Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3760/12.2IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ACUSAÇÃO
REMISSÃO
DIREITOS DE DEFESA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP201503253760/12.2IDPRT.P1
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: ,
Sumário: I - É admissível a indicação de factos na acusação por remissão para documento junto aos autos onde se faz a discriminação, com referência aos períodos respetivos, dos montantes alegadamente recebidos e não entregues ao Estado suscetíveis de integrar a prática de um único crime de Abuso de confiança fiscal, do art. 105.º, do RGIT.
II - A sentença pode especificar a discriminação do documento sem que isso implique uma alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação.
III – O que é decisivo na notificação efetuada ao abrigo e para os efeitos do art. 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não é a correta liquidação dos montantes em causa mas a atitude que o contribuinte assume face à mesma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 3760/12.2IDPRT.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do 3º Juízo Criminal de Matosinhos que rejeitou a acusação por ele deduzida contra B…, C… e “D…, Ldª” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1. Constitui objeto do presente recurso o despacho proferido a fls. 934-938 que nos termos do disposto no art. 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, rejeitou o recebimento da acusação pública deduzida nos autos pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, por entender que:
(i) Os montantes alegadamente recebidos e não entregues ao Estado não se encontram devidamente discriminados com referência aos respetivos períodos.
(ii) Não está verificada a condição objetiva de punibilidade constante do art. 105.º, n.º 1, alínea b), do RGIT, em relação a alguns períodos.
(iii) A incriminação limita-se a referir o art. 105.º do RGIT, sem qualquer alusão ao n.º 1 ou ao n.º 5 do mencionado preceito legal.
(iv) Não são descritos factos que permitam extrair uma única resolução criminosa dos arguidos.
2. Como ponto prévio, cumpre referir que a acusação só poderá ser considerada como “manifestamente infundada” para efeitos de recusa de recebimento em sede de saneamento, nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 311.º, do Código de Processo Penal, quando padeça de “falhas processuais evidentes que manifestamente inviabilizam a sua procedência” – cf. Código de Processo Penal anotado pelos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, 2009, pp. 766, nota 5.
3. Na verdade, a possibilidade de o juiz rejeitar liminarmente a acusação, atenta a avaliação indiciária que faz da mesma em sede de saneamento, terá que se limitar àqueles casos em que mesmo que procedessem os factos narrados, julgamento seria ato inútil, limitando-se aos casos em que seja clara a ausência de fundamento.
4. Concretizando, a acusação será liminarmente rejeitada quando:
(i) Não for suscetível de fixar o objeto do processo, conforme lhe é exigível pela estrutura acusatória do processo penal – cf. art. 32.º, n.º 5, da Constituição;
(ii) Não permitir ao arguido o exercício de uma defesa cabal dos factos que concretamente lhe são imputados, de forma a assegurar um processo justo e leal – cf. art. 32.º, n.º 1, da Constituição e 6.º, n.º 3, alínea a), da CEDH.
5. Contudo, tal não implica que a acusação tenha que ser de tal modo pormenorizada que outros factos, que estejam relacionados com o “thema decidendum”, como sejam os que venham a resultar da discussão da causa, não possam vir a ser atendidos, nos termos do disposto no art. 368.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
6. In casu, a acusação encontra-se devidamente elaborada, com desenvolvimento factual lógico, onde estão descritos e circunscritos temporalmente os factos praticados, o elemento subjetivo da atuação dos arguidos e a qualificação jurídico-penal da conduta acusada não sendo, por conseguinte, “manifestamente infundada”.
7. No que concerne à discriminação dos montantes não entregues resulta concretamente da acusação que nos “meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2012, os arguidos receberam dos clientes a quantia global de cento e cinquenta e dois mil e cinquenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos” que ao invés de a entregarem ao Estado conforme estavam obrigados a utilizaram “para fins empresariais, nomeadamente, o pagamento de fornecimentos, financiando-se à custa do Estado Português”.
8. Sendo que, apesar de não referir em concreto qual o montante recebido e não entregue em cada período mensal, a acusação remete expressamente para a notificação feita aos arguidos nos termos do art. 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, que discrimina em concreto tais montantes, o que é perfeitamente admissível – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em 06/12/2002, em acórdão proferido no âmbito do processo n.º 02P3615, disponível em www.dgsi.pt.
9. A forma como a acusação está redigida, não só não prejudica a cabal defesa dos arguidos, como não prejudicou a capacidade de apreensão dos montantes em causa pelo Tribunal, que no despacho que rejeitou a acusação deduzida nos autos, apreciou e ponderou os montantes concretamente em dívida nos respetivos períodos mensais – cf. fls. 937, último e penúltimo parágrafo.
10. No que respeita à alegada inexistência de elementos que permitam aferir uma única resolução criminosa, cumpre esclarecer que ao longo do segmento acusatório o Ministério Público imputa aos arguidos sempre a mesma conduta, praticada de forma homogénea que se prolongou por seis meses, dando especial ênfase à quantia global dos montantes de que os mesmos ilegitimamente se apropriaram.
11. Por outro lado, o elemento subjetivo está descrito de forma global e una, de forma a demonstrar a resolução criminosa única adotada pelos arguidos, sendo certo que ainda que assim não se entendesse, tal resultaria inequívoco da ponderação global da factualidade em causa.
12. Acresce que a imputação aos arguidos de um único crime de abuso de confiança fiscal na execução de uma única resolução criminosa, é inequivocamente mais favorável aos mesmos, pelo que ainda que existisse alguma ineficiência na descrição dos factos, esta sempre seria a favor dos arguidos e jamais colidiria com os seus direitos de defesa.
13. De outro prisma, entendemos que o Ministério Público indicou as disposições legais aplicáveis relevantes para efeitos de qualificação jurídica, mencionando expressamente a norma constante do art. 105.º, do RGIT, apenas se olvidando de indicar as disposições relativas à moldura penal aplicável contidas no n.º 1 ou 5 do referido preceito legal.
14. Tal omissão, embora indesejável, não inquina a procedência da acusação em sede de audiência de discussão e julgamento na medida em que as disposições conjugadas dos arts. 339.º, n.º 4 e 358.º, n.º 3, ambas do Código de Processo Penal, permitem a livre qualificação jurídica pelo tribunal de julgamento com a restrição da comunicação prévia de tal alteração ao arguido.
15. Por último, resta referir que se encontra verificada a condição objetiva de punibilidade constante da alínea b) do n.º 4 do art. 105.º, do RGIT, na medida em que a mesma não carece de ser efetuada apenas com referência aos valores efetivamente recebidos relevantes para efeitos de imputação jurídico-penal nos termos do n.º 2.
16. Com efeito, a alínea b) n.º 4 do art. 105.º, do RGIT, refere que a notificação aí prevista é feita para pagamento da “prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração” bem como dos “juros respetivos” e do “valor da coima aplicável”. Trata-se de permitir ao agente executar uma ação positiva no sentido de reparar a lesão provocada no erário público e não o mero pagamento da quantia relevante para efeitos criminais, pois de outro modo, não faria sentido o mencionado preceito legal referir-se aos juros e ao valor da coima.
17. Acresce que os arguidos, recebida tal notificação, sempre poderiam ter procedido à entrega dos montantes recebidos e não entregues, o que não ocorreu, sendo certo que “a condição objetiva de punibilidade não reside no conteúdo concreto da notificação efetuada pela entidade tributária, em si mesmo, mas sim, na atitude que o contribuinte assume face à mesma, no sentido de reparar a lesão do bem jurídico – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 04/06/2013, proferido no âmbito do processo n.º 299/09.7IDSTB.B.E1, disponível em www.dgsi.pt.
18. Pelo exposto, entendemos, salvo melhor entendimento, que a decisão recorrida violou o disposto nos arts.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal e 105.º do RGIT.»
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Não foi apresentada resposta à motivação do recurso.
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O Ministério Público junto desta instância apôs o seu visto.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
É o seguinte o teor do douto despacho recorrido: (transcrição)
«Autue como processo comum, com intervenção do tribunal singular.
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O tribunal é competente.
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Uma vez que a sociedade arguida não constitui mandatário nem lhe foi nomeado defensor oficioso, cumpre reparar tal irregularidade.
Assim, proceda-se à indicação de defensor à sociedade arguida através do “SINOA”.
Após, notifique anote.
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Deduziu o Ministério Público acusação contra “D…, Lda”, B… e C…, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT, de ora em diante), sendo a sociedade arguida criminalmente responsável nos termos do art. 11º do CP e 7º do RGIT.
Nos termos previstos no art. 311º nº 2 al. a) do Código de Processo Penal, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
Por seu turno, e conforme redação introduzida pela Lei 59/98, estabelece o nº 3 do mesmo artigo, que “a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; al. b) quando não contenha a narração dos factos; al. c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; al. d) se os factos não constituírem crime”. Em consonância, dispõe o nº 3 als. a), b) e c) do art. 283º do CPP que “a acusação contém, sob pena de nulidade: as indicações tendentes à identificação do arguido, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (...) e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
As exigências vindas de referir a que está sujeita a acusação e cuja inobservância a fazem ferir de nulidade e autorizam a sua rejeição, encontram não só fundamento na conformação constitucional do processo penal português à estrutura acusatória do processo, como refletem, de igual modo, e com idêntica preocupação, a consagração plena e cabal do direito de defesa do arguido.
A importância da acusação é por demais evidente, no sentido em que é tal peça processual que vai definir o objeto do processo e do julgamento, sendo a narração dos factos uma decorrência lógica do princípio da vinculação temática. (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág.112). Além do que é a acusação que permite e possibilita, num processo com a estrutura acusatória, o cabal e pleno exercício do direito de defesa. Acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios termos, não tem condições de viabilidade (assim, Maia Gonçalves, in Cód. Proc. Penal Anotado, pág. 573).
No caso dos autos, imputam-se os seguintes factos aos arguidos, que na perspetiva do Ministério Público, são subsumíveis a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art. 105.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT):
“A sociedade arguida é uma pessoa coletiva e encontra-se enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, para efeitos de IVA, pelo exercício da atividade de “valorização de resíduos não metálicos” que exerce de facto e de direito na R. …, .., em ….
Os arguidos B… e C… são os únicos sócios e gerentes da sociedade arguida.
Pelo exercício da atividade, a sociedade arguida e os arguidos entregaram na Repartição de Finanças as declarações periódicas de IVA, mas não enviaram, contudo, o meio de pagamento referente às quantias a entregar nelas constantes.
Assim, referente aos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2012, os arguidos receberam dos clientes a quantia global de cento e cinquenta e dois mil e cinquenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos.
A quantia em causa foi utilizada pelos arguidos para fins empresariais, nomeadamente, o pagamento de fornecimentos, financiando-se à custa do Estado Português.
De igual modo não procederam ao pagamento voluntário dos montantes em dívida, acrescidos dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, decorrido o prazo de 30 dias a contar da notificação nos termos e para efeitos do art. 105º nº 4 do RGIT – conforme fls. 72 dos autos.
Como consequência direta e necessária da conduta dos arguidos, ficou o Estado prejudicado no valor global de cento e cinquenta e dois mil e cinquenta e cinco euros e vinte e nove cêntimos.
Os arguidos agiram da forma descrita apesar de saberem que a sociedade arguida não tinha o direito de usar para fins de conveniência particular da empresa, aliás, definidos pelos próprios arguidos, montantes em dinheiro que deveriam entregar nas Finanças e que estavam em poder da empresa por esta os ter descontado do montante total das obrigações pecuniárias por si cumpridas.
Violaram a confiança que o Estado neles depositou, que lhes confiou a tarefa de reter os montantes em causa, obtendo para a sociedade arguida, como era sua intenção, uma vantagem patrimonial indevida, à custa da diminuição do património do Estado.
Agiram os arguidos livre, consciente e voluntariamente, bem a sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei”.
Dispõe o art. 105º da Lei 15/01 de 5/6 que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias”.
Dispõe ainda o art. 105º do RGIT, que quando a prestação cuja entrega não é efetuada é de valor superior a 50.000 euros, o ilícito é qualificado, passando a ser punível, já não com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, mas com pena de prisão de um a cinco anos.
Pela leitura do referido normativo, e por falta de disposição legal em contrário, facilmente se constata tratar-se de um crime punível apenas a título de dolo.
O tipo legal em apreço protege o bem jurídico consubstanciado no direito de crédito do Estado pela cobrança dos impostos, no caso, do IVA.
Para que o tipo legal em questão se tenha por preenchido é assim necessário que, não ocorrendo o pagamento nos 90 dias subsequentes ao termo do prazo legalmente previsto para o efeito, o montante devido e retido se dilua nos meios financeiros da empresa ou dos seus titulares que deles passa a dispor, como sendo seus, para satisfazer outros compromissos.
Por outro lado, e por força da nova redação dada ao art. 105º nº 4 do RGIT, pela Lei 53-A/06, que entrou em vigor a 1/1/2007 (art. 14º da Lei preambular) para que a conduta do agente seja punida é ainda necessário que, decorrido o já referido prazo de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação em falta (nº 4 do art. 105º), o agente não proceda ao pagamento da prestação devida ao Estado, constante da correspondente declaração que lhe foi remetida, acrescida de juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (al. b) do mesmo nº 4 do art. 105º, agora introduzido).
Tal alteração veio introduzir mais uma condição objetiva de punibilidade ao ilícito em questão, tal como de resto se entendeu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2008 (DR, I, nº 94, de 15/05), aplicável mesmo aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
Do exposto resulta, assim, que para que determinado comportamento seja subsumível ao ilícito típico em presença, torna-se necessário, do lado objetivo, que o agente não entregue, total ou parcial, ao Estado, o montante de imposto legalmente devido, exigindo-se, do lado subjetivo, que tal conduta se configure como dolosa, em qualquer uma das modalidades previstas no art. 14º do CP.
Por outro lado, haverá ainda que ter decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação, e a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não ter sido paga, acrescida dos juros respetivos, o que se reconduz às condições objetivas de punibilidade já acima assinaladas e sucessivamente introduzidas.
E só na presença de factos que descrevam e integrem os referidos elementos objetivos e subjetivos, bem como as elencadas condições de punibilidade, a acusação que impute o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal poderá ter viabilidade e, provando-se, logrará proceder.
Analisada a acusação deduzida contra os arguidos, desde logo se verifica que não são descritos os concretos montantes não entregues ao Estado e os períodos aos mesmos respeitantes.
É que são elementos objetivos do tipo a não entrega à administração tributária, total ou parcialmente, de prestação tributária, que o agente estava legalmente obrigado a entregar, de valor superior a 7.500 euros, deduzida nos termos da lei.
Tal omissão dos valores e respetivos períodos a que respeitam, não só contraria o disposto no art. 105º nº 7, na medida em que os valores a considerar são os que nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária, como não permite concluir qual a data em que essa não entrega se venceu, posto que o IVA é um imposto de auto-lançamento, ou auto-liquidação, já que a mesma cabe ao próprio contribuinte, nos termos do disposto nos arts. 26º, nº 1 e 40º, nº 1, al. b) do Código do IVA, a entrega nos serviços do IVA a declaração periódica correspondente, acompanhada do montante do imposto exigível, relativa às operações efetuadas no exercício das suas atividades até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre civil a que respeitam as operações.
Acresce, ainda, que só sendo punível a não entrega de prestação de valor superior a 7.500 euros, não resultando da acusação qual o valor de cada uma das prestações não entregues, torna-se impossível determinar a punibilidade do comportamento dos arguidos.
Por outro lado, sendo o valor das prestações não entregues elemento essencial à determinação da reação criminal aplicável, tal omissão implicará ainda a indefinição quanto à moldura penal aplicável, já que quando a prestação não entregue excede 50.000 euros, a conduta passa a ser punida com a moldura penal agravada contida no nº 5 do art. 105º.
Além disso, e por a verificação da notificação a que alude o art. 105º n.º 4 alínea b) do RGIT constituir uma condição objetiva de punibilidade, essa mesma notificação deverá ser efetuada por referência aos valores concretamente referentes a cada período - o que tem óbvias implicações em sede da própria punibilidade da conduta. Como já acima se viu, tal notificação constitui uma condição objetiva de punibilidade, pelo que a sua não verificação, ou qualquer invalidade no seu cumprimento, impede que a descrita conduta dos arguidos possa ser punida.
No caso dos autos, analisando as notificações realizadas aos arguidos, constata-se que não foi observado o disposto no art. 105º nº 1 al. b) do RGIT.
Com efeito, as notificações efetuadas aos arguidos C… e B…, a fls. 437 e 432, não dizem respeito aos valores efetivamente recebidos (cfr. fls. 825), no que concerne os valores referentes aos meses de Maio, Junho e Julho.
Por sua vez, a notificação relativa aos arguidos C… e B…, respeitante ao mês de Agosto, nem sequer descrimina o valor em dívida (fls. 886) ou descrimina tal valor erradamente (fls. 430).
Tal implica, na nossa perspetiva, não mostrar verificada, sequer, a aludida condição de objetiva de punibilidade.
Mas ao exposto ainda acresce a circunstância de a acusação deduzida se limitar a indicar, como disposições legais aplicáveis, o art. 105º do RGIT. Não é indicada a moldura aplicável ao descrito comportamento dos arguidos, na medida em que o mesmo não é cominado com referência nem ao nº 1, nem ao nº 5 do aludido preceito.
Por outro lado, a acusação não descreve factos suscetíveis de permitirem a imputação de uma única resolução criminosa, ou de várias resoluções, o que evidentemente tem relevo para a qualificação jurídica dos comportamentos narrados.
As apontadas omissões, quer pela invalidade do cumprimento da condição objetiva de punibilidade acabada de referir, quer ainda por consubstanciarem a falta de descrição de factos que importam ao preenchimento do crime acusado e a falta de indicação das disposições legais aplicáveis, tornam nula a acusação deduzida, tal como resulta do acima transcrito art. 283º nº 3 als. a) e b), e conduzem à sua rejeição, por a acusação ser manifestamente infundada, tal como decorre agora do disposto no art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 als. b) e c), todos do CPP.
Por tudo o exposto, rejeita-se a acusação pública deduzida contra os arguidos “D…, Lda”, B… e C…, por a mesma ser manifestamente infundada, nos termos previstos no art. 311º nº 2 al. a) e nº 3 als. b) e c) do CP.
Sem custas.
Notifique.»
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III – O DIREITO
A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve, ou não, ser rejeitada a acusação em apreço.
Nos termos do artigo 311º, nº 2, a), do Código de Processo Penal, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o juiz despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada. Nos termos do nº 3 do mesmo artigo, a acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a identificação do arguido (alínea a)); quando não contenha a narração dos factos (alínea b)); se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam (alínea c)); ou se os factos não constituírem crime (alínea d)).
Importa considerar, a este propósito, a função da acusação na delimitação do objeto do processo, delimitação que é essencial para salvaguarda da estrutura acusatória do processo (artigo 32º, nº 1, da Constituição) e para garantia dos direitos de defesa do arguido (nº 5 de mesmo artigo).
Os motivos que levaram à rejeição da acusação pelo douto despacho recorrido foram os seguintes:
- os montantes alegadamente recebidos e não entregues ao Estado não se encontram devidamente discriminados com referência aos respetivos períodos;
- não são descritos factos que permitam extrair uma única resolução criminosa dos arguidos;
- a incriminação limita-se a referir o artigo 105.º do R.G.I.T., sem qualquer alusão ao n.º 1 ou ao n.º 5 deste do preceito legal, onde se alude a duas molduras penais distintas;
- não está verificada a condição objetiva de punibilidade constante do art. 105.º, n.º 4, alínea b), do R.G.I.T., em relação a alguns períodos.
Vejamos, então, cada uma destas questões.
Em relação à não discriminação, com referência aos períodos respetivos, dos montantes alegadamente recebidos e não entregues ao Estado, não se nos afigura que se trate de uma omissão de narração de factos que ponha em causa a função da acusação de delimitação do objeto do processo. Não será por esse motivo que esse objeto deixa de estar suficientemente delimitado.
Por um lado, porque na acusação se faz uma remissão para o documento junto a fls. 72, onde se faz essa discriminação. Essa remissão é admissível desde que não torne pouco clara, ambígua ou duvidosa a imputação de factos ao arguido (ver, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 2002, proc. nº 02P3615, relatado por Pereira Madeira, e os acórdão desta Relação de 30 de novembro de 2011, proc. nº 278/09.4PRPRT, e de 24 de outubro de 2012, proc. nº 291/10.9PAVFR, ambos relatados por Pedro Vaz Pato, todos in www.dgsi.pt). E tal não se verifica neste caso.
Por outro lado, a acusação não deixa de aludir aos meses e anos a que são relativas as prestações em falta, indicando também a quantia global em falta. A discriminação das prestações relativas a cada um desses meses representará apenas uma especificação de um facto descrito de forma mais ampla e sucinta. Essa descrição mais ampla e sucinta pode aceitar-se por estar em causa uma única resolução criminosa e um único crime relativos à globalidade dessas quantias. E essa descrição mais ampla e sucinta na acusação não impedirá que na sentença possa fazer-se a especificação que se traduz nessa discriminação com referência aos períodos respetivos, sem que tal implique alteração, substancial ou não substancial, dos factos naquela descritos (ver, em relação a situações análogas, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 1997, in B.M.J. nº 467, pgs. 419 e segs, e o acórdão da Relação de Guimarães de 22 de abril de 2013, in C.J., II, pg. 313).
Quanto à indicação dos factos que consubstanciam a existência de uma única resolução criminosa por parte dos arguidos C… e B…, afigura-se-nos que isso se verifica de forma implícita, mas inequívoca (e quanto à admissibilidade de uma indicação implícita, mas inequívoca, dos factos que consubstanciam o elemento subjetivo do crime, na acusação ou no requerimento de abertura de instrução, pode ver-se, também, o acórdão desta Relação de 24 de outubro de 2012, acima referido). É o que resulta, claramente, da forma global e abrangente como é mencionada a intenção dos arguidos ao atuar da forma descrita (também ela de forma global, como vimos).
Quanto à indicação do crime imputado aos arguidos, é verdade que deveria completar-se essa indicação com a especificação do número (um ou cinco) relativo às duas molduras penais aplicáveis consoante o valor da quantia não entregue em causa. Mas, também a este respeito, pode dizer-se que, uma vez que está indicado com precisão o valor global da quantia não entregue, se verifica uma indicação implícita do número em questão, a ponto de não deixar dúvidas aos arguidos quanto ao crime que lhes é imputado e à moldura penal respetiva. Os arguidos não deixam de saber com o que contam e aquilo de que devem defender-se. Os seus direitos de defesa não são deste modo postergados.
Quanto à eventual não verificação da condição objetiva de punibilidade (assim qualificada pelo acórdão de fixação de jurisprudência nº 6/2008, de 9 de abril, publicado no Diário da República, Iª serie, de 15 de maio de 2008) decorrente da alínea b) do nº 4 do artigo 105º do R.G.I.T., há que considerar o seguinte.
Estatui este preceito que os factos a que se reportam os números anteriores desse artigo não são puníveis se a prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de trinta dias após notificação para o efeito.
Considera o douto despacho recorrido que não se verifica esta condição de punibilidade porque as notificações dos arguidos C… e B… relativas aos meses de maio, junho e julho não dizem respeito aos valores efetivamente recebidos e a notificação desses arguidos relativa ao mês de agosto nem sequer discrimina o valor em dívida, ou discrimina esse valor erradamente.
Deve, porém, considerar-se que não é decisiva para a verificação desta condição objetiva de punibilidade a correção da liquidação das quantias em falta. Decisivo não é o conteúdo concreto da notificação efetuada, mas a atitude que o contribuinte assume face à mesma; basta que essa notificação tenha sido efetuada, independentemente da correta liquidação dos montantes em causa, e que as quantias indevidamente retidas não tenham sido pagas, para que se verifique esta condição objetiva de punibilidade (assim, o acórdão da Relação de Évora de 4 de junho de 2013, proc. nº 299/09.7IDSTB, relatado por Fernando Pina, in www.dgsi.pt ). A existência de uma disparidade entre os valores constantes da notificação efetuada e os que foram, a final, considerados relevantes para efeitos de condenação pelo crime de abuso de confiança fiscal não invalida que se tenha por verificada a condição objetiva de punibilidade (assim, o acórdão desta Relação do Porto de 6 de janeiro de 2010, proc. nº 130/03.7IDAVR, relatado por Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt). Há, até, quem considere que nada impõe que na notificação em causa se concretizem os valores em dívida (assim, o referido acórdão da Relação de Évora e o acórdão desta Relação do Porto de 24 de setembro de 2008, proc. nº 0811683, relatado por Maria Leonor Esteves, também in www.dgsi.pt).
Não pode, assim, considerar-se que a acusação em apreço é manifestamente infundada, devendo esta ser, por isso, recebida.
Deve, pois, ser concedido provimento ao recurso.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando que o despacho recorrido seja substituído por outro, que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público contra B…, C… e “D…, Ldª” pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias.
Sem tributação.
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Porto, 25 de Março de 2015
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Lobo
Alves Duarte