Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
322/04.1TAMLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL
CRIME DE BURLA RELATIVO A TRABALHO
CRIME DE ESCRAVIDÃO
Nº do Documento: RP20131127322/04.1TAMLG.P1
Data do Acordão: 11/27/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os Tribunais Portugueses são competentes para julgar crimes cometidos por portugueses contra portugueses angariados em Portugal e cuja acção se estendeu ao território espanhol, levada a cabo pelos mesmos indivíduos.
II – O princípio do juiz natural proíbe a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta. O juiz que deverá intervir em determinado processo penal é “aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os diversos tribunais e a respectiva composição”.
III – O crime de burla relativo a trabalho, previsto no art.º 222º do C. Penal, contém os mesmos elementos do tipo fundamental do crime de burla, exceptuando-se apenas o facto do erro ou engano incidir sobre um facto específico, que é o aliciamento ou promessa de trabalho.
IV – São traços característicos da escravatura:
● O trabalho forçado ou obrigatório, mediante a prática ou ameaça de qualquer tipo de castigo;
● O exercício de um direito de propriedade sobre a pessoa escravizada por parte de outrem, recorrendo a castigos ou a ameaças da sua prática;
● A desumanização;
●A limitação da liberdade de movimentos.
V – Comete o crime de escravatura quem, verificados os restantes elementos do tipo, obteve o trabalho de outrem mediante burla relativa a promessa de trabalho e emprego ainda que não se trate de um trabalho forçado “ab initio”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 322/04.1TALMG, que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Lamego, foi o arguido, B… julgado e condenado em processo comum colectivo, nos seguintes termos:
- «Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo em:
1. Condenar o arguido B… pela prática, em concurso real, de:
- um crime de escravidão (na pessoa de C…), p. e p. pelo art. 159º al. a) do cód. penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; e,
- dois crimes de burla relativa a trabalho ou emprego (nas pessoas de D… e C…), p. e p. pelo art. 222° nº 1 do cód. penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão para cada um dos crimes.
2. Condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
3. Absolver o arguido do segundo crime de escravidão (na pessoa de D…)
4. Condenar o arguido E… pela prática, em concurso real, de:
- dois crimes de burla relativa a trabalho ou emprego (nas pessoas de D… e C…), p. e p. pelo art. 222° nº 1 do cód. penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão para cada um dos crimes.
5. Condenar o arguido na pena única de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
6. Absolver o arguido dos dois crimes de escravidão pelos quais vinha também acusado.
7. Absolver a arguida de todos os crimes pelos quais vinha acusada».
*
Inconformado com a sentença, veio o arguido B… a recorrer nos termos de fls. 493 a 519, tendo apresentado as seguintes conclusões:
«1. O arguido e recorrente encontrava-se acusado da prática de dois crimes de escravidão, crime esse previsto e punido pelo arfo 159°, alíneas a) e b) do Código Penal, em concurso aparente com dois de sequestro, previsto e punido este pelo art 158°, n° 2, alíneas a) e b), dois crimes de coacção agravada, previsto e punido este pelos artº(s) 154°, nº 1 e 143° e 145º nº 1, alínea a) por referência ao artº n° 132°, nº 2, alínea g), e dois crimes de burla relativa a trabalho ou emprego, previsto e punido pelo artº 222°, n° 1, todos do Código Penal, sendo que, foi condenado pela prática de dois crimes de burla relativa a trabalho ou emprego (um na pessoa do D… e outro na pessoa do C…) e de um de escravatura na pessoa do C…a.
2. Não resulta da matéria de facto dada como provada a prática do crime de burla relativa a trabalho ou emprego na pessoa do C…, isto porque, da matéria dada como provada resulta como agente do mesmo o seu irmão, E…, por cuja prática foi também condenado.
3. A Douta decisão em crise violou pois o artº nº 222º do Código Penal, sendo que, o recorrente apenas admite a prática deste ilícito na pessoa do D….
4. O recorrente também devia ter sido absolvido pela prática do crime de escravatura na pessoa do C…, à semelhando do que ocorreu com o D…, pelo que, com a sua condenação em relação a este crime foi violado o artº 159° alínea a) do Código Penal.
5. O Tribunal Judicial de Lamego, e os Tribunais Portugueses, são incompetentes para o Julgamento dos presentes autos, excepção que expressamente se invoca uma vez que, os factos terão pretensamente ocorrido no Reino de Espanha.
6. A Decisão em crise, a ser assim, é também inconstitucional porque viola o princípio do Juiz Natural. Inconstitucionalidade que expressamente se invoca, uma vez que foi Julgado por quem não tinha competência territorial e internacional para proceder ao Julgamento.
7. Foi a morada do recorrente da cidade de Vigo justamente a indicada para prestar termo de identidade e residência, eram os Tribunais espanhóis, mais concretamente os que coincidiriam com o alegado local da prática dos factos imputados ao arguido, competentes para proceder ao ligamento dos mesmos.
8. O supra exposto deverá conduzir à anulação do Julgamento e à declaração de incompetência territorial e internacional para o Julgamento dos factos sub judice, sendo que expressamente se invoca tal excepção e bem assim da violação do princípio Constitucional do Juiz natural.
9. A Douta Sentença (acórdão) em crise, e salvo o devido respeito, não tem sustentáculo, nem de facto nem de direito, que suportem a condenação do arguido, nomeada e concretamente, em relação ao crime de escravatura.
10. Não resulta da prova carreada para os autos que o arguido tenha reduzido o C… ao estado ou condição de escravo, pelo que não se encontra verificado o crime de escravatura.
11. Salvo o devido respeito por diversa opinião, a matéria de facto dada como provada (e embora como se tentará demonstrar existe matéria mal apreciada e julgada e bem assim de outra que é relevante e à qual não foi dada relevância), não é susceptível de preencher o tipo legal de crime por cuja prática o arguido foi condenado.
12. Entre outros, o n° 44 dos factos provados encontra-se incorrectamente julgado porque consta do documento do Hospital …, na cidade de Vigo, em Espanha, dia em que o C… deu entrada naquela unidade Hospitalar e quanto tempo permaneceu internado é aí referido que o paciente, além da patologia que motivou a Intervenção cirúrgica estava em estado normal pelo que uma extrapolação, sem qualquer fundamento ou sustentáculo médico, concluir que uma intervenção cirúrgica a uma úlcera é uma consequência directa e necessária das suas condições de trabalho, pelo que este ponto deveria, com base no mesmo documento médico, constar da matéria não provada.
13. Este ponto ou este nexo de causalidade, deveria constar da matéria não provada, e da matéria de facto provada deveria constar tudo o que atesta o documento médico, nomeadamente em relação ao estado geral do paciente e em relação ao período de internamento.
14. Não se vislumbra diferença em relação à relação existente entre o arguido e o ofendido C… que motivasse a absolvição do arguido em relação ao primeiro e não em relação ao segundo, nem tão pouco diferença de comportamentos entre o recorrente e os restantes co-arguidos, que foram absolvidos, em relação ao C…, a pergunta que se impõe ndo que, o que determinou a absolvição destes deve determinar a absolvição do arguido em relação à prática deste crime.
15. Assim, relativamente ao C… apenas o recorrente foi condenado, mas tal não se deveria ter verificado, encontrava em idêntica situação em relação aos restantes co-arguidos, pelo que foi violado o princípio da igualdade, e se dúvidas ainda se verificassem relativamente à prática do crime pelo arguido, sempre seria de aplicar o principio in dubio pro reo, o que não se verificou, tendo o mesmo sido violado.
16. Assim, desde logo fica a interrogação do que era diferente, em termos da verificação deste ilícito, da situação em Zamora e da situação em Vigo, uma vez que em Zamora não se terá verificado a prática de qualquer crime de escravatura, daí que o E… tenha sido absolvido da prática deste crime.
17. Resulta da prova globalmente considerada, dos depoimentos dos arguidos, do ofendido D… e do próprio C…, que o C… não estava sujeito a uma situação de escravo. No entanto subsistem elementos que são importantes para ajuizarmos ou não da situação de “escravo” e que indiciam a sua não verificação pois o ofendido C… mantinha a sua documentação pessoal, mais a mais que resulta mesmo da matéria provada que terá enviado o seu cartão de identidade pelo D…, sendo que se a intenção do arguido fosse reduzi-lo a uma mera coisa não faria grande sentido manter na posse daquele os seus documentos de identificação.
18. Por outro lado resultou provado que o ofendido esteve, em 2003, 10 dias internado em estabelecimento hospitalar, e foi o arguido que o levou para o Hospital, pelo que, foi o arguido quem curou que fossem prestados cuidados médicos ao ofendido, cuidados esses que lhe foram prestados.
19. O ofendido, se fosse sua intenção, podia ter denunciado a sua situação caso correspondesse ao cenário quase “Dantesco” que depois veio retratar, mais a mais porque teve momentos a sós com o pessoal médico e de enfermagem, sem que tivesse o arguido ou seus familiares presentes, sendo que decorre de um juízo do censo comum que, só não o fez porque não o pretendeu fazer.
20. Além do mais, consta da matéria provada que o ofendido C… trabalhava (ponto 38 dos factos provados), trabalhava com um horário fixo, embora não se aceite que iniciasse a sua jornada laboral às 07 horas, na sucata o arguido o que traduzirá mais uma relação laboral (injusta sim), do que uma situação de escravatura.
21. Os pontos 60° e 61° da matéria assente encontram-se incorrectamente julgados, ponto 60° apresenta-se parcialmente conclusivo, quando refere que o ofendido era mantido numa situação de total submissão. Ora, a “total submissão” é uma conclusão, sendo que a mesma não se encontra alicerçada em factos. Não se vislumbra em que factos se sustenta esta Conclusão ou juízo.
22. Ainda em relação a este ponto, no seu depoimento, o arguido B… sempre manteve que nunca exerceu violência física sob o C…, e que nunca o intimidou ou atemorizou, o que também resultou do depoimento do D….
23. Não resulta da matéria de facto que se encontrava provada factualidade que sustente a condenação do arguido por um crime de escravatura, pelo que foi violado o arfo 159° do Código Penal.
24. É elemento essencial para o preenchimento do tipo legal de crime não apenas a falta de liberdade de movimentos, mas também outras manifestações de liberdade (de decisão, de acção, sexual, religiosa, etc.), mas a negação da raiz de todas as expressões da personalidade humana (liberdade, honorabilidade, etc), que é dignidade humana. A escravidão é a destruição da dignidade ou personalidade humana e, portanto constitui um verdadeiro “homicídio” moral, que, com todo respeito, não se encontra “ verificado no caso em apreço, não obstante a censura ética de vários comportamentos que o arguido manteve.
25. Não se encontram verificados os pressupostos supra mencionados conducentes à verificação do ilícito de escravatura, por cuja prática o arguido foi condenado.
Assim deverá a decisão recorrida, ser revogada, e substituída por outra que o absolva da prática de um crime de escravatura na pessoa de C…, e bem assim, que o absolva da prática do crime de burla relativa a trabalho ou emprego na mesma pessoa.
Assim, V. Exas, Venerandos Desembargadores, decidirão com Justiça».
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O Ministério Público em 1ª Instância respondeu liminarmente nos termos de fls. 523/524, defendendo a improcedência do recurso na sua totalidade e a confirmação da sentença recorrida.
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Neste Tribunal, o Exº Procurador-Geral Adjunto, emitiu o parecer de fls. 527 a 533, pronunciando-se pela improcedência do recurso.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[1].
Objecto do recurso
Considerando as conclusões apresentadas importa apreciar e decidir as seguintes questões:
- Incompetência territorial e internacional do Tribunal de Lamego;
- Erro de julgamento – impugnação da matéria de facto sob os nº 44, 60 e 61;
- Pressupostos do crime de burla relativa a trabalho;
- Pressupostos do crime de escravidão.
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FACTOS PROVADOS
Foram dados como provados os seguintes factos:
1. O arguido B… é casado com a arguida F… (segundo a lei cigana) e, além de explorar um depósito de sucata, junto à sua habitação, sita em Rua …, …, nº .., …, Vigo, dedica-se, durante os meses de verão, a explorar diversões nas feiras e festas populares em Espanha e Portugal, cumulando tais actividades com a vindima e à apanha da maçã, na época respectiva.
2. Por sua vez, o arguido E…, irmão do arguido B…, dedica-se à venda de brinquedos e à exploração de diversões, nas feiras e festas populares, em Espanha, bem como à recolha de sucata, cumulando tais actividades com a vindima.
3. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos a partir do mês de Maio de 2000, E… e B… decidiram organizar-se com vista a angariarem trabalhadores portugueses, com o objectivo de obterem mão-de- obra gratuita nas actividades que exploravam e de obterem ganhos económicos com o dinheiro que os mesmos auferissem nas actividades agrícolas.
4. Na execução de tal plano, o arguido E…, pelo menos uma vez acompanhado do seu irmão B…, deslocou-se a Portugal para recrutar trabalhadores portugueses, transportou-os para Espanha e instalou-os em barracas ou camiões dentro da propriedade do arguido B….
5. O arguido E… seleccionou trabalhadores portugueses que integravam famílias com dificuldades económicas e com pouca formação escolar, prometendo-lhes avultadas quantias em dinheiro em Espanha através de promessas de emprego bem remunerado.
6. Era ainda o arguido E… quem controlava os trabalhadores angariados quando estes estavam nos trabalhos agrícolas, era quem recebia, dos proprietários dos campos, as quantias monetárias que aqueles auferissem na actividade agrícola.
7. Por sua vez, o arguido B… recebeu os trabalhadores, alojou-os em camiões e distribuiu-os pelas várias actividades que desempenhava, como sejam festas populares, vindimas e na sucata que explorava.
8. A arguida F… desempenhava tarefas de lide doméstica.
9. Assim, na execução do plano delineado, em data não concretamente apurada do mês de Maio de 2000, o arguido E…, juntamente com o arguido B…, deslocou-se a Portugal, a fim de angariar trabalhadores portugueses.
10. Nessa altura, deslocaram-se a Lamego, onde abordaram o ofendido D… e lhe propuseram trabalho em Espanha, na montagem de diversões em festas e feiras populares, em Espanha, durante o período de um mês.
11. Como forma de o aliciarem, prometeram-lhe uma remuneração diária de cinco contos - € 25,00 -, por um período de trabalho de 8 horas, com alimentação, transporte e alojamento, mas em contrapartida teria de partir imediatamente.
12. Como o ofendido D… se encontrasse desempregado e sem perspectivas de trabalho e perante as condições propostas, de imediato aceitou deslocar-se com os arguidos para Espanha.
13. Para o efeito, os arguidos conduziram o ofendido até ao veículo automóvel em que se faziam transportar, de marca Renault, modelo .., de cor branca e de matrícula espanhola, dirigindo-se de imediato a Espanha, sem que aquele contactasse, sequer, com os seus familiares.
14. Ao chegar a Espanha, o ofendido foi conduzido até à residência do arguido B… e F…, sita na Rua …, nº .., …, …, Vigo.
15. Uma vez aí, ficou instalado num camião, pernoitando em pequenos colchões, colocados num beliche de ferro, que se encontrava no contentor do referido camião.
16. O arguido trabalhou então durante alguns meses na montagem e desmontagem de diversões em feiras e festas populares em diversos locais de Espanha, cumulando tal actividade com a recolha e separação de sucata e, ainda, com a realização de trabalhos agrícolas na horta pertencente ao arguido B…, numa jornada diária de cerca de 8 a 10 horas.
17. O ofendido D… nunca recebeu qualquer remuneração pelo desempenho das funções acima referidas, sendo que, por vezes, ao domingo, o arguido B… lhe entregava cerca de mil escudos, (€ 5,00).
18. Como a temporada das festas populares tivesse terminado e como já não necessitassem do ofendido D… na montagens e desmontagem das diversões, o ofendido D… foi transportado para a zona de Zamora, a fim de trabalhar nas vindimas.
19. Naquela zona, o ofendido D… ficou instalado num largo, nas imediações das "…", numa barraca, juntamente com outros trabalhadores, também controlados por E… e cujas identidades não foi possível apurar.
20. Durante o período que permaneceu em Zamora, o ofendido D… só saía para ir trabalhar para os campos agrícolas e sempre sob vigilância do arguido E… ou outros indivíduos de etnia cigana, cuja identidade não foi possível apurar.
21. O ofendido D… permaneceu nas condições supra referidas até Janeiro de 2001, altura em que conseguiu encetar a fuga para Portugal.
22. Em data não concretamente apurada, mas durante o mês de Setembro de 2000, e como o arguido E… necessitasse de mais mão-de-obra para as vindimas, deslocou-se a Portugal, a fim de angariar trabalhadores portugueses.
23. Nessa altura, deslocou-se a Lamego, onde abordou o ofendido C… e lhe propôs trabalho, nas vindimas, em Espanha, durante o período de um mês.
24. Como forma de o aliciar, prometeu-lhe uma remuneração diária de 4.000$00 € 20,00, com alimentação, transporte e alojamento, e ainda, folga aos sábados e aos domingos, mas em contrapartida teria de partir imediatamente.
25. Perante as condições propostas, de imediato aceitou deslocar-se com o arguido para Espanha.
26. Para o efeito, o arguido conduziu o ofendido até ao veículo todo-o-terreno, em que se fez transportar até Portugal, cuja marca e modelo não foi possível apurar, de matrícula espanhola, e dirigiu-se de imediato a Espanha, sem permitir que aquele contactasse com os seus familiares.
27. Ao chegar a Espanha, o ofendido foi conduzido até à residência do arguido B… e F…, sita na Rua …, nº .., …, …, Vigo.
28. Depois, o arguido E… conduziu o ofendido C… até Zamora, local onde se realizava a vindima.
29. Uma vez aí, o ofendido C… juntou-se a outros trabalhadores que ali se encontravam e cujas identidades não se logrou apurar.
30. Naquele local, o ofendido C…, bem como todos os outros trabalhadores que ali se encontravam, eram constantemente controlados e vigiados, quer pelos arguidos, quer por outros indivíduos de etnia cigana.
31. Diariamente, deslocavam-se àquele local indivíduos de nacionalidade espanhola, proprietários de explorações agrícolas, os quais acordavam com os arguidos o número de trabalhadores que necessitavam, bem como a remuneração correspondente a cada trabalhador.
32. Depois de acordada a prestação de trabalho, o ofendido C… e outros trabalhadores eram transportados até aos campos agrícolas, onde trabalhavam das 08H00 às 17H00, com paragem para o almoço.
33. Como a jornada de trabalho terminasse pelas 17H00, os trabalhadores eram de novo conduzidos ao acampamento dos arguidos, onde permaneciam até ao dia seguinte.
34. Tal situação manteve-se durante cerca de um mês, nunca tendo o ofendido C… recebido qualquer remuneração pelo trabalho prestado e sem que tivesse podido gozar qualquer descanso ao sábado, domingo ou feriado.
35. Como a época das vindimas tivesse terminado, os arguidos decidiram, então, dedicar-se a fornecer a mão-de-obra para a apanha da fruta, obrigando o ofendido C… e outros trabalhadores a prestar serviço na mencionada actividade.
36. Durante a época da apanha da fruta, o ofendido C… trabalhava das 08H00 às 17H00, sem que alguma vez tivesse sido remunerado por qualquer forma, ali se mantendo com promessas de remunerações elevadas, findo que se encontrasse todo o trabalho.
37. Entretanto e como tivesse acabado a época da apanha da fruta, o arguido E… transportou o ofendido C… até à residência do seu irmão, o arguido B…, sita na Rua …, nº .., …, …, Vigo, onde o deixou e lhe disse que a partir daquele momento passaria a trabalhar ali.
38. Aí, o ofendido C… era obrigado a trabalhar das 07H00 às 19H00, na sucata de B….
39. Em data não concretamente apurada, e como o ofendido D…, com quem o ofendido C… tinha já travado conhecimento, se preparasse para fugir, foi abordado por este no sentido de o acompanhar.
40. Como o ofendido D… tenha recusado ser acompanhado, o ofendido C… solicitou-lhe que levasse o seu bilhete de identidade consigo e fizesse queixa às autoridades portuguesas, ao que aquele acedeu.
41. Como o arguido B… se dedicasse ainda à exploração de diversões, durante a época das festas populares, o ofendido C… era ainda obrigado a acompanhá-lo pelas várias festividades e a montar e desmontar os divertimentos que aquele explorava.
42. Como nessa época, viajasse por várias localidades de Espanha, o ofendido C… tentou por várias vezes encetar a fuga, sem que conseguisse contudo lograr os seus intentos, pois o arguido B… sempre o conseguiu interceptar.
43. Após as tentativas de fuga falhadas, o ofendido C… foi alvo de agressões, por parte do arguido B…, que lhe desferiu murros e pontapés em várias partes do corpo, retaliando assim pela tentativa de fuga.
44. Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2003, como consequência directa e necessária das condições de trabalho a que estava sujeito, teve o ofendido C… de ser submetido a uma intervenção cirúrgica, na sequência da ruptura de uma úlcera, tendo o arguido B… conduzido o arguido ao Hospital …, em Vigo, ….
45. Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2004, o ofendido C… travou conhecimento com G…, o qual trabalhava igualmente para os arguidos.
46. Como o ofendido C… não aguentasse mais a situação em que se encontrava, decidiu fugir para Portugal.
47. O ofendido C… apanhou o comboio desde o Porto até à Régua.
48. Como desse pela fuga do ofendido C…, o arguido B…, de imediato seguiu no seu encalço, tentando dessa forma impedir que aquele conseguisse chegar até às autoridades portuguesas.
49. Assim, o arguido B… dirigiu-se até à estação de comboios da Régua, onde esperou pela chegada do ofendido C….
50. Uma vez aí e como tivesse visto aquele a sair do comboio, de imediato o abordou e constrangeu a entrar na sua viatura.
51. Como o ofendido C… oferecesse resistência e se encontrassem no local vários transeuntes, o arguido B… temendo ser identificado, acabou por deixar o ofendido seguir o seu destino.
52. Durante todo o período em que os ofendidos trabalharam para os arguidos nunca auferiram qualquer tipo de remuneração pelo seu trabalho.
53. Os ofendidos viveram na propriedade dos arguidos B… e F… dentro de um camião sem quaisquer condições de habitabilidade, de higiene e de salubridade, em condições indignas e miseráveis.
54. A dada altura, o ofendido C…, para saciar a sua fome, teve necessidade de se acercar da arca congeladora que existia na residência dos arguidos B… e F… e dali retirar um frango que depois comeu cru.
55. Os ofendidos faziam todas as suas necessidades fisiológicas ao ar livre, no campo, e só podiam tomar banho de água fria.
56. Com a conduta supra descrita, os arguidos B… e E… agiram com o propósito concretizado de obter mão-de-obra gratuita e de beneficiarem do trabalho das vítimas, sem que, em contrapartida, lhes dessem qualquer tipo de retribuição.
57. Agiram os arguidos B… e E… com o propósito concretizado de obter lucro, através do fornecimento de mão-de-obra, para as explorações agrícolas espanholas, auferindo todos os proventos que seriam devidos aos trabalhadores e que aqueles nunca obtiveram.
58. Estes dois arguidos sabiam que as vítimas que recrutaram só iriam para Espanha se os aliciassem com a possibilidade de os mesmos auferirem rendimentos elevados. Pelo que, não se coibiram de os enganar, dizendo-lhes que, em contrapartida pelo seu trabalho iriam receber além de salário elevado, alojamento e alimentação, não obstante soubessem de antemão que não lhes entregariam tais quantias.
59. Os arguidos B… e E… só procuravam homens com dificuldades económicas e com baixa formação escolar, pois sabiam que as condições, económicas, sociais e familiares em que os mesmos estavam inseridos facilitariam e possibilitariam o seu recrutamento para as actividades que exploravam.
60. O arguido B… não se coibiu de usar a força física contra o ofendido C… e de o atemorizar e intimidar, para assim o impedir de fugir e para o obrigar a obedecer a todas as suas instruções, mantendo-o numa situação de total submissão.
61. O arguido B… decidiu que o ofendido C…, uma vez chegado à sua residência, em Espanha, ficaria sob o seu domínio e total dependência, não tendo qualquer liberdade de movimentos, o que conseguiu.
62. Os arguidos B… e E… agiram deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as condutas supra descritas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se apurou que:
63. O arguido B… e F… são casados segundo a lei cigana e têm 4 filhos, dois maiores e dois menores de idade, três dos quais vivem consigo.
64. O arguido B… trabalha nas feiras e já pouco negócio faz nas sucatas; aufere cerca de € 200 a € 400 por mês; estudou até ao 6° ano em Espanha, para onde foi viver com um ano de idade.
65. A arguida F… é doméstica.
66. O arguido E… é solteiro e tem 5 filhos, três maiores e dois menores; vive em união de facto com a companheira e dois filhos; aufere cerca de € 300/€ 400 euros por mês; foi viver para Espanha com 3 anos de idade e estudou até à 2ª classe.
67. Os arguidos não possuem antecedentes criminais registados em Portugal.
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Factos não provados:
a. Em primeiro lugar, diga-se que os ofendidos chegaram a viver juntos em casa dos arguidos B… e F…, pelo que o tribunal sentiu necessidade de agrupar alguns dos factos descritos na acusação, referentes às condições em que viveram, como sejam os seus pontos 19 e 60.
b. A arguida F… decidiu organizar-se com os outros arguidos com vista a angariarem trabalhadores portugueses, com o objectivo de obterem mão-de-obra gratuita nas actividades que exploravam e de obterem ganhos económicos com o dinheiro que os mesmos auferissem nas actividades agrícolas.
c. O arguido E… exercia violência física e psicológica para obrigar os ofendidos ao exercício das actividades agrícolas.
d. A arguida F… desempenhava tarefas de vigilância e controlo dos trabalhadores angariados.
e. Como o ofendido D… estivesse já instalado, o arguido B…, de imediato se dirigiu aquele e, em tom de voz grave e com foros de seriedade avisou-o de que não poderia falar com ninguém exterior à residência ou sequer ausentar-se do perímetro da mesma.
f. A alimentação do ofendido C… consistia nas sobras das refeições dos arguidos E…, B… e F….
g. O ofendido D… foi transportado para a zona de Zamora pelo arguido E…,
h. O arguido E… acompanhava sempre os trabalhadores em Zamora, munido com caçadeiras e outras armas cujas características não se logrou apurar, para dessa forma intimidar e impedir que algum daqueles encetasse a fuga.
i. Não obstante os inúmeros pedidos e insistências do ofendido D… para poder voltar a Portugal, nunca os arguidos o permitiram, recorrendo a ameaças contra a sua vida e a sua integridade física e a um clima de intimidação constante.
j. O ofendido D… temesse represálias por parte dos arguidos.
k. O momento em que foi abordado cá em Lamego, o ofendido C… encontrava-se desempregado e sem perspectivas de trabalho.
l. O ofendido C… pernoitou a sua primeira noite em Espanha num veículo abandonado que se encontrava na propriedade do arguido B….
m. Em Zamora, o arguido E… "obrigou" o ofendido C… a juntar-se a outros trabalhadores portugueses e instou-os a montar as barracas onde os mesmos iriam pernoitar e confeccionar as suas refeições.
n. Os trabalhadores eram "obrigados" a permanecer até ao dia seguinte, sem que se pudessem ausentar ou deslocar para qualquer outro local.
o. Como forma de os manter no acampamento, os arguidos vigiavam constantemente os trabalhadores portugueses, circulando pelo acampamento munidos de armas caçadeiras, cujas características não foi possível apurar.
p. O ofendido C… e outros trabalhadores foram "obrigados" a prestar serviço na apanha da fruta, sem que pudessem abandonar o acampamento.
q. Naquela altura da apanha da fruta, os arguidos impediram o ofendido C… de partir, utilizando para o efeito ameaças contra a sua integridade física e a sua vida e agredindo-o com murros e pontapés em várias partes do corpo.
r. Em data não concretamente apurada e como C…, persistisse nos seus intentos de voltar a Portugal, o arguido E…, munido de um pau, desferiu naquele uma pancada na cabeça, ao mesmo tempo que lhe disse, em tom de voz grave e com foros de seriedade: "vais ficar aqui até ser velho".
s. Na propriedade do arguido B…, o ofendido C…, findo que estivesse o período de trabalho, era mantido num quarto fechado, do qual só saía no dia seguinte, quando lhe reabriam a porta.
t. Os arguidos E… e F… conseguiram interceptar o ofendido C… quando este tentou a fuga.
u. Após as tentativas de fuga falhadas, o ofendido C… foi alvo de agressões por parte dos arguidos E… e F….
v. O ofendido C… recusou-se a acompanhar o ofendido D… (antes foi este que recusou ser acompanhado).
w. O ofendido C… foi conduzido ao Hospital … também pelo arguido E….
x. O ofendido C… travou conhecimento com G… por ocasião de uma festa popular.
y. O ofendido C… solicitou a G… que lhe prestasse auxílio na fuga, tendo aquele acedido.
z. Assim, G… transportou o ofendido C…, no seu camião até Vigo, local onde lhe entregou a quantia necessária para que aquele pudesse adquirir o bilhete de comboio até à Régua.
aa. Os arguidos não se coibiram de usar a força física contra o ofendido D… e de o atemorizar e intimidar, para assim o impedir de fugir e para o obrigar a obedecer a todas as suas instruções, mantendo-o numa situação de total submissão.
bb. Os arguidos E… e F… não se coibiram de usar a força física contra o ofendido C… e de o atemorizar e intimidar, para assim o impedir de fugir e para o obrigar a obedecer a todas as suas instruções, mantendo-o numa situação de total submissão.
cc. Os arguidos E… e F… decidiram que as vitimas, uma vez chegadas ao território espanhol, ficariam sob o seu domínio e total dependência, não tendo qualquer liberdade de movimentos, o que conseguiram.
dd. A actuação dos arguidos E… e F… reveste-se de uma total ausência de valores éticos e sociais, sendo devastadora nas consequências que a sua actividade implica para as vítimas, quer no que respeita à sua integração na sociedade enquanto seres humanos com o mínimo de dignidade, quer no que respeita à sua auto-estima.
ee. A arguida F… agiu com o propósito concretizado de obter mão-de-obra gratuita e de beneficiar do trabalho das vítimas, sem que, em contrapartida, lhes desse qualquer tipo de retribuição; ou que agiu com o propósito concretizado de obter lucro, através do fornecimento de mão-de-obra, para as explorações agrícolas espanholas, auferindo todos os proventos que seriam devidos aos trabalhadores e que aqueles nunca obtiveram; ou que agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
ff. Por fim, diga-se que a matéria constante do ponto 66 da acusação pública é de teor conclusivo e será uma ilação a retirar dos demais factos provados.
*
A convicção do tribunal.
«A convicção do tribunal resultou da conjugação de todas as declarações prestadas em sede de audiência com a documentação junta aos autos.
Em primeiro lugar, temos as declarações dos arguidos.
O arguido B… começa por afirmar que se juntou com a arguida F… há cerca de 24 anos; possuem um depósito de sucata; negoceia sucata; cumula com as festas populares; dedicou-se às vindimas de 2000 a 2002; tinha também dois insufláveis, tipo trampolim, que montava nas feiras populares e o C… ajudava-o; o irmão mora ao seu lado e vende brinquedos nas feiras e nada tinha a ver com sucatas ou vindimas,
Aliás, ele e o irmão nunca vieram juntos a Portugal; a dado momento, o irmão disse que ia pagar uma promessa à … trouxe o C…; estava em Zamora quando ele chegou lá com o C… a dizer que queria trabalhar; por esta altura, já lá estava com ele o D….
O arguido refere que encontrou o D… no meio do café e até lhe pagou um fino; perguntou-lhe se precisava de trabalho na vindima a €20,00 por dia de segunda a sábado e ele mostrou-se interessado; foi em Setembro de 2000; conversaram durante alguns 30 minutos; disse-lhe que era só por 15 dias e que ia dormir em sua casa; ele estava divorciado; saiu então do café e entrou logo no carro, que era um Renault …, matrícula espanhola.
O arguido vive em Espanha desde tenra idade e tem de facto um camião, onde dormem os seus filhos; lá chegado, ficou instalado em casa, onde trabalhou até Outubro; depois, foram para as vindimas em Zamora, onde estiveram cerca de 15 dias; foi nesta altura que chegou o C… lá às vindimas; afirma que os donos das vinhas rogavam todos os anos por gente que quisesse trabalhar. Em Zamora, dormiram no seu camião, o qual tinha um toldo forrado com um tapete; não tinha casa de banho; tinha um beliche onde dormiam duas pessoas; num camião, dormia o arguido, a mulher e os seus 4 filhos, com 23, 21, 17 e 8 anos; no outro camião, estavam eles os dois; por vezes, trabalhavam 10 e 12 horas por dia e outras vezes, uma ou duas horas; por norma, o horário era entre as 8 horas da manhã e as 5 horas da tarde; paravam a meio da manhã e ao almoço, dado pelo dono da vinha.
Às vezes, dava-lhes € 5 a € 10 quando estivesse em sua casa; nas vindimas, dava-lhes € 20; quando lhe fazia falta o dinheiro, até lhes deu mais.
O irmão também lá estava e dormia num outro camião sua propriedade; estava lá mais gente a trabalhar, como sejam romenos e búlgaros; não se recorda de outros portugueses, mas de qualquer forma nenhum deles trabalhava para si; a ele, davam-lhe € 30,00/dia e era deste dinheiro que retirava para lhes pagar; o almoço era por conta dos donos das vinhas; recebiam à semana e depois acertavam as contas com os trabalhadores.
No final das vindimas, voltaram para sua casa e disse-lhes que poderiam regressar a casa, mas eles não quiseram; iam ao café à noite. O D… esteve lá até Janeiro de 2001; ele disse que queria vir embora e o arguido levou-o à estação dos comboios a Vigo; pagou-lhe o bilhete até ao Porto; pagou-lhe €20 diários pelas vindimas, num total de €200 a €300; ainda em Zamora, depois das vindimas, dedicaram-se à apanha da fruta ali também no local, mas para outros proprietários.
O C… dormia num quarto anexo à casa; durante cerca de um mês, dormiam lá os dois e depois ficou o C… sozinho, porque só lá tinha trabalho para uma pessoa; pagavam-lhe € 5 ou € 10 por dia; o C… ajudava-os nas feiras a apanhar os bilhetes, em várias localidades de Espanha e também em Monção, Valença e Caminha; o C… esteve lá até Junho de 2003 ou 2004.
Confirma que o levou ao Hospital, onde permaneceu durante 15 ou 20 dias (o arguido já lhe tinha dado o cartão de saúde); ia lá visitá-lo e ligava para o telemóvel.
O G… era motorista de um carro mais pequeno que trabalhava para si; só lá esteve um mês; o G… transportou o C… até Vigo.
Numa determinada altura, quando estavam em …, que fica perto de Sanxenxo, faltaram-lhe € 300 (era o dinheiro para dar ao G…); não disse que foi o C… nem que não foi; desconfiou que pudesse ter sido ele a tirar o dinheiro e ele não gostou, começou a dizer que não tinha sido ele; começou a caminhar pela feira fora e nunca mais o viu; deixou tudo para trás, um telemóvel, roupas e calçados.
Sobre a sua mulher (arguida F…), refere que fazia as lides domésticas e ajudava na vindima.
Relativamente às suas condições sócio-económicas, afirma que tem 4 filhos, dois maiores e dois menores; trabalha nas feiras; já pouco negócio faz nas sucatas; aufere cerca de €200 a €400 por mês; a sua esposa é doméstica; estudou até ao 6° ano em Espanha; foi viver para lá com um ano de idade; vive com a esposa e três filhos.
Quanto ao arguido E…, diz que sempre viveu próximo do seu irmão, morando a cerca de dois quilómetros; veio a Lamego também pagar uma promessa à …, como faz todos os anos; o C… pediu-lhe uma moeda, porque andava a arrumar carros; ele perguntou-lhe se estava desempregado, conversaram um pouco, foi pagar a promessa e depois convidou-o a ir com ele para as vindimas, a € 20 por dia.
O C… estava chateado com a família, por isso arrancou logo consigo para Zamora (não se recorda contudo se foram directos); andavam lá muitos outros trabalhadores romenos, búlgaros e alguns portugueses. Nas vindimas, foi ele quem pagou ao C… e deu-­lhe alguns € 300; e quando ele pedia, ia dando algum adiantado, para ir ao café ou ao supermercado; € 30 por dia e por cabeça era o preço combinado nas vindimas com os proprietários dos terrenos agrícolas, sendo eles quem recebiam o dinheiro que utilizavam para depois pagar.
A cunhada (arguida F…) tratava das lides domésticas e ajudava no que fosse preciso; foram ainda a tal semana para a fruta; depois, ele foi para Monção e o irmão foi com o C… e o D… para sua casa; ainda viu o D… mais uma ou duas vezes e depois deixou de o ver, encontrava o C… em casa do irmão e outra vezes nas feiras; chegou a ir visitar o C… por duas ocasiões ao Hospital.
Quanto às suas condições sócio-económicas, refere que é solteiro e tem 5 filhos, três maiores e dois menores; vive em união de facto com a companheira e dois filhos; aufere cerca de €300/€400 euros por mês; foi viver para Espanha com 3 anos de idade e estudou até à 2ª a classe.
*
Após a tomada de declarações a estes dois arguidos, facilmente se conclui que não assumem os mesmos responsabilidade pelos factos que lhes são imputados na acusação pública - reconhecendo que os ofendidos D… e C… estiveram a trabalhar em Espanha, apressam-se a esclarecer que o fizeram de livre e espontânea vontade, nunca lhes sendo limitados, por qualquer forma, os seus movimentos, recebendo tudo aquilo a que tinham direito.
E também as condições em que viveram eram aquelas que, também eles, em cada momento, experimentavam nos locais para onde se deslocavam.
A realidade é, porém, algo diferente, sobretudo quando analisamos o comportamento do arguido B… que permaneceu muito mais tempo com o ofendido C….
Na análise dos depoimentos, comecemos neste caso pela testemunha H…, inspector da PJ, que integra a Directoria do Norte e investiga este tipo de situações.
Afirma que se começaram a aperceber que muitas pessoas desaparecem sem origem definida e acabam por ser vítimas de tráfico de pessoas, sendo que os ofendidos C… e o D… encaixam no perfil de pessoas com capacidade diminuída para entender e de se defender, pelo que são os alvos preferenciais deste tipo de condutas; as pessoas são obrigadas a permanecer em determinados locais e a trabalhar contra a sua vontade.
Sobre o caso concreto, afirma que tiveram conhecimento do ofendido C… através do outro senhor que entretanto conseguiu regressar a Portugal.
Na verdade, I…, 60 anos, cantoneiro de limpeza, irmão do ofendido C…, esclarece que o irmão desapareceu e ele comunicou às autoridades o desaparecimento; mais tarde, passados alguns 4 meses, apareceu um senhor (D…) com o bilhete de identidade do seu irmão e lhe contou que ele estava preso em Espanha; foi então à polícia e foram feitas diligências, mas o irmão só apareceu anos mais tarde, que lhe disse que tinha estado numa quinta fechado, levava porrada e passava fome.
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Se olharmos agora para mais estes dois depoimentos, começamos a perceber que algo de errado se passou, pelo menos, com a estadia do ofendido C….
Com efeito, o irmão do ofendido C… ficou inquietado porque deixou de saber do seu paradeiro - se fosse normal o irmão ausentar-se sem dar notícias, seguramente que não tinha recorrido às autoridades policiais, limitando-se a aguardar pelo seu regresso. Ao invés, a preocupação sobre o estado do irmão fez com que comunicasse às autoridades o seu desaparecimento, suspeitas que se confirmaram quando o ofendido D… lhe entregou o bilhete de identidade do seu irmão, dizendo que este estava preso em Espanha.
Mas bem se vê que seriam apenas os próprios ofendidos que poderiam prestar outros esclarecimentos sobre o sucedido.
Numa ordem cronológica, o tribunal analisa então o depoimento de D…, 54 anos, motorista. Afirma que estava um dia no café cá em Lamego quando foi abordado pelos arguidos para ir para Vigo, trabalhar 8 horas por dia, a troco de 5 contos por dia.
Aceitou e foi então com os arguidos para Espanha, ficando a dormir em beliches dentro de um camião, em colchões; fazia todo o serviço, como seja nas feiras, no quintal ou na sucata; podia trabalhar mais de 8 horas por dia; quando queria ir para o café, tinha dificuldades; também trabalhou nas vindimas, onde chegou a conduzir um tractor; nessa altura, dormiam nos carros; afirma que tinham condições mínimas, mas nunca lhe pagaram qualquer remuneração; de vez em quando (talvez de semana a semana), davam-lhe € 5,00 para ir tomar o café; quando queria fazer necessidades fisiológicas, ia ao monte; tomava banho à mangueirada; trabalhava aos sábados e domingos, dizendo o arguido B… que trabalhava para ajudar à comida.
Recorda-se que entregou o BI à arguida F…, porque pensava que era para a Segurança Social, mas nada foi feito.
Já estava em Espanha há alguns meses quando apareceu o C…, na altura em Zamora; aqui, em Zamora, dormiam nos camiões; afirma que não podia dar uma volta, porque não queiram que as pessoas comunicassem com ninguém, talvez com receio de que ficassem a conhecer a situação.
Depois, regressaram para a residência do arguido B…, esclarecendo que a propriedade era murada, com portão só com o trinco; chegou a ir com o C… (que o depoente chama de C1…) ao café, mas nunca o viu bêbado; um dia, viu o C… com um ferimento na cabeça.
No que concerne a comida, apesar de referir que, num determinado dia, a arguida F… apareceu-lhe com uma única moela e ele acabou por não comer, diz contudo que a comida era igual à deles e que nunca passou fome; tomavam o pequeno-almoço e para o almoço e jantar, punham uma mesa.
Neste ponto e quando confrontado com o que disse em sede de inquérito, nomeadamente que se alimentavam das “sobras” das refeições dos arguidos (com o acordo de todos os intervenientes, o tribunal procedeu à leitura das declarações por si prestadas na PJ a fls. 165-171), afirma agora que tal não é verdade e que tais declarações ficaram a dever-se a algum lapso.
Assim, quem analisar as declarações prestadas por esta testemunha, fica com a ideia de que não se quer comprometer com nada, porque diz coisas algo contraditórias. Por um lado, afirma que ia ao café regularmente (o que deixa entender que poderia sair dali quando quisesse), mas por outro diz que era para ficar lá por 3 meses e acabou por ficar alguns 10 meses (sempre com a esperança de receber o dinheiro que lhe era devido); depois, conseguiu fugir; nunca lhes disse que queria vir embora, porque tinha receio de levar um tiro.
O depoente decidiu fugir sozinho, porque se defendia melhor sozinho do que acompanhado (teve medo de ser apanhado) e o C… decidiu dar-lhe o cartão de identificação para ele entregar cá em Portugal ao irmão; primeiro, acabou por entregá-lo à polícia; ali, relatou-lhes que se veio embora e que tinha lá deixado um colega.
Ora, se alguém decide "fugir", é porque está amedrontado com alguma coisa, motivo pelo qual o tribunal, logo no início, perguntou à testemunha se estava à vontade para falar à frente dos arguidos ou se pretendia que os mesmos saíssem da sala de audiências, respondendo o mesmo que estava totalmente à vontade.
O tribunal, desconfiando que a testemunha saberá muito mais do que aquilo que hoje quer relatar, não pode também ir para lá do que constituem meros indícios ou suspeitas. Por exemplo, se anteriormente afirma que viveu durante aquele tempo em "regime de perfeita escravidão" (fls. 171), vem agora asseverar que, quando estava em casa do sr. B…, ia ao café e voltava e nunca foi ameaçado por eles.
De qualquer forma, a testemunha "apenas" permaneceu em Espanha até Janeiro de 2001 (o BI do ofendido C… foi entregue na PSP de Lamego no dia 19/1/2001 - fls. 5), ou seja, durante aproximadamente 9 meses (Maio de 2000 a Janeiro de 2001), pelo que situa a experiência neste período.
O arguido acaba por desculpabilizar os arguidos no que às condições de vida diz respeito, centrando o seu desagrado no facto de ter andado a trabalhar sem receber qualquer contrapartida - curioso é notar que, no final do depoimento, a testemunha ainda sugerir que os arguidos "podiam era pagar agora alguma coisa do que me ficaram a dever", o que é bem revelador da sua preocupação.
*
Neste quadro e no que diz respeito ao ofendido D…, o tribunal não pode pois dar como provados diversos factos descritos na acusação, ficando antes demonstrada a matéria que se prende com a relação laboral.
Não obstante, muitas das suas afirmações, onde se inclui definitivamente a "fuga" para Portugal, permitem ainda assim perceber que a vivência em casa do arguido B… estava longe de constituir uma prática agradável e a repetir, realidade que o ofendido C…, que ali permaneceu vários anos, acabou por experimentar de forma muito mais severa e acutilante, fruto da sua maior fragilidade, incapacidade de impor a sua vontade ou sequer de conseguir reagir às investidas do arguido B… que surgia diante de si como uma pessoa superior, intransigente e intimidante.
As declarações prestadas por C…, de 59 anos, são bem esclarecedoras. Afirma que andava a trabalhar numa obra, sita na rua …, atrás da …, em Lamego, que pertencia a uns seus conhecidos, onde ganhava 4 contos por dia; num sábado, ia pela rua … acima e o arguido E… abordou-o para ir para Zamora durante 3 meses para as vindimas e depois que o trazia novamente a Portugal; na altura, ele falou em 4 contos por dia, "comidos e bebidos"; ele não conhecia Zamora e era uma oportunidade para ficar a conhecer; foi só com a roupa que tinha no corpo, porque ele lhe disse que lhe arranjava lá roupa e de facto deram.
Foram direitos à zona de Vigo num jipe vermelho; o arguido foi buscar uns fios a casa do irmão e depois seguiram para Zamora, onde chegaram já de noite e depois dormiu numa roulotte; no dia seguinte, no domingo, começou a trabalhar.
Refere que existiam lá muitos trabalhadores e muitas famílias, num acampamento que existia num largo às portas da cidade; o pão era cortado ao meio e metade era para o meio da manhã e a outra metade era para o almoço; como não o queriam ver sentado, despejavam a água para o obrigarem a ir buscar mais água e não descansar as pernas.
Esteve na vindima durante cerca de três meses (nas vindimas, trabalhava das 8.00 às 17.00 horas) e mais duas semanas na fruta e na batata; andou mais algum tempo a apanhar uvas em propriedades sem os donos saberem; ficou mais duas semanas em casa do E…; não recebeu nada e teve medo deles; todavia e quanto ao arguido E…, acaba por afirmar que era boa pessoa, mas o certo é que ele não precisou mais do seu trabalho e foi então para casa do arguido B…, onde tudo se complicou.
Para além do D…, encontrou também um velhote que estava lá a trabalhar de graça, chegando a cortar-lhe as unhas; acabou por ficar no seu lugar em casa do arguido B….
O depoente quis regressar a Portugal, mas o B… tratava-o mal; era um escravo dele; pegava de manhã cedo, trabalhava até à noite e depois ainda iam para o papelão até de madrugada; o B… dava-lhe murros e pontapés; não conseguia fugir, porque estava tudo vedado à volta com rede e pedras; tentou fugir várias vezes, mas o arguido B… apanhava-o e obrigava-o a regressar para sua casa; "eu quero ir para Portugal", dizia ele, "foi o combinado", mas ele dizia: "não vais, porque tu gostas disto aqui"; a arguida F… chegou a dizer-lhe que ia ficar ali até ser velho, até morrer.
O D… também era maltratado e fugiu a seguir ao Natal, mas ele não quis companhia, entregando-lhe então o seu bilhete de identidade para ele entregar cá em Portugal ao seu irmão (mais tarde, soube que ele o tinha dado como desaparecido); depois disso, a polícia espanhola chegou a ir perguntar lá a casa do B… se não estava lá alguém de Lamego, mas o arguido disse à polícia espanhola que não estava lá ninguém.
Estava fechado como se fosse a cadeia, estava aprisionado; tanto em Zamora, como em casa do Sr. B…, tomava banho à mangueira no pátio todo nu, sendo que, por vezes, era o sr. B… que lhe dava uma mangueirada; tinha uma casa de banho só para fazer "cocó".
Tanto o arguido B…, como o E…, levavam armas nos respectivos camiões (uma de 7 tiros e outra de 9 tiros), por baixo da cama; sabe disso porque fazia a limpeza; em casa também tinham armas; um dia, chamaram-no para ir esfolar um coelho e depois mandaram-no outra vez dormir; acartava lenha e acendia a lareira para a casa estar quentinha; levava porrada quase todos os dias e levava estalos com as duas mãos, pontapés e murros, ao ponto de soltar sangue pelo nariz; o B… também era mau para a mulher.
Uma vez, envolveu-se fisicamente com o filho do arguido B… e com a arguida F…; esta também era má para ele, porque não o deixava descansar um bocadinho, nem aos fins-de-semana; na altura das festas, iam às 6.00 horas da manhã e montavam os balões; não falava com outras pessoas, porque não conhecia ninguém; tinha medo de sair da casa, porque tinha receio de levar um tiro.
O ofendido construiu o andar de cima da casa do arguido B… juntamente com um senhor português; antes disso, dormia num camião; depois de construírem a parte nova, passou então a dormir na casa antiga onde eles estavam anteriormente; a arca congeladora estava na parte de cima que eles construíram; ele tinha a chave e por isso, para matar a fome, chegou a ir lá à noite e tirar um frango que depois comeu cru; às vezes, comia no terraço pequenas bolinhas de carne que lhe davam.
Foi operado em Espanha por causa de uma úlcera rebentada derivada dos maus-tratos que sofreu; esteve no hospital durante 2 meses e estava lá sempre família do arguido B… junto a ele; não telefonava, porque nem sequer sabia ler neste ponto, o documento junto pelos arguidos em audiência de julgamento (fls. 415-417) permite perceber que o ofendido esteve no Hospital cerca de 10 dias (de 8/2/2003 a 18/2/2003), mas este documento apenas vem confirmar a intervenção cirúrgica de urgência à zona abdominal, sendo que é perfeitamente plausível que o arguido, atendendo ao seu estado de debilidade, tenha ficado com a percepção de ter estado internado mais tempo.
Esclarece que nunca esteve em quarto fechado, mas reitera que a propriedade tinha muros e redes de vedação com cerca de 2 metros de altura; existiam dois portões, um para cada lado; para além daquela vez em que fugiu, nem tentou sair dali, porque "se fugia, era morto".
Esteve cerca de 4 anos em casa do arguido B…; no Verão, ia para as festas para muitos lados e dormiam num camião; numa determinada festa, encontrou uma carteira com dinheiro (tinha 9 contos); deu conta que eles estavam a dormir e ele aproveitou para fugir dali; apanhou a camioneta até ao Porto e depois meteu-se no comboio e veio até à Régua; já na Régua, estava o Sr. B… e um sobrinho à entrada da estação com um carro parado; ele ofereceu resistência e não quis entrar, conseguindo apanhar a carreira para vir para Lamego; já em Lamego, atrás da …, estavam outra vez à espera dele sentados nos pinocos ali existentes e ainda o acompanharam; ainda lhe disseram para ele entrar na carrinha; ele negou, apareceu a polícia e eles fugiram.
O ofendido C… tem alguma dificuldade em concretizar cronologicamente as suas ideias, porque não é fácil reviver momentos ocorridos há vários anos e que perduraram também por alguns anos; ainda assim, prestou um depoimento totalmente verdadeiro e sincero, merecendo pois inteira credibilidade por parte do tribunal.
Veja-se que tal é a sinceridade do seu depoimento que afirma que conheceu o Sr. G…, que conduzia veículos e que trabalhou para o Sr. B… durante cerca de um mês, mas nega ter sido transportado por ele até Vigo (o que contraria o que se diz na acusação).
E o certo é que a testemunha G…, 62 anos, electricista, de naturalidade espanhola, corrobora esta versão. Afirma que conheceu o C…, mas não o D…, porque ele já não estava lá a trabalhar; o depoente trabalhou de facto para o arguido B… durante cerca de um mês.
Apesar de ter estado a trabalhar para o arguido B… durante um curto período de tempo, refere ter-lhe dito mais de "quarenta vezes" ao arguido que as pessoas não são animais; o irmão E… não trata mal, mas o B… trata, faltando-lhe por várias vezes ao respeito; disse que tinha medo dele.
O C… não tinha um chavo e chegou a comprar bolachas no supermercado para lhe dar; também o depoente chegou a comer ovos crus para matar a fome; dormia com ele num camião quando havia festas; afirma que o C… não tem capacidade para compreender como uma pessoa normal; não consegue defender-se como outra pessoa normal e utiliza o gesto de "algemado" para descrever a sua situação.
No dia em que o C… fugiu, encontrou-o em Valença; recorda-se que era dia 1 de Agosto, porque é um dia festivo em Vigo; estiveram a conversar, ele disse-lhe que tinha encontrado uma carteira com dinheiro que lhe deu para fugir; isto passou-se há 7 ou 8 anos (do Verão de 2012 para trás); decorreu talvez cerca de um mês desde que o depoente fugiu até que encontrou o C… na fronteira.
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Ora, percorrendo todas estas declarações, o tribunal tem por pacífico que ambos os ofendidos foram ludibriados e convencidos a irem trabalhar para Espanha, a troco de contrapartidas que os arguidos B… e E… já bem sabiam que não iriam cumprir.
No entanto e especificamente sobre as condições de vida por que ambos passaram, importa distinguir e separar dois momentos: o primeiro situa-se até finais de 2000, que decorreu até ao final das vindimas e apanha de fruta para os lados de Zamora, e um segundo que ocorre dali em diante já em casa do arguido B….
Naquele primeiro momento, temos os dois arguidos a actuar em concertação de esforços; especificamente quanto à angariação de trabalhadores em Portugal, resultou absolutamente claro para o tribunal que os arguidos B… e E… actuaram em conjunto, pelo que também a abordagem ao ofendido C… no nosso país, feita presencialmente apenas pelo arguido E…, obedeceu a um plano previamente gizado entre os dois - não é Dor acaso que passam por casa do arguido B…. para ir buscar umas coisas, dirigindo-se depois para Zamora, onde estava o arguido B…, juntamente com outras pessoas, designadamente o ofendido D…; o arguido B… bem sabia que o irmão veio a Portugal e que procuraria aliciar mais trabalhadores.
Neste primeiro momento, o tribunal, admitindo que as condições de trabalho fossem más, não consegue todavia associar-lhes um contexto de "trabalho forçado" - nenhum dos ofendidos disse que eram vigiados por homens com armas, pelo que a ideia que perpassa é que lá iam trabalhando, com maior ou menor afinco, mas sempre de forma minimamente livre e convencidos que iriam receber o que lhes tinham prometido, o que porém nunca veio a acontecer.
Temos depois um segundo momento, situado a partir de Dezembro de 2000/Janeiro de 2001, que começa já em casa do arguido B… - note-se que é por esta altura que o ofendido D… decide fugir, seguramente porque se sentiu definitivamente frustrado e enganado e não queria continuar naquela situação de degredo. Porém, neste segundo momento, surge já como único responsável o arguido B…, desconhecendo-se, de todo, se o arguido E… contribuiu ou fomentou a exploração do ofendido C…, seja em casa do seu irmão, seja nas feiras por onde andaram.
Quanto à arguida F…, pese embora o tribunal considerar que também ela terá ajudado a criar um clima de intimidação dentro da sua propriedade, a verdade é que a prova produzida não é suficiente para lhe imputar a esmagadora maioria dos factos descritos na acusação, apontando sim os ofendidos as suas baterias essencialmente na direcção dos outros dois arguidos.
O tribunal mais considerou o teor dos documentos de fls. 82 a 88 ou os CRC's dos arguidos juntos a fls. 399, 400 e 401 dos autos».
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DO DIREITO
Abordando agora cada uma das questões acima individualizadas, importa salientar em primeiro lugar a alegada incompetência territorial e internacional do Tribunal recorrido e a eventual violação do princípio do Juiz natural.
Salvo o devido respeito, estamos perante uma falsa questão, extemporânea quanto ao momento em que é suscitada e que não encontra o mínimo fundamento legal no nosso ordenamento jurídico[2], (aliás, nem sequer o recorrente o aponta), limitando-se o mesmo a alegar de forma genérica e vaga que:
- “O Tribunal Judicial de Lamego, e os Tribunais Portugueses, são incompetentes para o Julgamento dos presentes autos, excepção que expressamente se invoca uma vez que, os factos terão pretensamente ocorrido no Reino de Espanha”, (cls. 5).
- “A Decisão em crise, a ser assim, é também inconstitucional porque viola o princípio do Juiz Natural. Inconstitucionalidade que expressamente se invoca, uma vez que foi Julgado por quem não tinha competência territorial e internacional para proceder ao Julgamento”, (cls. 6).
- “Foi a morada do recorrente da cidade de Vigo justamente a indicada para prestar termo de identidade e residência, eram os Tribunais espanhóis, mais concretamente os que coincidiriam com o alegado local da prática dos factos imputados ao arguido, competentes para proceder ao ligamento dos mesmos”, (cls.7).
Estamos perante conclusões infundadas sem suporte legal, já que a lei é clara nesta matéria. Com efeito, estão em causa crimes cometidos por portugueses, contra portugueses angariados em Portugal e cuja acção se estendeu depois ao território espanhol onde perdurou a execução dos crimes em causa, levada a cabo pelos mesmos indivíduos.
Basta atentarmos na previsão do artº 5º nº 1 al. b), c) e e) do cód. penal, conjugado com os artº 21º e 22º do cód. procº penal, para concluirmos pela manifesta improcedência da excepção invocada.
Por outro lado, estando em causa a competência territorial, ainda que outro fundamento não existisse, (o que não se concede) sempre a questão foi extemporaneamente arguida, face ao que dispõe o artº 32º nº 2 al. b) do cód. procº penal que determina que a incompetência territorial seja deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento.
Perante este entendimento é manifesto que também a alegada violação do princípio do Juiz natural não merece acolhimento.
Na verdade, a CRP consagra no seu art. 32º, nº 9, como uma das garantias do processo penal, o princípio do juiz natural, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta. Por outras palavras, o juiz que deverá intervir em determinado processo penal é “aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os diversos tribunais e a respectiva composição”[3].
E no caso concreto, como acima referimos, resulta claro que o Tribunal de julgamento foi o competente para decidir a causa.
Pelo exposto, improcede a questão em análise.
*
No respectivo recurso, impugna o recorrente B… a matéria de facto provada no tocante aos factos sob os nº 44, 60 e 61, invocando a “violação do princípio da livre apreciação da prova”, o que, de acordo com o teor da motivação faz supor no seu entendimento, a existência de erro de julgamento quanto a tal matéria.
Todavia, não especificou em que consistia o erro nem as provas concretas que na sua óptica imporiam decisão diversa, não dando assim cumprimento integral ao disposto no artº 412º nº 3 do cód. procº penal, nomeadamente especificando, as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”, antes se limitou a imputar ao tribunal recorrido um suposto erro na valoração dos elementos probatórios trazidos a julgamento, pretendendo fazer valer o ponto de vista e versão dos próprios arguidos em julgamento. No fundo pretende substituir a convicção do julgador pela sua, o que a lei não pode obviamente comportar.
A factualidade posta em crise é a seguinte:
- “Em data não concretamente apurada, mas durante o ano de 2003, como consequência directa e necessária das condições de trabalho a que estava sujeito, teve o ofendido C… de ser submetido a uma intervenção cirúrgica, na sequência da ruptura de uma úlcera, tendo o arguido B… conduzido o arguido ao Hospital …, em Vigo, …” (44);
- “O arguido B… não se coibiu de usar a força física contra o ofendido C… e de o atemorizar e intimidar, para assim o impedir de fugir e para o obrigar a obedecer a todas as suas instruções, mantendo-o numa situação de total submissão”, (60).
- “O arguido B… decidiu que o ofendido C…, uma vez chegado à sua residência, em Espanha, ficaria sob o seu domínio e total dependência, não tendo qualquer liberdade de movimentos, o que conseguiu”, (61).
Quanto ao facto nº 44, é certo que o documento hospitalar não conclui que a ruptura da úlcera foi consequência directa e necessária do trabalho, nem tal parecer foi pedido ao hospital onde esteve internado. Todavia, depois de demonstradas por prova testemunhal credível, as condições de trabalho a que na ocasião estava sujeito, “passando fome” alimentando-se das escassas provisões que conseguia obter e chegando ao ponto de ter de “comer frango cru”, é de concluir face às regras de experiência comum que os maus tratos conduziram a vítima C… àquela situação. Ainda assim o facto em si, isolado dos demais provados, é irrelevante no contexto.
Quanto aos factos sob os nº 60 e 61, é manifesta a falta de razão do recorrente, face à expressiva prova produzida em audiência, que auditámos com base na gravação junta aos autos, sendo certo que nenhuma extrapolação ocorre entre aquilo que foi dito pelas testemunhas fundamentais, C…, D…, H…, I… e G… e o que o tribunal “a quo” considerou na motivação do acórdão.
Da análise crítica do conjunto da prova, não se afigura que exista violação do princípio da livre apreciação da prova ao concluir-se como o fez o tribunal recorrido, tendo em conta o disposto no artº 127º do cód. procº penal.
Nas suas declarações o recorrente, admitiu parte substancial dos factos, com excepção dos aspectos concretos que pudessem configurar ilícito criminal. Nesta, limitou-se a negar sem qualquer coerência ou convicção e com argumentos inconsistentes, face às regras da experiência comum e ao raciocínio lógico-dedutivo, sendo até contraditórias com elementos objectivos indesmentíveis, daí que não tenham merecido credibilidade perante o Tribunal Colectivo.
Nos termos do artigo 127° do cód. procº penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Essa convicção, ”não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas (…) parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva”[4], o que se mostra efectuado nos presentes autos na parte da sentença denominada “motivação”.
A pretensão do recorrente não tem o menor fundamento e acaba por se reconduzir a uma questão de mera discordância em relação à valoração da prova feita pelo julgador em 1ª instância.
Como tem sido reiteradamente defendido pela jurisprudência, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo uma solução jurídica para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[5].
No nosso sistema jurídico, a regra é a do princípio da livre apreciação da prova, salvo quando a lei dispuser diferentemente, sendo aquela apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é absoluto, e entre as excepções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial, (cfr. Ac. STJ, de 1-10-08, Proc. nº 08P2035, in www.dgsi.pt).
Esta livre convicção do julgador não significa arbítrio ou decisão irracional, antes pelo contrário, exige-se uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, bem como na percepção da personalidade dos depoentes, para que a mencionada convicção resulte perceptível e objectivável.
Daí que, quando a 1ª instância atribui ou não credibilidade a uma determinada prova não vinculada, o tribunal de recurso, em princípio só a deverá censurar se for feita a demonstração de que tal opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum.
Assim, a actuação do princípio da livre apreciação da prova e o seu controle, pressupõe a indicação na sentença dos meios de prova e o seu exame crítico, não para formar uma nova convicção através da reapreciação de todos os elementos de prova que serviram para fundamentar a decisão recorrida, mas apenas para verificar a razoabilidade da convicção alcançada pelo tribunal a quo e expressa na fundamentação, relativamente aos pontos de facto concretamente impugnados com base na avaliação das provas concretamente indicadas pelo recorrente, conjugada com os demais elementos de prova tidos por necessários[6]
A pretensão do recorrente de que a sua versão dos factos se sobreponha à que o tribunal a quo acolheu, dizendo genericamente que a prova em que aquele se ancorou é insuficiente para fundamentar de facto a decisão em causa, é claramente insustentável e não poderá proceder.
Improcede o recurso também neste ponto.
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Passando à qualificação jurídica dos factos, alega o recorrente que a factualidade provada não integra o crime de burla relativa a trabalho, na pessoa do C…, (apenas admite o crime na pessoa do D…), porquanto na sua perspectiva o “agente” do C… era o seu irmão E….
Atenta a improcedência do recurso no tocante à modificabilidade da matéria de facto, que o recorrente impugnava, é manifesto que a sua pretensão, em face da factualidade provada não pode proceder, dado que esta, contém todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de burla relativa a trabalho cometido na pessoa do C…, tendo em conta o conceito de autoria expresso no artº 26º do cód. penal.
O crime de burla relativa a trabalho ou emprego, prevê no artº 222º nº 1 do cód. penal que, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, através de aliciamento ou promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
Decorrem desta norma os seguintes elementos típicos do crime:
a) O erro ou engano, astuciosamente provocado;
b) Que tal erro incida especificamente sobre uma promessa de trabalho ou emprego no estrangeiro;
c) A determinação de outrem à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro, prejuízo patrimonial;
d) A intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; e,
e) A existência de prejuízo patrimonial
f) O conhecer a proibição legal da conduta e ainda assim a querer.

Basicamente contém os mesmos elementos do tipo fundamental do crime de burla constante no artº 217º do cód. penal, exeptuando-se apenas o facto do erro ou engano incidir sobre um facto específico – que é o aliciamento ou promessa de trabalho no estrangeiro – mas ainda assim, entendemos que o tipo previsto no artº 222º do cód. penal seria desnecessário na medida em que no artº 217º contém uma norma abrangente na qual se poderiam enquadrar condutas como a do arguido recorrente.
O legislador quis apenas, com a criação desta norma, dar relevância específica a situações desta natureza, correspondendo a anseios de natureza social e políticas criminais de impacto, ainda que estas possam alimentar a ideia de pura demagogia e sobreposição normativa.
No entanto, existindo norma específica, ainda que o tipo base da burla previsto no artº 217º cód. penal pudesse abarcar a situação concreta, a norma aplicável é sem dúvida a do artº 222º do cód. penal e quanto a isto nenhuma controvérsia é de suscitar.
Como decorre da respectiva exposição de motivos, a autonomização deste tipo de burla “pretendeu dar resposta às condições infra-humanas a que, depois de aliciadas para trabalhar no estrangeiro, algumas pessoas aí são sujeitas”, (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 335 e seguintes).
No caso em apreço, provou-se que o recorrente, juntamente com o E… convenceram as vítimas a deslocarem-se para Espanha com a promessa de trabalho remunerado, pelo menos a 5 € diários, sendo certo que jamais cumpriram tal promessa, acabando por explorar a mão-de-obra das vítimas, que embora trabalhando arduamente em diversas propriedades naquele país, em condições desumanas e passando fome, viam o rendimento do seu trabalho ser recebido pelos arguidos sem que estes lhes pagassem o prometido.
O recorrente sabia que tal conduta era proibida e punida por lei, pelo que, a verificação do crime de burla que questiona, na pessoa do C…, é inequívoca.
É de concluir pela imutação do crime de burla relativa a emprego, p. e p. pelo artº 222º do cód. penal, ao recorrente, na pessoa do C….
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Mais alega ainda o recorrente a falta de “pressupostos do crime de escravatura”, p. e p. pelo artº 159º do cód. penal, em relação à pessoa de C…, pelo que, em seu entender deveria dele ser absolvido. O argumento essencial reside na sua absolvição do mesmo crime, relativamente ao D… e considerar ter tido condutas iguais para ambos.
Este ponto de vista é desde logo desmentido pela natureza dos factos provados em relação a um e a outro [que nos dispensamos de reescrever] e também porque a impugnação da matéria de facto que suscitou não mereceu acolhimento.
O que está em causa, é assim a qualificação jurídica dos factos, que em seu entender não integram o crime de escravidão.
Nos termos do artº 159º do cód. penal, sob a epígrafe “Escravidão” se consagrou o seguinte:
– “Quem:
a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou,
b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior, é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”.
Tal redacção resulta da revisão do código penal introduzida pelo D.L. nº 48/95, de 15/03, e reproduz, com ligeiras alterações formais e uma diminuição da medida da pena, o artº 161º do cód. penal de 1982.
A escravidão, veio a ser introduzida como tipo de crime no Código Penal de 1982, então como artigo 161º. No entanto devido à sua raridade e inexistência de condenações pelo crime em causa “e por se ter em conta que o direito penal não deve reduzir-se a uma função meramente simbólica [...] em 1995 foi colocada à Comissão de Revisão do cód. penal de 1982 a questão se este tipo legal se devia manter ou se devia ser eliminado. O tipo de crime acabou por manter-se, passando a constar do artigo 159º, com uma redução do mínimo da pena, que de 8 passou para 5 anos de prisão.
Embora julgando-se erradicado durante muito tempo, das chamadas sociedades “modernas e civilizadas”, assentes no Estado Social de garantia de plenos direitos a todos os cidadãos sem excepção, a verdade é que a realidade tem vindo a demonstrar um crescente aumento de uma nova modalidade de escravatura e de tráfico de pessoas com chocantes violações dos mais elementares direitos humanos[7], situada sobretudo a dois níveis:
- Por um lado a exploração laboral de mão-de-obra agrícola e industrial, em que as vítimas trabalham sem salários, sem liberdade e em regime de detenção ou carcere privado, muitas vezes passando fome e outras privações, como foi o caso dos autos, relativamente ao C… que viveu vários anos nesse regime, sob intimidação e maus tratos[8];
- Por outro, temos a exploração e tráfico de pessoas que visam essencialmente a indústria do sexo (incluindo crianças) e mais recentemente a compra e venda de pessoas jovens, para extracção de órgãos, o que não pode deixar de merecer viva repulsa e obrigar os responsáveis políticos a legislar com vista a punir fortemente tais condutas.
Tais medidas deveriam impor-se com especial acuidade em Portugal (fazendo jus à sua tradição histórica) na medida em que foi em 1761 o primeiro país no mundo a abolir a escravatura (primeiro no Continente e na India e depois em 1869 em todo o império Português).
O artigo 159º do cód. penal enquadra-se nos princípios acordados na Convenção de Genebra sobre a escravatura, assinada em 25.09.1926 e que traduziu a grande vitória do movimento abolicionista desencadeado no século XVIII, incrementado no século XIX[9] e finalmente conseguindo os seus objectivos apenas em 1926. Tal convenção foi aprovada por decreto com força de Lei nº 14046, de 21 de Junho de 1927, confirmada e ratificada por Carta do Presidente da República datada de 26.08.27.
A Convenção de Genebra sobre Escravatura define, no seu artigo 1º, parágrafo 1º, a escravatura como «o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem todos ou quaisquer atributos do direito de propriedade», sendo, portanto, escravo, toda e qualquer pessoa que tenha tal estado ou condição (cfr. artigo 7º, al. a) da Convenção Suplementar relativa à abolição da escravatura, do tráfico de escravos e das instituições e práticas análogas à escravatura, assinada em Genebra, em 7 de Setembro de 1956).
O nosso Código Penal acolhe esta noção, e, inclusive, acolhe expressamente a dicotomia estado ou condição na saliência de que não se trata de uma repetição inútil já que estado é uma situação mais permanente que condição, (cfr. neste sentido, Parecer do Conselho Consultivo da PGR da autoria de Alberto Augusto Oliveira e Marta Patrício disponível no site da PGDL).
Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 4º, consagra expressamente que:
- “Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos”.
Por seu turno a Convenção Europeia dos Direitos do Homem consagra no art. 4º que:
“1 – Ninguém pode ser mantido em escravatura ou servidão.
2 – Ninguém pode ser constrangido a realizar um trabalho forçado ou obrigatório”.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, prevê no art. 8º, que:
“1. Ninguém será submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de escravos, sob todas as suas formas, são interditos.
2. Ninguém será mantido em servidão.
3. Ninguém será constrangido a realizar trabalho forçado ou obrigatório”.
(…)
Nenhum destes tratados nem a Declaração contêm em si a proibição de uma conduta e a precisa estatuição sancionatória para a violação da proibição.
Para a verificação do estado da situação perante a realidade legal portuguesa será pois da maior utilidade verificar a existência de normas que cubram a previsão e a sanção[10].
A escravatura assume hoje contornos bem diferentes daqueles que deram origem ao movimento abolicionista, mas nem por isso deixam de ser igualmente gravosos e condenáveis, se tivermos em conta que milhões de pessoas (homens, mulheres e crianças) vivem de forma explícita ou dissimulada sujeitos a um ambiente de escravatura, depois de terem sido vendidas como meros objetos, sem direito a qualquer ou a uma reduzida contrapartida pelo trabalho que desenvolvem, ficando nas mãos de indivíduos sem quaisquer escrúpulos, muitas vezes inseridos na teia do crime organizado.
“Existe um conjunto de traços caraterísticos que permitem distinguir a escravatura de outras violações dos direitos humanos:
● O trabalho forçado ou obrigatório, mediante a prática ou ameaça de qualquer tipo de castigo;
● O exercício de um direito de propriedade sobre a pessoa escravizada por parte de outrem, recorrendo a castigos ou a ameaças da sua prática;
● A desumanização;
● A limitação da liberdade de movimentos”, (cfr. Gomes Lopes in excerto na publicação “Segurança e Ciências Forenses” de 20.03.2013).
Perfilhando inteiramente esta análise cuidada, não podemos deixar de evidenciar, no caso concreto, que a situação criada pelo recorrente à vítima C…, evidencia com clareza todos os elementos do crime de escravidão consagrado no cód. penal e que vai de encontro aos princípios do Direito Internacional nesta matéria que acima citámos.
A particularidade do caso, é que não se tratou propriamente de um trabalho forçado[11] “ab initio”, dado que teve na sua génese um outro crime, que foi o de burla relativa a promessa de trabalho e emprego, (artº 222º do cód. penal). No entanto, toda a execução subsequente se insere claramente no crime de escravidão referido.
O trabalho realizado pela vítima C…, ter-se-á de considerar trabalho realizado em condições análogas às de escravo, dado que a vítima foi colocada sob o domínio do arguido, o ora recorrente B….
Toda a liberdade de movimentos, dependência económica, sustento alimentar e demais necessidades básicas, ficaram sob o domínio do arguido e dos seus comparsas, que assim reduziram a vítima a um estado de passividade idêntica àqueles que viviam em cativeiro, a que acresciam os maus-tratos, a carência de alimentos, coacção e ameaças.
A vítima, além de enganada desde o início quanto à promessa de trabalho, viu-se depois privada de toda a dignidade humana, sem autonomia nem poder sobre a sua própria pessoa.
A situação em apreço é subsumível à previsão do artº 159º al. a) do cód. penal, uma vez que todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo se mostram verificados, sendo por isso de improceder o recurso também neste ponto.
Quantos aos vícios previstos do artº 410º nº 2 do cód. procº penal, (de conhecimento oficioso), apesar de não invocados expressamente pelo recorrente, saliente-se que não resulta do acórdão recorrido qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão, contradição entre factos provados e não provados ou sequer erro notório na apreciação da prova.
Importa ainda referir que, também o vício da falta de fundamentação da sentença (artº 379º nº 1 com referência ao artº 374º nº 2 ambos do cód. procº penal) não se verifica, quer em relação à matéria de facto posta em crise, quer na motivação[12].

Face ao exposto, o recurso é de improceder na totalidade.
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes da 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto por B….
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● Custas a cargo do recorrente, que se fixam em 5 UC, (cinco unidades de conta).
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Porto 27 de Novembro de 2013
Augusto Lourenço [13]
Moreira Ramos
_______________
[1] - Cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) todos do cód. procº penal; acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271.
[2] - Aliás, o recorrente nem sequer aponta neste âmbito qual a norma violada. Talvez porque não a tenha encontrado, por ser inexistente.
[3] - Cfr. neste sentido Ac. STJ de 11.11.2010, in www.dgsi.pt/stj
[4] - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n° 198/2004 (DR, II Série, de 2 de Junho de 2004.
[5] - Cfr. Ac. da RL, Proc. nº 1111/09.2PFSXL.L1, de 25-1-11. V. tb. os acs. do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, em www. dgsi.pt.
[6] - Cfr. Acs. TC nº 1165/96, de 19-11, BMJ, 461, pg. 93; do STJ, de 23-10-08, Proc. nº 08P2869, in www.dgsi.pt; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pgs. 107 a 114; Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 3ª ed., pgs. 874 a 879 – citando vários AA. -; e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pg. 322 a 323.
[7] - Um estudo divulgado em 2005 pela Organização Mundial do Trabalho aponta para a existência de cerca de 12,3 milhões de pessoas vítimas de escravatura no mundo. A organização não governamental Free The Slaves (FTS), estima esse número em 27 milhões, o que não pode deixar ninguém de sã consciência indiferente. Destes, 24 milhões estão localizados na Ásia, o que coloca esta região do planeta no centro da escravatura moderna. Seguem-se a América Latina, com 1 milhão e 300 mil escravos, e o conjunto África e Médio Oriente, com cerca de 920 mil. Noventa dólares, cerca de 70 euros, é o preço médio de venda de um escravo no mundo, estima a FTS. Casos recentes têm demonstrado que ela existe também na Europa “civilizada” e EUA.
[8] - Não podemos deixar de realçar o facto chocante de certas empresas multinacionais da Europa e do chamado mundo ocidental, onde se arrogam de defensoras dos direitos humanos, acabarem por ter práticas igualmente condenáveis que é a deslocalização de fábricas para países subdesenvolvidos, para aí obterem mais lucro pagando salários de miséria a pessoas que já vivem em condições desumanas.
[9] - O final do Séc. XVIII e o Séc. XIX constituem marcos históricos na abolição da escravatura, devido à difusão dos ideais associados à liberdade e aos direitos e garantias do indivíduo, independentemente da sua raça, religião ou cor.
[10] - Neste sentido Parecer do Conselho Consultivo da PGR da autoria de Alberto Augusto Oliveira e Marta Patrício disponível no site da PGDL.
[11] - Por trabalho forçado – deve entender-se todo o serviço exigido a um indivíduo sob ameaça de qualquer castigo e para o qual o mesmo não se tenha oferecido de livre vontade. “Pode revestir a forma de servidão da gleba, ou seja, a condição da pessoa que é obrigada por lei, pelo costume ou por contrato a viver e trabalhar numa terra pertencente a outrem e a prestar-lhe, mediante remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem liberdade para mudar de condição” – cfr. Gomes Lopes idem.
[12] - Sendo certo que esta peca por excesso quanto à extensão descritiva dos depoimentos prestados e por defeito quanto à análise crítica dos mesmos, sem que no entanto seja de por em causa a validade da fundamentação.
[13] - Elaborado e revisto pelo relator.