Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
306/19.5T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
REQUISITOS
DIVÓRCIO
RUTURA DA VIA EM COMUM
CONVERSÃO EM UNIÃO DE FACTO
FRAUDE À LEI
Nº do Documento: RP20190625306/19.5T8PRD.P1
Data do Acordão: 06/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º900, FLS.171-177)
Área Temática: .
Sumário: I - Assiste-se atualmente na nossa sociedade a uma tendência que aponta no sentido da descontratualização da comunhão de vida entre duas pessoas, de tal modo que hoje se prefere, tantas e tantas vezes, à contratualização que o casamento significa, a maior liberdade que uma mera união de facto concede.
II - Se duas pessoas que vivem em união de facto têm toda a liberdade para a qualquer momento converter o seu relacionamento afetivo em casamento, também se deve conceder a possibilidade inversa a quem esteja casado de transformar o seu relacionamento afetivo em mera união de facto, recorrendo para tal efeito à figura do divórcio por mútuo consentimento.
III - O divórcio por mútuo consentimento não implica, forçosamente, uma prévia rutura da vida em comum, podendo ser decretado mesmo quando entre ambos os interessados permaneça uma situação de vida em comum, bastando que a vontade convergente dos dois seja no sentido do divórcio.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 306/19.5 T8PRD.P1
Comarca do Porto Este – Juízo de Família e Menores de Paredes – Juiz 1
Apelação
Recorrente: Ministério Público
Recorridos: B… e C..
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira
Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
B… e C… requereram na Conservatória do Registo Civil de Paços de Ferreira divórcio por mútuo consentimento.
Porém, como no acordo apresentado relativamente à regulação do exercício das responsabilidades parentais quanto à filha menor de ambos D… mencionaram o facto de após o divórcio continuarem a residir no mesmo local, na residência que constitui a casa de morada de família, e que a menor continuará também a residir em conjunto com os progenitores, o Min. Público, chamado a pronunciar-se nos termos do art. 1776º-A do Cód. Civil, não concedeu parecer favorável a tal acordo por considerar não existir dissolução familiar.
Regressados os autos à Conservatória do Registo Civil, os requerentes B… e C… limitaram-se a afirmar que mantêm o propósito de viverem em situação de união de facto após a dissolução do casamento por divórcio, devendo, por isso, ser dado sem efeito o acordo relativo à regulação das responsabilidades parentais da menor D….
O Min. Público, chamado novamente a pronunciar-se, manteve o seu parecer desfavorável.
O processo foi depois remetido para o tribunal nos termos do art. 1778º do Cód. Civil.
Seguidamente, efetuou-se tentativa de conciliação, onde, face à posição manifestada pelas partes, se determinou que os autos seguissem os trâmites do processo de divórcio por mútuo consentimento, de acordo com o previsto no art. 1779º, nº 2 do Cód. Civil.
Depois, o Mmº Juiz “a quo” tentou obter o acordo dos cônjuges no tocante às questões referidas no nº 1 do art. 1775º do Cód. Civil, o qual foi conseguido nos seguintes termos:
“I. Os cônjuges prescindem reciprocamente de alimentos.
II. Não possuem bens comuns.
III. A casa de morada de família fica entregue a ambos os cônjuges.
IV. Não existem animais de companhia.
V. Quanto às responsabilidades parentais da filha menor D…, por autor e ré foi dito não haver necessidade de regular as mesmas, uma vez que pretendem continuar a residir na mesma casa em união de facto e economia comum.”
Dada a palavra à Digna Magistrada do Min. Público, esta promoveu o seguinte:
“Opomo-nos à homologação por considerarmos que não só a mesma exige a apresentação de todos os acordos mencionados no art. 1775º, nº 1 do Código Civil, o que no caso não sucede com o acordo de Regulação das Responsabilidades Parentais, como pelo facto de apesar de no divórcio por mútuo [consentimento] não se discutirem os fundamentos do divórcio, tal não significa que eles não tenham de existir.
Ora, no caso, manifestamente não existem.”
Após foi proferida a seguinte sentença:
“Fixo o valor da acção em Euros: 30.000,01 (artigo 303º, nº 1 do C.P.C.).
Na presente ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge, as partes acordaram no divórcio por mútuo consentimento.
Verificaram-se os pressupostos da validade e regularidade da instância.
Como se vê da certidão do assento de casamento nº 231 do ano de 2014 da Conservatória do Registo Civil de Penafiel, constante de fls. 20 dos autos, os cônjuges contraíram casamento católico em 06 de Maio de 2000.
As partes prescindiram entre si de alimentos, não possuem bens comuns, acordaram quanto ao uso da casa de morada de família e declararam não possuir animais de companhia.
Nesta conformidade, de harmonia com o exposto e bem assim com o preceituado no art. 1775º e 1779º do Código Civil, e achando-se devidamente acautelados os interesses dos cônjuges, homologo o acordo celebrado nos autos e decreto o divórcio entre C… e D…[1] com a consequente dissolução do seu casamento.
Quanto às responsabilidades parentais da filha menor do casal, não haverá necessidade de proceder à sua regulação, uma vez que continuarão a viver em economia comum.
Custas por autor e ré em partes iguais (artigo 931º, nº 4 do C.P.C.)
Comunique ao registo civil (artigo 1778-A, nº 5 e 1920º-B alínea a) ambos do Código Civil).
Registe e notifique."
Inconformado com o decidido, o Ministério Público interpôs recurso de apelação tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1) O Ministério Público vem interpor recurso da sentença homologatória de divórcio proferida no âmbito dos autos à margem identificados, fazendo-o, não só em cumprimento do seu dever estatutário de velar que a função jurisdicional seja exercida em conformidade com a lei (art. 3º, 1, f) 2ª parte do EMP), como em obediência à obrigação de interposição de recurso sempre [que] a decisão recorrida seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei (art. 3º, 1, f) 2ª parte do EMP).
2) No caso, temos dois cônjuges, pais de uma menor (D…, n. em 24.04.2002), que vieram apresentar um acordo de divórcio sem junção do correspondente acordo de regulação das responsabilidades parentais.
3) Alegam que vão continuar a viver como marido e mulher, em economia comum e com comunhão de cama e habitação, continuando ambos a viver e a educar conjuntamente a filha menor.
4) Ora, além de faltar o pressuposto básico de qualquer divórcio (litigioso ou por mútuo consentimento), qual seja, a rutura da vida em comum, não apresentaram os progenitores, porque de facto não o podiam fazer, um dos acordos necessários, nos termos do disposto no art. 1775º do Código Civil (CC), à possibilidade de admissão do acordo de divórcio, ou seja, o supra citado acordo de regulação das responsabilidades parentais.
5) Deste modo, não podia ter sido homologado, como foi, o peticionado divórcio.
6) Por outro lado, nos termos do disposto no art. 612º do CPC “quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para (…) conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes.”
7) Ora, quando duas pessoas casadas querem continuar a fazer vida de casadas mas pretendem dissolver o vínculo conjugal fazem-no certamente por razões patrimoniais e, muito comummente, para se subtraírem a responsabilidades que de outro modo manteriam.
8) Segundo julgamos, sendo este um uso anormal do processo, o Julgador a quo devia tê-lo impedido, proferindo sentença que declarasse a improcedência do pedido.
9) Não o tendo feito, violou a decisão recorrida, não só o disposto nos arts. 1773º e 1775º do CC, como o supra citado art. 612º do CPC.
10) Pelo que, sendo concedido provimento ao presente recurso, deverá ser revogada a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por sentença não homologatória.
Os cônjuges B… e C… apresentaram contra-alegações, nas quais se pronunciaram pela confirmação do decidido.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
I - Apurar se pode ser proferida sentença homologatória de divórcio por mútuo consentimento se ambos os requerentes no acordo celebrado afirmam que pretendem continuar a residir na mesma casa em união de facto e economia comum;
IIApurar se no caso dos autos ocorre uso anormal do processo.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso são os constantes do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
I - O art. 1775º, nº 1 do Cód. Civil estatui o seguinte:
«1. O divórcio por mútuo consentimento pode ser instaurado a todo o tempo na conservatória do registo civil, mediante requerimento assinado pelos cônjuges ou seus procuradores, acompanhado pelos documentos seguintes:
a) Relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respetivos valores, ou, caso os cônjuges optem por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272.º-A a 272.º-C do Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de Setembro, acordo sobre a partilha ou pedido de elaboração do mesmo;
b) Certidão da sentença judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial;
c) Acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça;
d) Acordo sobre o destino da casa de morada de família;
e) Certidão da escritura da convenção antenupcial, caso tenha sido celebrada.
f) Acordo sobre o destino dos animais de companhia, caso existam
Depois, o art. 1776º-A do Cód. Civil diz-nos no seu nº 1 que «quando for apresentado acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativo a filhos menores, o processo é enviado ao Ministério Público junto do tribunal judicial de 1.ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertença a conservatória, para que este se pronuncie sobre o acordo no prazo de 30 dias
Caso o Min. Público considere que o acordo não acautela devidamente os interesses dos menores, podem os requerentes alterar o acordo em conformidade ou apresentar novo acordo, sendo neste último caso dada nova vista ao Min. Público (nº 2 do art. 1776º-A). E se os requerentes não se conformarem com as alterações indicadas pelo Min. Público e mantiverem o propósito de se divorciar, aplica-se então o disposto no art. 1778.º (nº 4 do art. 1776º-A).
Assim, a homologação deve ser recusada e o processo de divórcio integralmente remetido ao tribunal da comarca a que pertença a conservatória, seguindo-se os termos previstos no art. 1778º-A com as necessárias adaptações.
No caso dos autos, em que o Min. Público emitiu parecer desfavorável ao acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais apresentado pelos requerentes, sendo que estes, mantendo nesse segmento a sua posição, mantiveram também o seu propósito de se divorciarem, o processo foi remetido para o tribunal competente nos termos do art. 1778º do Cód. Civil.
Aqui foi efetuada uma tentativa de conciliação entre os cônjuges, na qual estes declararam que se pretendem divorciar, tendo acordado em que a casa de morada de família fique entregue a ambos e no que toca à regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha menor afirmaram não haver necessidade de efetuá-la porque pretendem continuar a residir na mesma casa em união de facto e economia comum.
Apesar da oposição do Min. Público, por inexistir acordo de regulação do exercício de responsabilidades parentais, o Mmº Juiz “a quo” homologou os acordos celebrados nos autos e decretou o divórcio, por mútuo consentimento, entre ambos os requerentes.
Homologação que é de novo questionada pelo Min. Público, agora através da interposição do presente recurso.
Vejamos então.
O divórcio é, conjuntamente com a morte, uma das duas causas de dissolução e extinção do casamento válido [existente e não anulável ou nulo], nos termos do estatuído no art. 1788º do Cód. Civil.
Ora, a Lei nº 61/2008, de 31.10 introduziu profundas alterações no regime jurídico do divórcio, tendo eliminado a culpa como fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges, expressão que o legislador considerou preferível à anterior designação de “divórcio litigioso”. Deixou assim de existir o divórcio com fundamento na violação culposa dos deveres conjugais, afastando-se a culpa, quer quanto às causas, quer quanto aos efeitos do divórcio.
Na exposição de motivos deste diploma chama-se a atenção para um conjunto de transformações operadas na sociedade portuguesa que “afetam diretamente a forma de encarar e viver o casamento e a família”, salientando as que decorrem dos processos de sentimentalização, individualização e secularização. Considera-se que essas transformações tendem a aproximar os portugueses, nas suas “práticas e representações” da vida conjugal e familiar dos demais países da Europa.[2]
A família tem vindo a tornar-se gradualmente num espaço privado, de exercício da liberdade própria de cada um dos seus membros, na prossecução da sua felicidade pessoal, livremente, entendida e obtida, deixando o casamento de assumir, progressivamente, um carácter institucional, máxime, sacramental, sobretudo na componente da afirmação jurídico-estadual da sua perpetuidade e indissolubilidade, para passar a constituir uma simples associação de duas pessoas, que buscam, através dela, uma e outra, a sua felicidade e realização pessoal, e em que a dissolução jurídica do vínculo matrimonial se verifica quando, independentemente da culpa de qualquer dos cônjuges, se haja já dissolvido de facto, por se haver perdido, definitivamente, e sem esperança de retorno, a possibilidade de vida em comum.[3]
Porém, a questão que se coloca nos presentes autos é diversa e não se prende com a rutura da vida em comum, mas sim com a sua permanência em simultâneo com a pretensão expressa por ambos os requerentes no sentido de se divorciarem por mútuo consentimento.
Isto é, tudo se resume em saber se, face ao nosso ordenamento jurídico, é possível, pela via do divórcio por mútuo consentimento, converter uma situação de casamento em união de facto, o que significaria admitir que pode haver divórcio sem rutura da vida em comum.
Como já se referiu, tem-se vindo assistir ao longo dos últimos séculos à gradual privatização do casamento, que depois de ter sido elevado com o triunfo do Cristianismo a um plano de instituição divina sendo tratado como sacramento, o que postulava a sua indissolubilidade, veio depois a entrar numa senda de secularização que se acentuou a partir da Revolução Francesa que o passou a considerar como mero contrato dissolúvel através do divórcio.
E nos nossos dias acentuou-se esse carácter contratual do casamento que, tendencialmente denunciável, surge cada vez mais próximo da disciplina dos contratos em geral.
Mas mais do que isso, o que se recorta no início do séc. XXI é algo de diferente: é a tendência para a descontratualização da comunhão de vida entre duas pessoas que, colocando-se tão-somente no plano dos afetos não carece de qualquer outra substanciação que não seja o próprio afeto, sendo que este pode ser, em muitas situações, meramente transitório e incapaz de resistir à própria erosão da vida.
Daí que duas pessoas unidas por um sentimento forte no momento em que decidem começar uma vida em comum, mas cientes da própria precariedade que esse vínculo afetivo pode vir a revestir, prefiram hoje, tantas e tantas vezes, à contratualização que o casamento significa, a maior liberdade que uma mera união de facto concede.
Por isso, o casamento é hoje na sociedade portuguesa, em sintonia com a sociedade ocidental, mesmo na perspetiva meramente contratual já despojada da sua natureza sacramental, uma instituição em declínio, como o elucida a diminuição de taxa bruta de nupcialidade que em 1970 era de 9,4 por mil habitantes e em 2017 se reduzia a 3,3 por mil habitantes.[4]
Aliás, das rápidas mutações sociais que se têm vindo a operar nas últimas décadas, resulta que a breve trecho a união de facto será a regra e o casamento a exceção, se não é já essa a situação que atualmente se verifica nas gerações mais jovens, onde o casamento parece ter cada vez menos adeptos.
Neste contexto, se duas pessoas que vivem em união de facto têm toda a liberdade para a qualquer momento converter o seu relacionamento afetivo em casamento, porque não conceder a possibilidade inversa a quem esteja casado de transformar o seu relacionamento afetivo em mera união de facto, descontratualizando-o, e recorrendo para tal efeito à figura do divórcio por mútuo consentimento.
Assim, o divórcio por mútuo consentimento, em que as partes não são obrigadas a revelar o motivo que as levou ao divórcio, não implica, forçosamente, uma prévia rutura da vida em comum e, a nosso ver, ele pode ser decretado mesmo quando entre ambos permaneça uma situação de vida em comum, bastando que a vontade convergente dos dois seja no sentido do divórcio.
É certo que no art. 1775º, nº 1, al. b) do Cód. Civil se exige para a homologação do divórcio por mútuo consentimento acordo referente à regulação das responsabilidades parentais relativas aos filhos menores, mas se os progenitores continuam a viver na mesma casa em união de facto e economia comum não há necessidade de proceder a tal regulação.
Aliás, conforme se argumenta nas alegações de recurso, se duas pessoas que vivem em união de facto com filhos menores não têm que regular as responsabilidades parentais, porque razão haveria que se exigir tal regulação a um casal que por via do divórcio por mútuo consentimento continuará a viver em união de facto, mas agora sem a anterior vinculação matrimonial.
Por conseguinte, entendemos que o Mmº Juiz “a quo”, apesar da oposição do Min. Público, decidiu corretamente ao decretar o divórcio por mútuo consentimento entre B… e C…, mesmo mantendo-se estes em economia comum e união de facto.
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II – Subsidiariamente, o Min. Público nas suas alegações de recurso esgrime com o argumento do uso anormal do processo que deveria ter levado o Mmº Juiz “a quo” a proferir decisão de improcedência do pedido, escudado no art. 612º do Cód. de Proc. Civil.
Dispõe-se o seguinte neste preceito;
«Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes
De acordo com este preceito legal, pode suceder que o processo venha a ser utilizado para a prática de um ato simulado ou para a consecução de um fim ilegal. Ou seja, pode ocorrer simulação processual ou fraude processual.
As partes podem mancomunar-se para, em vez de procurarem o fim normal do processo, conseguirem um resultado real diferente do resultado aparente, ou para alcançarem um objetivo proibido por lei.
No processo simulado as partes estão conluiadas para obter determinado resultado real diverso do resultado aparente do processo; no processo fraudulento há coincidência entre o objetivo real e o objetivo aparente, mas as partes usam de fraude à lei para conseguirem esse objetivo.[5]
Se o juiz se aperceber pela conduta das partes ou por quaisquer circunstâncias da causa, que as partes não estão a pleitear de forma séria, deve obstar a que consigam alcançar o seu objetivo.[6]
Acontece que o Min. Público sustenta que quando duas pessoas casadas querem continuar a fazer vida de casadas mas pretendem dissolver o vínculo conjugal fazem-no “certamente” por razões patrimoniais e, muito comumente, para se subtraírem a responsabilidades que de outro modo se manteriam.
Ora, por tudo o que se expôs em I, considerou-se legítima a pretensão das partes de se divorciarem por mútuo consentimento, continuando, porém, a viver em situação de união de facto.
Por esse motivo, desde logo há a considerar que, na nossa perspetiva, o objetivo visado não é proibido por lei e quanto aos propósitos patrimoniais que o Min. Público imputa às partes eles não passam de meras conjeturas, sem qualquer indício de comprovação.
De resto, se as partes queriam efetivamente fazer uso anormal do processo por motivos patrimoniais, para obstarem a uma eventual inviabilização da sua pretensão, ter-lhes-ia bastado cumprir as exigências que lhes foram feitas pelo Min. Público, apresentando um acordo (esse sim, simulado) relativo à regulação das responsabilidades parentais atinentes à sua filha menor e omitindo qualquer referência à manutenção de uma economia comum e de uma situação de união de facto.
Como tal, não vislumbramos motivo para no caso “sub judice” lançar mão da disciplina prevista no art. 612º do Cód. de Proc. Civil, assim se impondo a improcedência do recurso interposto e a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Min. Público e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida que decretou o divórcio por mútuo consentimento entre B… e C….
Sem custas - art. 4º, nº 1, al. a) do Regulamento das Custas Processuais
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Porto, 25.6.2019
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
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[1] Há aqui um manifesto lapso, uma vez que o divórcio por mútuo consentimento concerne a B… e C….
[2] Cfr. Jorge Augusto Pais de Amaral, “Direito da Família e das Sucessões”, 5ª ed., pág. 186.
[3] Cfr. Ac. STJ de 9.2.2012, proc. 819/09.7 TMPRT.P1.S1, relator Hélder Roque, disponível in www.dgsi.pt.
[4] Dados extraídos de www.pordata.pt.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, reimpressão, 1984, pág. 101.
[6] Cfr. Jorge Augusto Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 12ª ed., págs. 410/411.