Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
622/08.1TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043278
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: REGULAMENTO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP20091203622/08.1TVPRT.P1
Data do Acordão: 12/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO 819 - FLS 238.
Área Temática: .
Legislação Nacional: REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001, DE 22.12.00.
Sumário: I – O conceito de “matéria contratual” deve ser interpretado autonomamente, ou seja, por referência ao sistema e aos objectivos do “Regulamento”, por forma a que fique assegurada a sua plena eficácia.
II – Têm tal natureza as pretensões indemnizatórias por incumprimento do contrato e por rescisão dum contrato de agência comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I. RELATÓRIO.

“B………., S.A.”, com sede na ………., n.º …., ..º, Sala …-…, Porto,

veio intentar acção, sob a forma ordinária, contra

“C……….”, com sede em ………., ………., ………., Itália,
e
“D……….”, com sede em ………., ………., Áustria,

pretendendo a condenação da 1.ª Ré a pagar-lhe a indemnização global de 825.023, 98 euros, enquanto da 2.ª Ré pretende a sua condenação no pagamento dum indemnização também global de 587.038,47 euros, indemnizações essas acrescidas de juros de mora desde a citação até integral liquidação desses quantitativos.

Para o efeito e em síntese, alegou a Autora ter celebrado com a 1.ª Ré acordo verbal, no ano 1977 e na cidade do Porto, por via do qual se comprometeu a promover e a distribuir no país, em regime de exclusividade, em seu nome e por sua conta e risco (dela autora), os equipamentos e acessórios de marca “E……….” produzidos pela mesma Ré;
mais aduziu que o acordo em referência decorreu normalmente e nos termos convencionados entre as partes, com os inerentes fornecimentos daqueles produtos produzidos pela 1.ª Ré e desenvolvendo a Autora actividade que passou pela promoção e venda em exclusivo dos mesmos no país, o que assim também sucedeu com a 2.ª Ré, sociedade associada da 1.ª Ré, por força de “separação” ou “cisão” do negócio desenvolvido pela última, ocorrido em 2005, passando a Autora, com a anuência de ambas, a desenvolver idêntica actividade no que tocava aos equipamentos produzidos pela 2.ª Ré;
adiantou que as relações que dessa forma se vinham desenvolvendo sofreram uma quebra inesperada em meados do ano de 2007, altura a partir da qual ambas as Rés deram início a procedimentos violadores das obrigações por si assumidas no âmbito do mencionado contrato, consistentes nomeadamente no deixar de facultar à Autora os preços actualizados dos seus equipamentos (delas rés), no não envio de informações técnicas sobre esses produtos, na não permissão de demonstrações técnicas de equipamentos “E……….” que a Autora ia vender a clientes por si angariados e na alteração dos prazos de pagamento desses bens, a ponto de em Agosto de 2007 terem manifestado à Autora não estarem interessados em continuar a fornecer-lhe os produtos por si produzidos, sendo que, desde Setembro de 2007, passaram a comercializar os aludidos bens e a prestar a respectiva assistência no país através da sociedade “F……….”;
por último, acrescentou que, face a tal procedimento imputável às Rés, viu-se obrigada a pôr termo, em 25.1.2008, ao aludido contrato com as mesmas celebrado, assistindo-lhe, contudo, o direito de exigir-lhes as correspondentes indemnizações, uma a título de compensação por angariação de clientela e a outra por danos que lhe advieram por via dos apontados comportamentos, tudo no valores globais acima indicados.

Citadas as Rés para os termos da acção, apresentaram contestação conjunta em que, no que aqui importa reter, vieram arguir a excepção de incompetência internacional dos tribunais do país para apreciarem o litígio, pois que, discutindo-se na acção matéria relativa a relação transnacional sujeita à disciplina constante do “Regulamento (CE) n.º 44/01”, os tribunais competentes para aquele efeito eram os do Estado onde aquelas se encontravam domiciliadas – domicílio esse situado fora do país – quer porque, vindo formulada indemnização em consequência da cessação de contrato, isso decorria do estipulado no art. 2, n.º 1 do citado “Regulamento”, quer ainda por, estando em causa relações comerciais estabelecidas entre as partes (diferentes fornecimentos de bens realizados pelas Rés à Autora) cujo cumprimento (entrega ou pagamento) ocorria no domicílio das Rés, tal resultava do estatuído no art. 5, n.º 1, als. a/ e b/ do mesmo “Regulamento”.

Replicou a Autora, rejeitando a procedência da excepção em causa, aduzindo que, estando em discussão um contrato de distribuição ou concessão comercial celebrado no Porto, cujo objecto era a distribuição, comercialização e assistência técnica dos produtos das Rés, a realizar pela Autora em exclusividade no território nacional, sendo os bens recebidos no Porto, onde eram armazenados e depois vendidos pela Autora, assim devendo ocorrer no país o cumprimento das diferentes obrigações decorrentes do mencionado contrato, obrigações essas que, no caso, se traduziam em obrigações pecuniárias, então outra constatação não poderia ser retirada, à luz do citado “Regulamento” (art. 5, n.º 1 al. a/), senão a de que o tribunal internacionalmente competente para dirimir o litígio era onde o mesmo havia sido instaurado – vara cível do Porto.

Findos os articulados, proferiu-se decisão em que, ponderando-se o objecto da causa, se concluiu pela procedência da mencionada excepção de incompetência internacional do tribunal onde havia sido instaurado o litígio, por se entender que para o efeito eram competentes os tribunais dos Estados onde as Rés tinham o seu domicilio, nessa medida estas últimas tendo sido absolvidas da instância.

Inconformada, interpôs a Autora recurso de apelação, tendo concluído as suas alegações nos termos seguintes:

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Contra-alegaram as Rés, pugnando pela manutenção do julgado, desenvolvendo os argumentos que haviam adiantado em sede da sua defesa.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do recurso, sendo que a instância se mantém válida.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

A realidade a atender para o conhecimento do objecto do recurso reconduz-se no essencial ao que alegado foi pela Autora no seu articulado inicial quanto ao invocado negócio celebrado entre as partes para sustentar os pedidos indemnizatórios formulados na acção, tudo em conformidade com o descrito sumariamente no relatório supra.

Já o objecto do recurso se circunscreve à questão de curar saber se o tribunal recorrido é o competente internacionalmente para conhecer do litígio suscitado na acção.

A tal problemática concedeu o tribunal “a quo” resposta negativa, fazendo o cotejo nomeadamente dos arts. 2, 3 e 5 do citado “Regulamento (CE) n.º 44/01” e concluindo que as Rés deviam ser demandadas perante os tribunais dos Estados-Membros onde se situava a sua sede, para o efeito tendo adiantado de mais significativo o seguinte raciocínio:

“…No caso dos autos, não houve qualquer estipulação contratual quanto ao foro, tanto mais que nem sequer existe contrato escrito e a existência do mesmo até é posto em causa pelas Rés (sem relevância para esta questão, como já vimos, pois a mesma se afere pela forma como a autora configura a relação material controvertida).
Por outro lado, não estamos aqui perante qualquer contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, caso em que se aplicaria aquela alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º do Regulamento.
O que temos aqui é, claramente, uma acção destinada a exigir indemnizações pelo não cumprimento, provenientes da resolução do contrato, ou seja, estamos já para além e fora do âmbito do contrato, qualquer que ele fosse, não podendo, portanto, estabelecer-se com segurança, que aliás, não decorre dos autos, qual o lugar onde, na vigência do contrato, a obrigação devesse ser cumprida, nem estando aqui em causa o cumprimento de obrigações, mas sim a indemnização pelo não cumprimento. Ou seja, não se trata aqui de matéria contratual no sentido plasmado no artigo 5.º n.º 1 a) do Regulamento, que permitisse à autora demandar as rés em Portugal, caso fosse esse o lugar onde a obrigação contratual fosse cumprida.
E, não cabendo, também, assim, na previsão do artigo 5.º n.º 1 a) do Regulamento, teremos que nos ater à regra geral do domicílio do réu – as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas perante os tribunais desse Estado …”.

Em ordem a apreciar da justeza da argumentação assim utilizada na decisão recorrida para concluir pela incompetência internacional do tribunal, convém, antes de mais, ter presentes alguns dos pressupostos que delimitam no caso a análise daquela questão.

Assim, o conhecimento da excepção dilatória a que nos vimos referindo deve aferir-se à luz do pedido e da acusa de pedir formulados pelo autor no seu articulado inicial, independentemente do alegado pelo réu na contestação a título de defesa.

Em função disso e atenta a alegação produzida pela Autora na petição inicial, cujo teor sumariamente indicámos no relatório supra, impõe-se a constatação de que na base do litígio está um invocado contrato celebrado entre as partes que poderá ser designado de distribuição comercial ou concessão comercial, em regime de exclusividade, contrato esse que terá sido violado pelas Rés e nessa base vindo no essencial sustentados os diferentes pedidos indemnizatórios contra aquelas deduzidos, ou seja, um pedido de indemnização por angariação de clientela, bem assim aqueloutros por danos decorrentes da violação do acordado no âmbito de tal contrato e que também justificou a declaração da sua resolução por iniciativa da Autora.

Já no que respeito diz às regras da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecimento do litígio assim gizado pela Autora, impor-se-á a aplicação do que estabelecido vem no citado “Regulamento (CE) n.º 44/01 de 22.12.00”, algo que foi referenciado na decisão recorrida e é aceite pelas partes.

Tendo presente estes pressupostos, importa desde já adiantar que a regra geral que decorre daquele “Regulamento” para o aludido efeito assenta num factor de conexão que tem como referência o domicílio do réu (art. 2, n.º 1), podendo, contudo, sobrelevarem critérios especiais a autorizar a demanda duma pessoa domiciliada em determinado Estado-Membro noutro Estado-Membro, como sucederá nos casos em que o objecto do litígio se relacione com matéria contratual (v. arts. 3, n.º 1 e 5. n.º 1, als. a/ e b/ do cit. “Regulamento”), relevando como elemento de conexão o local do cumprimento da obrigação.

Ora, numa primeira observação e porque isso sobrelevou na argumentação utilizada pelo tribunal “a quo” para afastar a competência do tribunal, importa afirmar que a matéria em discussão na acção, ainda que a pretensão ou pretensões deduzidas se relacionem com indemnizações por incumprimento do invocado contrato, não deixa de tratar-se de “matéria contratual” para os termos nomeadamente do prescrito no art. 5, n.º 1, al. a/ do citado “Regulamento”.

Como adverte Lima Pinheiro, a jurisprudência do Tribunal da Justiça das Comunidades (TCE) tem repetidamente firmado jurisprudência no sentido de que o conceito de “matéria contratual” deve ser interpretado autonomamente, ou seja, por referência aos sistema e aos objectivos do “Regulamento”, por forma a que fique assegurada a sua plena eficácia, nessa medida também naquela vindo qualificada de tal natureza as pretensões indemnizatórias por incumprimento do contrato e por rescisão dum contrato de agência comercial – in “Direito Internacional Privado”, Vol. III, págs. 42 a 43 e 81; seguindo idêntica reflexão Teixeira de Sousa e Moura Vicente, no domínio da “Convenção de Bruxelas”, como se anota a fls. 86 a 87, em “Comentário” à mesma.

Nesta perspectiva e ao contrário do raciocínio expendido na decisão recorrida, não seria na base invocada – não se estar diante de “matéria contratual” – que seria de afastar a eventual aplicação ao caso do prescrito no art. 5, n.º 1, al. a/ do “Regulamento”.

Sendo de constatar que o litígio entre as partes se relaciona com “matéria contratual” e devendo equacionar-se para o caso em discussão a previsão contida na al. a/ do n.º 1 do citado art. 5 – anote-se que não faz sentido trazer à colação as hipóteses contidas na al. b/ do n.º 1 do referido artigo, por não estarem em causa diferentes e sucessivos contratos de compra e venda ou prestação de serviços, antes o falado contrato de distribuição comercial, encerrando um complexo e diversificado número de obrigações relacionadas com a sua execução e finalidade última (promoção e distribuição de bens produzidos pelo principal) – coloca-se de imediato uma outra questão, qual seja a que se relaciona com o local a atender para o cumprimento da obrigação.

Trata-se de tarefa não isenta de algumas dificuldades, se nos ativermos às diferentes obrigações recíprocas inerentes ao dito contrato de distribuição, cuja violação vem invocada para justificar a resolução daquele, bem assim os correspondentes pedidos indemnizatórios formulados.

De todo o modo, cremos ser de destacar, em ordem a encontrar uma solução para a problemática em causa, a prestação característica que decorre do mencionado contrato, qual seja a obrigação para a apelante/autora de, além do mais, celebrar no país, com clientes seus ou a angariar, contratos com vista à venda dos bens produzidos pelas Rés, facultando-lhe estas elementos e condições que facilitem aquela actividade de promoção e venda de tais bens.

Para além disso, dever-se-á ter presente que o lugar do cumprimento há-de ser determinado, por princípio, segundo a lei designada pelo Direito de Conflitos do foro, nele se compreendendo necessariamente as normas especiais decorrentes da aplicação do direito material que regule essa matéria – assim, Lima Pinheiro, ob. cit., pág. 83.

E, neste último aspecto, atento o tipo de contrato de que vimos falando, bem assim o momento e o local da sua celebração – alude-se ao ano de 1977 e à cidade do Porto – ter-se-á de ponderar o que a propósito vem estatuído no art. 42, n.º 2, parte final do CC – aplicação da lei substantiva do local da celebração do contrato – perante a ausência de outros elementos que justifiquem uma outra opção, sendo que ao caso, face ao respectivo âmbito temporal, não é possível chamar à colação o disposto na “Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais” ou na “Convenção de Haia Aplicável aos Contratos de Mediação e à Representação”.

Diante destes considerandos e ponderando nomeadamente que a prestação característica do mencionado contrato, como atrás se referiu, incumbe à apelante/autora, a qual devia ser cumprida no nosso país, para tanto se tornando necessária, por sua vez, uma série de prestações a cargo das Rés – entre o mais, informação actualizada dos preços dos bens a fornecer, das suas qualidades técnicas e de condições mais favoráveis para o pagamento desses produtos – as quais, na sua maioria, deviam ser cumpridas no nosso país e, porque assim não terá sucedido, estando na origem da resolução do aludido contrato, com os consequentes pedidos indemnizatórios formulados, a determinarem uma obrigação de natureza pecuniária, cremos que a competência internacional para a apreciação do litígio, tal como vem configurada pela apelante/autora, cabe aos tribunais portugueses.

Na verdade, movendo-nos no âmbito de matéria contratual cuja violação serve para sustentar pedidos indemnizatórios nos termos indicados que, à luz da lei substantiva aplicável ao caso (arts. 42, n.º 2 e 774 do CC), devem ser cumpridos no domicílio do credor, então motivos não se vislumbram para concluir pela incompetência dos tribunais portugueses, o que está, aliás, de acordo com o prescrito no art. 5, n.º 1 al. a/ do citado “Regulamento”.

Retira-se, assim, diferente constatação da extraída pelo tribunal “a quo”, considerando-se improcedente a aludida excepção deduzida pelas Rés, por os tribunais portugueses serem internacionalmente competentes para conhecer da presente acção.

III. CONCLUSÃO.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, nessa medida, revoga-se a decisão recorrida e declara-se o tribunal recorrido competente, em razão da nacionalidade, para conhecer do litígio.

Custas da apelação a cargo das Rés.

Porto, 3 de Dezembro de 2009
Mário Manuel Baptista Fernandes
José Manuel Carvalho Ferraz
António do Amaral Ferreira