processo.
Ora, ao invocar a existência de tais vícios o que o arguido pretendeu foi atacar a forma como o tribunal apreciou a prova produzida na audiência de julgamento, ou seja foi invocar o erro de julgamento da matéria de facto considerada provada, que não se confunde com aqueles vícios. Não alegou, portanto, qualquer situação concreta que se possa enquadrar na previsão do art. 410.º do C. P. Penal, sendo certo que a sentença recorrida não padece de qualquer dos vícios nele previstos.
Quanto ao errado enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada, refere que, para além da que foi censurada, não existe matéria de facto que preencha os elementos do crime de maus tratos a cônjuge, o que significa que o invocado errado enquadramento jurídico-penal tem como pressuposto a alteração da matéria de facto provada.
Questão prévia da inadmissibilidade do recurso quanto ao montante da indemnização.
O arguido foi condenado a pagar à ofendida/demandante cível uma indemnização no valor total de € 1.360,00 (1.200 euros a título de danos não patrimoniais e 160 euros a título de indemnização por danos patrimoniais, e não 3.000 euros, como, certamente por lapso, refere no início da motivação do recurso). Dispõe o art. 400.º, n.º 2, do C. P. Penal, que, sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença referente à indemnização só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada. A alçada do tribunal recorrido é de €5.000,00. Logo, tendo em conta o montante da indemnização que o arguido foi condenado a pagar à assistente/demandante cível, é inadmissível recurso da sentença quanto a esta parte. Isto sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art. 403.º do mesmo código.
a) É a seguinte a matéria de facto considerada provada e não provada na sentença recorrida:
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2. FUNDAMENTAÇÃO:
2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA:
1. Desde há cerca de 14 anos que o arguido B……… é casado com a ofendida C…….., tendo desta relação nascido os menores D…….. e E…….., em 15/07/2000 e 20/09/2006, respectivamente;
2. A partir de 2004, como desconfiassem da infidelidade um do outro, arguido e ofendida passaram a ter discussões com alguma regularidade, no interior da habitação conjugal, sita, até Julho de 2007, na Rua …., nº …., em …., Vila Nova de Gaia, e depois daquela data, na Rua …., lote …, fracção …, …, .., em …., Vila Nova de Gaia, que por norma terminavam com insultos de “puta” do arguido à ofendida;
3. Numa dessas discussões, ocorrida no ano de 2004, o arguido bateu pela primeira vez na mulher, com socos que a atingiram na parte direita do corpo, numa altura em que se encontrava deitada na cama do quarto, não tendo a ofendida carecido de assistência hospitalar, apesar de ter ficado dorida;
4. A partir de Fevereiro de 2008, altura em que a ofendida comunicou ao arguido que pretendia divorciar-se, os insultos de “puta”, entrecortados com agressões físicas, passaram a ser mais frequentes;
5. No dia 25 de Abril de 2008, pelas 12.00 horas, encontrando-se já os dois a viver em habitações diferentes, dentro da antiga casa de morada de família, quando a ofendida se preparava para ir tomar banho, o arguido abordou-a e logo a questionou acerca de uns CD`s que tinha encontrado no carro e que, segundo alegava, constituiriam a prova dela ter um amante;
6. No decurso da altercação, o arguido desferiu na ofendida um murro no lado esquerdo do rosto, pontapeou-a nas pernas e apertou-lhe com força os braços, ao mesmo tempo que lhe dizia que era uma “puta”, tendo tais actos decorrido na presença dos dois filhos do casal;
7. No dia 7 de Julho de 2008, pelas 20.00 horas, a ofendida foi à residência onde o arguido vivia com os pais, sita na Rua …., nº .., em …., Vila Nova de Gaia, buscar os dois filhos que ali tinham passado o dia com os avós;
8. Mal a viu, logo o arguido entrou em discussão com a ofendida por ela se ter atrasado em ir buscar os filhos;
9. Quando a ofendida já na rua se preparava para entrar no carro, foi por ele agarrada pelo pescoço e braços e puxada com força para o exterior, pois que lhe queria bater, no que foi impedido por vizinhos;
10. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido descrita em 9, sofreu a ofendida escoriação com 2 cm na face antero lateral esquerda do pescoço, escoriação superficial com 12 cm por 2,5 cm de maiores dimensões, na face anterior do antebraço direito e escoriação superficial com 2 cm de comprimento no terço inferior da face anterior do antebraço esquerdo, que lhe demandaram 3 dias de doença, sem afectação da capacidade para o trabalho;
11. Esta situação decorreu na presença dos filhos menores do casal;
12. O arguido sabia que não podia bater na ofendida e actuou sempre querendo fazê-lo;
13. Sabia que ao dirigir-lhe as expressões acima referidas a ofendia na sua honra e consideração e quis assim actuar;
14. Agiu livre, consciente e sabedor de que a sua conduta era punida por lei;
15. Na sequência das agressões infligidas pelo demandado, a demandante sentiu-se envergonhada, profundamente humilhada e ultrajada;
16. Tanto mais que, por duas vezes, as mesmas tiveram lugar na presença dos filhos menores de ambos, que presenciaram não só as agressões físicas infligidas àquela, como também as agressões verbais;
17. E, uma vez, foram também presenciadas por terceiros, concretamente, quando foi agarrada pelo demandado pelo pescoço e braços e puxada para fora do carro, na rua, na frente de vizinhos, que inclusive o impediram de levar mais longe os seus intentos;
18. A demandante sentiu-se humilhada e enxovalhada publicamente;
19. Pelos factos descritos em 9 terem ocorrido num local público, na rua, num meio relativamente pequeno, como é Canidelo, onde todos se conhecem, nos dias seguintes várias pessoas comentavam o sucedido, chegando a interpelar o pai da demandante para saberem mais pormenores;
20. O referido em 9 da matéria de facto provada correu de boca em boca;
21. O que ainda vexou e constrangeu mais a demandante, que se sentiu achincalhada pessoal e socialmente;
22. A conduta do demandado perturbou a demandante e também os seus filhos menores do casal, com cujo sofrimento, para além do seu, também teve que lidar;
23. A demandante recorreu à ajuda médica;
24. A demandante, após ter sido assistida nas Urgências do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, na sequência das agressões referidas em 9, foi encaminhada para a consulta da especialidade de psiquiatria, onde vem sendo regularmente seguida, encontrando-se medicada desde aí;
25. Teve que recorrer, também, por duas vezes, à ajuda de um médico psiquiatra particular, tendo dispendido em consultas a quantia de € 160,00;
26. Na sequência das agressões referidas em 9, a filha D……. ficou de tal forma perturbada que a demandante teve que recorrer ao Serviço de Urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, a fim da mesma ser vista e observada;
27. Tendo, nesse seguimento, a criança sido examinada com indicação para ser observada pelo médico de família, com posterior orientação para psicologia e referenciação ao serviço social;
28. A demandante, em Julho de 2008, deixou a casa de morada de família e arrendou um apartamento, onde passou a habitar com os filhos, sito na Rua ….., nº …, …., em …., Vila Nova de Gaia;
29. A demandante, em consequência directa e necessária das agressões infligidas pelo demandado, sentiu dores, quer no momento em que aconteceram, quer posteriormente, as quais se prolongaram por alguns dias;
30. Em virtude da conduta do demandado, a demandante ficou com sequelas temporárias, designadamente marcas de agressões;
31. A demandante, em virtude do comportamento do demandado, passou a dormir mal;
32. A demandante teve necessidade de ser apoiada pelos seus familiares, concretamente pela irmã, na casa da qual chegou a residir algum tempo e, também, pelos pais;
33. A demandante é respeitadora e merecedora de respeito, quer particularmente, quer socialmente;
34. A demandante é uma mãe responsável;
35. O arguido é chefe de secção de um armazém, auferindo o ordenado mensal de € 800,00;
36. Está separado de facto da sua esposa, vivendo em casa dos seus pais;
37. Tem dois filhos menores, que vivem com a mãe, contribuindo com € 200,00 mensais, a título de pensão de alimentos;
38. Possui como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade;
39. Nada consta do Certificado de Registo Criminal do arguido, junto aos autos.
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2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA:
1. A partir de 2004, o arguido começou a ameaçar de morte a ofendida;
2. A partir de Fevereiro de 2008, as ameaças de morte passaram a ser mais frequentes;
3. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 5 e 6 da matéria de facto provada, o arguido disse à ofendida que lhe iria tirar os filhos;
4. O arguido sabia que ao dirigir à ofendida as ameaças supra referidas lhe causava medo e inquietação e quis assim actuar;
5. Em virtude do ocorrido em 9 da matéria de facto provada, várias pessoas interpelaram a demandante e a sua irmã para saberem mais pormenores;
6. A demandante, na sequência da conduta do demandado, teve necessidade de deixar a casa de morada de família, onde não se sentia segura, mesmo após ter trocado a fechadura, uma vez que o demandado insistia em entrar e invadir o espaço sempre que lhe apetecia, a qualquer hora, sem qualquer respeito pela vontade e privacidade da demandante;
7. À demandante, para salvaguardar a sua integridade física e mental, bem como a dos seus filhos, não lhe restou outra alternativa senão arrendar um apartamento;
8. Em virtude do comportamento do demandado, a demandante passou a ter um custo acrescido nas despesas de € 250,00 mensais;
9. Devido à conduta do demandado, a demandante sentiu-se com a sua liberdade cerceada;
10. A demandante ainda agora sente medo do demandado, concretamente de voltar a ser agredida por este, física e psicologicamente;
11. Medo que a acompanha diariamente e lhe limita a sua liberdade;
12. A demandante está traumatizada;
13. A demandante passou a acordar muitas vezes durante a noite com pesadelos;
14. A demandante deixou de ser capaz de manter um relacionamento social mínimo;
15. A demandante é uma cidadã exemplar.
X X X
Formou o tribunal recorrido a sua convicção quanto à matéria de facto provada e não provada nos termos que se passam a reproduzir:
2.3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
O Tribunal fundamentou a sua convicção, quanto aos factos constantes da acusação e do pedido de indemnização civil considerados como provados, nas declarações da demandante C………., nos depoimentos das testemunhas F…….., G……… e H………, as quais depuseram de forma clara, objectiva e isenta, e na análise dos documentos juntos aos autos, designadamente, a fls. 13 a 16 e 58 (cópias das fichas clínicas do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia), 20 a 23 (relatório de exame médico-legal), 55 a 56 (cópia do cartão de consultas) e 57 (recibo).
A demandante C……., apesar da posição que ocupa nos presentes autos, depôs de uma forma clara, objectiva e pormenorizada, motivo pelo qual mereceu total credibilidade do Tribunal. Começou por afirmar que casou com o arguido em 28 de Janeiro de 1994, tendo desta relação nascido dois filhos, a D…….. e o E…….., tendo vivido até Julho de 2007, numa casa sita na Rua do …., em …., e a partir daquela data, num apartamento sito na Rua …., em …... Esclareceu que a relação conjugal correu normalmente durante vários anos, tendo em 2004 começado a deteriorar-se pelo facto de suspeitar que o seu marido tivesse uma outra pessoa, o que originava frequentes discussões. Mais referiu que a primeira vez que o arguido a agrediu fisicamente foi no ano de 2004, em data que não consegue precisar, quando se encontrava deitada na cama e aquele lhe desferiu vários socos, que a atingiram no lado direito do corpo, mais concretamente no braço e perna direitos, não tendo recebido tratamento médico. Disse ainda que, após esta agressão, pretendeu divorciar-se do arguido, contudo, o tempo foi passando e decidiu tentar salvar o casamento, tendo, entretanto, ficado grávida do filho mais novo e depois mudado de casa. Esclareceu que quando já estava a residir no apartamento que tinham entretanto adquirido, voltou a suspeitar que o seu marido estivesse novamente a ser-lhe infiel com uma colega de trabalho, o que originava várias discussões, no decurso das quais o arguido lhe chamava de “puta” e lhe dizia que “não era uma boa mãe”, ocorrendo estas discussões várias vezes por semana. Mais referiu que, em Fevereiro de 2008, comunicou ao arguido que pretendia divorciar-se, altura em que aquele passou a ficar mais violento, sendo que, apesar de ter saído de casa e passado a residir na casa dos seus pais, continuava a ter a chave da casa de morada de família, onde entrava quando lhe apetecia e a qualquer hora, o que muito a perturbava. Disse ainda que em Abril de 2008, estava na casa de banho, com os seus filhos menores, quando o arguido aí entrou e começou a bater-lhe, pois tinha encontrado no carro um CD que considerava ser a prova de que ela tinha um amante, tendo-lhe desferido um murro na face, apertões no braço esquerdo e pontapés nas pernas. Mais referiu que os seus filhos ao presenciarem as agressões começaram a gritar, o que aliado ao facto de também se ter tentado defender, nomeadamente, atirando-lhe com um frasco de champô, fez com que aquele abandonasse a casa. Disse ainda que telefonou de imediato à sua irmã, que a acompanhou ao hospital, onde foi tratada. Mais referiu que em Julho de 2008, os seus filhos tinham estado todo o dia com os avós paternos, tendo-os ido buscar um pouco atrasada, razão pela qual o arguido começou a discutir consigo, sendo que quando estava a tentar entrar para o carro aquele lhe agarrou os braços e o pescoço e a puxou para fora, tendo aparecido alguns vizinhos que o agarraram e permitiram que ela entrasse no carro e arrancasse do local. Disse ainda que os seus filhos estavam já no interior da viatura e que assistiram àquela situação, tendo ficado muito nervosos, sobretudo, a menina, que é mais velha. Mais referiu que se deslocou com a sua irmã ao serviço de urgências do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, tendo a sua filha sido também assistida numa consulta de pediatria, pois não parava de chorar. Por último, afirmou que existiram outras situações em que teve a necessidade de chamar a autoridade policial, designadamente, porque o arguido queria retirar de casa as mobílias ou porque os seus sogros se recusavam a entregar-lhe os seus filhos, mas em que não ocorreram agressões.
A testemunha F………, irmã da demandante e cunhada do arguido, começou por afirmar nunca ter presenciado qualquer das agressões perpetradas pelo arguido à ofendida, sabendo apenas aquilo que esta lhe relatou e tendo-a visto com marcas no corpo. Esclareceu que no dia 25 de Abril de 2008, de tarde, a sua irmã, apareceu em sua casa, acompanhada dos filhos, a chorar, muito nervosa e com a cara vermelha e inchada, tendo-lhe dito que o seu marido lhe tinha batido, razão pela qual a acompanhou ao hospital. Disse ainda que acompanhou a sua irmã às urgências do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia uma outra vez, em data que não se recorda, também por esta ter sido agredida pelo marido em frente à casa dos sogros, tendo constatado que a mesma tinha o pescoço vermelho. Mais referiu que a sua irmã para além das dores e das mazelas físicas que sofreu e dos medicamentos que teve que tomar, sentiu-se muito humilhada, principalmente pelo facto dos seus filhos terem presenciado, e deprimida, tendo até necessidade de ser acompanhada, por duas vezes, por um médico psiquiatra particular, sendo que agora é seguida no hospital. Disse ainda que a sua sobrinha também ficou perturbada com estes acontecimentos, tendo ido também, numa das vezes, ao hospital, pois não parava de chorar e estava muito triste. Mais referiu que a sua irmã viu-se obrigada a mudar de casa, pois o arguido tinha a chave da casa de morada de família, onde entrava sempre que lhe apetecia, mesmo depois daquela ter m mudado a fechadura, tendo estado a viver em sua casa durante algum tempo. Por último, afirmou que em seu entender a sua irmã ainda tem algum receio do arguido, mas muito menos que anteriormente, apesar de ainda estar nervosa e continuar a dormir mal.
A testemunha G………, pai da demandante e sogro do arguido, começou por referir nunca ter presenciado qualquer situação de agressão, sabendo apenas o que a sua filha lhe contou e tendo-a visto também com hematomas. Esclareceu que a ofendida lhe disse ter sido agredida pelo marido por três vezes, contudo, ele apenas a viu com marcas uma vez, mais concretamente na cara. Disse ainda que a sua filha ficou muito abalada e envergonhada com a situação, tendo tido necessidade de ser acompanhada por um médico psiquiatra. Mais referiu que a agressão que ocorreu em frente a casa dos sogros da sua filha foi presenciada por várias pessoas, tendo alguns colegas seus, motoristas de táxi, lhe perguntado até o que se estava a passar com aquela, ao que respondeu que se estava a divorciar. Disse ainda que estes comentários envergonharam ainda mais a sua filha.
A testemunha H………., primo da demandante, começou por referir que, em data que não se recorda, a ofendida telefonou-lhe a pedir para a ir buscar às urgências do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o que fez, tendo constatado que aquela tinha marcas na cara, altura em que lhe contou que o seu marido lhe tinha batido. Disse ainda que ficou muito surpreendido com este facto, pois sempre pensou que eram um casal que se dava bem e na sua presença aquele sempre tinha tratado muito bem a sua esposa, considerando-o uma pessoa educada e respeitadora.
As declarações do arguido B…….., não mereceram credibilidade, porquanto estão em contradição com as declarações da demandante C…….., em quem o tribunal acreditou pelos motivos expostos, e com a análise dos documentos juntos aos autos, concretamente, a cópia da ficha clínica do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e o Relatório do exame médico-legal. Começou por afirmar que casou com a ofendida em 28 de Janeiro de 1994, tendo desta relação nascido dois filhos, a D………, em 15 de Julho de 2000, e o E…….., em 20 de Setembro de 2006. Mais referiu que o casamento correu sempre bem, tendo apenas existido discussões normais, sobretudo, originadas por problemas económicos, nunca tendo agredido verbal ou fisicamente a sua mulher. Esclareceu que no dia 25 de Abril de 2008, estava já separado de facto da sua esposa, quando esta lhe telefonou e pediu para levar a sua filha D………. a comprar um presente para um amigo que fazia anos, sendo que quando estava no carro encontrou três CD`s com música romântica, que suspeitou terem-lhe sido dados pelo seu amante, pelo que se dirigiu a casa, tendo-lhe perguntado o que aqueles significavam, altura em que ela o começou a insultar e quando estava a preparar-se para o agredir, ele desferiu-lhe um empurrão, após o que aquela lhe atirou com um frasco de champô que lhe acertou no nariz. Disse ainda que no dia 7 de Julho de 2008, a ofendida tinha mudado de emprego, razão pela qual foi buscar os filhos a casa dos seus pais apenas às 20.45 horas e não às 18.00 horas como habitualmente, tendo-lhe dito que tinha que ir buscar os filhos mais cedo ou arranjar alguém que o fizesse, pois a sua mãe também precisava de tempo para si, altura em que ela começou a insultá-lo, chamando-lhe “boi” e “filho da puta”, nada mais tendo acontecido.
O depoimento da testemunha I…….., mãe do arguido e sogra da demandante, não foi valorado positivamente, porquanto foi contraditório com as declarações da demandante C……, em quem o tribunal acreditou pelos motivos expostos, e com a análise dos documentos juntos aos autos, concretamente, a cópia da ficha clínica do serviço de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e o Relatório do exame médico-legal, e marcado pela relação familiar que tem para com aquele e que a impediu de depor com isenção e objectividade. Começou por afirmar que num domingo à noite a ofendida disse-lhe que no dia seguinte ia começar a trabalhar no Porto, razão pela qual ia buscar os filhos mais tarde, tendo o arguido dito que precisavam de conversar sobre esse assunto. Mais referiu que na segunda-feira, a ofendida foi buscar os filhos bastante tarde, tendo o arguido dito-lhe que tinha que arranjar alguém para ir buscar as crianças mais cedo, altura em que ela começou a insultá-lo, tendo-lhe chamado “ladrão” e “filho da puta”. Disse ainda que o seu filho não lhe respondeu e virou as costas, altura em que a ofendida, que já estava dentro do carro, saiu do mesmo e dirigiu-se-lhes, tendo-lhes cuspido na cara, após o que entrou novamente no automóvel e arrancou do local.
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Considerando que as declarações da demandante e do arguido e os depoimentos testemunhais se encontram documentados nos termos legais, o Tribunal dispensa-se de fazer uma análise mais exaustiva acerca do que foi referido em audiência de julgamento.
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Após a produção da prova, conjugando as declarações da demandante C……, com os depoimentos das testemunhas F………., G……… e H…….., com a análise dos documentos juntos aos autos e ainda tendo presente a especificidade deste tipo de crime, o qual ocorre normalmente entre portas, o Tribunal ficou convencido que, efectivamente, a partir de 2004 e até Julho de 2008, mesmo depois de já estarem separados de facto, o arguido B…….. mal tratou física e verbalmente a sua mulher C…….., a aqui demandante.
Sabemos que as declarações da demandante e os depoimentos testemunhais não foram precisos no tempo, no entanto, poderia o Tribunal exigir às testemunhas e à própria demandante que se recordassem com precisão de factos ocorridos há vários meses e, para mais, ocorridos por diversas vezes e idênticos entre si. Entendemos que tal comportamento não era exigível às testemunhas, nem à própria demandante, e ainda que a prova deste crime, em virtude da particularidade de, normalmente, ocorrer entre portas, terá de se fazer, sobretudo, através das declarações da própria vítima (cf. a propósito do relevo do depoimento da vítima no âmbito da violência doméstica, o Ac. da RE de 09/03/2004, www.dgsi.pt) e de depoimentos de pessoas a ela ligadas, sob pena de nunca ser feita qualquer prova, razão pela qual considerámos as declarações e os depoimentos supra expostos como suficientes para alicerçar a convicção do Tribunal.
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No que concerne aos factos referentes à situação económica e social do arguido, o Tribunal assentou, exclusivamente, a sua convicção nas suas declarações.
Quanto ao facto constante do ponto 39, resulta o mesmo do Certificado de Registo Criminal do arguido, junto aos autos.
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Quanto à matéria constante do ponto 2.2., o Tribunal decidiu dessa forma em virtude de em relação aos mesmos não ter sido produzida prova (designadamente, quanto aos pontos 1 a 4, pelo facto da demandante não ter descrito qualquer ameaça perpetrada pelo arguido; no que concerne ao ponto 5, pelo facto da demandante não ter deposto quanto ao pedido de indemnização civil e a testemunha F………. ter afirmado que ninguém lhe colocou qualquer pergunta sobre o que tinha acontecido em frente à casa dos sogros da sua irmã; no que respeita aos pontos 6, 7 e 8, pela circunstância do tribunal não ter ficado convencido destes factos, pois tendo a ofendida mudado a fechadura da casa de morada de família não se compreende como é que o arguido conseguia aí entrar; no que respeita aos pontos 9 a 15, por não ter sido produzida prova nesse sentido, designadamente, não foi junto qualquer documento médico que ateste que a ofendida em virtude do comportamento do arguido ficou traumatizada e, em consequência, deixou de ter quaisquer relacionamentos sociais).”
X X X
Nos termos do art. 412.º, n.º 3, do C. P. Penal, quando impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.
Estabelece o n.º 4 do mesmo artigo que, quando as provas tiverem sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
Não tendo o arguido requerido a renovação da prova, não tinha de indicar quais as provas que devem ser renovadas, mas tinha de dar cumprimento ao demais estabelecido naquelas disposições legais, e não o fez integralmente. Com efeito, se é verdade que indicou quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, já assim não acontece quanto às provas que impõem decisão diversa da recorrida, parecendo pretender que este tribunal reaprecie toda a prova oralmente produzida na audiência de julgamento, tal como resulta do corpo da motivação, em que refere, no n.º 3, que “O mesmo é dizer que o Recorrente pretende que este Tribunal proceda à reapreciação da prova produzida, mormente, no que concerne à prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento” e que depois reproduz ipsis verbis na conclusão n.º IV.
Ora, como é jurisprudência pacífica, o recurso em matéria de facto não tem como finalidade a reapreciação, por um tribunal superior, de toda a prova produzida na audiência de julgamento da 1.ª instância, como se de um novo julgamento se tratasse, mas apenas a reapreciação de excertos daquela prova que, segundo o recorrente, imponham decisão diversa da recorrida. O que o arguido até reconhece na medida em que cita, no ponto 4 da motivação, um acórdão do STJ nesse sentido.
O arguido indicou quais os factos que considera incorrectamente julgados e transcreveu parte dos depoimentos prestados na audiência de julgamento, mas não quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Na verdade, quanto a esta questão, limitou-se a fazer a sua própria valoração da prova produzida na audiência de julgamento, por discordar da que foi feita pelo tribunal, como, aliás, refere no início do n.º 2 da motivação do recurso.
Ao não indicar as provas que impõem decisão diversa da recorrida inviabilizou o conhecimento, por este tribunal, do recurso em matéria de facto, sendo certo que não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento previsto no n.º 3 do art. 417.º do C. P. Penal, uma vez que isso implicaria dar lugar à modificação do âmbito do recurso fixado na motivação, o que o n.º 4 do mesmo artigo não consente.
Assim sendo, não se conhece do recurso em matéria de facto.
Em todo o caso, sempre se dirá que a fundamentação de facto da sentença recorrida mostra que a matéria de facto considerada provada tem suporte mais que suficiente na prova produzida na audiência de julgamento. Não é a circunstância de alguns dos factos terem sido considerados provados apenas com base nas declarações da ofendida que põe em causa o acerto da decisão. Nada na lei impede que assim seja, designadamente o art. 32.º da CRP, que o arguido referiu ter sido violado, sem, contudo, fazer menção a qualquer dos seus números, quando é certo que são várias as situações previstas naquele artigo, nenhuma delas, porém, relacionada com as declarações dos ofendidos/assistentes/demandantes cíveis. Ponto essencial é que o tribunal se convença da veracidade de tais declarações, o que, no caso, aconteceu.
Aliás, na sentença recorrida foi feito o exame crítico da prova e, nomeadamente, das declarações da ofendida, tendo em conta sobretudo a qualidade em que foi ouvida.
Repare-se que o arguido não põe em causa que a matéria de facto provada tem suporte na prova produzida na audiência de julgamento, mas apenas e tão-só que determinados meios de prova não merecem credibilidade suficiente para se dar como provados alguns dos factos, como é o caso das declarações da ofendida e de algumas das testemunhas inquiridas, designadamente o pai desta, cujo depoimento, segundo o arguido, não merece credibilidade. O que o arguido acabou por fazer foi a sua própria análise da prova, discordando da que foi feita pelo tribunal, pretendendo substituir-se a este em tal tarefa, como, aliás, resulta de forma clara do n.º 2 do corpo da motivação, quando tal tarefa cabe ao tribunal. Ao arguido incumbia indicar as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da recorrida, o que acabou por não fazer.
c) É o seguinte o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada feito na sentença recorrida:
2.4.1 ENQUADRAMENTO JURIDICO-PENAL:
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
Vem o arguido B………. acusado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nºs 1, al. a) e 2 do Código Penal.
Preceitua o art. 152º, no seu nº 1, al. a) do Código Penal, que: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: ao cônjuge ou ex-cônjuge; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. E no seu nº 2, que: “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Antes de mais, refira-se que toda a exposição que iremos fazer acerca deste tipo de ilícito limitar-se-á ao caso destes autos, ou seja, ao caso de violência doméstica entre cônjuges, ficando por analisar todas as outras vertentes de violência doméstica protegidas também pelo artigo 152º do Código Penal.
A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º, alínea a) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
Nas palavras de Teresa Beleza: esta previsão “tem por referência a percepção dos maus tratos da mulher pelo marido como fenómeno generalizado, empiricamente detectado e já não considerado lícito. E é evidente, por outro lado, que a insistência constitucional e legal na igualdade dos cônjuges se baseia na verificação da real desigualdade, outrora legal, hoje de facto” in Maus tratos conjugais: o art. 153º, nº 3 do Código Penal, A.A.F.D.L. 1989.
Prova de que a criminalização da violência doméstica foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família não mais podia constituir feudo sagrado, onde o direito penal tinha de se abster de intervir foi o tom exageradamente cauteloso com que o Autor do Anteprojecto de 1966 encarava a neocriminalização destes comportamentos (repare-se que os maus tratos entre cônjuges não foram previstos no Anteprojecto, mas apenas no nº 3 do art. 153º do Código Penal de 1982). Nas palavras de Eduardo Correia: “estes artigos (arts. 166º e 167º do Anteprojecto que globalmente correspondem ao nº 1 do actual art. 152º) correspondem à necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados. Como é óbvio, esta protecção não entra em pormenores que se deixam às leis do trabalho ou tutelar de menores. Em ambos os artigos se faz referência a um elemento da personalidade: a malvadez ou egoísmo”. No dizer de Américo Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 330: “Estas duas expressões revelam os receios da altura em intervir penalmente em domínios que, tradicionalmente, pareciam querer prolongar um poder quase absoluto do marido, do pai, do educador e do empregador”.
A redacção final do Código Penal de 82 manteve a referência à malvadez ou egoísmo e a jurisprudência acabou por manter uma interpretação excessivamente restritiva do âmbito criminalizador do tipo legal de maus tratos, ao ponto de exigir que, para haver crime, era necessário que, para além da prática dolosa dos actos descritos, o agente tivesse actuado com malvadez ou egoísmo. Esta exigência, segundo alguma jurisprudência, passou a ser feita também em relação aos maus tratos de um cônjuge sobre outro.
Contra a aplicação desta jurisprudência da exigência de “malvadez ou egoísmo” aos maus tratos conjugais, ver Teresa Beleza, Maus tratos conjugais: o art. 153º, 3 do Código Penal, A.A.F.D.L.1989.
A Revisão Penal de 1995, levada a efeito pelo DL nº 48/95, de 15 de Março, introduziu algumas importantes alterações no preceito sobre o qual nos estamos a debruçar.
Concretamente, o legislador consciente que no domínio familiar e conjugal as humilhações, os insultos, as ameaças constituem, muitas vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, previu, ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. Por outro lado, eliminou-se a referência à “malvadez ou egoísmo”. Quanto às penas, estas foram substancialmente agravadas. Assim, não podem ser dirigidas contra o art. 152º do Código Penal de 1995 as justas e merecidas críticas feitas ao Código Penal de 82.
Entretanto, a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, introduziu mais alterações ao art. 152º do Código Penal, sendo a de maior significado a que passou a considerar integrante do crime de violência doméstica os maus tratos quer sejam infligidos de modo reiterado ou não.
O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”.
Desta análise sistemática, pode-se concluir que a ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. O âmbito punitivo deste tipo de crime abarca os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade. Se é certo que no passado se considerou que o bem jurídico protegido era tão só a integridade física, constituindo a violência doméstica uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, no presente uma interpretação como a acabada de expor é inaceitável, por manifestamente limitativa e redutora. A ratio deste artigo que estamos a analisar vai muito mais longe que os maus tratos físicos, abrangendo também os maus tratos psíquicos, como as ameaças, as humilhações, as provocações, as curtas privações da liberdade de movimentos e as ofensas sexuais. Assim sendo, podemos dizer que o bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é a saúde, esta entendida enquanto saúde física, psíquica e mental e, por conseguinte, podendo ser afectada por uma diversidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.
O crime de violência doméstica pressupõe um agente, um sujeito activo que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um crime específico: “quem infligir ao cônjuge ou ao ex-cônjuge”. Este denominado crime específico será impróprio ou próprio, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
Sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal, ou seja, cônjuge.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).
E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não. Anteriormente, à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, o tipo em análise pressupunha implicitamente uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois dos referidos actos afastaria o elemento reiteração ou habitualidade. Contudo, existia já uma grande parte da jurisprudência, com a qual concordávamos, que considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido – cf. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, in www.dgsi.pt.
Quanto ao tipo subjectivo de ilícito exige-se o dolo.
O nº 2 do preceito em análise, prevê uma agravação da moldura penal quando os factos forem praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
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Ora, em face da factualidade apurada, é manifesto que o arguido B………. cometeu o crime em análise, porquanto se mostram preenchidos os citados requisitos. Senão vejamos: “Desde há cerca de 14 anos que o arguido B……… é casado com a ofendida C………” – o agente encontra-se numa relação conjugal para com o sujeito passivo. Sujeito passivo encontra-se para com o agente numa relação conjugal; “A partir de 2004 (…) arguido e ofendida passaram a ter discussões com alguma regularidade, no interior da habitação conjugal, que por norma terminavam com insultos de “puta” do arguido à ofendida; Numa dessas discussões, ocorrida no ano de 2004, o arguido bateu pela primeira vez na mulher, com socos que a atingiram na parte direita do corpo, numa altura em que se encontrava deitada na cama do quarto, não tendo a ofendida carecido de assistência hospitalar, apesar de ter ficado dorida; A partir de Fevereiro de 2008, altura em que a ofendida comunicou ao arguido que pretendia divorciar-se, os insultos de “puta”, entrecortados com agressões físicas, passaram a ser mais frequentes; No dia 25 de Abril de 2008, pelas 12.00 horas, encontrando-se já os dois a viver em moradas diferentes, dentro da antiga casa de morada de família, quando a ofendida se preparava para ir tomar banho (…) o arguido desferiu-lhe um murro no lado esquerdo do rosto, pontapeou-a nas pernas e apertou-lhe com força os braços, ao mesmo tempo que lhe dizia que era uma “puta”, tendo tais actos decorrido na presença dos dois filhos; No dia 7 de Julho de 2008, pelas 20.00 horas, a ofendida foi à residência onde o arguido vivia com os pais, sita na Rua …., nº …, em …., Vila Nova de Gaia, buscar os dois filhos; Mal a viu, logo o arguido entrou em discussão com a ofendida; Quando a ofendida já na rua se preparava para entrar no carro, foi por ele agarrada pelo pescoço e braços e puxada com força para o exterior; Esta situação decorreu na presença dos filhos menores do casal” - maus tratos físicos e psíquicos e reiteração das respectivas condutas, na presença dos filhos menores do casal; “O arguido sabia que não podia bater na ofendida e actuou sempre querendo fazê-lo; Sabia que ao dirigir-lhe as expressões acima referidas a ofendia na sua honra e consideração e quis assim actuar; Agiu livre, consciente e sabedor de que a sua conduta era punida por lei” - dolo.
Pelo exposto, conclui-se ter o arguido, B………, cometido um crime de violência doméstica na pessoa do seu cônjuge, C……., p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal.
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X X X
Como já acima foi referido, o arguido pôs em causa o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada não porque, face à matéria de facto considerada provada na sentença recorrida, não se mostrem preenchidos os elementos constitutivos do crime por que foi condenado, mas tendo como pressuposto a alteração da matéria de facto provada. Mantendo-se esta, tem também de se manter o enquadramento jurídico-penal feito na sentença recorrida.
X X X
Deste modo, nega-se provimento ao recurso.
Condena-se o arguido na taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) UC.
X X X
Porto, 2010/10/06
David Pinto Monteiro
José João Teixeira Coelho Vieira