Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
274/17.8T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CONCURSO APARENTE
Nº do Documento: RP20210208274/17.8T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A perícia é um meio de prova a ser avaliado, conjuntamente com as outras provas, livremente pelo tribunal, embora com as limitações impostas pelos juízos técnicos dela constantes. Deve ser mantida a matéria de facto livremente e bem decidida, com base nos juízos técnicos dos Srs. Peritos, não infirmados por outras provas;
II - O julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base no juízo adquirido no processo;
III - A responsabilidade civil comporta a contratual (obrigacional), fundada em violação do contrato (falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, estando em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários e pode resultar do não cumprimento de deveres principais/essenciais ou de deveres acessórios/secundários) e a extracontratual (delitual/aquiliana) que emerge não de violação de contratos mas sim da violação de normas que impõem deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado (violação de normas gerais que tutelam interesses alheios, de deveres genéricos de respeito).
IV - Situações se geram de concurso entre responsabilidade contratual e aquiliana, mais frequente no domínio do cumprimento defeituoso, caminho fértil para danos diversos do domínio contratual e delitual, podendo uma única pretensão indemnizatória ter aquele duplo fundamento;
V - Tal concurso não é, porém, real, efetivo mas meramente aparente (concurso de normas) dado que sempre que há violação de contratos nos temos de mover no específico regime destes (que consome o regime delitual), imbuído do princípio da autonomia privada (405º, do CC) e da liberdade contratual (nº1, do art. 406, do CC), em todas as suas vicissitudes, o qual, atento o espírito do sistema, se não pode abandonar, sequer em matéria de ressarcimento de danos;
VI - O princípio geral da responsabilidade obrigacional, enunciado no art. 798º, do CC, como na responsabilidade extracontratual (art. 483º), supõe um ilícito (o incumprimento de obrigação), a culpa, um dano e uma relação causal entre aquele e este, sendo que naquele regime há uma presunção geral de culpa do devedor (nº1, do art. 799º) e neste, em regra, tem de ser provada pelo credor da indemnização (nº1, do art. 487º) (tal como os restantes pressupostos –nº1, do art. 342º, do CC), embora o legislador tenha estabelecido, em casos de prova difícil, situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa se presume, sendo um desses casos o exercício de atividade tida por perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (nº2, do artigo 493º, todos preceitos daquele diploma), como será o caso da atividade de abertura de furos artesianos;
VII - É violadora de obrigação concretamente assumida, logo se desenhando, por isso, ilicitude contratual, a qual sempre, inevitavelmente, decorreria do próprio princípio da boa fé no cumprimento das obrigações (nº2, do art. 762º), a atuação da empreiteira que executa furo artesiano garantindo a não ocorrência de danos na habitação e anexos dos credores e que, não executando de forma correta método utilizado, efetua, deficientemente, o furo, realizando-o com, pelo menos, 30 metros de profundidade e originando buraco de mais 9 metros, que teve de ser tapado com entulho, e, em consequência, estragos naquela habitação e anexos, incorrendo em responsabilidade contratual por violação de deveres contratuais, quer principais quer secundários e acessórios de conduta, como o de proteção e de consideração pelos interesses da outra parte.
VIII - E não se materializando risco contratado pelo contrato de seguro - “Multiriscos Empresa”, com local de risco: a sede da mesma (devedora) e os danos ocorridos no imóvel do credor, no exercício da atividade - não se gera a obrigação de indemnizar da seguradora, ficando tal obrigação a cargo da devedora, civilmente responsável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 274/17.8T8AVR.P1
Processo do Juízo Central Cível de Aveiro – J1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…, Unipessoal, L.da,
Recorridos: C… e mulher D…

C… e mulher, D…, intentaram ação, com processo comum, contra B…, Unipessoal, L. da, e E…, S.A., atualmente denominada F…, S.A., pedindo a condenação das Rés a pagar-lhes:
a) o valor de € 68.680,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, a título de danos patrimoniais, pelos danos emergentes descritos e quantificados na petição inicial, provocados no prédio urbano de que são proprietários identificado no artigo 1.º da petição, na sequência e por causa da deficiente execução pela 1ª Ré do furo de captação de águas;
b) o valor de € 10.000,00, a título de danos não patrimoniais;
c) os custos de reparação dos danos que vierem a produzir-se na habitação, em consequência da execução do furo de captação de águas e que não sendo imediatamente visíveis, venham a verificar-se mais tarde ou excedam o valor já quantificado, o que se relega para execução de sentença;
d) os juros legais vencidos entre a data da produção do facto danoso (24/02/2014) e a data da citação, e os vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alegam, para tanto e resumidamente, que são proprietários do prédio urbano composto de casa de habitação com dois pisos, sita na Rua …, nº .., …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Anadia sob o n.º 5692/20020312- …, que em finais de 2013, tendo em vista a execução de um furo de captação de águas subterrâneas no seu prédio, contactaram a 1ª Ré, a qual, tendo realizado o respetivo estudo hidrogeológico prévio, procedeu à elaboração do orçamento e, adjudicada a empreitada, a 1ª Ré deu início aos trabalhos de execução do furo, os quais tiveram lugar entre 14 e 24 de fevereiro de 2014, sendo que a seleção do lugar (que dista cerca de 2 metros em relação à moradia dos AA.), do método de perfuração, da profundidade a atingir e das formações geológicas a perfurar foram da exclusiva responsabilidade da 1ª Ré.
Mais alegam que o método de perfuração consistiu na perfuração por “rotação com circulação direta” e que com a aplicação deste método apenas se logrou atingir a profundidade de 18 metros, pelo que decidiu a 1ª Ré aplicar, a partir dessa profundidade, o método de perfuração por “rotopercussão”, tendo logrado atingir a profundidade de 60 metros. Nesse dia, no momento em que os operários regressaram do almoço, verificou-se a existência de um buraco de enormes dimensões sob a máquina, bem como o alagamento do furo aos 30 metros de profundidade, tendo sido necessário proceder-se ao enchimento do buraco com cerca de 9 metros de entulho. Alguns dias volvidos, viriam a aparecer as primeiras fissuras nas paredes dos anexos da moradia pertencente aos AA., bem como azulejos partidos. Imediatamente contactado o legal representante da 1ª Ré, este dirigiu-se ao local, confirmou a existência dos aludidos danos materiais e reconheceu que os mesmos foram causados pela (deficiente) execução do furo. A reparação dos danos que o imóvel dos AA. apresenta só será possível após a estabilização dos solos com a injeção de calda de cimento, sob toda a área do imóvel dos AA., o que importa em € 48.820,00 (+ IVA) e, após, deverão ter lugar os trabalhos de reparação dos danos identificados nos artigos 32.º a 43.º da petição, no valor de € 19.860,00 (+ IVA).
Alegam, ainda, que a 1ª Ré participou o sinistro à 2ª Ré, com quem tinha celebrado contrato de seguro “Multirriscos Empresas” titulado pela Apólice n.º ........... e que a 2ª Ré comunicou aos AA., a 02/11/2015, que não assumia qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos reclamados por estes.
A 1º Ré B…, Unipessoal, L.da contestou defendeu que a localização do sítio de perfuração foi imposta pelo A. C…, que a perfuração decorreu de forma regular, tendo sido salvaguardadas todas as normas de segurança e as regras de arte da especialidade e não foram por si efetuados quaisquer trabalhos para além da profundidade de 30 metros e que o legal representante da 1ª Ré informou os AA. que iria reportar a situação à sua seguradora, não porque tenha reconhecido que os referidos danos tivessem sido causados pela execução do furo, mas porque, tendo transferido a responsabilidade para a 2ª Ré, é a esta que compete peritar os sinistros e decidir da responsabilidade pela reparação de eventuais danos, mas que os danos que os AA. pretendem ver reparados se devem, não à execução do furo, mas sim ao facto de a habitação dos AA. ter sido construída sobre solo arenoso e instável, sem que tenham sido tomadas em conta, aquando da construção, essas variáveis.
A Ré F…, S.A., contestou invocando que o contrato de seguro “Multirriscos Empresas”, titulado pela Apólice n.º ........, que celebrou com a 1ª Ré B…, Unipessoal, Lda, garante apenas a responsabilidade civil extracontratual desta em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa.
Os Autores responderam afirmando que o contrato de seguro garante a responsabilidade profissional da B…, Unipessoal, Lda.
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Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“A) julgo a ação improcedente quanto à Ré Seguradora, que absolvo de todos os pedidos;
B) julgo a ação parcialmente procedente quanto à 1ª Ré B…, Unipessoal, L.da, em resultado disso:
a) condeno esta Ré a pagar aos AA., por danos patrimoniais, € 68.680,00, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, com juros de mora contados desde a citação, à taxa cível legal, até pagamento efetivo;
b) condeno a mesma Ré B…, Unipessoal, L.da, a pagar a cada um dos AA., por danos não patrimoniais € 3.000,00, com juros de mora a contar da data da prolação da sentença;
c) absolvo esta 1ª Ré de tudo o mais contra ela pedido.
Custas pelos AA. e Ré B…, na proporção de vencido, que se fixa em 1/2.”.
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A Ré B… apresentou recurso de apelação pugnando por que se revogue a sentença recorrida e se substitua por acórdão que julgue a ação totalmente improcedente, formulando, para tanto, as seguintes extensas CONCLUSÕES:
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A Ré F…, SA ofereceu contra-alegações a pugnar por que seja negado provimento ao recurso e confirmada a sentença recorrida na parte em que a absolveu do pedido, pois que o contrato de seguro dos autos é um seguro multirriscos, a garantir, quanto a responsabilidade civil extracontratual, apenas a da 1ª Ré em relação a sinistros ocorridos na sede da empresa, não sendo, como resultou provado, um seguro que garanta a responsabilidade “profissional” (atividade em perfurações e sondagens) da B…, Unipessoal, L.da, nem responsabilidade civil contratual desta, como decidido foi ser o caso dos autos.
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Após não admitida a junção dos documentos oferecidos com as alegações de recurso e de julgadas improcedentes a arguida nulidade processual e a invocada nulidade da sentença, foi rejeitado o recurso da matéria de facto por incumprimento, pela Apelante, dos ónus impostos nas alíneas b) e c), do nº1, do art. 640º, do CPC, e apreciado do erro da decisão de mérito foi julgada a apelação improcedente e, em consequência, confirmada a decisão recorrida.
Interposto recurso do referido Acórdão, foi o mesmo julgado procedente, pelo Supremo Tribunal de Justiça que, revogando o Acórdão recorrido, determinou se conhecesse “do recurso de apelação, tanto no que se refere à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, como ao pedido de reapreciação da decisão de direito”.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
- OBJETO DO RECURSO
Assim, e sendo o recurso balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, as questões a decidir são as seguintes:
1. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
2. Do erro na decisão de mérito:
2.1. Da responsabilidade civil da 1ª Ré: natureza (contratual e/ou aquiliana), concurso, pressupostos e limites;
2.2. Da materialização do risco, objeto do contrato de seguro, no sinistro e da transferência da obrigação de indemnizar da 1ª Ré para a 2ª Ré, por força do dito contrato entre ambas celebrado - “Multiriscos empresas”, “local do risco – sede”.
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II. A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Foram dados como provados na 1ª Instância os seguintes factos (transcrição):
1- Na Conservatória do Registo Predial de Anadia, está descrito, sob o n.º 5692/20020312 da freguesia …, o seguinte prédio:
Prédio urbano, sito na Rua …, n.º .., …, com a área coberta de 241 m2, descoberta de 139 m2, inscrito na matriz predial sob o artigo urbano n.º 2963-P, composto por casa de habitação de r/c e 1.º andar, jardim e logradouros – fls. 19 (A).
2- Está inscrito, pela Ap. 34 de 2002/05/28, por compra, a favor de C…, casado com D… no regime de comunhão de adquiridos – fls. 19 (B).
3- A ora 1ª Ré B…, Unipessoal, L.da, é titular do Alvará n.º .././2011 com Licença para o Exercício da Atividades de Pesquisa, Captação e Montagem de Equipamentos de Extração de Agua Subterrânea, emitido pela ARH Centro, IP, a 18/07/2011, tem o NIPC ……… e tem sede em …, concelho da Lousã – fls. 65/66 (C).
4- B…, Unipessoal, L.da, apresentou, a 18/01/2014, a pedido do A. C…, a proposta de orçamento constante de fls. 20/22, que se dá por reproduzido, designadamente quanto à profundidade do furo e técnicas a usar na perfuração, preço e modo de pagamento, o qual (orçamento) foi aceite pelo A. (D).
5- A obra foi realizada, em fevereiro de 2014, ao abrigo da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Pesquisa e Captação de Águas Subterrâneas, emitida pela APA, IP, constante de fls. 226/229 da qual era titular o ora A. C… (E).
6- O método de perfuração escolhido pela 1ª Ré consistiu na perfuração por “rotação com circulação direta”, método em que, por ação de uma bomba de alta pressão, as lamas são injetadas pelo interior da cabeça da sonda, saindo no fundo do furo por orifícios do trépano de roletes (triatleta), sendo que, de seguida, as lamas acendem pelo espaço compreendido entre a parede exterior das varas de perfuração e as paredes da sondagem, arrastando consigo os detritos da formação perfurada até à superfície (F).
7- Com a aplicação deste método, apenas se logrou atingir a profundidade de 18 metros, pelo que decidiu a 1ª Ré aplicar, a partir dessa profundidade, o método de perfuração por “rotopercussão” (ou percussão pneumática com martelo de fundo de furo) (G).
8- O método de perfuração por “rotopercussão” é baseado numa ação principal de esmagamento e corte provocada por uma ferramenta acionada por ar comprimido, em que se pode combinar um pequeno movimento de rotação de um “bit” (broca) transmitido pelas hastes de perfuração e um movimento de percussão de elevada frequência e de pequeno curso, dado por um martelo de fundo de furo (H).
9- Neste caso, o fluido de circulação é o próprio ar comprimido, produzido a partir de um compressor, que é transmitido pelo interior da coluna de perfuração, passando pelo martelo e “bit”, servindo também como fluido de limpeza (I).
10- B…, Unipessoal, L.da, celebrou com a E…, S.A., contrato de seguro “Multirriscos Empresas” titulado pela Apólice n.º ..........., com início a 16/11/2012, renovável, o qual incluía “responsabilidade civil extracontratual – exploração” até ao montante de €50.000,00 e responsabilidade civil extracontratual proprietário/arrendatário até ao montante de € 25.000,00, e uma franquia de € 75,00 – fls. 126/127 (J).
11- B…, Unipessoal L.da, participou à E…, S.A., a 11/03/2014, o seguinte sinistro:
“O segurado fez um trabalho «abrir furo de água» ao Senhor C…, agora o mesmo veio reclamar que os anexos estavam a rachar” – fls. 124/125 e 178/179 (K).
12- A 1ª Ré enviou ao ora A. marido a carta junta a fls. 25, datada de 11/03/2014, do seguinte teor: “Vimos por este meio informá-lo de que o processo na nossa seguradora, relativamente aos danos causados pela execução do furo de captação de água, já se encontra em andamento. A cópia da participação segue anexada a esta carta” (L).
13- No seguimento da aludida participação, a 2ª Ré fez deslocar um perito ao local, o qual procedeu ao levantamento fotográfico de todos os danos materiais visíveis, tendo ainda solicitado, aos AA., alguns documentos para instrução do processo de sinistro (M).
14- Algum tempo volvido sem obterem qualquer resposta por parte da seguradora 2ª Ré, encetaram os AA. contacto telefónico com aquela, tendo-lhe reportado o agravamento dos danos (N).
15- A seguradora 2ª Ré, de novo, fez deslocar o perito ao local no sentido de reavaliar a dimensão dos danos, tendo, nessa ocasião, sido constatada a existência de numerosas fissuras nas paredes dos anexos, r/chão e 1º andar do imóvel, mosaicos partidos e azulejos já desintegrados das paredes (O).
16- A 2ª Ré comunicou ao Ilustre Mandatário dos AA., a 02/11/2015, que não assumia qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos prejuízos reclamados pelos AA. (P).
17- Os AA., através da sua Advogada, enviaram à 1ª Ré, as cartas juntas a fls. 82 e 86, datadas, respetivamente, de 13/01/2015 e de 20/01/2015, que aqui se dão por reproduzidas (Q).
18- A 1ª Ré respondeu com as cartas juntas a fls. 84 e 88, datadas, respetivamente, de 14/01/2015 e de 22/01/2015, que aqui se dão por reproduzidas (R).
19- A seleção do local (a cerca de 2 metros de distância da moradia dos AA.) e das formações geológicas a perfurar foram da responsabilidade da 1ª Ré.
20- Aquela escolha do local da perfuração teve anuência do A. marido, por o representante legal da 1ª Ré ter garantido que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais.
21- Com a aplicação do método referido em 7 e 8 dos Factos Provados, logrou atingir-se a profundidade de, pelo menos, 30 metros.
22- No dia em que foi atingida a profundidade máxima de, pelo menos, 30 metros, os operários verificaram, no momento em que regressavam do almoço, a existência de um buraco perto da máquina.
23– E foi necessário proceder-se ao enchimento do buraco com cerca de 9 metros de entulho.
24- Alguns dias volvidos, viriam a aparecer as primeiras fissuras nas paredes dos anexos da moradia pertencente aos AA., bem como azulejos partidos.
25- Imediatamente contactado o legal representante da 1ª Ré, este dirigiu-se ao local e confirmou a existência dos aludidos danos materiais nos anexos da moradia.
26- A reparação dos danos que o imóvel dos AA. apresenta, em consequência da deficiente execução do furo pela 1ª Ré por não ter executado de forma correta o método “rotopercussão”, só será possível após a estabilização dos solos.
27- Sendo, para tanto, necessário proceder-se à injeção de calda de cimento, sob toda a área do imóvel dos AA.
28– O custo destes trabalhos é de, pelo menos, € 48.820,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
29- Uma vez estabilizados os solos com recurso à injeção de calda de cimento, deverão ter lugar os seguintes trabalhos de reparação dos danos causados pela deficiente abertura do furo, que importam em, pelo menos, € 19.860,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor:
a) remoção do cimentado do terraço com uma área de 46 m2;
b) reconstrução do cimentado do terraço com a colocação de ferro aramado, malha e sol e betão;
c) reparação da cozinha com a demolição de uma parte da parede frontal e posteriormente a reconstrução desta com a aplicação de um pilar e parede em tijolo;
d) Reboco das paredes danificadas, com aplicação de azulejo até ao teto na zona de intervenção;
e) pintura em toda a zona da intervenção;
f) reparação de uma porta de entrada em alumínio;
g) reparação de todas as fendas do hall, incluindo pintura; h) remoção de todas as loiças da casa de banho;
i) demolição de duas paredes da casa de banho e posterior reconstrução em tijolo e reboco das mesmas;
j) aplicação de azulejos até ao teto em toda a casa de banho, incluindo a aplicação de mosaico;
k) aplicação das loiças existente (não danificadas);
l) reparação das fendas de dois quartos, que consistirá em emassar, lixar e pintar;
30- Com o aparecimento dos primeiros danos e incessante agravamento dos mesmos, mergulharam os AA. num estado de permanente angústia, ansiedade, desespero e aflição.
31- Os AA. são pessoas humildes, que vivem dos parcos rendimentos do seu trabalho, ele motorista e a auferir um vencimento mensal de 700 €, ela costureira e a auferir o salário mínimo nacional.
32- Viviam felizes com a filha na casa de habitação que foram construindo pouco a pouco com as economias que iam amealhando, fruto de uma vida de trabalho.
33- A casa, que antes lhes proporcionava o conforto do lar, tornou-se numa fonte de problemas, com perda de comodidade e habitabilidade, em consequência das fissuras, brechas e fendas, que apresentam as paredes, tetos, azulejos e mosaicos, o que inviabiliza a utilização plena do imóvel.
34- Os AA. perderam a anterior alegria de viver na casa que orgulhosamente haviam construído com uma vida de trabalho, e sentem-se tristes, abatidos, deprimidos e completamente desanimados.
35- A obra foi efetuada através do método “rotação com circulação direta” por se tratar de um terreno com pouca firmeza e consistência.
36- A partir dos 18 metros de profundidade, tendo-se intersectado material mais consolidado e firme, procedeu-se à perfuração pelo método de “rotopercussão” até, pelo menos, aos 30 metros.
37- A Apólice n.º ........ que titula o contrato de seguro “Multirriscos Empresas” celebrado entre a 1ª Ré e a (ora) F…, S.A., garante apenas a responsabilidade civil extracontratual desta em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa.
38- O terreno em que foi construída a habitação dos AA. é arenoso.
39- Aquando da realização dos trabalhos, o terreno situado ao lado da máquina que efetuou o furo cedeu.
40- Os trabalhos foram interrompidos no dia 24 de fevereiro de 2014, sem conclusão do furo artesiano.
41- Foi aplicado pela Ré um tubo no furo.
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Foram considerados não provados os seguintes factos na 1ª Instância (transcrição):
Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão da causa, designadamente: a) a idade dos A. e da filha destes; b) verificou-se o alagamento do furo aos 30 metros de profundidade; c) a 1ª Ré reconheceu então, através do seu legal representante, que tais danos foram causados pela (deficiente) execução do furo (8º); d) com o aparecimento dos primeiros danos e incessante agravamento dos mesmos, os AA. passaram a mal se alimentar e a mal conseguir dormir; e) o local da perfuração – desse fator dependem as formações geológicas a perfurar – foi imposto pelo A. C…; g) a perfuração decorreu de forma regular, tendo sido salvaguardadas todas as normas de segurança e as regras de arte da especialidade; h) a Apólice n.º ........ que titula o contrato de seguro “Multirriscos Empresas” celebrado entre a 1ª Ré e a (ora) F…, S.A., garante a responsabilidade profissional da B…, Unipessoal, L.da; i) a Ré introduziu água no terreno (um antigo areal) a qual (introdução da água) fragilizou o mesmo, originando a sua cedência; j) com a aplicação do método referido em 7 e 8 dos Factos Provados, logrou atingir-se a profundidade de 60 metros.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. Da decisão da matéria de facto (fixação de tal matéria)
O Supremo Tribunal de Justiça, considerando que
“I. Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.
II. Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõe decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no art. 640º do CPC.”,
afirma que:
1- Relativamente aos factos provados nºs 4 e 5 a apelante indicou prova documental e testemunhal, procedendo à transcrição parcial dos depoimentos, e indicou o sentido da decisão (fls 462 vº a 463 vº e conclusões II a VII);
2- Quanto aos factos provados 19 e 20 e facto não provado da alínea e) aconteceu o mesmo, concluindo a apelante que devem ser dados como não provados aqueles factos 19 e 20 e como provada a alínea e) (fls 463 vº a 465 e conclusões VIII a XIV);
3- No que concerne aos factos provados 22, 23 e 39 verifica-se o mesmo, que no entender da apelante devem ser dados como não provados, indicando e transcrevendo, parcialmente, depoimentos de testemunhas (fls 465 a 467 e conclusões XV a XXIII);
4- Quanto aos factos provados 26, 27, 28, 29, 33, 35, 36, 38, 40 e 41 e facto não provado da alínea g[1]) ocorreu o mesmo, entendendo a apelante que devem aqueles factos provados ser dados como não provados e como provada a alínea g) (cfr. prova testemunhal transcrita de fls 467 a 476vº e conclusões XXIV a LXXIV);
5- Quanto ao facto provado 37 deu-se o mesmo, entendendo a apelante que tal facto deve ser considerado como não provado (cfr. prova testemunhal transcrita de fls 482 a 491 e conclusões CXIV a CLXX).
e determina seja apreciada a impugnação da matéria de facto.
Assim, considerados, que foram, cumpridos aqueles ónus, revisitada a prova, cumpre reapreciar os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O art. 662º, nº1, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve, pois, conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[2] (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[3].A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[4].
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[5], devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as partes e as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas – como declarações de parte e prova testemunhal -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão à Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto nos termos por ela pretendidos:
1- Quanto aos factos provados nºs 4 e 5[6], os mesmos bem foram considerados provados por terem já sido considerados assentes, com a anuência das partes (tendo o ilustre mandatário da apelante, até, poderes para confessar - v. fls 92 e 234 - e estando, mesmo, presente o legal representante da 1ª Ré, G…, v. fls 237), em audiência prévia, a fls 237 e segs, estando os mesmos provados por acordo das partes assumido nos articulados e conforme documentos referidos em tais factos, juntos aos autos. Aliás, é a própria apelante que o afirma, expressamente, na sua contestação, quando, a fls 54, refere ter remetido em Janeiro de 2014 o orçamento da obra a realizar (não impugnando o alegado nos arts 2º a 4º da petição inicial), aceitando a Ré B…, Unipessoal, L.da, ter apresentado, a pedido do A. C…, a proposta de orçamento constante de fls. 20/22, que se dá por reproduzida, aceite pelo A. e que a obra foi realizada, em fevereiro de 2014, ao abrigo da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Pesquisa e Captação de Águas Subterrâneas, emitida pela APA, IP, constante de fls. 226/229 da qual era titular o A. (cfr. fls 54, artigos 8º a 10º, da contestação e docs de fls 68 e segs e fls 226 a 229).
São absolutamente irrelevantes para a decisão da causa negociações anteriores às referidas, com a 1ª Ré ou com terceiro, e se a licença estava ou não perto de caducar, pois que tal nenhuma defesa por exceção configura, já que tais factos não são suscetíveis de impedir, modificar ou extinguir o direito dos Autores.
Assim, por acordo das partes e pelos documentos acima referidos não pode a decisão quanto aos referidos pontos dos factos provados deixar de ser mantida, corrigindo-se, apenas o lapso de escrita existente, pois que onde no facto provado nº 4 se refere 18/1/2014 é, na verdade, “8 /1/2014”, como resulta da alegação das partes (cfr. o art. 3º, da pi, o referido no documento em causa e o mencionado nas próprias conclusões das alegações - IV e segs).

2- Quanto aos factos provados 19 e 20[7] e ao facto não provado da alínea e[8]) nenhuma alteração da decisão cumpre efetuar, porquanto também este Tribunal formou a sua convicção no mesmo sentido da bem tomada pelo Tribunal a quo, que com rigor e elevação bem conduziu a produção de prova, pois que, mesmo que algo mencionado fosse pelo Autor quanto a local do furo, “imposição” alguma resultou de qualquer elemento de prova produzida e sempre à execução no local previamente definido (cfr. “Autorização” supra referida) competia à 1ª Ré proceder. Com efeito, bem decidiu o Tribunal a quo, ao considerar que “o A., nas declarações de parte que prestou, disse que o Sr. G… (legal representante da 1ª Ré) escolheu o local onde veio a ser feito o furo dizendo que era o mais indicado e que não haveria qualquer problema. A A. D…, em declarações de parte, confirmou ter sido o Sr. G… a escolher o local indicado para fazer o furo. Por sua vez G1…, legal representante da 1ª Ré, disse ter sido o A. a escolher o local onde foi feito o furo. Reconheceu não ter posto qualquer óbice ao local e que estava convencido que o furo não traria quaisquer problemas para a habitação. Conjugadas as declarações de parte pareceu-nos mais credível a versão dos AA.. Em primeiro lugar, é incompreensível que numa atividade que pode acarretar riscos sérios, o legal representante da Ré não se certifique de qual o local indicado para abrir o furo. Depois, as testemunhas H… e I…, antigos clientes da Ré que também a contrataram para abrir furos nas respetivas propriedades, disseram que os furos que contrataram foram feitos nos locais indicados pelo Sr. G…”.
Conclui a apelante que a alteração destes factos se impõe pelo depoimento de J…, de K…, de L… e de H… e I…, os dois primeiros funcionários da 1ª Ré à data da realização do furo e os dois últimos antigos clientes da Ré, que bem esclareceram que furos, por ela, realizados, também muito próximos das habitações, executados na perfeição, não tiveram qualquer problema.
Refira-se que em causa não está a boa ou má execução de outros furos, mas tão só a do referido nos autos e quanto a imposições feitas pelo Autor à 1ª Ré, de todo incredíveis e inverosímeis, dada a especificidade técnica que está em causa, nada podem estas três últimas testemunhas saber, pois que a nada assistiram, sendo que apenas as duas primeiras estiveram no local, e só o estiveram na altura da execução do furo, sendo o primeiro, J…, o sondador que executou o furo, e o segundo, K…, o ajudante de sondador, que, também, na sua realização colaborou, de cujos depoimentos bem se pode extrair que escolha e execução sempre competia à 1ª Ré, embora o querer do Autor pudesse ser por ela ouvido (referindo o 1º que o Autor disse que “podia ser ali” e o segundo esclareceu que ponderada a localização, quem acaba por a escolher e dá ordens de execução do furo é o Sr G….
Ficou este Tribunal convencido de que a seleção do local (a cerca de 2 metros de distância da moradia dos AA.) e das formações geológicas a perfurar foram da responsabilidade da 1ª Ré e a escolha do local da perfuração teve anuência do A. marido, por o representante legal da 1ª Ré ter garantido que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais. Aliás, o próprio legal representante da 1ª Ré, embora apontando a escolha como sendo do Autor, no que não convenceu este Tribunal, acabou por ir revelando que as formações geológicas a perfurar foram da responsabilidade da 1ª Ré e deixando antever que garantiu que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais.
Cumpre, desde já, deixar claro que as declarações de parte prestadas pelo legal representante da 1ª Ré, G…, se mostraram, na verdade, inverosímeis, interessadas e orientadas para ir dizendo, em cada momento, o que mais convinha aos interesses que defende nos autos, versão que se revelou trazer bem estudada. Não mereceram, pois, as mesmas credibilidade, dado o interesse revelado, e bem notou o Tribunal desconformidades entre as afirmações que o mesmo fez e depoimentos prestados por testemunhas, estas cujos depoimentos se revelaram, pelo modo tranquilo, sereno e plausível como foram prestados, verosímeis, como seja o depoimento de J… e o de K…, que foram os trabalhadores da 1ª Ré que realizaram o furo e que bem mostraram saber que ele não foi começado num local e, posteriormente, mudado para outro sítio, como afirmou aquele, e que podendo ser ouvido o “querer” da parte que solicita o trabalho, a decisão não pode deixar de caber a quem o executa. Os referidos trabalhadores executaram, pois, o furo obedecendo a ordens que lhes foram dadas pelo legal representante da 1ª Ré, o referido G…, que com eles esteve, apenas, no início dos trabalhos no local do furo realizando-o, eles, desde logo, no local que o mesmo determinou, sem que no local estivesse qualquer engenheira topográfica.
Assim, a matéria constante dos referidos pontos 19 e 20 bem foi considerada provada e a matéria constante da al. e), dos factos não provados, bem foi tida como não provada, esta por falta de prova credível e convincente, provados se mostrando, nos termos expostos, aqueles pontos.

3- No que concerne aos factos provados 22, 23 e 39 é de manter a decisão fundada na livre convicção do julgador, nenhuma alteração se impondo, pois que, efetivamente, como bem refere o Tribunal a quoo A., nas respetivas declarações de parte, disse ter surgido um buraco grande à frente da máquina. Teve de pedir a um construtor amigo que lhe arranjasse 9 metros de entulho para fechar o buraco. A A. D… confirmou que por baixo do lugar onde estava a máquina surgiu uma grande cova, um grande buraco. Este foi depois enchido com entulho. A testemunha M…, amigo dos AA., a quem costuma visitar aos Domingos, disse ter visto um buraco à frente da máquina. Pelo contrário, tanto o legal representante da 1ª Ré, como a testemunha J… disseram não ter aparecido o referido buraco. Conjugados os vários depoimentos, pareceram-nos mais credíveis os dos AA.. Até porque a testemunha K…, que trabalhou para a Ré durante 12 anos até 21/06/2018, que parecia recordar-se perfeitamente da execução do furo, aí pareceu hesitar começando por dizer que não se recordava de a máquina se ter enterrado. Isto é, não disse imediatamente que a máquina não se tinha enterrado. De certeza que este seria um acontecimento que lhe ficava na memória. Do relatório pericial, a fls. 337 verso, consta que existe no local evidência de ter havido um buraco bastante largo junto à boca do furo que posteriormente foi atulhado”.
Conclui a apelante que a alteração destes factos se impõe, pois não podem ser dados como provados apenas pelas declarações dos AA. e os depoimentos de familiares e amigos dos mesmos, sendo que o único buraco perto do furo que existiu e, posteriormente, teve de ser enchido foi o tanque de lamas, zona de receção dos detritos da perfuração, necessário para execução do furo pelo método de perfuração com circulação direta, também designado como “circulação a lamas”, o que é confirmado pela testemunha J… e pela testemunha K…. Sustenta que não pode ser dado como provado um facto quando há contradições na prova testemunhal, como é o caso, não tendo o dito construtor vizinho que concedeu o alegado entulho para resolver o alegado problema sido arrolado como testemunha, e que o buraco alegadamente visto pela testemunha M…, amigo dos AA., pode perfeitamente ser confundido com o já referido tanque de lamas e, também, poderá ser este o “buraco bastante largo junto à boca do furo” referido no relatório pericial.
Ora, quanto a tal matéria bem fundamentou o Tribunal a quo a sua livre convicção que, também, é a nossa, não sendo essencial a tal a inquirição do dito construtor. Ficou este Tribunal convencido de que os Autores falaram inteiramente a verdade, quando afirmaram os referidos factos constantes dos pontos 22, 23 e 39, que aqui se mantêm como provados, e nenhuma confusão se revelou pudesse existir no depoimento da testemunha M…, sequer na do irmão da Autora, N…, que bem viram o local, nem quanto à perícia, bem se alcançando o resultado da mesma do relatório pericial e dos bem elucidativos esclarecimentos prestados pelos três peritos em audiência de julgamento, reveladores, como exarado no relatório pericial da gravidade da violação das leges artis, na execução do furo. Bem decidiu o Tribunal a quo com base na prova que foi produzida perante si, com imediação e oralidade, sendo certo que a testemunha J… deixou bem patente já se não conseguir recordar, dado o tempo decorrido, com precisão de factos.
Das declarações de parte dos Autores, conjugada com a restante referida prova, testemunhal – M… e N… - e pericial, resultam elementos que permitem, com segurança afirmar os referidos factos, não tendo sido produzida prova capaz de os infirmar.
Com efeito, os dois trabalhadores que executaram o furo já deles não têm absoluta precisão e o depoimento do legal representante da 1ª Ré, por si, nenhuma credibilidade mereceu, bem transparecendo, pelo modo titubiante, inseguro e repetitivo como depôs, que não falava, inteiramente, a verdade.
Assim, a matéria constante dos referidos pontos 22, 23 e 39 bem foi considerada provada, com base nas declarações de parte dos Autores, seguras e verosímeis, corroboradas pelos depoimentos das testemunhas M… e N…, que prestaram um depoimento sereno e convincente, e pelo observado pelos Senhores Peritos no local – v. fls 337, verso, onde se refere que “existe no local evidência de ter havido um buraco bastante largo junto à boca do furo que posteriormente foi atulhado”, sendo esta decisão de manter.
Nenhuma confusão com o “tanque de lamas” existe, pois que o buraco bastante largo, cuja evidência no local foi notada, se encontrava junto à boca do furo, local onde estava a máquina a realizá-lo.

4- Quanto aos factos provados 26, 27, 28, 29, 33, 35, 36, 38, 40 e 41[10] e facto não provado da alínea g[11]) bem considerou o Tribunal a quo provados aqueles pontos e não provada a matéria constante desta alínea dado que:
Nº 26 dos Factos Provados e alínea g) dos Factos Não Provados: os Senhores Peritos, no relatório pericial de fls. 336 a 338, referem que o método de perfuração mais adequado, face à proximidade da moradia, seria o “rotary” (rotação com circulação direta), método este que deveria ter sido usado em toda a extensão do furo. As patologias em forma de fratura nas paredes rebocadas, revestidas a cerâmica e nos pavimentos verificadas na moradia e no anexo da mesma são de origem muito recente e motivadas pela deficiente execução dos trabalhos de furação do terreno. A reparação dos danos só será possível após a estabilização dos solos. Os Senhores Peritos, nos esclarecimentos que prestaram em audiência de julgamento, disseram que o método rotary (rotação com circulação direta) pode ser utilizado em quase todos os tipos de solo. Era possível continuar a furação com o método rotary, mas provavelmente com equipamento de corte diferente do que foi utilizado pela 1ª Ré. Isto é, ao ser encontrado material mais duro (arenito) era apenas necessário mudar a cabeça de corte. Com o método rotary não seria necessário o entubamento. Também era possível utilizar o método de “rotopercussão” (ou percussão pneumática com martelo de fundo de furo) mas o furo tinha de ser simultaneamente entubado e cimentado para que os gases se canalizassem todos cá para cima. As fissuras surgiram porque o furo provavelmente foi entubado a posteriori. O ar comprimido expande mais todas as fraturas e fissuras. As consequências levam a concluir que o furo não foi devidamente entubado na altura certa. Há danos na habitação mas são maiores os danos nos anexos. A estrutura do anexo não tem a mesma rigidez da da habitação. O anexo respondia em termos estruturais para o que foi construído. Não precisava de mais do que o que tinha. Qualquer perturbação no terreno vai obviamente prejudicar muito mais os anexos que não têm a mesma rigidez da habitação. A placa sofreu danos e transmitiu-os ao anexo. Se houvesse má compactação do solo, os assentamentos diferenciais não seriam só nos anexos, mas também na habitação. O legal representante da Ré reconheceu que só esteve no início do furo, tendo posto as máquinas a funcionar. O resto foi feito pelos funcionários.
Nºs. 27 e 28 dos Factos Provados: os Senhores Peritos, no relatório pericial de fls. 336 a 338, dizem que esta é a solução porque existem vazios/crateras debaixo da moradia que terão de ser preenchidos. A testemunha S…, engenheiro técnico civil, disse que a injeção de calda de cimento é necessária para encher os ocos e estabilizar os solos. A testemunha O… disse que se via pelo buraco do furo que existia uma galeria, uma falha da terra. Tal galeria estende-se para a direita e para a esquerda, tem 30 a 40 cms. de largura e estende-se em direção aos anexos e ao prédio do vizinho. Foi o que conseguiu ver a olho nu. O resto tem de ser com câmaras. E documento junto a fls. 40 a 42.
Nº 29 dos Factos Provados: documento junto a fls. 43/44 e depoimento da testemunha P… que fez o referido orçamento. Este é só de reparação da casa depois de feita a estabilização da mesma. Aquando das declarações de parte do A. levantou-se a questão de saber se o cimentado do terraço (ponto nº 1 do orçamento de fls. 43) era numa área de 4 m2 ou de 46 m2. Uma vez que são referidos metros quadrados, é óbvio que o terraço nunca poderia ter apenas 4 m2, como resulta bem claro das fotografias juntas a fls. 343 verso e 344 verso onde se vê o terraço cimentado.
Nºs.(…) 33 (…) dos Factos Provados e alínea d) dos Factos Não Provados: o A. disse que não tem comodidade, conforto e segurança em casa. Só tem esta casa. Recebe um salário de € 700,00/mês. A mulher recebe o salário mínimo nacional. Têm uma filha que entrou este ano na Universidade … e que não recebe qualquer bolsa. A A. esteve de baixa com cancro. Não têm economias. A A. disse que nunca mais ficou bem psicologicamente. Sente-se muito mal naquela casa. Não têm dinheiro para a mandar reparar. Recebe o salário mínimo nacional. O marido aufere € 710,00/mês. A filha entrou este ano na universidade …. E depoimento das testemunhas: - O…, que disse que vê os AA. perturbados. Investiram o dinheiro na casa e não conseguem pagar a reparação desta. Têm problemas com os vizinhos por causa de danos que apareceram na casa destes; - M…, que disse que os AA. se sentem muito tristes com o problema da casa e da doença da A. mulher. Têm a filha a estudar em Coimbra e o dinheiro não dá para tudo; - Q…, que disse que os AA. não têm dinheiro para proceder à reparação da casa. Ganham pouco. Têm uma filha na faculdade. É a testemunha que, por isso, suporta parte das despesas da sobrinha. A moradia ainda não está terminada. Falta a cozinha (só têm ainda a cozinha dos anexos), a entrada e terminar os muros. Têm problemas com a casa e com a doença da A. D….
Nºs. 35 e 36 dos Factos Provados: declarações de parte do legal representante da Ré e depoimento das testemunhas J… e K….
Nº 38 dos Factos Provados: relatório pericial e esclarecimentos dos Senhores Peritos.
Nº 40 dos Factos Provados: o A. disse que o furo nunca foi terminado. A testemunha O… disse que foi ela que fez a estrutura provisória que tapa o buraco do furo. Este não tem bomba nem ligações. A testemunha Q… disse que não foi colocada a bomba no furo. Houve desabamento de terras à volta do furo, terras essas que caíram no interior do furo. Teve de ser o A. a fechar o buraco.
Nº 41 dos Factos Provados: tanto os AA. como as testemunhas J… e K… referiram ter sido colocado um tubo no furo. Não resultou provado o diâmetro nem a profundidade a que foi colocado”.
Conclui a apelante que a alteração destes factos se impõe, não podendo ser dado como provado que se verificou uma “deficiente execução do furo pela 1ª Ré por não ter executado de forma correta o método “rotopercussão” (26 dos factos provados) e como não provado que “a perfuração decorreu de forma regular, tendo sido salvaguardadas todas as normas de segurança e as regras de arte da especialidade” (alínea g) dos factos não provados). Sustenta que o relatório pericial do processo comum nº 2856/15.3T8AVR, prova constante no requerimento ref.ª 29287466, contraria em diversos pontos o relatório pericial deste processo, pelo que não poderiam ser dados como provados tais factos com base única e exclusivamente no relatório devido à clara contradição deste com a prova apresentada no referido requerimento, tendo o furo sido devidamente executado, com a utilização de métodos adequados e com a salvaguarda de todas as normas de segurança e regras de arte de especialidade necessárias. Conclui a apelante impor-se a alteração destes factos, também, pelo testemunho de J…, pelo testemunho da Engenheira Geóloga L….
Cumpre, desde já, referir que cada elemento de prova de livre apreciação não pode ser considerado de modo estanque e individualizado. Antes se deve proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura.
Reponderando a prova produzida quanto à referida matéria impugnada tida como não provada alínea g) - importa referir que não adveio ao conhecimento do Tribunal qualquer elemento, minimamente sustentável, que permita afirmar a sua verificação. Assim, a resposta negativa fica a dever-se a ausência de prova credível e convincente que permita dar resposta diversa.
Na verdade, tendo a testemunha J… sido o sondador que executou o furo, o mesmo explicou os atos que praticou e como os realizou, sem que tenha cimentado o tubo para prosseguir com o outro método utilizado, e quanto ao referido depoimento da Engenheira Geóloga L…, para além de a mesma a nada ter assistido, certo é que esteve afastada do trabalho de 2012 a 2017, devido a problemas de saúde, não tendo este Tribunal ficado convencido de que a mesma tenha conhecimentos técnicos da especialidade superiores aos dos três Senhores Peritos que realizaram a perícia, pelo que o seu depoimento não foi capaz de abalar a perícia realizada nos autos.
E quanto à referida matéria impugnada tida como provada - factos provados 26 a 29, 33, 35, 36, 38, 40 e 41 - não pode este Tribunal divergir do juízo probatório efetuado pelo Tribunal a quo, nada impondo decisão diversa. Efetuando uma análise crítica da prova produzida e analisando a mesma, de modo conjunto e conjugado, e com base nas regras da experiência comum, outra não pode ser a conclusão do Tribunal, pelas razões supra exaradas. Efetivamente, as referidas respostas fundamentam-se na análise conjunta e conjugada:
- da prova pericial, da qual resultam elementos que permitem dar as mencionadas respostas aos factos (desde logo aos 26º, 27º e 38º), como resulta do relatório pericial de fls 336 a 345, e dos esclarecimentos prestados, a fls 386 e em audiência de julgamento, pelos Senhores Peritos, que bem esclareceram o Tribunal, de modo convincente, da verificação das referidas violações das leges artis na realização do furo, causadoras de todos os apontados danos, estes consequências daquelas, pois que foi o ar comprimido que se espalhou no terreno, que bem analisaram, criando a instabilidade do solo;
- da prova documental junta aos autos, designadamente das fotografias (cfr fls. 339, verso a 344 verso),
- da prova testemunhal, particularmente o depoimento de S…, engenheiro técnico civil que fez o projeto da moradia dos Autores e que a pedido do Autor foi verificar as fissuras/rachadelas existentes na referida moradia, que apontou com o devidas ao furo, tendo constatado que a maioria das mesmas se encontram nos anexos, que esclareceu que, posteriormente, também esteve na moradia ao lado da dos Autores e que a encontrou com a sapata desprotegida, bem revelando saber dos problemas surgidos na sequência do furo a que aludem os autos,
- das declarações de parte dos Autores, que bem explicaram todos os problemas surgidos na sua moradia e anexos e que começaram a aparecer logo após a realização do furo e a sua causa.
Põe em causa a apelante, na impugnação sobre a decisão da matéria de facto, a perícia efetuada nos presentes autos. Ora, pedido aos Senhores Peritos uma observação e análise técnica, objetiva, do objeto da perícia e que relatassem, em relatório final, o resultado dessa observação e análise, os mesmos apresentaram o relatório que elaboraram.
A perícia é um meio de prova a ser avaliado, conjuntamente com as outras provas, livremente, pelo tribunal, embora com as limitações impostas pelos juízos técnicos dela constantes.
O contributo dado pela perícia ao tribunal é o de o auxiliar a resolver questões técnicas que não são da área de competência do julgador nem por ele dominadas.
Ora, do relatório pericial de fls 336 e segs e dos esclarecimentos escritos (cfr fls 386) e verbais prestados pelos Srs. Peritos em audiência de julgamento resultaram elementos que permitem dar como provados os supra referidos factos, como bem fundamentou o Tribunal a quo.
Bem esclareceram os Senhores Peritos ter havido violação das leges artis, pois: i) - tinha de ter sido efetuado um estudo geológico ou geotécnico, o que não aconteceu; ii) - o ar comprimido, que se expande, tinha de sair, todo, pelo tubo, o que não sucedeu, antes houve ar que, durante a realização do furo, se expandiu pelo solo, o que se comprova pelos danos originados nas construções próximas. O problema surgiu quando fizeram a mudança de método, pois que necessário era cimentar o tubo e isso não foi efetuado, o que se verifica pelos resultados – fendas recentes, após execução do furo (ainda em evolução).
Com efeito, bem resultou do relatório pericial e do esclarecido pelos Senhores Peritos em audiência de julgamento, a existência de todas as patologias consideradas provadas e analisadas as causas da instabilidade e da fissuração, bem se verificou ser a mesma recente. Esclareceram os Senhores Peritos que fissuras antigas tendem a ser colmatadas e recentes não, bem resultando estarem as fissuras, ainda, em evolução e sendo evidente estarem elas relacionadas com o furo, bem resultando serem a consequência de o ar comprimido ter percorrido caminhos debaixo do solo abrindo fraturas e cavidades no seu interior, que ainda podem ter consequências. E bem revelaram os Senhores Peritos, de modo convincente, as patologias que a moradia e anexos apresentam, a poderem agravar, a ponto de, por desabamento das construções, virem mesmo a causar morte.
Concluíram os Senhores Peritos, como se pode, desde logo, constatar pelos esclarecimentos que prestaram em audiência de julgamento, que as consequências mais graves se deram nos anexos, construção de estrutura mais débil do que a da moradia.
Não obstante, no nosso direito processual probatório vigorar o princípio da livre apreciação da prova, o certo é que o juízo técnico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação por parte do julgador e, não obstante a força probatória a atribuir à prova pericial ser fixada livremente pelo Tribunal, o certo é que tratando-se de uma prova obtida mediante a emissão de juízos de ordem técnica, elaborados por especialistas com conhecimentos na área, esta livre apreciação apresenta, naturalmente, limitações. Assim, não existido nos autos prova contrária que permita infirmar o juízo técnico emitido e convincentemente exposto em audiência de julgamento pelos Senhores Peritos, não sendo o relatório de que fala a apelante idóneo a consegui-lo, sequer, como referimos, o depoimento da Engenheira Geóloga L…, já que nenhuma superior credibilidade merece, ao invés, tanto mais que esteve durante cinco anos afastada do trabalho, julgamos acertado o entendimento da 1.ª instância, sendo de manter.
O depoimento das testemunhas J… e K…, bem como o da Engenheira Geóloga, L… (que sequer estava a trabalhar na altura em que o contrato entre Autores e 1ª Ré foi celebrado e os serviços executados, tendo, até, como referimos, estado sem o fazer de 2012 a 2017 devido a problemas de saúde) não permitiram formar a convicção de que o tubo foi colocado na profundidade e nas condições necessárias a permitir que os gazes originados na perfuração por ele saíssem, na totalidade, e se não expandissem no terreno, antes tendo o tribunal formado a convicção de que, por razões que se relacionaram com a colocação do tubo, se espalharam pelo solo tendo sido essa a causa da instabilidade do terreno e da fissuração. Como bem esclareceram os Senhores peritos, a nenhuma outra causa se pode atribuir a perturbação e instabilidade do solo, os vazios e as crateras aí existentes que vêm desencadeando fissuração na moradia e anexos, bem explicando os mesmos que em terrenos sedimentares, como é o caso, nunca existem cavidades, espaços vazios, tendo os espaços vazios agora existentes sido originados pelo ar comprimido que se espalhou no solo aquando da execução do furo pelo método utilizado pela 1ª Ré, sem o cuidado de o fazer expandir-se, todo, pelo tubo.
São os Senhores Peritos que, no relatório pericial de fls. 336 a 338, esclarecem as patologias e deixam claro que a solução referida no facto provado nºs 27 tem de ser implementada, por existem vazios/crateras debaixo da moradia que têm de ser preenchidos, referindo, ainda a testemunha S…, engenheiro técnico civil, que a injeção de calda de cimento é necessária para encher os ocos e estabilizar os solos e a testemunha O… esclareceu ver-se, pelo buraco do furo, uma galeria/falha da terra. Foi, ainda, considerado o documento junto a fls. 40 a 42, para a prova do custo da necessária, injeção de calda de cimento, sob toda a área do imóvel dos AA. (ponto 28).
Quanto ao ponto 29 dos factos provados relevante é o documento junto a fls. 43/44 conjugado com o depoimento da testemunha P… que fez o referido orçamento, de reparação da casa depois de efetuada a referida estabilização da mesma, sempre se considerando o relatório pericial e os esclarecimentos prestados pelos Senhores Peritos que o elaboraram, sendo que, assim, bem resultou provado, que uma vez estabilizados os solos com recurso à injeção de calda de cimento, deverão ter lugar os seguintes trabalhos de reparação dos danos causados pela deficiente abertura do furo, que importam em, pelo menos, € 19.860,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor: remoção do cimentado do terraço com uma área de 46 m2; reconstrução do cimentado do terraço com a colocação de ferro aramado, malha e sol e betão; reparação da cozinha com a demolição de uma parte da parede frontal e posteriormente a reconstrução desta com a aplicação de um pilar e parede em tijolo; Reboco das paredes danificadas, com aplicação de azulejo até ao teto na zona de intervenção; pintura em toda a zona da intervenção; reparação de uma porta de entrada em alumínio; reparação de todas as fendas do hall, incluindo pintura; h) remoção de todas as loiças da casa de banho; demolição de duas paredes da casa de banho e posterior reconstrução em tijolo e reboco das mesmas; aplicação de azulejos até ao teto em toda a casa de banho, incluindo a aplicação de mosaico; aplicação das loiças existente (não danificadas) e reparação das fendas de dois quartos, que consistirá em emassar, lixar e pintar.
Que a casa se tornou numa fonte de problemas, com perda de comodidade e habitabilidade, em consequência das fissuras, brechas e fendas, que as paredes, tetos, azulejos e mosaicos apresentam, a inviabilizar a utilização plena da mesma (referido ponto 33), decorre de toda a prova produzida, conjugada com as regras da experiência comum, desde logo das declarações de parte do Autor, do depoimento das testemunhas O…, Q… e M…, que bem revelaram como os AA. se sentem perturbados e tristes com o problema da casa, referido nos autos, o que decorre também do que resulta do próprio relatório pericial que dá conta da instabilidade criada no terreno e das patologias, originadas pela execução do furo, na moradia e nos anexos, problemas que os Autores, que aí residem, vivenciam no dia a dia, tendo, até o legal representante da 1ª Ré reconhecido que até “dá medo” estar lá e os Senhores Peritos deixado claro o risco de poder advir a morte, por desabamento.
Quanto aos factos provados 35 e 36 é de manter a decisão com base nas declarações de parte do legal representante da Ré e no depoimento das testemunhas J… e K…, que os afirmaram por deles terem conhecimento direto, já que estes últimos foram quem executou a obra recebendo ordens que lhe foram dadas por aquele.
Como fundamenta o tribunal a quo, as respostas dadas aos factos provados nº 40 e 41 assentam nas declarações de parte do Autor corroboradas pelo depoimento das testemunhas Q… e O…, esta que fez estrutura a tapar o buraco do furo, dos quais bem resulta que o furo se não encontra concluído, desde logo por não ter bomba nem ligações e, até por terra ter desabado e caído dentro do mesmo. Também os Senhores Peritos esclareceram em audiência de julgamento que o furo não está concluído e que os Autores não têm água. Bem resulta a colocação do tubo tanto das declarações de parte dos AA. como do depoimento das testemunhas J… e K…, estas o sondador e ajudante de sondador que, ao serviço da 1ª Ré o colocaram, embora, na verdade, não tenha resultado provado o diâmetro do mesmo nem a profundidade a que ele foi colocado.
Assim, o Tribunal Recorrido decidiu de forma acertada, quer quando considerou a factualidade como provada quer no que concerne à que entendeu não provada.

5- Quanto ao facto provado 37[12] bem foi a referida matéria considerada provada, como refere o tribunal a quo com base no “contrato de seguro junto a fls. 126 a 177 dos autos, conjugado com o depoimento da testemunha T..., que disse que o contrato de seguro era um seguro multirrisco comércio, que segura as instalações fixas e os respetivos equipamentos móveis. Não tem coberturas adicionais. Não há nenhum seguro multirrisco comércio que englobe a responsabilidade profissional do segurado. Para isso terá de ser celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil exploração/profissional.
O legal representante da Ré disse que confiava no seu mediador de seguros e que estava convencido que a Ré tinha um seguro de responsabilidade civil. A testemunha U…, mediador de seguros, disse que foi o mediador da Ré e do legal representante desta durante cerca de 10 anos. Tinham uma relação de confiança. A Ré tinha um seguro multirrisco na V… que depois passou para a E…. Era um seguro só para a sede da empresa, não para os locais das diversas obras. Não conhece apólice multirrisco com cobertura de responsabilidade civil profissional. Este sinistro só podia estar coberto por seguro de responsabilidade civil profissional; e não estava. Anteriormente também não estava coberta a responsabilidade civil profissional da Ré” (negrito nosso) e nada impõe a alteração do decidido, e bem, pelo Tribunal a quo nos referidos termos e pelas mencionadas razões.
Conclui a apelante que o depoimento da testemunha U… “pode corroborar a vontade do tomador do seguro, aqui Ré B… em contratar” um seguro de responsabilidade civil profissional, de “Responsabilidade Civil – Exploração” e que a “apólice referida, denominada “MULTIRRISCOS EMPRESAS” contempla claramente um capital de € 50.000,00 para a cobertura de Responsabilidade Civil (extra-contratual) – Exploração”, tendo andado “mal o tribunal a quo quando refere que o contrato de seguro apenas cobre a responsabilidade do tomador por acidentes pessoais dos clientes e dos empregados ocorridos na sede, pois esse mesmo artigo 38.º das Condições Gerais não se esgota nesses riscos, aliás, vai muito alem desses riscos, nomeadamente os definidos no ponto 1.63, da secção II do artigo 58.º dessas mesmas Condições Gerais – onde se vai encontrar a definição de: Responsabilidade Civil Exploração”.
Revisitada a prova, constata-se que quer do depoimento do referido U… quer do de T… resulta que o que foi concretamente contratado com a Ré Seguradora foi o considerado pelo Tribunal a quo – garantir a Apólice n.º ........ apenas a responsabilidade civil extracontratual da segurada em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa.
E não corresponde à verdade que o Tribunal a quo se tenha baseado tão só no documento em si, na “mera interpretação das condições particulares da apólice em causa”, para dar como provado o referido facto 37º, antes o fez com base no depoimento das referidas testemunhas que bem conhecem os diversos seguros existentes - a poder ser contratualizados pelos interessados e o âmbito das respetivas garantias - e o que, concretamente, foi contratado entre as Rés, bem sabendo que no contrato de seguro do ramo “Multirrisco – Empresas”, nunca incluída podia estar a responsabilidade civil para garantir “danos ocorridos pela prossecução da atividade da segurada” nos locais das diversas obras.
Apesar de o legal representante da Ré B… ter dito confiar no seu mediador de seguros não ficou este tribunal convencido, sequer, de que o mesmo estava convencido de que a Ré B… tinha um seguro de responsabilidade civil que garantisse, para além dos riscos que pudessem surgir nas suas próprias instalações, os riscos decorrentes da exploração da sua atividade nos locais das diversas obras, tendo de toda a prova produzida, documental e testemunhal supra referida, resultado que o acordado foi no sentido de ser contratado, apenas, o referido contrato de seguro, com risco de sinistros ocorridos na sede da empresa e não nos locais das diversas obras.
Outra interpretação da vontade negocial não é possível, desde logo face ao esclarecedor depoimento do referido mediador de seguros, U…, que, pelo modo seguro e convincente como depôs, incutiu neste Tribunal a convicção de falar verdade, tendo-o feito de modo credível, bem mostrando saber que os riscos decorrentes da exploração da atividade da 1ª Ré não terem sido acordados no contrato de seguro celebrado, a que aludem os autos, nada mais tendo sido acordado do que a mera mudança para a Ré Seguradora de concretos contratos de seguro facultados à mediadora, para tal efeito, nenhum deles englobando os riscos decorrentes da exploração da atividade da 1ª Ré, fora do local da sede. Daí ser perentório em afirmar não terem estes riscos (riscos decorrentes da exploração da atividade da 1ª Ré, fora do local da sede) sido acordados, não integrando as garantias contratadas (apenas referentes a riscos no local da sede).
O Tribunal Recorrido decidiu, pois, de uma forma acertada quando considerou a referida factualidade ora impugnada (a provada e a não provada), de acordo com a livre convicção que formou de toda a prova produzida.
Assim, tendo-se procedido a nova análise da prova e ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, que não foram validamente contraditados por quaisquer outros meios de prova, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova, de livre apreciação, produzida, (declarações de parte dos Autores, perícia, depoimento das supra referidas testemunhas e documentos, por nós supra mencionados, juntos aos autos) não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.
Na verdade, e não obstante as críticas que são dirigidas pela Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.
Ao invés, a convicção do julgador tem, a nosso ver, apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade provada e, também, a não provada, tal como decidido pelo tribunal recorrido.
Não resultando os pretensos erros de julgamento, antes convicção livre e adequadamente formada pelo julgador (ante a prova prestada perante si e, por isso, com oralidade e imediação), tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
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2. Do erro da decisão de mérito
Insurge-se a 1.ª Ré “B…” contra a decisão por:
A) - não estarem verificados os pressupostos da responsabilidade civil e ocorrer culpa do lesado;
B) - a assim se não entender, sempre a sua responsabilidade se mostrar coberta pelo contrato de seguro do ramo “Multirriscos Empresas” titulado pela apólice n.º ........... e, por isso, transferida a responsabilidade para a 2.ª Ré “F…”.
Definiu o Tribunal a quo o objeto do litígio como englobando as seguintes questões, que decidiu, ambas objeto do presente recurso:
a) se os AA. sofreram danos resultantes de “desajustadas, deficientes e inadequadas técnicas e meios usados para a abertura do furo artesiano”;
b) se o contrato de seguro celebrado entre as RR. B…, Unipessoal, L.da, e E…, S.A., titulado pela Apólice n.º ........... tem no âmbito de cobertura a responsabilidade civil dos riscos da tomadora no exercício da sua atividade de abertura de furos artesianos (ou se é um seguro multirriscos que apenas cobre os sinistros ocorridos na sede da empresa).
Cumpre, pois, decidir da responsabilidade civil da 1.ª Ré “B…” pelos danos sofridos pelos Autores e em que termos e com que limites e, a verificar-se responsabilidade da mesma, se essa responsabilidade se encontra transferida para a 2.ª Ré, “F…”, pelo contrato de seguro do ramo “Multirriscos Empresas” titulado pela apólice n.º ........... ou se tal risco não foi contratado.
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2.1 – Da responsabilidade civil da 1ª Ré pelos danos sofridos pelos Autores e da culpa do lesado. Natureza, concurso, pressupostos e limites
Quanto à questão da responsabilidade da Ré pelos danos sofridos pelos Autores, considerou o Tribunal a quo estarmos perante responsabilidade civil contratual, pois que trata do incumprimento de um contrato celebrado entre os AA. e a Ré B… para abertura de um furo artesiano, com imputação a esta, empreiteira, de desrespeito das leges artis, causador de danos na sua moradia, analisando que “a responsabilidade obrigacional exige os mesmos pressupostos reclamados pela responsabilidade civil extracontratual, ou seja, o facto, a ilicitude, o nexo de imputação, o dano e o nexo de causalidade”[13], embora a culpa se presuma nos termos do nº 1 do art. 799.º, do C. Civil, considerando que, in casu, todos eles resultam, efetivamente, provados.
Indicam os Autores como fonte da obrigação da 1ª Ré, que se traduz num direito seu, e cujo cumprimento reclamam nos autos, a responsabilidade civil.
Responsabilidade civil é o conjunto de factos que dão origem à obrigação de indemnizar os danos sofridos por outrem[14].
Na responsabilidade civil cabe distinguir a:
1 - Responsabilidade civil contratual (obrigacional), que é a que decorre da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos;
2 - Responsabilidade civil extracontratual (delitual/aquiliana) que é a que advém da violação de direitos absolutos (violação de deveres genéricos de respeito, violação de normas gerais destinadas à proteção de outrem) ou da prática de certos atos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem, sendo categorias desta: a) a emergente de atos ilícitos; b) a emergente de atos lícitos (ato consentido por lei mas que a mesma lei considera de justiça que o seu titular indemnize o terceiro pelos danos que lhe causar); c) a emergente do risco (alguém responde pelos prejuízos de outrem em atenção ao risco criado pelo primeiro).
Assim, a “responsabilidade extracontratual surge como consequência da violação de direitos absolutos, que se encontram desligados de qualquer relação pré-existente entre o lesante e o lesado (obrigação de indemnizar em consequência de um acidente de viação, por exemplo)” e a “responsabilidade contratual pressupõe a existência duma relação inter-subjectiva, que atribuía ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa mesma relação (caso típico da violação de um contrato)”[15].
O Código Civil, abreviadamente CC, diploma a que doravante nos passamos a referir na falta de outra indicação, ocupa-se da matéria da responsabilidade civil:
- no capítulo sobre fontes das obrigações, sob a epígrafe responsabilidade civil - artigos 483º a 510º;
- no capítulo sobre modalidades das obrigações, sob a epígrafe obrigação de indemnizar - artigos 5620 a 5720;
- e no capítulo sobre cumprimento e não cumprimento das obrigações, sob a epígrafe falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor - artigos 798° a 812º).
Alicerçam os Autores a sua pretensão no incumprimento do contrato que referem celebrado com a 1ª Ré, fundamentado estando o direito à indemnização de que se arrogam em responsabilidade civil contratual.
Na verdade, a responsabilidade civil contratual distingue-se da extracontratual ou aquiliana pelo facto de naquela estar em causa a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários e esta emergir da violação de deveres de ordem geral e correlativamente de direitos absolutos do lesado.
Estas duas categorias de responsabilidade civil - porque diferentes - foram tratadas pelo Código Civil em secções distintas quanto à regulação da sua fonte (nos artigos 483.º ss para a responsabilidade civil extracontratual e nos artigos 798.º e ss para a responsabilidade contratual), ainda que seja hoje dominante uma corrente que considera não ser esta repartição estanque, existindo normas no sector reservado à responsabilidade delitual que se aplicam, manifestamente, à responsabilidade contratual, como é o caso das referentes à obrigação de indemnizar, que foi objeto de um tratamento unitário pelo legislador nos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.
A responsabilidade civil obrigacional deve ser considerada como sendo uma fonte de obrigações, tal como a delitual, e não como uma mera modificação da obrigação inicialmente constituída. A sua especialidade resulta da circunstância de a sua fonte ser a frustração ilícita de um direito de crédito, o qual era primariamente tutelado através da ação de cumprimento. No entanto, o dever de prestar violado não se confunde com o dever de indemnizar originado em consequência dessa violação tendo antes uma fonte autónoma: a responsabilidade obrigacional. A diferença entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade obrigacional é que, enquanto aquela surge como consequência da violação de direitos absolutos, que aparecem desligados de qualquer relação inter-subjetiva previamente existente entre lesante e lesado, esta pressupõe a existência de uma relação inter-subjetiva, que primariamente atribua ao lesado um direito à prestação, surgindo como consequência da violação de um dever emergente dessa relação específica [16].
E há, ainda, “situações em que não existe um direito primário de crédito, por meio do qual alguém possa exigir de outrem uma prestação, mas a responsabilidade surge em consequência da violação de deveres específicos e não apenas dos deveres genéricos de respeito, que se apresentam como contrapostos aos direitos absolutos. Fala-se, por isso, de uma terceira via da responsabilidade civil, onde se poderão incluir situações como a violação dos deveres de boa fé, geradoras de responsabilidade pré-contratual e pós-contratual. Efetivamente esses deveres não possuem uma tutela primária, através da ação de cumprimento, mas surgem no âmbito de ligações específicas entre as partes que instituem deveres que constituem um plus relativamente ao dever geral de respeito” [17] [18].
Surgem, também, situações de concurso entre responsabilidade contratual e aquiliana, casos em que estas responsabilidades se misturam e em que difícil é desenhar os campos de aplicação de cada uma delas, sequer separar as suas fronteiras, tendo tal “especial acuidade no domínio do cumprimento defeituoso, na medida em que neste tipo de violação contratual se verifica uma maior propensão para ocasionar diferentes prejuízos, em simultâneo, no domínio contratual e delitual”[19] havendo situações em que há uma só pretensão – a indemnização – com um duplo fundamento, existindo um concurso de normas e não um concurso de acções”[20].
Vaz Serra esclarece “não pode negar-se que o mesmo facto pode, ao mesmo tempo, representar uma violação de um contrato e um facto ilícito extracontratual” – “Responsabilidade Contratual e Responsabilidade Extracontratual”, in BMJ, 85, 115-239 e, no mesmo sentido, Rui de Alarcão afirma que “o mesmo facto humano pode provocar um dano simultaneamente contratual e extracontratual” – “Direito das Obrigações” (Lições Policopiadas – 1983), pág. 210, daí falar-se em “cúmulo de responsabilidades”, em “concurso de normas” que fundamentam a mesma pretensão, sendo que como bem analisa Almeida Costa, o concurso das responsabilidades, contratual e extracontratual, reconduz-se à figura do concurso aparente, legal ou de normas, consumindo o regime de responsabilidade contratual o da extracontratual, sempre que “perante uma situação concreta, sejam aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil”. - Almeida Costa, “Direito da Obrigações”, 6ª edição, págs. 455- 461[21].
Analisou a Relação de Lisboa que na questão do concurso da responsabilidade contratual e extracontratual têm vindo a ser praticados dois sistemas: o do cúmulo e o do não cúmulo, surgindo, no primeiro três entendimentos: a possibilidade de o lesado se socorrer, numa única ação, das normas da responsabilidade contratual e extracontratual; a de se lhe conceder a opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e a de admitir, em ações autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual e o, a excluir o cúmulo, consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em decorrência de um princípio de subsunção. Para quem seja adepto do concurso das duas responsabilidades, será ainda possível configurar esse concurso como de ações, ou de normas (ou pretensões). Aceitando-se um concurso de ações, será diferente a causa de pedir: por um lado, o contrato, por outro, o dever jurídico de neminem laedere, isto é, a regra geral de não lesar outrém. Sendo única a ação, haverá um concurso de pretensões, surgindo o dever contratual e o dever geral de não ofender direitos e bens alheios como deveres jurídicos independentes, colocados ao lado um do outro, não sendo proibido ao autor invocar em grau posterior do processo, uma norma diversa da que alegara, e sem que se possa dizer que o juiz decide ultra petita se aplicar uma norma diversa da invocada pelo autor. Quando o mesmo facto causa danos de diversa natureza, não se pode considerar que estejam fundamentadas pretensões distintas, havendo uma única causa petendi: o dano e a qualificação de contratual ou delitual não altera a identidade do pedido[22].
Entendeu o STJ que existindo concurso de títulos de imputação ou concurso de pretensões, o lesado pode escolher o regime mais favorável, não sendo de aceitar a existência de duas ações, pois que existe uma única conduta ilícita, uma unidade de pedido indemnizatório e de indemnização, tudo se reconduzindo à figura do concurso aparente[23].
Aprofundando e sintetizando a doutrina mais avisada e a jurisprudência, bem decidiu em recente acórdão a Relação de Lisboa: É aparente o concurso entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, matéria no âmbito da qual, as diversas orientações se dividem em dois grupos: - os denominados sistemas do cúmulo; e, - o sistema do não cúmulo. Na primeira orientação cabem três perspectivas: - a de o lesado se socorrer, numa única acção, das normas da responsabilidade contratual e extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favorável; - a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e, - a de admitir, em acções autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual. A segunda orientação, a do sistema que exclui o cúmulo, consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em decorrência de um princípio de consunção.
A lei portuguesa omitiu preceito expresso decisor da controvérsia, pelo que a solução há-de procurar-se no seu quadro se apresente mais adequada, ponderando, sobretudo, os interesses e valores contrapostos.
Sendo certo que o Código Civil vigente consagra regimes sem diferenças essenciais para a responsabilidade contratual e a extracontratual, as poucas diferenças entre ambas permitem concluir que a disciplina da primeira, globalmente encarada, confere maior protecção ao lesado.
Se, de um vínculo negocial, resultarem danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual, a mesma solução se impondo quando o facto que produz a violação do negócio, ou melhor, da relação que dele deriva, simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana.
Trata-se da solução que se mostra mais correcta no plano sistemático e no da justiça material, razão pela qual se adere à ideia da exclusão do cúmulo entre ambos os tipos de responsabilidade, pois que acautela devidamente todos os interesses atendíveis do lesado, sem sacrifício injusto da posição do responsável, só não sendo de adotar em face de preceito legal que estipule o contrário[24].
Não podendo, na verdade, em caso de concurso ou concorrência das duas mencionadas modalidades de responsabilidade civil, pelas razões referidas, ser efetuado o cúmulo dos seus regimes, impondo-se a exclusão do mesmo, o pedido de indemnização por danos deve alicerçar-se, tão só, nas regras da responsabilidade contratual, pois que, vigorando o princípio da autonomia privada e da liberdade contratual, compete às partes fixar a disciplina que rege as suas relações, não podendo, atendo o referido e o espírito do sistema, deixar de continuar a imperar este regime, aplicável na sua globalidade e como um todo, a reger a relação das partes contratantes, consumindo o específico regime da responsabilidade contratual o da extracontratual[25].
Cumpre, pois, analisar se estamos perante responsabilidade contratual, cujo regime, a verificar-se esse enquadramento legal, tenha, como vimos, de imperar sobre o regime da responsabilidade extracontratual.
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Ora, conforme decorre do disposto no artigo 798.º, os pressupostos da responsabilidade civil contratual em pouco ou nada diferem dos da responsabilidade extracontratual (art. 483º).
São eles:
a) o facto voluntário do agente a que a lei (artigo 798.º) faz menção quando na estatuição se refere ao "devedor que", ou seja, quando estabelece que o incumprimento é consequência de um comportamento do obrigado;
b) a ilicitude traduzida na utilização do verbo faltar como sinónimo de violar não o direito absoluto de outrem, mas um direito de crédito ou relativo: "falta ao cumprimento da obrigação";
c) a imputação subjetiva, ou seja, a culpa a que o artigo 798.º se refere expressamente quando utiliza o advérbio de modo "culposamente";
d) o dano, uma vez que a lei fala em responsabilidade pelos prejuízos; e
e) a imputação objetiva, isto é, o nexo de causalidade entre o facto e o dano, que no texto do artigo 798.º decorre da fórmula " que causa ao credor".
As diferenças residem essencialmente no facto de na responsabilidade contratual, a culpa do lesante se presumir – v. nº1, do artigo 799.º.
E, com efeito, na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado o ónus de provar todos os referidos pressupostos consagrados no nº1 do art. 483º, do Código Civil, entre eles, como vimos, a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, ambos daquele Código, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º do Código Civil, contando-se, entre tais casos, o consagrado no artigo nº2, do art. 493º, do Código Civil.
Assim, “a responsabilidade civil pressupõe, em regra, a culpa do agente por dolo ou mera negligência, incidindo sobre o lesado o ónus de provar a culpa (artigos 483º e 487º do Código Civil).
Ciente de que em muitos casos essa prova pode ser difícil, o legislador estabeleceu situações de inversão do ónus da prova, em que a responsabilidade continua a depender da culpa do agente, mas essa culpa se presume.
Um desses casos é precisamente o exercício de atividade tida por perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (artigo 493º, n.º 2, do Código Civil)”.
Nos termos do disposto no nº2, do artigo 493º, do CC, “quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Este preceito constitui uma das exceções ao princípio geral enunciado no n.º 1 do artigo 487.º, do Código Civil, prevendo a inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, em consequência da qual ocorre o dano. A lei presume a culpa, impondo ao agente que demonstre ter empregado todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, ou seja, por outras palavras, ter actuado com a devida diligência[26].
Consagra uma presunção de culpa quanto aos danos decorrentes de atividades perigosas seja “por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados”.
Como refere Ana Prata Não se foi além disto, isto é, a um princípio geral de responsabilidade pelo risco quanto a estas atividades. Tratou-se, contudo, dentro da sua limitação, do acolhimento de uma conceção do risco/atividade, em detrimento da de risco/proveito, que é de aplaudir… Pires de Lima e Antunes Varela, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 495, opinam que “este preceito (…) é dos que mais claramente revelam o caráter excecional da responsabilidade pelo risco, na medida em que, mesmo quanto às actividades dessa natureza, onde a teoria do risco mais tende a afirmar-se, a lei admite a prova da falta de culpa como causa de exclusão da responsabilidade do agente”.[27]
A lei não fornece “um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos dessa norma e também não fornece um critério em função do qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados.
A perigosidade é apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base a «directriz genérica» indicada pelo legislador.
Deve ser considerada perigosa a actividade que possui uma especial aptidão produtora de danos, um perigo especial, uma maior susceptibilidade ou aptidão para provocar lesões de gravidade e mais frequentes”[28].
E se é certo que o n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil não indica o que deve entender-se por “atividade perigosa”, admitindo apenas, ainda que de forma genérica, que a perigosidade deriva da própria natureza da atividade, ou da natureza dos meios utilizados, revela-se pacífico na jurisprudência o entendimento de que a atividade de pirotecnia é inquestionavelmente uma atividade perigosa pela sua própria natureza[29], sendo a atividade aqui em causa, de abertura de furos artesianos também perigosa para efeitos deste preceito, criando uma situação de especial perigo.
Não definindo a lei o que deve entender-se por atividade perigosa, apenas conexiona, genericamente, essa perigosidade com a própria natureza da atividade ou dos meios utilizados pelo agente, como acontece com o lançamento e queima do fogo-de-artifício, a que é aplicável o disposto no artigo 493.°, n.° 2, do CC, ou seja, o da responsabilidade assente na culpa, embora presumida, não se regendo pelos princípios da responsabilidade objetiva ou independentemente de culpa, em que o agente suportaria sempre as consequências do facto ilícito, independentemente de culpa.
A inversão do ónus da prova, ou seja, a presunção de culpa por parte de quem exerce uma atividade perigosa, consagrada pelo art. 493.°, n.° 2, do CC, não altera o princípio matricial de que a responsabilidade depende da culpa, salvo nos casos especificados na lei, portanto se trata de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objetiva, agravando o dever normal de diligência, não bastando, para afastar a responsabilidade, a prova de ter agido sem culpa, sendo necessário demonstrar que se adotaram todas as providências destinadas a evitar o dano.
As providências a adotar pelo agente, idóneas a evitar os danos são ditadas pelas particulares normas técnicas ou legislativas inerentes às especiais atividades, ou as regras da experiência comum[30].
Estando-se perante o exercício de uma atividade perigosa, o lesante só poderia exonerar-se da responsabilidade pelos danos causados a outrem no contexto desta atividade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.
Ora, in casu, movemo-nos no âmbito da responsabilidade contratual, em causa estando, como bem decidiu o Tribunal a quo, a violação de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários.
Analisemos, pois, da violação de obrigações contratualmente assumidas pela 1ª Ré, causadora de danos aos Autores e da medida da responsabilidade da 1ª Ré, decorrente de tal violação.
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O “Cumprimento e não cumprimento das obrigações” vem regulado no Capítulo VII, arts 762º e seguintes do Código Civil, sendo que o princípio da pontualidade no cumprimento das obrigações que tenham por fonte contratos se encontra materializado quer no nº1, do art. 763º, quer no nº1, do art. 406º.
O cumprimento de acordo com o nº1, do art. 762º, consiste na realização da prestação debitória. É a realização voluntária da prestação pelo devedor, que ela se vinculou[31], impondo o nº 2 que a conduta de ambas as partes na relação obrigacional se paute pelas regras da boa fé. E atuar de boa fé no cumprimento da obrigação é agir com o maior empenho, lealdade e correção na realização da prestação a que o devedor se encontra adstrito[32].
Assim, o vínculo obrigacional é uma realidade composta ou complexa, que não se reconduz ao mero dever de prestar a cargo do devedor, englobando deveres acessórios de conduta, baseados na boa fé: deveres de lealdade, de esclarecimento, de colaboração, de protecção[33].
O nº2 enuncia o princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações contratuais e no exercício do direito de crédito correspondente, revelando-se a aceção objetiva da boa-fé, enquanto norma de conduta ou critério do agir humano[34]. Tal princípio desdobra-se numa série interminável de deveres secundários da prestação e principalmente de deveres acessórios da conduta que recaem, por igual, sobre ambos os sujeitos da relação jurídica (RLJ, 106º, 52)[35]. Resulta, pois, que da boa fé no cumprimento decorrem, para o devedor, variados deveres acessórios e secundários, impondo-se-lhe, que omita todos os atos que possam por em causa um comportamento pontual e que empreenda todos os comportamentos que se mostrem necessários para que aquele tenha lugar[36].
No cumprimento vigora o princípio da autonomia da vontade (art.405º), devendo, por isso, atender-se em primeiro lugar ao que as partes estipularam, de forma expressa ou tácita e no próprio contrato ou em convenção posterior, a respeito do cumprimento, apresentando as normas legais natureza supletiva[37].
A boa fé, imposta pelo nº2, do art. 762º, ilumina e reflete-se em toda a economia do contrato e durante todo o período da sua execução vinculando os contraentes não ao mero cumprimento formal dos deveres da prestação que recaem sobre eles, mas à observância do comportamento que não destoe da ideia fundamental da leal cooperação que está na base do contrato[38] e refere-se tanto aos deveres principais ou típicos da prestação e aos deveres secundários ou acidentais, como também aos deveres acessórios de conduta quer do lado do devedor quer do do credor[39], sendo inadmissível e fortemente atentatório da boa fé na realização da prestação de execução de furo artesiano, logo ilícito, destruir/danificar bens do credor.
As obrigações laterais ou acessórias surgem como o resultado do comprometimento das partes, ligadas ao cumprimento das obrigações principais, com estas coenvolvidas, estando muitas vezes, na base de todo o desenvolvimento negocial e, até, o determinando[40] , impondo-se, no cumprimento das obrigações, o dever de agir com honestidade e consideração pelos interesses da outra parte[41].
O artigo 798º, ao estatuir “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, enuncia o “princípio geral da responsabilidade obrigacional subjetiva”, que, “tal como a delitual (art. 483º), supõe um ilícito (o incumprimento), a culpa, um dano e uma relação causal entre aquele e este”[42], sendo que neste regime há uma presunção geral de culpa do devedor (nº1, do art. 799º), e na responsabilidade extracontratual a regra é a de que o credor da indemnização a tem de provar (art. 487º, nº1).
Do nº1, do art. 799º decorre uma presunção de culpa do devedor pelo não cumprimento, tendo, contudo este de ser, efetivamente, provado, bem como os demais requisitos, seja qual for a modalidade, pelo credor[43], sendo a culpa, nos termos do nº2, “apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”, remetendo-se, assim, para o nº2, do art. 487º, sendo esta “o não cumprimento de um dever jurídico: o dever de diligência e este dever legal de conteúdo indeterminado (diligência juridicamente devida) é a que teria tido um bom pai de família colocado nas circunstâncias do agente, daí decorrendo que tal diligência tem uma medida diversa para o mesmo ato se o agente for um profissional ou não, exigindo-se àquele uma perícia, conhecimento, qualificações não esperáveis deste [44].
E o não cumprimento/cumprimento defeituoso pode resultar do não cumprimento de deveres principais, essenciais ou de deveres acessórios e secundários.
O princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações contratuais, que funciona em termos bidirecionais, impõe às partes outorgantes que atuem “na realização do direito e no cumprimento das obrigações correspondentes, de forma reta, leal e honesta, observando elevados padrões de lisura e de probidade, e em termos que contemplem o interesse da contraparte. A boa-fé conforma, nesta medida, os termos da execução da prestação debitória, impondo um cumprimento, não meramente formal, mas também (…) em termos adequados à realização do interesse do credor. O princípio da boa fé tem uma importância genética, na medida em que fundamenta a constituição de deveres acessórios ou laterais de conduta, não diretamente explicitados num preceito da lei nem no conteúdo contratual. Neste sentido, o cumprimento (integral e pontual – cfr. artigos 406º, nº1 e 763º) da prestação tem de ser acompanhado, sempre que as circunstâncias do caso o reclamem (v.g., o tipo de negócio, a natureza do bem ou do serviço contratado, as condicionantes objetivas e materiais do local ou do modo do cumprimento) pela observância de deveres de cuidado (v.g. a adequada embalagem do bem; o transporte cuidado do bem), de proteção, de informação e de lealdade. A boa-fé reclama dos contraentes, pois, estritos deveres de cooperação. (…)
Entre os deveres acessórios, fundamentados – direta ou indiretamente – na boa fé, cumpre relevar deveres de proteção, certos deveres de lealdade e deveres de informação”[45], sendo abordados pela doutrina como, padrões de conduta, deveres laterais e deveres acessórios a observar os de proteção, de informação e de lealdade[46].
A boa-fé no cumprimento da obrigação abrange “os atos preparatórios e instrumentais quanto ao cumprimento, assim como os comportamentos subsequentes à entrega do bem ou à realização da prestação. Numa palavra, o cumprimento da obrigação deve pautar-se por exigências de informação e de esclarecimento, de proteção e de cuidado, e de diligência” e verificando-se a sua inobservância “há fundamento de responsabilidade civil obrigacional – v. Menezes Cordeiro, 2017:420. Por conseguinte, a responsabilidade obrigacional pode ancorar-se no incumprimento de deveres principais, secundários ou laterais – vd. Brandão Proença, 2017: 280.Vd., ainda, Almeida Costa, 2009:76-80”[47].
Cumpre, pois, analisar se o contrato foi incumprido e, em caso afirmativo, a indemnização a que os Autores têm direito.
São três as formas/modalidades de não cumprimento do contrato:
1- O incumprimento definitivo, que, resumidamente, ocorre quando:
a) no momento da prestação, esta não seja acatada pelo devedor, impossibilitando-se de seguida;
b) por força da não realização da prestação ou do atraso na mesma, o credor perde o interesse objetivo na sua efetivação;
c) havendo mora do devedor, este não cumpra no prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo credor;
d) o devedor manifeste que não quer cumprir ou que não cumprirá, podendo esta manifestação resultar de declaração expressa ou de atos concludentes;
2- A mora, que é um não cumprimento temporário - a prestação, ainda possível, não foi realizada no tempo devido, por facto imputável ao devedor;
3- O cumprimento defeituoso, que consiste em a prestação realizada pelo devedor não cumprir as condições de integridade e identidade do cumprimento, abrangendo os vícios e defeitos que pode ter o objeto da prestação, não ser esta oferecida às pessoas que a deviam receber ou em circunstâncias de lugar e tempo de cumprimento acordadas[48].
O incumprimento em sentido amplo, no qual se inclui o cumprimento defeituoso, vem previsto nos artigos 798° e 799°, sendo que apesar da referência que vem feita no artigo 799°, 1, todos do C.C., ao cumprimento defeituoso ele não vem regulado especialmente[49].
Consagra o referido artigo 799º, 1, do C.C., que incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
In casu, a existir incumprimento culposo pela 1ª Ré, estaríamos, na verdade, perante responsabilidade contratual regulada no art.º 798º, do C.C., consagrando este artigo que “O devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Porém, para que o devedor incorra em responsabilidade contratual e em obrigação de indemnizar é necessário que se encontrem preenchidos os referidos pressupostos, cuja verificação, cumpre aferir.
À analise do requisito da ilicitude é essencial determinar quais as obrigações das partes, decorrentes do contrato celebrado, e comparar o conteúdo das mesmas com os comportamentos efetivamente empreendidos (alegados e provados), a fim de aferir se estes traduzem violações daquelas.
E o devedor está obrigado não só ao que expressamente se estipulou, quer inicialmente quer em convenção posterior, mas também ao que do convencionado decorra das regras da boa fé, como decorre do referido nº2, do art. 762º.
O credor tem de provar a ilicitude bem como o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, presumindo-se, contudo, a culpa (cfr. nº1, do art.º 799.º).
Ora, resultou provado que:
- A 1ª Ré B…, Unipessoal, Lda, que se dedica ao Exercício da Atividades de Pesquisa, Captação e Montagem de Equipamentos de Extração de Água Subterrânea, apresentou, a 18/01/2014, a pedido do A. C…, a proposta de orçamento constante de fls. 20/22, que se dá por reproduzido, designadamente quanto à profundidade do furo e técnicas a usar na perfuração, preço e modo de pagamento, aceite pelo A., tendo a obra sido realizada em fevereiro de tal ano;
- A seleção do local (a cerca de 2 metros de distância da moradia dos AA.) e das formações geológicas a perfurar foram da responsabilidade da 1ª Ré. Tal escolha do local da perfuração teve anuência do A. marido, por o representante legal da 1ª Ré ter garantido que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais.
- O método de perfuração escolhido pela 1ª Ré consistiu na perfuração por “rotação com circulação direta”, método em que, por ação de uma bomba de alta pressão, as lamas são injetadas pelo interior da cabeça da sonda, saindo no fundo do furo por orifícios do trépano de roletes (triatleta), sendo que, de seguida, as lamas acendem pelo espaço compreendido entre a parede exterior das varas de perfuração e as paredes da sondagem, arrastando consigo os detritos da formação perfurada até à superfície;
- Com a aplicação deste método, apenas se logrou atingir a profundidade de 18 metros, pelo que decidiu a 1ª Ré aplicar, a partir dessa profundidade, o método de perfuração por “rotopercussão” (ou percussão pneumática com martelo de fundo de furo). Tal método é baseado numa ação principal de esmagamento e corte provocada por uma ferramenta acionada por ar comprimido, em que se pode combinar um pequeno movimento de rotação de um “bit” (broca) transmitido pelas hastes de perfuração e um movimento de percussão de elevada frequência e de pequeno curso, dado por um martelo de fundo de furo. Neste caso, o fluido de circulação é o próprio ar comprimido, produzido a partir de um compressor, que é transmitido pelo interior da coluna de perfuração, passando pelo martelo e “bit”, servindo também como fluido de limpeza;
- Com a aplicação deste método logrou atingir-se a profundidade de, pelo menos, 30 metros.
- No dia em que foi atingida a profundidade máxima de, pelo menos, 30 metros, os operários verificaram, no momento em que regressavam do almoço, a existência de um buraco perto da máquina e foi necessário proceder-se ao enchimento do buraco com cerca de 9 metros de entulho.
- Alguns dias volvidos, viriam a aparecer as primeiras fissuras nas paredes dos anexos da moradia pertencente aos AA., bem como azulejos partidos.
- Imediatamente contactado o legal representante da 1ª Ré, este dirigiu-se ao local e confirmou a existência dos aludidos danos materiais nos anexos da moradia.
A obra foi efetuada através do método “rotação com circulação direta” por se tratar de um terreno com pouca firmeza e consistência, sendo o terreno em que foi construída a habitação dos AA. arenoso.
– A partir dos 18 metros de profundidade, tendo-se intersectado material mais consolidado e firme, procedeu-se à perfuração pelo método de “rotopercussão” até, pelo menos, aos 30 metros.
Aquando da realização dos trabalhos, o terreno situado ao lado da máquina que efetuou o furo cedeu.
Os trabalhos foram interrompidos no dia 24 de fevereiro de 2014, sem conclusão do furo artesiano.
- O imóvel dos AA. apresenta danos que são consequência da deficiente execução do furo pela 1ª Ré, por não ter executado de forma correta o método “rotopercussão” de que decidiu lançar mão.
Bem concluiu o Tribunal a quo, face aos referidos factos, estarem in casu verificados os requisitos “a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação subjetiva (culpa) e a imputação objetiva (nexo de causalidade); d) os danos”.
E, efetivamente, da factualidade provada resulta a ilicitude da atuação da 1ª Ré, pois que esta, que selecionou o local (a cerca de 2 metros de distância da moradia dos AA.) e as formações geológicas a perfurar, garantiu que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais, e perfurando a profundidade de, pelo menos, 30 metros, causou um buraco - terreno cedeu - perto da máquina, que teve de ser enchido com cerca de 9 metros de entulho e todos os danos (patrimoniais e não patrimoniais) referidos, foram consequência da deficiente execução do furo pela 1ª Ré, por não ter executado de forma correta o método “rotopercussão”.
A 1ª Ré podia e devia saber dos riscos que corria ao utilizar, in casu, o método de rotopercussão a partir dos 18 metros (a obra foi efetuada através do método “rotação com circulação direta” por se tratar de um terreno com pouca firmeza e consistência, sendo o terreno em que foi construída a habitação dos AA. arenoso), designadamente o de provocar os danos que veio a causar e tinha de cuidar pela sua não verificação, como se vinculou.
Mais resultou provado, até, que o furo artesiano nem concluído foi.
Destarte, para além de sequer ter executado integralmente a prestação principal, a conduta da Ré foi ilícita, por causadora de cedência do terreno junto à máquina, com deficiente execução do furo e por violar obrigações, até expressamente assumiu, mas que já impostas eram pela boa fé no cumprimento do contrato, como a de não causar estragos na habitação e anexo dos Autores, presumindo-se a culpa, nos termos do nº1, do art.º 799.º, do CC.
Assim, é violadora de obrigação expressamente assumida e do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações - logo ilícita - a atuação da empreiteira que executa furo artesiano, garantindo a não produção de estragos na habitação e anexos, e realizando furo de 30 metros, originando buraco de mais 9 metros, que teve de ser tapado, e estragos naqueles bens do credor, incorrendo em responsabilidade contratual por violação dos deveres acessórios de conduta, como o de proteção e de consideração pelos interesses da outra parte.
E, para além da ilicitude, que demonstrada ficou, pois que incumprida foi obrigação, expressamente, assumida e dever decorrente da boa fé no cumprimento da prestação, presume-se a culpa e mais resultou provado que todos os supra referidos danos patrimoniais revelados (cuja verificação a 1ª Ré/Apelante garantiu não iria ocorrer), foram consequência da deficiente execução do furo pela 1ª Ré. Resulta, na verdade, que o concreto processo factual supra descrito foi causa adequada do dano.
Incumpriu, pois, a 1ª Ré as obrigações que contratualmente assumiu, e que para si sempre decorreriam da boa fé, constituindo-se na obrigação de indemnizar os Autores pelos danos patrimoniais que lhes causou e pelos não patrimoniais, por estes, sofridos.
Na verdade, resultou provada a execução defeituosa dos serviços prestados, tendo a 1ª Ré incumprido as obrigações que assumiu – efetuar furo artesiano e sem causar estragos na habitação e anexos -, sempre sendo este um dever decorrente da boa fé, pois que, no exercício da atividade em causa, a que se dedicava, lhe cabia prestar os serviços a que se vinculou sem causar estragos em bens existentes no património dos Autores.
Provaram, pois, os Autores atuação da 1ª Ré incumpridora quer de deveres principais quer de deveres acessórios, daí a ilicitude, causadora dos invocados danos. E, mesmo o requisito da culpa - que na responsabilidade contratual se presume e que apenas é de equacionar demonstrada que esteja a ilicitude, sendo que esta, como vimos, está presente no caso - bem como os restantes requisitos da responsabilidade civil contratual, resultaram efetivamente provados, tendo os Autores cumprido o ónus da prova que sobre si impendia nos termos do nº1, do artigo 342º, do C. Civil.
Há, pois, concurso de responsabilidade civil contratual, por violação de um contrato de prestação de serviços, por parte de 1ª Ré, pela violação de um direito de crédito, e responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de propriedade e personalidade dos Autores.
E, na verdade, como analisamos, para além do dever de prestação, existem na relação contratual, deveres acessórios de conduta ou deveres laterais, deveres de cuidado e de proteção, independentemente dos deveres primários de prestação, impostos pela boa fé, e que as partes devem observar, que se destinam a proteger a pessoa ou os bens da contraparte, cuja violação originará responsabilidade contratual ou o cumprimento defeituoso, sendo que com a inclusão do dever de proteção violado, no âmbito do contrato, o dano não deixa de assumir natureza delitual, por resultar da violação de direitos absolutos da contraparte, só que ocorrendo na execução do contrato, por violação de deveres de cuidado, que devem ter-se por abrangidos no seu círculo de proteção, o dano reveste, simultaneamente, natureza contratual[50] e, como tal regulado pelo regime da responsabilidade contratual que, como vimos, consome o da extracontratual.
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Quanto à questão da culpa do lesado, cumpre referir que estatui o nº1, do artigo 570º, do CC, que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
Ora, não é qualquer comportamento do lesado que faz desencadear a consequência jurídica a que alude o referido preceito. “Exige-se que o mesmo seja, em sede de concausalidade adequada, idóneo à produção ou agravamento dos danos, aferido o ato em caso de negligência, sendo inoperantes “imprudências de relevo diminuto” por parte do lesado[51].
No caso sub judice, com a culpa da devedora nenhuma culpa dos Autores concorre. A prestadora do serviço era a Ré, sendo ela que tinha de se munir dos meios e adotar os cuidados e técnicas devidas para realizar o serviço, sem defeitos e em segurança.
Atendendo a todo o contexto fáctico, certo é que era a 1ª Ré, empreiteira, que tinha de estar dotada dos conhecimentos técnicos para saber se certo local é ou não o seguro ou adequado para a realização da obra em causa, a ela cabendo realizar os estudos e dotar-se dos meios necessários à realização da prestação a que se vinculou em condições de segurança para pessoas e bens.
Não o tendo feito, é inteiramente responsável pelos danos, patrimoniais e não patrimoniais, que provocou, causados pela sua atuação ilícita e culposa.
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5.2. Da materialização do risco no sinistro e da transferência da obrigação de indemnizar da 1ª Ré para a 2ª Ré
Insurge-se a apelante contra a decisão que absolveu a Ré Seguradora dos pedidos com fundamento de o risco aqui em causa não ter sido contratado pelo contrato de seguro multiriscos referido nos autos, por o seguro garantir, em termos de responsabilidade civil extracontratual, apenas, os sinistros ocorridos na sede da empresa, sendo um seguro multirriscos que não engloba responsabilidade profissional da B…, Unipessoal, L.da, entendendo a apelante o contrário.
Vejamos, pois, se o risco em causa se mostra contratado pelo referido contrato de seguro, cumprindo, desde já, deixar claro que, evidentemente, para tal, se tem de atentar nos factos (provados e não provados).
Contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes (segurador) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (segurado), a assumir um risco ou conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro, uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado[52].
São, pois, elementos essenciais do contrato de seguro os intervenientes (seguradora, tomador de seguro), as obrigações dos intervenientes (pagamento do prémio pelo tomador do seguro, suportar do risco e realização da prestação pela seguradora) e objeto (risco).
O contrato de seguro é regulado pelas condições gerais, particulares e especiais – v. art.º 32º do citado Decreto-Lei 72/2008, de 16 de abril, abreviadamente designado de RJCS, que passou a vigorar a partir de 1 de janeiro de 2009 para os contratos celebrados após aquela data (cfr. art. 2º e segs).
O artigo 1º, do RJCS, com a epígrafe Conteúdo típico, estatui “Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”. Podendo a noção de contrato de seguro acarretar dificuldades de qualificação, não define a lei o contrato de seguro mas indica “as obrigações principais e características que decorrem para as partes deste contrato. Apesar de não se apresentar (formalmente) uma noção do contrato de seguro, do elenco dos deveres típicos enunciados deduz-se a noção da figura”[53].
Assim, “em vez de “segurado” ou de “terceiro”, optou-se por um termo neutro “outrem”, pois, tendo em conta a complexidade da distinção entre pessoa segura e segurado, de molde a abranger os seguros de danos e de pessoas; “outrem” é um termo neutro, que (…) permite maior abrangência.
A obrigação típica do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas sim a de realizar a prestação resultante de um sinistro associado a tal risco[54].
O seguro configura-se como um contrato bilateral ou sinalagmático, por dele emergirem obrigações para ambas as partes, oneroso, por implicar vantagens também para ambas, e de execução continuada.
Em regra, surge como um contrato de adesão, pois a vinculação do segurado faz-se através da subscrição de um esquema contratual preestabelecido pelo segurador, consubstanciado nas condições gerais da apólice que são elaboradas sem prévia negociação individual, limitando-se os proponentes ou destinatários a subscrever o contrato, aderindo a elas.
José Vasques, define Contrato de Seguro como sendo “um contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto”[55].
O contrato de seguro em benefício de terceiro constitui, assim, um verdadeiro contrato a favor de terceiro, definido pelo artigo 443.º do Código Civil, como aquele em que um dos contraentes (o promitente) atribui, por conta e à ordem de outro (o promissário) uma vantagem a um terceiro (o beneficiário) estranho à relação contratual, mas titular definitivo e autónomo do direito de crédito de exigir do promitente o cumprimento da prestação, e não um simples destinatário da prestação[56].
“O Segurado é a pessoa no interesse da qual o contrato é celebrado ou a pessoa (pessoa segura) cuja vida, saúde ou integridade física se segura”[57].
“O Tomador do Seguro é a entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora…”[58].
“O Beneficiário é a pessoa singular ou coletiva a favor de quem reverte a prestação da seguradora decorrente do contrato de seguro ou de uma operação de capitalização”[59].
O contrato de seguro é um contrato bilateral ou sinalagmático, formal e aleatório, sendo-o na medida em que a prestação da seguradora fica dependente de um evento futuro e incerto – um sinistro associado a tal risco. “O sinistro é o “evento aleatório” a que se refere o art. 1º, da LCS, (cf arts. 99º e ss.). O contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (maxime, pagar uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem (segurado, eventualmente, pessoa segura). Com isso, não se nega realidade ou relevância jurídica à cobertura, que consiste na sujeição do segurador, durante certo período, ao possível surgimento da sua obrigação. A cobertura é uma atribuição que se realiza por mero efeito do contrato e, nessa medida, não é obrigação nem conteúdo de uma obrigação, e muito menos se confunde com a obrigação típica do segurador. É com a cobertura que a obrigação de pagar o prémio constitui uma relação sinalagmática ou, noutra terminologia, uma relação de troca (cf. art. 51.º, nº1, na referência à “contrapartida”). O segurador cobre um risco que existe independentemente do contrato (cf. arts. 43º e ss.). A não criação do risco pelo próprio contrato de seguro contribui para a distinção entre o seguro e o jogo ou aposta (cf. arts. 1245º e ss do CC). Contudo, é o contrato de seguro que define exatamente que risco é esse, pois só é sinistro “a ocorrência do evento aleatório previsto no contrato”. Nessa medida, diz-se que é um risco formal aquele que releva para o contrato de seguro. O risco coberto é do tomador ou de outrem. A lei, em vez de “segurado” ou de “terceiro”, optou por um termo neutro, “outrem”, pois, tendo em conta a complexidade da distinção entre pessoa segura e segurado, de molde a abranger os seguros de danos e de pessoas, só um termo neutro como “outrem” não compromete e permite maior abrangência. Ainda que se tenha optado por este termo amplo (outrem), importa distinguir aqueles que podem ter direito a uma pretensão direta contra o segurador (ex. pessoa segura) daqueloutros que só indiretamente poderão beneficiar da prestação (ex. certos beneficiários); ou seja, há que distinguir se foi ou não atribuída ação direta contra o segurador (vd., p. ex., arts 140º e 146º). A questão prende-se ainda com a eventual qualificação do seguro como contrato a favor de terceiro (veja-se Ac. STJ de 20/2/2014 (João Trindade), www.dgsi.pt)”.[60]
Os elementos naturais do contrato de seguro são aqueles que não são essenciais à validade de tal contrato, resultando de normas supletivas – o contrato de seguro regular-se-á pelas estipulações da respetiva apólice não proibidas pela lei e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições do DL nº 72/2008, de 16/4.
Para que exista contrato de seguro é necessário, desde logo, que exista uma proposta e que essa proposta seja aceite pela Seguradora destinatária.
A apólice é, assim, o documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora e de onde constam as respetivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares.
O contrato de seguro é, também, um contrato de adesão, isto é, um contrato em que um dos contraentes não tem a menor participação na preparação e redação das cláusulas do mesmo, limitando-se a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado[61], a sua celebração, porém, está condicionada à apresentação, pelo potencial tomador do seguro, de uma proposta correspondente ao ramo e modalidade que pretende contratar, proposta essa que se traduz num formulário fornecido pela entidade seguradora.
In casu, consta das cláusulas contratuais do contrato de seguro celebrado entre as partes, cobrir o mesmo os “multirriscos” descritos.
O risco é o “perigo de um mal”, é a probabilidade de verificação de um evento danoso ou, ao menos, de um evento que determina no segurado o surgir da necessidade de uma prestação, equivalendo, do ponto de vista do segurador, a álea, à possibilidade de efetuar a prestação contratual ao verificar-se um determinado evento, sendo que o que se transfere para o segurador é a consequência do verificar do risco, no campo patrimonial, somente nesse sentido parecendo dever falar-se em suportação do risco pelo segurador, que assumindo tal suportação contratual, fica adstrito, por isso, ao cumprimento da prestação convencionada a seu cargo até ao limite das forças do seguro[62].
O risco, constituindo o objeto do contrato de seguro tem de se encontrar, ali, bem delimitado e, consistindo na possibilidade de realização do evento futuro e incerto estipulado, liga-se ao sinistro, que mais não é que a concretização daquele risco[63].
Como bem refere o Tribunal a quo, o acionamento do seguro dependia da verificação de uma das situações referidas nas “coberturas”, sendo que cabia aos Autores alegar e provar o invocado facto gerador da responsabilidade da seguradora.
Ora, não resultou provada a verificação de risco coberto pelo contrato de seguro referido pelos Autores, cuja apólice se mostra junta aos autos.
Conclui-se, pois, pela não verificação do pressuposto de que dependia o acionamento da cobertura do seguro em questão, pois que a prova desta factualidade, constituindo matéria de facto constitutiva do direito invocado pelos autores, incumbia a estes, como prevê, o nº1, do art. 342º, do Cód. Civil, e não tendo os mesmos logrado fazer essa prova, improcede a ação quanto à seguradora.
Na verdade, o acionamento do seguro dependia, da verificação de uma das situações de facto de riscos que, por acordo das partes, ficaram cobertos nenhuma situação se tendo provado.
Ora, assentando a modificabilidade da fundamentação jurídica na verificação de evento danoso que integre a concretização do risco contratado, pressuposto da responsabilidade da ré, e decidido que está não se ter logrado demonstrar a sua verificação, nunca poderá a ação proceder relativamente à 2ª Ré.
Em termos de regras gerais sobre o ónus da prova, opera o preceituado no disposto no artigo 342º, do Código Civil, que estatui no nº1, que àquele que invoca um direito, cabe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo e no nº2 que a prova dos factos extintivos do direito, compete àquele contra quem a invocação é feita.
Celebrado contrato de seguro entre as partes e alegada a verificação de risco coberto, aos Autores cabia a prova da sua verificação, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório de que se arroga (nº1, do art. 342º, do CC), competindo à seguradora o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC). Aos Autores incumbia fazer a prova dos factos constitutivos do direito á prestação por parte da R. – desde logo a prova dos factos que, atentas as cláusulas do contrato de seguro celebrado, determinariam o pagamento da indemnização pelos danos, ou seja, a prova do sinistro, dos danos e do nexo de causalidade entre o sinistro e esses danos. À seguradora/Ré competirá alegar e provar factos ou circunstâncias que constituam as exclusões previstas nas Condições Gerais, por se tratar de factos impeditivos do direito do A. à indemnização[64], excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do nº 2 do mesmo artigo (sendo que mesmo em caso de fraude - com o que fica prejudicada a natureza fortuita do próprio evento -, é sobre a seguradora que impende o ónus de provar que a ocorrência de facto integrador de qualquer das situações contratualmente previstas em sede de delimitação do risco foi causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado, o que se traduz num facto impeditivo do efeito jurídico potenciado por aquela ocorrência, nos termos conjugados do art. 46º do RJCS e nº 2 do art. 342º) [65].
Com efeito, como se decidiu no citado Acórdão da Relação de Coimbra de 9/1/2018, “no contrato de seguro, o risco constituiu um elemento essencial, o qual se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento futuro e incerto, de natureza fortuita, com consequências prejudiciais para o segurado, nos termos configurados no contrato e que deve existir ainda durante a vigência do mesmo.
O risco relevante para efeitos do contrato, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respectivo contrato de seguro através da delimitação dos riscos cobertos, que tecnicamente é feita através de dois vectores: primeiramente por meio das cláusulas definidoras da “cobertura-base” e subsequentemente pela descrição das cláusulas de delimitação negativa dessa base ou de exclusão da cobertura.
O sinistro é a ocorrência concreta do risco assim previsto, devendo reunir os elementos com que é ali configurado.
A definição genérica de sinistro como evento futuro, súbito e imprevisto, dada numa cláusula contratual geral, não se traduz em qualquer característica qualificativa adicional dos factos enunciados na cláusula de base de cobertura do risco.
Assim, incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações descritas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos do seu direito de indemnização (art. 342º, nº 1, do CC)”.
Aí se escreve “Como sustentado pela jurisprudência que seguimos, «incumbe ao segurado o ónus de provar as ocorrências concretas em conformidade com as situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco, como factos constitutivos que são do direito de indemnização, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do CC. Por sua vez, à seguradora cabe provar os factos ou circunstâncias excludentes do risco ou aqueles que sejam suscetíveis de retirar a natureza fortuita que os mesmos revelem na sua aparência factual, a título de factos impeditivos nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do CC» [66].
Como se lê no acórdão ora citado, «(…) é pois reconhecido que o risco constitui um elemento essencial ou típico do contrato de seguro, que deve existir quer aquando a celebração do contrato quer durante a sua vigência, o que, de resto, parece decorrer, nomeadamente do disposto nos artigos 1.º, 24.º, 37.º, n.º 2, alínea d), 44.º, n.º 1 e 3 e 110.º do atual regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16-04 (RJCS).
Relativamente à noção de risco, para tais efeitos, é também correntemente admitido que o mesmo se traduz na possibilidade de ocorrência de um evento ou facto futuro e incerto de natureza fortuita com consequências desfavoráveis para o segurado, nos termos configurados no contrato.
Nas palavras de Cunha Gonçalves: «O risco tem um carácter eminentemente potencial e aleatório: é um facto incerto para ambas as partes e futuro, que pode causar um dano ao património ao segurado, ou modificar o evento da vida em que ele tem qualquer interesse.»
E segundo Moitinho de Almeida, o risco “é a possibilidade de um evento futuro e incerto (pelo menos incertus quando) susceptível de determinar a atribuição patrimonial do segurado (excluída a teoria indemnizatória, não se qualifica o evento de danoso).
Por seu lado, Menezes Cordeiro refere que:
«Há risco quando, em termos humanos, a eventualidade (tomada como) desfavorável seja possível e caso, como tal, ela seja levada a um contrato válido. Digamos que há uma dificuldade de princípio, dada a irracionalidade do elemento humano, a qual é ultrapassada pelo juízo de validade que recaia sobre o contrato de seguro.»
De forma mais analítica, Margarida Lima Rego caracteriza a incerteza do risco na base de três variáveis:
i) – a incerteza quanto à ocorrência do resultado contemplado (incertus an);
ii) – a incerteza quanto ao momento da ocorrência desse resultado (incertus quando);
iii) – a incerteza quanto ao valor de tal resultado, ou seja, “a variabilidade da magnitude das consequências do sinistro.”
(…) Segundo o ensinamento de Cunha Gonçalves, em termos jurídicos:
«Sinistro é um caso fortuito ou de força maior de que resultou a parcial ou total realização do risco garantido pelo segurador ou do dano previsto por ambas as partes no respectivo contrato.»
E «[…] caso fortuito ou de força maior é qualquer facto superior às forças humanas e imprevisto, ou previsto, mas inevitável.
Em consequência, é lógica a conclusão de que o segurador não é obrigado a indemnizar ou a considerar como sinistro os danos provenientes de factos que não têm aquela natureza, ou, embora a tenham, não foram dos previstos na apólice ou no contrato de seguro.»
Por seu lado, Margarida Lima Rego escreve que:
«Chamamos “sinistro”, precisamente, à verificação de um desses factos previstos no contrato de seguro, que compõem a chamada cobertura-objeto, e cuja verificação determina a obrigação de prestar por parte do segurador.»
Também Menezes Cordeiro, a este propósito, considera que:
“O sinistro equivale à verificação, total ou parcial, dos factos compreendidos no risco assumido pelo segurador (99.º)”»”.
O artigo 99º do RJCS dá o “sinistro” como a realização do evento assegurado, formulação cujo “minimalismo”, “funcionalismo” – prescinde designadamente das ideias, seja de dano, seja de imprevisibilidade ou de subitaneidade[67].
Alinhadamente, o artigo 1º refere-se ao “evento aleatório previsto no contrato”. E o art. 99º tem caráter “minimalista”, neutro. Além de minimalista., a noção é neutra e aberta. É ao contrato, à sua interpretação, que cabe determinar o evento em concreto relevante para o acionamento da cobertura[68].
“Sinistro” é um termo usado nos seguros com um sentido específico relacionado com o evento em razão do qual foi feito o seguro, relacionando-se com a verificação do risco coberto no contrato de seguro[69].
Sendo o sinistro a ocorrência concreta do risco previsto no contrato e sendo que a qualificação de um evento ou facto como sinistro terá de ser feita em função dos contornos tipológicos do risco tal como foram desenhados no clausulado contratual, recai sobre o segurado o ónus de provar tais ocorrências, como factos constitutivos que são do direito de indemnização invocado, nos termos do nº 1 do art. 342º do CC.
Nesta linha de entendimento é forçoso concluir pela não verificação do sinistro, pois incumbindo aos Autores a prova da sua ocorrência e não tendo cumprido o onus probandi que sobre si impendia[70], não podiam deixar de sofrer as consequências desvantajosas que estão associadas ao incumprimento de tal ónus – a improcedência da ação quanto à 2ª Ré.
Os autores alicerçam a sua pretensão com base na existência de um seguro a cobrir o risco em causa nos autos - danos para si resultantes do cumprimento defeituoso do contrato de prestação de serviços que celebraram com a 1ª Ré. Sucede, porém, que não resultou provado que o seguro em causa abrangesse o risco da atividade fora da sede da 1ª Ré, que entre os “multirriscos” contratados estivesse o risco da atividade “profissional” desenvolvida pela 1ª Ré de abertura de furos artesianos. Antes se provou que a não abrangia (cfr. factos não provados).
Com efeito, analisando a decisão da matéria de facto, verifica-se que resultou provado que a Ré B…, Unipessoal, L.da, celebrou com a E…, S.A., contrato de seguro “Multirrisco Empresas” titulado pela Apólice n.º ..........., com início a 16/11/2012, renovável, o qual incluía “responsabilidade civil extracontratual – exploração” até ao montante de €50.000,00 e responsabilidade civil extracontratual proprietário/arrendatário até ao montante de € 25.000,00, e uma franquia de € 75,00, nos termos constantes de fls. 126/127 e que tal Apólice, que titula o contrato de seguro “Multirrisco Empresas” celebrado entre a 1ª Ré e a (ora) F…, S.A., garante apenas a responsabilidade civil extracontratual desta em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa, tendo resultado não provado que tal contrato garanta a responsabilidade profissional da B…, Unipessoal, L.da.
Ora, como bem decidiu o Tribunal a quo resultando dos fatos provados não cobrir o contrato de seguro os riscos da atividade da Ré B… na abertura de furos, exercida fora da sede, pois que o seguro referido nos autos, titulado pela Apólice n.º ..........1, denominado “Multirrisco Empresas”, como resulta de fls. 126/127, “cobre a responsabilidade civil (extracontratual) da exploração até o montante de € 50.000,00” no local do risco - o “…, Lote ., Lousã – ….-… …”, sendo este, como resulta da apólice, o risco que a seguradora aceitou assumir e pelo qual recebeu os prémios, e não outro.
A Ré Seguradora suscitou a questão de não integrar o objeto do recurso a questão nova, suscitada nas alegações, da nulidade de cláusulas do contrato de seguro.
Cumpre deixar claro que este Tribunal é um Tribunal de recurso pelo que as questões a apreciar são as já suscitadas junto da 1ª Instância, com base nos factos alegados nos articulados, e que a mesma apreciou e decidiu.
Na verdade, o recurso visa, tão só, o reexame da matéria apreciada pela 1ª Instância na decisão recorrida, não podendo ter por objeto questões novas (cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Os recursos são os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a sua modificação.
Recurso é, pois, um “pedido de reapreciação de uma decisão judicial apresentado a um órgão judiciário superior”[71].
O recurso - garantia constitucionalmente consagrada (nº1, do artigo 32º, da Constituição da República Portuguesa), compreendendo o próprio direito de acesso aos tribunais o direito de recorrer (art. 20º, daquela Lei) - é meio específico de impugnação de decisões judiciais que visa tão só o reexame da matéria apreciada na decisão recorrida, nunca a obtenção de decisão de uma questão nova.
Certo é, porém, que nada permite concluir pela invocada nulidade de cláusulas do contrato de seguro, atentos os factos provados, o qual não cobre os riscos que estão em causa nos autos, sendo que o risco de atividade “profissional” de seguro diverso se trata, pois que naquele não está incluído o risco da atividade da Ré de abertura de furos artesianos.
Com efeito, bem considerou o Tribunal a quo que se provou que o contrato de seguro celebrado entre as RR. titulado pela apólice nº ........ garante apenas a responsabilidade civil extracontratual desta (segurada) em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa – nº 37 dos Factos Provados (FP), sendo isso que, na verdade, resulta da interpretação das condições (gerais, especiais e particulares) do contrato de seguro e não a interpretação que a 1ª Ré pretende lhes seja dada.
Sustentam os AA. que não podendo a Ré B… exercer a sua atividade na própria sede, o seguro não pode respeitar a um risco, que jamais se verificaria, mas, como bem decidiu o Tribunal a quo, o seguro em causa não é um seguro de responsabilidade civil a cobrir a atividade de sondagens e perfurações de poços de água e furos artesianos para captação de águas subterrâneas. É um seguro multirriscos que, entre muitos outros nele previstos, cobre a responsabilidade civil da tomadora mas apenas em relação a acidentes ocorridos na sede da empresa, sendo esse o âmbito do mesmo e não outro, como o da atividade “profissional”.
O seguro em causa não cobre a responsabilidade civil por danos que a atividade da Ré B… pudesse causar a terceiros nos locais de realização de furos artesianos. O risco desta atividade não está, de todo, coberto pelo seguro celebrado. O seguro que as Rés celebraram não tem por objeto a atividade “profissional” da Ré B…, logo, o problema não é, efetivamente, de exclusão de atividade, sendo que, na verdade, se trata de seguros diferentes, diversos – este um seguro “Multiriscos”, o outro, um referente à atividade desenvolvida profissionalmente em diversos locais. Foi aquele o seguro que a 2ª Ré aceitou celebrar e era por ele e não por outro - designadamente com múltiplos locais de risco - que eram pagos os prémios.
Deste modo, provado resulta estar-se perante seguro - multirrisco da sede – diverso de um de responsabilidade profissional (com diversíssimos locais de risco) em que imposição de exclusão de cobertura de determinados riscos se estivesse a efetuar aos aderentes.
Assim, não estamos perante qualquer exclusão, mas em face da definição do próprio âmbito do contrato de seguro, e bem se decidiu que os factos concretizados, materializados, não foram previstos como risco na apólice, não integrando qualquer dos multirriscos contratados, pelo que a obrigação de indemnizar se não transferiu da 1ª Ré para a 2ª Ré.
O contrato de seguro dos autos, que foi àquele a que a 1ª Ré aderiu, é um seguro multirriscos, a garantir quanto a responsabilidade civil extracontratual da 1ª Ré. apenas, sinistros ocorridos na sede da empresa (esse o local do risco), não sendo, como resultou provado, um seguro que garanta a responsabilidade “profissional”, a atividade em perfurações e sondagens, daquela, tão pouco responsabilidade civil contratual, como é o caso.
Destarte, preenchidos se encontrando os pressupostos da responsabilidade civil contratual, e não figurando entre os riscos cobertos pelo contrato de seguro “Multirrisco Empresa” o da atividade de exploração de perfurações, tem a 1ª Ré de ressarcir, ela própria, os credores de todos os danos que lhes causou, decorrentes da violação das obrigações que contratualmente assumiu, transferida se não mostrando a responsabilidade civil para a seguradora, na medida em que o objeto do contrato de seguro dos autos respeita tão só à “responsabilidade civil extracontratual, imputável ao segurado no local da sua sede” e, por isso, mesmo que concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual pudesse existir nunca o evento lesivo se poderia considerar abrangido pelo contrato de seguro celebrado, distinto de um seguro de responsabilidade civil profissional.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
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Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 8 de fevereiro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
_____________
[1]Sendo a redação da al. g) dos factos não provados a seguinte:
“A perfuração decorreu de forma regular, tendo sido salvaguardadas todas as normas de segurança e as regras de arte da especialidade”.
[2] Acórdãos RC de 3 de outubro de 2000 e 3 de junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[3] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[4] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
[5] Ac. RP de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3
[6] Os factos provados 4 e 5 têm a seguinte redação:
4- B…, Unipessoal, L.da, apresentou, a 18/01/2014, a pedido do A. C…, a proposta de orçamento constante de fls. 20/22, que se dá por reproduzido, designadamente quanto à profundidade do furo e técnicas a usar na perfuração, preço e modo de pagamento, o qual (orçamento) foi aceite pelo A. (D).
5- A obra foi realizada, em fevereiro de 2014, ao abrigo da Autorização de Utilização dos Recursos Hídricos – Pesquisa e Captação de Águas Subterrâneas, emitida pela APA, IP, constante de fls. 226/229 da qual era titular o ora A. C… (E)”.
[7] Os factos provados 19 e 20 têm a seguinte redação:
19- A seleção do local (a cerca de 2 metros de distância da moradia dos AA.) e das formações geológicas a perfurar foram da responsabilidade da 1ª Ré.
20- Aquela escolha do local da perfuração teve anuência do A. marido, por o representante legal da 1ª Ré ter garantido que, não obstante a proximidade do furo para a habitação e anexo, jamais daí resultariam quaisquer danos patrimoniais”.
[8] Sendo a redação da al. e) dos factos não provados a seguinte:
“O local de perfuração – desse fator dependem as formações geológicas a perfurar – foi imposto pelo A. C…”.
[9] É a seguinte a redação destes pontos:
22- No dia em que foi atingida a profundidade máxima de, pelo menos, 30 metros, os operários verificaram, no momento em que regressavam do almoço, a existência de um buraco perto da máquina.
23– E foi necessário proceder-se ao enchimento do buraco com cerca de 9 metros de entulho.
39- Aquando da realização dos trabalhos, o terreno situado ao lado da máquina que efetuou o furo cedeu”.
[10] É a seguinte a redação destes pontos:
26- A reparação dos danos que o imóvel dos AA. apresenta, em consequência da deficiente execução do furo pela 1ª Ré por não ter executado de forma correta o método “rotopercussão”, só será possível após a estabilização dos solos.
27- Sendo, para tanto, necessário proceder-se à injeção de calda de cimento, sob toda a área do imóvel dos AA.
28– O custo destes trabalhos é de, pelo menos, € 48.820,00, acrescido de IVA à taxa legal em vigor.
29- Uma vez estabilizados os solos com recurso à injeção de calda de cimento, deverão ter lugar os seguintes trabalhos de reparação dos danos causados pela deficiente abertura do furo, que importam em, pelo menos, € 19.860,00, acrescido do IVA à taxa legal em vigor:
a) remoção do cimentado do terraço com uma área de 46 m2;
b) reconstrução do cimentado do terraço com a colocação de ferro aramado, malha e sol e betão;
c) reparação da cozinha com a demolição de uma parte da parede frontal e posteriormente a reconstrução desta com a aplicação de um pilar e parede em tijolo;
d) Reboco das paredes danificadas, com aplicação de azulejo até ao teto na zona de intervenção;
e) pintura em toda a zona da intervenção;
f) reparação de uma porta de entrada em alumínio;
g) reparação de todas as fendas do hall, incluindo pintura; h) remoção de todas as loiças da casa de banho;
i) demolição de duas paredes da casa de banho e posterior reconstrução em tijolo e reboco das mesmas;
j) aplicação de azulejos até ao teto em toda a casa de banho, incluindo a aplicação de mosaico;
k) aplicação das loiças existente (não danificadas);
l) reparação das fendas de dois quartos, que consistirá em emassar, lixar e pintar;
33- A casa, que antes lhes proporcionava o conforto do lar, tornou-se numa fonte de problemas, com perda de comodidade e habitabilidade, em consequência das fissuras, brechas e fendas, que apresentam as paredes, tetos, azulejos e mosaicos, o que inviabiliza a utilização plena do imóvel.
35- A obra foi efetuada através do método “rotação com circulação direta” por se tratar de um terreno com pouca firmeza e consistência.
36- A partir dos 18 metros de profundidade, tendo-se intersectado material mais consolidado e firme, procedeu-se à perfuração pelo método de “rotopercussão” até, pelo menos, aos 30 metros.
38- O terreno em que foi construída a habitação dos AA. é arenoso.
40- Os trabalhos foram interrompidos no dia 24 de fevereiro de 2014, sem conclusão do furo artesiano.
41- Foi aplicado pela Ré um tubo no furo”.
[11] Sendo a redação da al. g) dos factos não provados a seguinte:
“g) A perfuração decorreu de forma regular, tendo sido salvaguardadas todas as normas de segurança e as regras de arte da especialidade”.
[12] É a seguinte a redação deste ponto:
37- A Apólice n.º 34.51501 que titula o contrato de seguro “Multirriscos Empresas” celebrado entre a 1ª Ré e a (ora) F…, S.A., garante apenas a responsabilidade civil extracontratual desta em relação aos sinistros ocorridos na sede da empresa”.
[13] José Carlos Brandão Proença – Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações (2011, Coimbra Editora) – 219. Vejam-se, no mesmo sentido, Paulo Mota Pinto – Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II (2008, Coimbra Ed.ra) – 1485/1486; Rui Soares Pereira – A Responsabilidade por Danos Não Patrimoniais do Incumprimento das Obrigações no Direito Civil Português (2009, Coimbra Ed.ra) – 284 e nota 1084; e Acórdão do STJ, de 23/11/2000 – CJ/S, Ano VIII – III – 139/142.
[14] Luís Manuel Teles de Meneses Leitão, Direito das obrigações, vol. I, 2017, 14ª edição, Almedina, pág. 275
[15] Ac. da RL de 19/4/2005, proc. 10341/2004-7 (Relator: Pimentel Marcos), acessível in dgsi
[16] Ibidem, pág. 278
[17] Ibidem, pág. 278
[18] Ac. do STJ de 12/9/2019, proc. 2604/15.8T8LRA.C1.S1 (Relatora: Rosa Ribeiro Coelho), acessível in dgsi
[19] Pedro Romano Martinez, O direito das obrigações (Parte Especial), 2ª Edição, Almedina, pág. 473
[20] Ibidem, pág 475
[21] Ac. do STJ de 20/11/2012, proc. 176/06.3TBMTJ.L1.S2 (Relator: Fonseca Ramos), acessível in dgsi, onde se entendeu “Classicamente, a responsabilidade civil coenvolve a responsabilidade contratual (a violação do contrato) e a extracontratual (a que não se filia na violação de deveres contratuais, mas em normas que tutelam interesses alheios, ou direitos absolutos) e ainda a responsabilidade objectiva: em não poucos casos, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual miscigenam-se, mal se destrinçando os campos de aplicação e nem sequer a nitidez das fronteiras”.
[22] Ac. da RL de 27/9/2012, proc. 512/10.8TCFUN.L1-2 (Relatora: Teresa Albuquerque), acessível in dgsi
[23] Ac. do STJ de 7/2/2017, proc. 4444/03.8TBVIS.C1.S1 (Relator: Hélder Roque), acessível in dgsi
[24] Ac. da RL de 24/9/2019, proc. (Relator: José Capacete), acessível in dgsi, onde esclarecendo-se a questão do concurso ou concorrência da responsabilidade civil contratual e da extracontratual, se refere “Conforme refere Vaz Serra, «o contrato não priva as partes da protecção geral, pois pela celebração de um negócio jurídico não se renuncia à defesa que se teria independentemente dele», antes «não sendo de presumir que, com o contrato, se tenha querido afastar a responsabilidade delitual, principalmente quando os contraentes teriam dificuldade em prever a possibilidade do dano.» «(…).»
«Com a celebração do contrato, os direitos do credor são reforçados e não limitados» (…) «Se a existência de um contrato estabelece entre as partes mútuos deveres de protecção, mais intensos do que em relação a terceiros, não se justifica que a tutela do credor seja inferior à destes.»[2].
Trata-se, como esclarece Almeida Costa, «de um concurso aparente das duas modalidades da responsabilidade civil», estando em causa um concurso aparente das duas modalidades de responsabilidade civil.»[3].
Conforme nos revela o mesmo Autor, tem sido muito discutido o problema da equação «do concurso de ambas as espécies de ilícito civil. As diversas orientações dividem-se em dois grupos: os denominados sistemas do cúmulo e sistema do não cúmulo.
Dentro do primeiro cabem três perspectivas: a de o lesado se socorrer, numa única acção, das normas da responsabilidade contratual e extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favorável; a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e a de admitir, em acções autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual. Pelo contrário, o sistema que exclui o cúmulo, consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em decorrência de um princípio de consunção.
A lei omitiu preceito expresso que decidisse a controvérsia. Portanto, terá de procurar-se a solução que, no seu quadro, se apresente mais adequada ponderando, sobretudo, os interesses e valores contrapostos.
Recordemos que o Código Civil vigente consagra regimes sem diferenças essenciais para a responsabilidade contratual e a extracontratual. Também advertiu que as poucas especificidades de cada um deles permitem concluir que a disciplina da primeira, globalmente encarada, confere maior protecção ao lesado. (...).»
Afasta-se, naturalmente, a possibilidade de uma dupla indemnização, em correspondência a essas duas espécies de ilícito civil. Por outras palavras: havendo um só dano, resultante de um único facto, nada justifica a duplicação de acções ou concorrência de pretensões.
Também parece inaceitável o sistema da acção híbrida. Afigura-se substancialmente injusto que o lesado beneficie das normas que considere mais favoráveis da responsabilidade contratual e da extracontratual, afastando as que nos respectivos sistemas - estabelecidas em paralelo e que com elas formam conjuntos orgânicos - repute desvantajosas. Por exemplo, prevalecer-se do ónus da prova que impende sobre o devedor na responsabilidade contratual (art. 799.º, n.º 1) e, ao mesmo tempo, do regime da solidariedade passiva, caso haja vários responsáveis, que vigora para a responsabilidade extracontratual (arts. 497.º e 507.º). Existiria ainda certo melindre quanto à determinação do foro competente: se o próprio da responsabilidade contratual ou o da extracontratual.
Não menos insatisfatória se revela a teoria da opção. Ela equivale a deixar-se ao lesado a escolha de uma acção baseada no ilícito contratual ou no ilícito extracontratual. É que, além do resto, a questão se analisa no que pode considerar-se um concurso legal ou aparente, em que dois regimes têm campos de aplicação próprios.
Infere-se do exposto que se adere à ideia da exclusão do cúmulo. Se, de um vínculo negocial, resultam danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual. A mesma directriz se impõe quando o facto que produz a violação do negócio – ou melhor, da relação que dele deriva – simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana. Esta solução mostra-se correcta no plano sistemático e no da justiça material.
Como se referiu, as hipóteses de concurso da responsabilidade contratual e da extracontratual, aqui abordadas, reconduzem-se à figura do aparente, legal ou de normas, Quer dizer, trata-se de situações em que só “aparentemente” se pode falar de um concurso, já que nos deparamos com uma única conduta ilícita, a merecer, portanto, uma só indemnização. A essência do problema reside, assim, na solução do conflito positivo regimes, que decorre da circunstância de uma mesma factualidade ser simultaneamente subsumível à responsabilidade contratual e à extracontratual. O critério terá, pois, de assentar num ponto de vista teleológico, que atenda ao juízo de valor e à função que subjazem àquelas duas figuras.
A responsabilidade aquiliana intervém se o dano resulta da violação de um dever geral de conduta, ao passo que a responsabilidade contratual apenas actua quando se verifica a violação de um crédito. Cada uma possui esfera particular ou autónoma de actuação, pelo que se encontram numa relação de especialidade. Outras razões levam, contudo, à da subordinação exclusiva dos casos considerados às regras da responsabilidade contratual.
Nas hipóteses de concurso das duas variantes da responsabilidade civil há-de convir-se que qualquer delas, a funcionar isoladamente, esgotaria a protecção que a ordem jurídica pretende dispensar a casos desse tipo. A integração de tais hipóteses num esquema ou no outro - e que equivale à correspondente qualificação como ilícito contratual ou extracontratual - depende, portanto, da perspectiva geral que preside à regulamentação do direito das obrigações.
Ora, neste âmbito, impera, como não se ignora, o princípio da autonomia privada, segundo o qual compete às partes lixar a disciplina que deve reger as suas relações, com ressalva dos preceitos imperativos. Assim, parece que, perante uma situação concreta, sendo aplicáveis paralelamente as duas espécies de responsabilidade civil, de harmonia com o assinalado princípio da autonomia privada, o facto tenha, em primeira de considerar-se ilícito contratual. Se a responsabilidade foi disciplinada por negócio jurídico apresenta-se como contratual, posto que, na falta dele, existisse responsabilidade extracontratual. (...).
Sintetizando: de um prisma dogmático, o regime da responsabilidade contratual «consome» o da extracontratual. Nisto se traduz o princípio da consunção.
Saliente-se, por outro lado, o aspecto decisivo de que o caminho preconizado, além de uma adequação conceitual, dá plena satisfação aos interesses do lesado. Não se esqueça, na verdade, a ideia de relação obrigacional complexa, concebida como um todo e um processo dirigidos à tutela dos interesses globais das partes nela envolvidos. Aí se encontram, não só deveres de prestação, mas também deveres acessórios e laterais, que incluem deveres de protecção e cuidado para com a pessoa e o património dos intervenientes. Observe-se, ainda, que o devedor se encontra obrigado ao que expressamente convencionou e ao que resulta dos ditames da boa fé.
Em idêntico sentido, postula o instituto do cumprimento defeituoso ou imperfeito, designadamente quanto à cobertura dos danos relativos à vida, à integridade física e ao património do credor. O cálculo da indemnização é feito nos mesmos termos básicos para as duas espécies de responsabilidade civil. E, inclusive, podem apurar-se e compensar-se danos não patrimoniais no âmbito da responsabilidade contratual.
A posição adoptada acautela devidamente todos os interesses atendíveis do lesado, sem sacrifício injusto da posição do responsável: mostra-se correcta no plano da justiça material e também encarada de um ângulo sistemático. Só não se aplicará em face de preceito contrário da lei.
Esta terá de ser a regra. O que não invalida que, diante de situações concretas, se lhe introduzam possíveis desvios, em homenagem à solução substancialmente mais justa. Estar-se-á, então, perante casos de consunção impura.»”.
[25] Ac. da Rel de Lisboa de 24/10/2019, proc. 2069/13.9TCLRS.L1-6 (Relator: Nuno Ribeiro), acessível in dgsi
[26] Pessoa Jorge, Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Almedina, 1995, pág. 88
[27] Ana Prata (Coord.) Código Civil Anotado, vol I, Almedina, 2017, Pág 439 e seg.
[28] Acórdão do STJ de 17/5/2017, processo 1506/11.1TBOAZ.P1.S1, in dgsi.net
[29] Neste sentido podem ver-se os Acórdãos do STJ de 4.11.2003, processo n.º 03A3038, de 9.10.2008, processo n.º 08A2669, de 5.07.2012, proc. 1451/07.5TBGRD.C1.S1, de 19/1/2017, Processo 167/07.7TBVNC.G1.S1, todos in dgsi.net
[30] Acórdão do STJ de 7/3/2017, processo 6091/03.5TVLSB.L1.S1, in dgsi.net
[31] “Strito sensu, o cumprimento da obrigação é a realização voluntária da prestação debitória. É a actuação da relação obrigacional, no que toca ao dever de prestar (A. Varela, Obrigações, 2º-7)”, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 766
[32] A. Varela, CJ, 1987, 4º, 21
[33] Ac. do STJ de 12/6/2003, proc. 03B573.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 768
[34] Ana Filipa Morais Antunes, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, pág 1030
[35] Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 767
[36] Ana Prata, Código Civil Anotado, volume I, 2017, Almedina, pág 960
[37] Almeida Costa, Introdução, 152, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 767
[38] A. Varela, Obrigações, 187, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 767
[39] Cunha de Sá, Abuso de Direito, 173, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 767
[40] Ac. do STJ de 14/7/2009, Proc. 2406/06.2TVSLB.S1.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 769
[41] Ac. do STJ de 17/9/2009, Proc. 841/2002.S1.dgsi.net, in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum pág. 769
[42] Ana Prata, Idem, pág 997
[43] Ibidem, pág 998
[44] Ibidem, pág 633
[45] Ana Filipa Morais Antunes, idem, pág 1030
[46] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, I-1, p. 407 e Obrigações, 1º, págs 149 e segs e Da Boa Fé, págs.586 e segs e Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2017, 14ª Edição, Almedina pág. 55 [47] Ana Filipa Morais Antunes, idem, pág 1031 e seg
[48] Francisco Manuel Pereira Coelho, Obrigações, Sumários das Lições ao Curso de 1966-1967, Coimbra, pp. 218 e 219; Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, 7ª Ed, Almedina, Coimbra, 2001, pp. 62 e 118 e segs e AC. do STJ., de 26-11-2009, www.dgsi.pt.
[49] Vaz Serra, R.L.J., 1080, p. 144 e 147;
Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa, 1968, p. 26.
[50] Ac. do STJ de 7/2/2017, proc. 4444/03.8TBVIS.C1.S1 (Relator: Hélder Roque), acessível in dgsi
[51] Acórdão da Relação de Lisboa, de 28 de Junho de 2012, in www.dgsi.pt.
[52] Almeida Costa, RLJ, ano 129, pág. 20.
[53] Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2016, 3ª Edição, Almedina, pág. 38
[54] Ibidem, pág. 38
[55] José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra, 1999, pág. 94
[56] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 251 e 252, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 2ª edição, revista e atualizada, 134; Ac. STJ, de 21-6-97, BMJ nº 468, 384).
[57] José Vasques, idem, pag 102.
[58] Ibidem, pag 102.
[59] Ibidem, pag 98
[60] Pedro Romano Martinez e outros, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 2016, 3ª Edição, Almedina, págs 38 e seg.
[61] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 262
[62] José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de seguro, Responsabilidade automóvel e Boa fé, Almedina, pág. 39
[63] Ibidem, pág. 63
[64] Ac RL de 20/9/2018, proc. 1409/16.3T8AMD.L1-2, in dgsi.net
[65] Ac. RC de 9/1/2018, proc. 825/15.2T8LRA.C1, in dgsi.net
[66] cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.03.2016, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Tomé Gomes, disponível in www.dgsi.pt/jstj.
[67] Pedro Romano Martinez e outros, Idem, pág. 354
[68] Ibidem, pág 355
[69] Ibidem, pág 357
[70] V. Ac. STJ de 07.02.2008, proc. n.º 07B4772 (Relator: Salvador da Costa), acessível em www.dgsi.pt.
[71] Ana Prata, Dicionário Jurídico, 5ª Edição, Vol. I, 2019, Almedina, pág 1237