Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0342343
Nº Convencional: JTRP00036240
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP200311050342343
Data do Acordão: 11/05/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 3 J CR MATOSINHOS
Processo no Tribunal Recorrido: 654/01
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: O tipo de crime do artigo 152 do Código Penal de 1995 pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente considerados, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal (2ª) do Tribunal da Relação do Porto

I
1. No processo n.º ..../... do ... Juízo Criminal de M......, após julgamento, em processo comum e perante tribunal singular, por sentença de 29 de Janeiro de 2003, foi decidido, no que ora releva, condenar o arguido JOAQUIM ....., pela prática de um crime p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão.
2. Inconformado, o arguido veio interpor recurso, rematando a motivação apresentada com a formulação das seguintes conclusões:

«Quanto à matéria de direito:
«I- No que se refere às alegadas agressões e ameaças ocorridas até à data da entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, que alterou o n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal que tornou o crime de maus tratos a cônjuge num crime de natureza pública, à data da participação deu (sic) o presente processo, já estava extinto o direito de queixa da ofendida Maria José.

«II- Na verdade, até à data de entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, o crime de maus tratos a cônjuge era um crime de natureza semi-pública, logo dependia da apresentação de queixa dentro do prazo legalmente previsto (n.º 1 do artigo 115.º do Código Penal).

«III- Ora a ofendida Maria José nada fez.

«IV - Por via disso, o Ministério Público não pode promover o procedimento criminal quanto aos factos ocorridos até à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio.

«V - Na verdade, o direito de queixa funciona como condição de procedibilidade.

«VI - Exercendo o Ministério Público a acção penal por um crime que, à data dos factos, tinha natureza semi-pública sem que a ofendida tenha apresentado queixa, o Ministério Público não tem legitimidade para acusar.

«VII - Os problemas de sucessão devem ser resolvidos de acordo com o princípio do regime mais favorável (artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal). Se a lei nova converte o crime em público deve considerar-se o regime da lei mais antiga.

«VIII - Por via disso, deve o arguido ser absolvido de instância pelos actos alegadamente praticados "desde data não concretamente apurada e provavelmente desde há cerca de dezasseis anos e até ao dia do mencionado auto de notícia", por ilegitimidade do Ministério Público em promover o procedimento criminal.

«IX - Em qualquer caso deve referir-se que a responsabilidade criminal do arguido pelos factos ocorridos até 25 de Março de 1999 extinguiu-se pela amnistia de acordo com o artigo 127.º do Código Penal e Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.
«Acresce ainda que,

«X- Quanto aos factos ocorridos no dia 07 de Abril de 1998, pelas 9h30, que consubstanciam um crime de ameaça e que deram origem ao processo comum singular n. 280/99 que correu os seus termos no 1.º Juízo Criminal do Tribunal da comarca de M....., o Ministério Público não tem legitimidade para acusar porquanto o procedimento criminal ficou extinto ao abrigo do artigo 7.º da Lei n.º 29/99, de 12.05.

«XI - Por via disso, o Tribunal ficou impedido de condenar o arguido pela prática dos mesmos.

«XII - Quanto aos factos ocorridos no dia 14 de Maio de 1998, que consubstanciam um crime de ofensa à integridade física simples e que deram origem ao processo comum singular n.º 474/98 que correu termos no 3.º Juízo Criminal do tribunal da comarca de M....., o Ministério Público não tem legitimidade para acusar porquanto a ofendida Maria José desistiu da queixa que formulou contra o arguido e o Meritíssimo Juiz de Direito, titular do processo, julgou válida a desistência, que homologou e, em consequência, declarou extinto o procedimento criminal que nos autos supra referidos era exercido contra o mesmo.

«XIII - Com a desistência de queixa ficou impedida a sua renovação.

«XIV - Por via disso, nos termos do n.º 1 do artigo 49.º do Código de Processo Penal o Ministério Público ficou impedido de promover o processo quanto a estes factos e consequentemente, o Tribunal ficou impedido de condenar o arguido pela prática dos factos.

«XV - Por via disso não se pode considerar a matéria dada como assente no ponto 5.

«XVI - Quanto à matéria de facto afigura-se ao recorrente que a prova que se fez em audiência de julgamento impõe decisão diversa da recorrida.

«XVI [O recorrente repete a numeração XVI, lapso que não corrigimos porque se repercute em toda a seguinte numeração das conclusões] - Na verdade, atenta a prova produzida afigura-se ao requerente que houve erro notório na apreciação da prova (alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de processo Penal).

«XVII - Por via disso, existe nulidade insanável de todo o processo.

«XVIII - Na verdade, os factos dados como provados nos pontos 3, 4, 5, 8, 11 da matéria de facto foram incorrectamente julgados.

«XIX - No que se refere ao facto dado como provado no ponto 3, devia ter sido considerado o depoimento da testemunha Sandra ....., filha mais velha do casal que referiu que os irmãos mais novos apenas presenciaram a agressão de 27 de Setembro de 2001 (suporte técnico n.º 1, lado A), portanto fez referência que "isolava os meus irmãos no quarto para eles não assistirem" (suporte técnico n.º 1, lado A).

«XX - Quanto ao facto dado como provado no ponto 4, deve referir-se que na audiência de discussão e julgamento não se fez prova de tal facto.

«XXI - Devia ter sido considerado o depoimento da testemunha Sandra ..... "Depois passados uns tempos foi quando ele me puxou para casa, esteve a falar comigo e tentou culpar-me por tudo o que estava a acontecer por eu dar apoio à minha mãe acerca do divórcio e tudo isso", "foi quando ele deu um soco na porta que disse que era para não me dar a mim" (suporte técnico n.º 1, lado A) e o depoimento da testemunha José Armando ....., que referiu que os filhos "eram muito chegados ao pai" (suporte técnico n.º 1, lado B) bem como o depoimento da testemunha Nuno Miguel ....., que referiu que as conversas entre pai e filha não denotavam agressividade do Sr. Fernando (suporte técnico n.º 1, lado A).

«XXII - Quanto ao facto dado como provado no ponto 5 deve referir-se que tal agressão ocorreu no mês de Maio do ano de 1998 e não no ano de 1992, como erradamente se fez referência na acusação e, consequentemente, na sentença. Para tal deve considerar-se a participação que ora se junta sob o n.º 6.

«XXIII - Não se pode considerar, como erradamente o Tribunal fez, que a ofendida abandonou a casa de morada de família em consequência da agressão desferida pelo arguido. Na verdade, a testemunha Sandra ..... referiu que "Estava em casa da minha avó, numa altura em que estavam separados, a minha mãe na altura tinha medo dele, então quis ir para a minha avó. Tinha cerca de 2 meses, quando fomos para a minha avó e ele chateou-se, não é, por ela ter saído de casa e agrediu-a lá no portão da casa" (suporte técnico n.º 1, lado A). Deve ser considerado o depoimento da testemunha e o documento n.º 6 onde expressamente a ofendida referiu que estava separada do marido.

«XXIV - Quanto ao facto dado como provado no ponto 8 deve referir-se que não se fez prova em audiência de discussão e julgamento que as agressões só não tomaram mais proporções por causa da intervenção da polícia que foi chamada ao local.

«XXV - Na verdade, a testemunha Carlos Filipe ....., agente da P.S.P. de S..... referiu, a instâncias da defensora do arguido que quando chegaram ao local "as agressões deve ter sido mais ou menos há 15, 20 minutos" (suporte técnico n.º 1, lado A). Ora, evidentemente, que não foi a chegada da polícia que impediu que as agressões tomassem maiores proporções.

«XXVI - Quanto ao facto dado como provado no ponto 11 deve referir-se que não se provou que a ofendida viveu profundamente humilhada e aterrorizada, sofrendo por si e temendo pelo que poderia acontecer aos seus filhos tendo ficado psicologicamente afectada pelos actos de que foi vítima.

«XXVII - Na verdade, a testemunha Sandra a instâncias da Meritíssima Juiz de Direito referiu que a mãe tinha medo, que vivia aterrorizada e humilhada mas não fez referência a quaisquer factos/situações capazes de espelhar esse medo ou humilhação (suporte técnico n.º 1, lado A).

«XXVIII - Atento o que se referiu supra, afigura-se ao recorrente que a prova se fez em audiência de julgamento (sic) que pudesse conduzir à referida condenação, senão por um crime de ofensas corporais, no que se reporta ao episódio do dia 27 de Setembro de 2001.

«XXIX - O Tribunal integrou mal a factualidade descrita na hipótese legal, porque atenta a prova produzida e os circunstancialismos supra referidos, certo é que a matéria de facto dada como provada no ponto 7 não configura o crime de maus tratos.

«XXX - Na verdade, o crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, pressupõe e exige a reiteração dos respectivos actos ou condutas.

«XXXI - A incriminação só pode ocorrer quando a gravidade intrínseca dos actos ou condutas se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura dos maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afectação da sua saúde.

«XXXII - Atento ao exposto supra só se pode considerar o facto dado como assente no ponto 7.

«XXXIII - Ora, não se pode considerar que um estalo é uma agressão grave nem que denota uma violência desmesurada.

«XXXIV - Nesse sentido veja-se o douto acórdão da Relação do Porto, de 03.11.99, processo 9810911 in www.dgsi:pt "O arguido que agarra pelos braços, pelas pernas e pelos cabelos a, então, sua esposa, arrastando-a, ao mesmo tempo que lhe dava pontapés, o que fez durante cerca de meia hora, comete o crime de ofensas à integridade física e não um crime de maus tratos a cônjuge, dado que este exige que os comportamentos agressivos se verifiquem de forma reiterada, o que não acontece no caso concreto, em que se está perante uma acção isolada, com duração de cerca de meia hora.

«XXXV - No que respeita à medida da pena, deve dizer-se que foi arbitrada uma pena efectiva de prisão assaz pesada em nítido desequilíbrio com a factualidade dada como provada.

«XXXV [Volta a repetir-se a numeração] - Até porque como foi referido pelas testemunhas abonatórias, o arguido é uma pessoa amiga "uma pessoa amiga com toda a gente. Dava-se bem com os filhos, com a esposa também que eu conheça, não tenho problemas nenhuns a dizer" (suporte técnico n.º 1, lado B), uma pessoa "exemplar, amigo de toda a gente, de quem precisava dele estava sempre pronto" (suporte técnico n.º 1, lado B).

«XXXVI - A testemunha Margarida referiu ainda que "Eu convivia muito com eles os dois ela passava na minha casa e eu na dela, pronto, passavam na casa uns dos outros nunca vi nada, ele sempre amigo dos filhos, da mulher e eu dava-me muito bem com ela" (suporte técnico n.º 1, lado B).

«XXXVI [Nova repetição de numeração] - E o Sr. Armando referiu "acontece que eu com ele tenho uma grande amizade porque era Bombeiro Voluntário em ..... entretanto ele chefiou alguns piquetes aonde eu integrava esse grupo e sobre ele não tenho nada a dizer" (suporte técnico n. 1, lado B).

«XXXVII - Isto significa que não estamos perante um criminoso, mas apenas alguém que supostamente se descontrolou num específico momento da sua vida!

«XXXVIII- Foi ainda desconsiderado na medida da pena o facto de o arguido carecer de quaisquer antecedentes criminais, devendo-lhe ser dada uma oportunidade de reconstruir a sua vida.

«XXXIX - Por último, e quanto aos motivos que levaram à aplicação de uma pena privativa de liberdade, entendemos que o Tribunal a quo avaliou mal a situação e interpretou deficientemente os factos dados como provados, pois que constam dos autos dados que permitem verificar que a aplicação de uma sanção não privativa de liberdade seria a mais correcta no caso sub judice, violando o disposto nos artigos 70.º e 71.º do CP.

«XL - Na verdade, deve convolar-se o crime de maus tratos a cônjuge num crime de ofensas à integridade física e censurando com uma pena não privativa da liberdade.

«XLI - Não são prementes as necessidades de prevenção especial tanto mais que o arguido jamais voltará a repetir estes factos, sendo certo que, em virtude do falecimento da ofendida - que se lastima - nunca mais voltará a viver debaixo do mesmo tecto.

«Mais,
«XLII - No caso concreto, tendo presentes todas as circunstâncias e ponderando o baixo nível cultural do arguido, que só atingiu o 6.º ano de escolaridade, temos de atender, ainda que parcialmente, à pretensão do arguido no sentido da redução da pena.

«XLIII - Na verdade, caso se entenda que o arguido deve ser condenado como autor material de um crime de maus tratos a cônjuge, deve ser aplicada uma pena não privativa da liberdade ou caso assim não se entenda, a pena se deve situar entre um ano a dois anos de prisão, suspendendo-se a sua execução.
«O acórdão recorrido violou assim, entre outros, o disposto nos artigos 50.º, 70.º 71.º, 116.º, n.º 2, 127.º, n.ºs 1 e 2 do artigo 152.º, todos do Código Penal, 48.º, 49.º, n.º 1, 51.º, 410.º, n.º 2, alíneas a) e c), do CPP».

3. Admitido o recurso e efectuadas as legais notificações, apresentou resposta o Ministério Público no sentido de ser negado provimento ao recurso.

4. Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que o recurso não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.

6. Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, que se realizou com observância do formalismo legal, como a acta documenta, mantendo-se as alegações orais no âmbito das questões postas no recurso.

II
Cumpre decidir.
1. No caso, como não ocorreu renúncia ao recurso em matéria de facto, este tribunal conhece de facto e de direito (artigo 428.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).

São, porém, as conclusões da motivação que definem e delimitam o objecto do recurso (artigo 412.0, n.º 1, do CPP).

O recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de facto e sobre matéria de direito.

Em face das conclusões formuladas, o recorrente suscita as questões:
- da falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal quanto aos factos ocorridos até à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio (conclusões I a VIII),
- da extinção da responsabilidade criminal, por amnistia, pelos factos ocorridos até 25 de Março de 1999 (conclusão IX),
- da impossibilidade de o tribunal conhecer dos factos ocorridos no dia 7 de Abril de 1998 e no dia 14 de Maio de 1998 por terem dado origem a processos autónomos nos quais o procedimento criminal foi extinto, respectivamente, por amnistia e por desistência de queixa (conclusões X a XV),
- de se encontrar incorrectamente julgada a matéria de facto descrita nos pontos 3, 4, 5, 8 e 11 da fundamentação de facto da sentença, embora, simultaneamente, invoque os vícios das alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP (conclusões XVI a XXVII),
- de a matéria de facto que deve ser dada por provada integrar o crime de ofensa à integridade física simples (conclusões XXVIII a XXXIV),
- da opção pela pena de multa e, a manter-se a condenação em pena de prisão, da medida concreta desta e da sua suspensão (conclusões XXXV a XLIII).

2. Antes de mais, analisemos a sentença recorrida na perspectiva das questões postas no recurso.
2.1. Foram dados por provados os seguintes factos:
« 1) O arguido e a queixosa Maria José ....., à data da acusação pública, eram casados entre si desde há cerca de dezassete anos e residiam na Rua ....., na localidade de S......., área desta comarca de M....., na companhia de três filhos de ambos, todos com menos de dezassete anos;

«2) Desde data não apurada e provavelmente desde há cerca de dezasseis anos e até ao dia mencionado no auto de notícia que deu origem a estes autos - 27 de Setembro de 2001 -, o arguido, com regularidade, vinha agredindo e ameaçando a queixosa, a quem, depois de agarrar, dava socos, bofetadas e pontapés, atingindo-a em várias partes do corpo e a quem, a partir de certa altura, começou a referir, nomeada e reiteradamente e em voz alta e tom intimidatório, que a matava se a mesma o abandonasse;

«3) Pelo menos as agressões e ameaças acima descritas foram quase sempre presenciadas pelos três aludidos filhos de ambos, todos menores de dezassete anos;

«4) O arguido, por diversas vezes, chegou mesmo a dizer à sua filha mais velha, Sandra ....., de igual forma em voz alta e tom intimidatório e sério e sempre e quando esta procurava defender a mãe, para não se meter, senão também levava, querendo com isto dizer à dita Sandra que lhe batia;

«5) Uma das agressões que, nos moldes supra referidos, o arguido praticou na pessoa da queixosa ocorreu em data não concretamente apurada dos meses de Abril ou Maio de 1992, oportunidade em que esta estava grávida de três meses e em consequência das quais a dita queixosa passou a viver com a respectiva mãe;

«6) Decorrido cerca de um ano, contudo, porquanto o arguido lhe prometera que, com o bebé, a vida conjugal iria ser melhor, que iria tentar mudar e porque era difícil criar três filhos sozinha, a referida Maria José acabou por desistir do propósito de se divorciar do arguido, de novo passando a residir com este;

«7) Nomeadamente no referido dia 27 de Setembro de 2001, momentos antes das 21h30m e no interior da mencionada residência, o arguido desentendeu-se com a referida Maria José, por razões não concretamente apuradas e, na sequência de tal desentendimento, agrediu-a, pelo menos dando-lhe um estalo;

«8) Tal agressão só não tomou maiores proporções, dada a intervenção, na mencionada oportunidade, 21h30m do referido dia 27 de Setembro, de um agente da PSP de S......, entretanto chamado àquela residência;

«9) Ainda nesta última oportunidade e instado a pronunciar-se sobre o sucedido, o arguido disse a tal agente da PSP ter dado uma chapada à queixosa, pois quem manda na casa ainda era ele, sendo que brigas como as que haviam acabado de ocorrer qualquer casal as tem;

«10) A expressão supra aludida ou outras equivalentes, que, nos moldes referidos, foram reiteradamente proferidas pelo arguido, dirigindo-se à queixosa, levaram esta a concluir que aquele tinha em mente vir a atentar contra a sua integridade física e/ou património ou mesmo contra a sua vida, motivando-lhe medo e receio de que viessem a ser concretizados tais propósitos, o que lhe limitou a sua liberdade;

«11) Pelo menos até ao dia mencionado no auto de notícia que deu origem a estes autos - 27 de Setembro de 2001 -, a Maria José ..... viveu profundamente humilhada e aterrorizada, em consequência do comportamento violento do arguido, sofrendo por si e temendo pelo que poderia acontecer aos seus filhos, em consequência de tal comportamento, tendo ficado psicologicamente afectada pelos actos de que foi vítima;

«12) O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito alcançado de atemorizar a sua mulher Maria José, criando nesta receios e dependência em relação a si, a qual ficou receosa de que o mesmo, quando a encontrasse, viesse a molestá-la na sua integridade física ou a atentar contra a sua vida e/ou património;

«13) Estava o arguido ciente que, com tal comportamento, agia contra a vontade da referida Maria José, bem sabendo ser o comportamento descrito proibido e punido por lei;

«14) A queixosa faleceu no dia 11/06/2002, vítima de homicídio, sendo suspeito da prática do mesmo, o seu marido, aqui arguido, correndo termos, por tais factos, o inqtº n.º ...../..., da 2ª Secção;

«15) Actualmente, o arguido encontra-se preso preventivamente, à ordem dos autos de inquérito supra citados;

«16) O arguido encontra-se viúvo;

«17) Tem dois filhos menores;

«18) Tem o 6° ano de escolaridade;

«19) Não tem antecedentes criminais.»

2.2. Consignou-se não ter resultado provado:
«1) que, desde data não concretamente apurada e provavelmente superior a cinco anos, no interior da residência do casal, por várias vezes, o arguido partiu diversos objectos do casal, por processo não concretamente apurado, mas possivelmente atirando-os ao chão, assim causando estragos que ascendem a montante igualmente não concretamente apurado;

«2) que, nas circunstâncias de tempo e lugar referidos no ponto 7) dos factos provados, o arguido agrediu a queixosa a soco e pontapé, atingindo-a em várias partes do corpo, assim lhe causando algumas escoriações e hematomas.»

2.3. Sob a epígrafe «Motivação dos factos provados e não provados», escreveu-se, designadamente, na sentença:
«Ora, no caso dos autos, o tribunal alicerçou a sua convicção, no seguinte:

«O arguido recusou-se a prestar declarações, no que concerne aos factos descritos na acusação pública.

«A testemunha Sandra ....., com 18 anos de idade e filha da falecida queixosa e do arguido, após comunicação, pelo tribunal, do direito de não prestar o seu depoimento, nos termos do art.134.º, n.º1, al. a), do C.P.P., como se afere da respectiva acta de audiência de julgamento, afirmou peremptoriamente que queria falar. Foi, então, ouvida, embora na ausência do pai, pois, como igualmente se fez constar da acta, tinha previamente informado o tribunal, na pessoa da Sr.ª funcionária judicial, que tinha medo de falar em frente dele.

«A Sandra ....., deduzida a natural emotividade da situação, demonstrou singular maturidade, que lhe permitiu prestar um depoimento pausado, claro, coerente e absolutamente credível. A objectividade e isenção da testemunha espelhou-se em todos os momentos do seu depoimento, sendo exemplo disso, designadamente, a negação que a mesma fez relativamente à factualidade vertida na acusação pública, no tocante ao facto de o pai partir, por diversas vezes, objectos do casal - matéria que foi, por isso mesmo levada ao ponto 1) da factualidade não provada; assim como os factos vertidos sob o ponto 2) dos factos não provados, os quais foram assim considerados, atento o depoimento da Sandra que referiu ter apenas presenciado uma bofetada, naquele dia e àquela hora. A preocupação da testemunha pelo rigor do seu depoimento foi constante.

«A mágoa da Sandra é evidente - aliás, atentas as afirmações da mesma, o contrário é que seria estranho! No entanto, e repetimos, este estado de alma da testemunha não lhe coarctou a objectividade, a isenção e o rigor, com que prestou o seu depoimento.

«Com excepção da factualidade vertida nos pontos 1) e 2) dos factos não provados, nos termos já supra expostos, toda a restante factualidade descrita no libelo acusatório foi confirmada pela testemunha, nos seus exactos termos.
«Por sua vez, a testemunha Carlos Filipe ....., agente da P.S.P., chamado ao local, no dia 27/09/2001, com rigor, desinteresse e objectividade, confirmou a factualidade vertida nos pontos 8) e 9) dos factos provados.

«A testemunha de defesa, Nuno Miguel ....., amigo do arguido, disse expressamente que "nunca teve grandes conversas com a mulher", pois, "convivia só com ele", acrescentando mesmo que igualmente nunca conversou com os filhos do arguido, sobre as relações do casal. Assim, nada sabia.

«A testemunha Faustina ....., amiga do arguido há 18 anos, não se revelou credível, ferindo o seu depoimento de clara parcialidade, notoriamente tomando "o lado" do arguido, pois a queixosa, e usando a sua expressão, "tinha um feitio imperialista". De notar que esta testemunha, inicialmente e a instâncias da ilustre defensora do arguido, referiu que convivia assiduamente com o casal e, depois, a instâncias do Digno Magistrado do Ministério Público, acabou por referir que, pelo menos desde 1993, que não estava com o casal! Não foi, pois, atendida pelo tribunal.

«A testemunha José Armando ....., amigo do arguido, referiu expressamente que nada sabia da relação do casal.

«As testemunhas José António ..... e Margarida ....., amigos do arguido, prestaram depoimentos meramente abonatórios da personalidade do mesmo e nessa qualidade foram consideradas.

«No que respeita aos factos vertidos sob os pontos 14) e 15) dos factos provados, o tribunal atende a fls.60 e à guia de apresentação de recluso, junta em audiência de julgamento.

«No que tange às condições pessoais e sócio-económicas do arguido, a nossa convicção filiou-se nas declarações do mesmo, na falta de melhor prova, tendo o mesmo prestado declarações nesta parte.

«Quanto aos seus antecedentes criminais, atendeu-se ao seu C.R.C. junto a fls. 130.»

2.4. Na determinação da medida concreta da pena, o tribunal ponderou, designadamente:
«No que respeita ao grau de ilicitude dos factos, o mesmo revela ser muito elevado, atentas as agressões e ameaças reiteradas que foram perpetradas à ofendida (mesmo quando esta se encontrava grávida), durante cerca de 16 anos, e até em frente dos três filhos menores do casal, o que revela especial crueldade por parte do arguido.

«No que toca à censura ético-jurídica dirigida ao arguido, esta radica na modalidade mais intensa do dolo, o directo (art.14.º, n.º 1, do C.P .), que presidiu a todas as suas actuações (art.71.º, n.º 2, al. b), do C.P.).

«Em termos de prevenção especial, atende-se às modestas condições económico-pessoais do arguido e à ausência de antecedentes criminais do mesmo. Contra o arguido depõe, no entanto, a sua personalidade, totalmente desajustada às imposições sociais que espelham os mais elementares direitos da pessoa humana, o que impõe medidas rigorosas de reeducação.

«Em termos de prevenção geral, as necessidades são muito elevadas, tendo--se em consideração que estamos perante um tipo legal de crime que pretende dar tutela a uma das formas talvez mais subliminares de escravatura humana, em que alguém é subjugada a uma vida de violência e humilhação, forçado a aceitar as opiniões e condições de outrem mais forte.

«Uma prática que deverá ser decisivamente afastada da nossa comunidade, à qual os valores de igualdade começam agora a falar bem alto.

«Deverá, por conseguinte, ser convenientemente sublinhada, perante a sociedade, a validade da norma que pune tal conduta e protege aqueles bens jurídicos fundamentais.

«Assim, sopesadas as sobreditas circunstâncias, agravantes e atenuantes, julga-se adequado e equitativo concluir que o arguido merece uma censura penal concreta que, no contexto do quadro "punitivo", se deve situar na pena de 4 anos de prisão.»

3. As questões postas no recurso convocam uma análise, ainda que sumária, de algumas questões relativas ao tipo de ilícito em causa.
3.1. A criminalização de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e de subordinados foi enunciada, embora de forma tímida, pela primeira vez, no Anteprojecto do Código Penal de 1966 (artigos 166.º e 167.º), considerando o Autor que tais artigos «correspondem à necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a crianças e de sobrecarga de menores e subordinados» [Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Especial].

Na redacção definitiva do Código Penal [Em diante abreviadamente designado pelas iniciais CP-] (de 1982), o artigo 153.º, correspondendo, no essencial, aos artigos 166.º e 167.º do Anteprojecto, estendeu a protecção ao cônjuge (n.º 3).

A neocriminalização dos maus tratos de menores, de incapazes, de subordinados e do cônjuge «foi o resultado da progressiva consciencialização da gravidade destes comportamentos e de que a família, a escola e a fábrica não mais podiam constituir feudos sagrados, onde o direito penal se tinha de abster de intervir» [AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 330].

A reforma penal de 1995 [Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março] introduziu algumas importantes alterações. Foi eliminada a referência à malvadez ou egoísmo, como motivos de conduta, foi estendida a protecção a pessoas idosas ou doentes, foram previstos, ao lado dos maus tratos físicos os maus tratos psíquicos e as penas foram substancialmente agravadas.

No que toca ao cônjuge, depois de se ter discutido se a manutenção da protecção ao cônjuge ainda corresponderia ao nosso quadro sociológico [Cfr. Actas e Projecto da Comissão de Revisão, Rei dos Livros, pp. 230-231], foi decidida a manutenção da protecção ao cônjuge e a pessoa que conviva com o agente em condições análogas à do cônjuge, com dependência de queixa, em vez da natureza pública anterior (artigo 152.º, n.º 2).

O n.º 2 do artigo 152.º sofreu alterações posteriores, pelas Leis n.ºs 65/98, de 2 de Setembro, e 7/2000, de 2 de Maio, no âmbito das questões de procedibilidade.

A Lei n.º 65/98 manteve a natureza semi-pública do crime mas consagrou a possibilidade de o Ministério Público dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.

A Lei n.º 7/2000 restaurou a natureza pública do crime.

3.2. A protecção conferida pelo n.º 2 do artigo 152.º ao cônjuge ou equiparado radica na dignidade humana da pessoa individual.

O âmbito punitivo deste tipo de crime incluiu os comportamentos que, de forma reiterada, afectem a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado.

As condutas típicas podem ser de várias espécies: maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças mesmo que não configuradoras, em si, do crime de ameaça).

Pode, pois, dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental que pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado [TAIPA DE CARVALHO, ob. Cit., p. 332].

3.3. O tipo de crime pressupõe uma reiteração das condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente consideradas, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação.

De acordo com a razão de ser da autonomização deste tipo de crime as condutas que integram o tipo-de-ilícito não são individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente, são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um. comportamento repetido que signifique maus tratos sobre o cônjuge.

Ou seja, entre o crime de maus tratos e os crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação (que o podem integrar) estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152.º, n.º 2, e deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.

3.4. A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.

O tipo legal inclui na descrição da acção uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Trata-se do que, na doutrina, é designado por realização repetida do tipo [Cfr., designadamente, HANS-HEINRICH, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., pp. 998-999, e MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Lições de Direito Penal, Parte Geral, I, Editorial Verbo, 1992, pp. 546-547].

Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se expressa no artigo 19.º, n.º 2, do CPP, mas que são um só crime; não há pluralidade de crimes, mas pluralidade no modo de execução do crime.

A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único.

4. Vejamos, agora, as questões postas no recurso.
4.1. Começa o recorrente por levantar as questões da falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal quanto aos factos ocorridos até à entrada em vigor da Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio (conclusões I a VIII), e da extinção da responsabilidade criminal, por amnistia, pelos factos ocorridos até 25 de Março de 1999 (conclusão IX), as quais têm subjacente a mesma incorrecta concepção do tipo, em causa.

Tratando-se, como antes vimos, de um único crime, os actos parcelares que são unificados no crime único não conformam uma pluralidade de crimes.

Só em caso de pluralidade de crimes (concurso efectivo de crimes ainda que juridicamente aglutinado no crime continuado) é que seria pertinente questionar - a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal, em relação a cada um deles, e ponderar a extinção da responsabilidade penal, por amnistia, em relação a cada um deles.

Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime dá-se com a prática do último acto de execução. O momento decisivo e, portanto, o tempus delicti, é o momento em que foi praticada a última conduta que integra o comportamento típico, que, por exigência da descrição legal, tem de ser reiterado.
Fixado o momento determinante, não se coloca, no caso, qualquer problema de sucessão de leis processuais penais materiais que conforme um conflito que deva ser resolvido de acordo com os princípios constitucionais da proibição da retroactividade da lei penal desfavorável e da imposição da lei penal favorável [Que se aplicam às normas processuais penais materiais. Sobre o tema, cfr. TAIPA DE CARVALHO, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 210 e ss.].
Trata-se apenas de aplicação da lei vigente no momento da consumação do crime.

Não relevando, autonomamente, as condutas parcelares que conformam o comportamento reiterado típico, ou porque não integram, em si mesmas, um comportamento típico ou porque não são juridicamente valoradas como crimes autónomos, as questões da legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal e da extinção por amnistia do procedimento criminal têm de ser vistas em relação à data da consumação do crime.

Ora, considerando a data de consumação do crime (27 de Setembro de 2001 - data do prática do último acto parcelar), o crime p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 2, do CP tinha natureza publica (mas, não obstante, a vítima declarou pretender procedimento criminal) e não é abrangido pela Lei de Amnistia n.º 29/99, de 12 de Março, a qual, de qualquer modo, não o amnistiou.

4.2. O recorrente coloca também a questão da impossibilidade de o tribunal conhecer dos factos ocorridos no dia 7 de Abril de 1998 e no dia 14 de Maio de 1998 por terem dado origem a processos autónomos nos quais o procedimento criminal foi extinto, respectivamente, por amnistia e por desistência de queixa (conclusões X a XV).

Os factos que alega não se mostram comprovados nos autos nem na matéria de facto fixada na sentença se especificam factos praticados nas datas indicadas.

Pelo que não se mostra comprovado que a sentença tenha valorado factos que foram objecto de outros processos.

Mas ainda que isso tivesse ocorrido, o que se pondera como mera hipótese, a tese do recorrente não se mostra sustentada.

Na verdade, mesmo que os factos que se diz terem sido praticados pelo recorrente no dia 7 de Abril e no dia 14 de Maio de 1998, tivessem dado origem a processos autónomos, por crime de ameaça e por crime de ofensa à integridade física, respectivamente, a valoração dos mesmos factos, neste processo, não conformaria uma violação do princípio da dupla valoração, do ne bis in idem, pois, como o próprio recorrente informa, ele não chegou a ser responsabilizado criminalmente por esses factos.

Por outro lado, a extinção por amnistia ou por desistência de queixa do procedimento criminal quanto a tais factos também só releva no quadro da sua consideração como crimes autónomos mas já não se repercute na sua consideração como actos parcelares (sem relevância jurídico-penal autónoma) que integram uma unidade de acção típica.

4.3. O recorrente impugna também a decisão proferida sobre matéria de facto, pretendendo que se encontra incorrectamente julgada a matéria de facto descrita nos pontos 3, 4, 5, 8 e 11 da fundamentação de facto da sentença, embora, simultaneamente, invoque os vícios das alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP (conclusões XVI a XXVII).
4.3.1. O recorrente, quando impugna a sentença na perspectiva dos vícios elencados no n.º 2, alíneas a) e c), do artigo 410.º do CPP, desconsidera, em absoluto, o quadro de funcionamento desses vícios e as realidades supostas para o seu preenchimento.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP -, só se poderá afirmar quando os factos provados não permitirem num raciocínio lógico as ilações que deles tirou o tribunal a quo, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação.

O erro notório na apreciação da prova - vício da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP -, verifica-se quando se retira de um facto dado como provado uma consequência logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.

Estes vícios, como decorre do corpo do n.º 2 do artigo 410.º de CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que quer dizer que qualquer dos referidos vícios tem de resultar da análise da decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a elementos estranhos a ela, ainda que constantes do processo.

Ora, as pertinentes conclusões da motivação evidenciam que o recorrente, embora os invoque, não se situa no contexto e quadro de funcionamento desses vícios, que, aliás, não localiza internamente nem concretiza no texto da decisão recorrida, mas no plano da discordância do juízo sobre a prova.

Com efeito, o que o recorrente pretende é atacar o processo de formação da convicção do tribunal por, na sua óptica, a prova produzida não ser suficiente para dar por assentes determinados factos (o que não constitui o vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º) e por determinados factos assentes resultarem de uma incorrecta valoração da prova produzida (o que não constitui o vício da alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º).

A invocação, no plano da discordância do juízo sobre a prova, dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova é insubsistente e incongruente e reveladora de uma errada compreensão da amplitude de funcionamento e conhecimento dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP.

4.3.2. A impugnação da decisão reconduz-se, assim, exclusivamente, a um erro de julgamento da matéria de facto. O recorrente pretende atacar o processo de formação da convicção do tribunal em relação a determinados factos que concretiza.

4.3.2.1. No reconhecimento de que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância [GERMANO MARQUES DA SILVA, «A aplicação das alterações ao Código de Processo Penal», Forum lustitiae, Maio de 1999, p. 21] e de que O tribunal de recurso não dispõe da relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão (que só o princípio da imediação, intrinsecamente ligado ao da oralidade, assegura), a transcrição da prova produzida em audiência na 1.ª instância evidencia, de forma inequívoca, que o tribunal não incorreu em erro de julgamento na apreciação da prova na medida em que foi produzida prova suficiente (consubstanciada no depoimento da filha mais velha da vítima e do arguido) para dar como provados os factos essenciais que consubstanciam os elementos objectivo e subjectivo do tipo por que o arguido foi condenado.

4.3.2.2. O recorrente não se situa, porém, no âmbito dos factos essenciais à procedência da acusação. Não impugna a decisão proferida sobre os factos constitutivos dos elementos do tipo, para se refugiar em questões de pormenor, incidentais, que, mesmo que não viessem a ser dadas por provadas, não implicavam o afastamento do preenchimento do tipo.

De qualquer modo, vejamos os pontos questionados pelo recorrente.

Quanto ao ponto 3 da matéria de facto, pretende que, com base no depoimento da testemunha Sandra só poderia ser dado por provado que os irmãos mais novos presenciaram a agressão de 27 de Setembro, uma vez que referiu que «isolava os irmãos no quarto para não assistirem».

O que se afirma no ponto 3 é que as agressões e ameaças foram quase sempre presenciadas pelos três filhos do casal. Não se diz que foram sempre presenciadas por todos, o que constituiria, aliás, uma impossibilidade, atenta a idade dos filhos mais novos. O que é certo é que a testemunha Sandra assistiu quase sempre aos factos e, embora procurando proteger os irmãos mais novos, afastando--os para o quarto, a algo, pelo menos ao começo do comportamento violento, ainda que verbal, eles não poderiam deixar de assistir, até porque o arguido, como ela referiu, «não se preocupava com a presença dos filhos; quando tinha que discutir, discutia à frente dos filhos e se tivesse que bater, não olhava a meios».

De qualquer modo, os maus tratos não são questionados e é isso que releva para preenchimento do tipo.

Quanto ao ponto 4 da matéria de facto, pretende que não foi produzida prova que permitisse dá-lo por assente.

A testemunha Sandra efectivamente não referiu que o arguido a ameaçava de lhe bater. Referiu actos concretos de violência: ir ao terceiro andar buscá-la à força, «quase que me atirava pelas escadas abaixo», ter dado um soco na porta «que disse que era para não me dar a mim» e, em termos de ameaças, referiu que o arguido «também chegou a dizer que matava os filhos». Ou seja, até se pode considerar que a incorrecção na fixação da matéria de facto descrita no ponto 4 traduz uma omissão.

Todavia, a conduta do arguido em relação à filha não constitui o objecto deste processo.

Quanto ao ponto 5 da matéria de facto pretende que a agressão ocorreu no mês de Maio de 1998 e não no ano de 1992.

Reconhece-se que a testemunha Sandra não esclareceu devidamente este ponto, uma vez que a referência à gravidez da mãe, não é clarificadora, ficando-se sem saber se se tratava da gravidez do filho (agora com 10 anos) ou da filha (agora com 4 anos).

Seja como for, o que releva é a prova da agressão no período considerado -cerca de dezasseis anos até 27 de Setembro de 2001.

Quanto ao ponto 8 da matéria de facto, pretende que não se fez prova de que as agressões só não tomaram maiores proporções por causa da intervenção da polícia que foi chamada ao local.

Efectivamente, não se pode afirmar esse facto, até porque a polícia foi chamada pela vítima, que fugiu de casa, quando o arguido foi buscar a filha Sandra à força.

Porém, o que releva é a prova da agressão efectivamente praticada.

Quanto ao ponto 11 da matéria de facto, pretende que não foi produzida prova dos factos descritos nesse ponto, porquanto a testemunha Sandra não fez referência a quaisquer factos/situações capazes de espelhar o medo ou humilhação.

Sem razão. A testemunha narrou a violência física e psíquica de que a mãe foi vítima, ao longo dos anos, por parte do arguido, sendo as suas primeiras memórias, justamente, desses actos de violência («desde que eu me lembro ...»; «é a mais antiga imagem que eu tenho») e, sem quaisquer reservas, afirmou que, por causa de toda essa violência que também se transmitia aos filhos (quando chegou a dizer que matava os filhos), a mãe tinha medo do pai, por ela e pelos filhos, e que viveu aterrorizada e humilhada pelo pai.

O medo e a humilhação são estados íntimos que se vivem e que não são necessariamente exteriorizados nem carecem de traduzir-se em actos que os reflictam para serem pressentidos e sentidos por uma filha.

De qualquer modo, o preenchimento do tipo não exige a verificação desses resultados.

Em suma, a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto deixa intocados os factos essenciais ao preenchimento do tipo [matéria de facto descrita sob os pontos 1, 2, 5 (quanto à agressão), 7, 11, 12 e 13], os quais foram correctamente fixados com base na prova produzida, com especial destaque para o depoimento da testemunha Sandra, que, pelas razões que foram enunciadas na motivação (e que a transcrição da prova só permite corroborar), merece total credibilidade.

4.4. Decorre do exposto a improcedência da questão que o recorrente coloca de a matéria de facto que deve ser dada por provada integrar o crime de ofensa à integridade física simples (conclusões XXVIII a XXXIV).

A matéria de facto que deve ser dada por provada é, no essencial, aquela que foi dada por provada na sentença recorrida. Ora, essa matéria de facto preenche os elementos objectivo e subjectivo do crime de maus tratos a cônjuge e não apenas o crime de ofensa à integridade física simples, resultado a que o recorrente chega pelo artifício de isolar os factos descritos sob o ponto 7 dos factos provados e desligá-los da restante matéria de facto em que se inserem e que despreza, como se não tivesse qualquer relevância jurídico-penal.

A matéria de facto que se prova revela que o arguido, ao longo de cerca de dezasseis anos até ao dia 27 de Setembro de 2001, de forma reiterada, infligiu maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos ao seu cônjuge.

Comportamentos que realizou, representando e querendo, atingir a vítima na sua integridade física e na sua dignidade pessoal.

4.5. Improcedendo a pretensão de subsunção do comportamento ao tipo do artigo 143.º do CP, improcede, também, a questão da opção pela pena de multa que pressupunha a condenação do recorrente por crime a que fosse aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade.

A manutenção da condenação do recorrente pelo crime do artigo 152.º, n.º 2, do CP, punível, em abstracto, com pena de prisão de 1 a 5 anos, prejudica a discussão centrada no disposto no artigo 70.º do CP que o recorrente queria suscitar, não com base no crime cometido mas no pressuposto de uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

4.6. Resta-nos, por isso, abordar a questão da medida concreta da pena, a ponderar no quadro da qualificação jurídica dos factos no tipo do artigo 152.º, n.º 2, com a moldura penal abstracta antes indicada.

As finalidades de aplicação de uma pena assentam, em primeira linha, na tutela de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Contudo, em caso algum, a pena pode Ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, do CP).

Logo, num primeiro momento, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto «reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida» [FIGUEIREDO DIAS, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1993, pp. 72-73].

Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar .

Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.

Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º 2 do artigo 71.º do CP, relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

No caso, deve ser destacado que as exigências de prevenção são, no plano geral, muito fortes. A experiência, apoiada em dados estatísticos, diz-nos que os maus tratos do cônjuge continuam a ter uma expressão muito significativa na sociedade e acarretam consequências devastadoras do equilíbrio da família e do harmonioso desenvolvimento dos filhos para além de conduzirem, numa percentagem elevada, a situações extremas de morte das vítimas de violência conjugal.

A persistência do comportamento ao longo de cerca de dezasseis anos conforma um elevado grau de ilicitude.

As qualidades da personalidade do recorrente manifestadas no facto relevam por via da culpa, agravando-a, na medida em que constituem índices de uma elevada medida de desconformação da personalidade do recorrente com a do homem fiel ao direito. Realça-se que as condutas foram persistentemente e reiteradamente realizadas durante um período longo, que o recorrente nunca se inibiu de expressar a sua violência diante dos filhos e de a exercer sobre a vítima mesmo quando ela se encontrava grávida.

Não se encontram nem no seu comportamento anterior, nem no seu comportamento posterior, nem mesmo no seu comportamento processual quaisquer circunstâncias que devam ser valoradas a favor do recorrente.

Tudo ponderado, temos por ajustada a pena em que o recorrente foi condenado na 1.ª instância por se mostrar adequada à culpa do recorrente dentro da medida necessária à tutela dos bens jurídicos.

III
Termos em que, negamos provimento ao recurso e confirmamos a sentença recorrida.

Por ter decaído, vai o recorrente condenado em 5 UC de taxa de justiça e nas custas (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do CPP, 87.º, n.º 1, alínea b), 89.º e 95.º do CCJ), com honorários à Exm.ª defensora oficiosa, de acordo com o ponto 3.4.1. da tabela anexa à Portaria n.º 150/2002, de 19 de Fevereiro, e com numerários à Exm.ª defensora, nomeada em audiência, neste tribunal, de acordo com o ponto 6 da tabela anexa à Portaria n.º 150/2002, de 19 de Fevereiro, a deduzir àquela, nos termos do n.º3 da mesma Portaria.

Porto, 5 de Novembro de 2003

Isabel Celeste Alves Pais Martins
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas
José Casimiro da Fonseca Guimarães