Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
924/11.0TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: DAÇÃO EM PAGAMENTO
SOCIEDADE
MÁ FÉ
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP20140929924/11.0TVPRT.P1
Data do Acordão: 09/29/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Age de má fé e não merece proteção do Direito a sociedade que, representada pelo Presidente do Conselho de Administração, intervém no negócio jurídico de dação em pagamento, aceitando a propriedade de um imóvel que se encontra na titularidade desse Presidente (que, nesta outra qualidade, também intervém na escritura) quando este mesmo estava obrigado, enquanto fiduciário, a não dispor do imóvel.
II - Não age em abuso de direito quem reclama judicialmente o pagamento de um mútuo feito há catorze anos e sem observância da forma legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário (da responsabilidade do relator): 1 – Age de má fé e não merece proteção do Direito a sociedade que, representada pelo Presidente do Conselho de Administração, intervém no negócio jurídico de dação em pagamento, aceitando a propriedade de um imóvel que se encontra na titularidade desse Presidente (que, nesta outra qualidade, também intervém na escritura) quando este mesmo estava obrigado, enquanto fiduciário, a não dispor do imóvel. 2 – Não age em abuso de direito quem reclama judicialmente o pagamento de um mútuo feito há catorze anos e sem observância da forma legal.

Processo 924/11.0TVPRT.P1

Recorrente – B…
Recorridas – C…, por si e em representação da Herança aberta por óbito de D…

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 - Relatório
1.1 – Os autos na 1.ª instância
C…, por si e na qualidade de cabeça de casal da Herança aberta por óbito de D…, instaurou esta ação declarativa e, demandando B…, E… e F…, SA, pediu a) a condenação dos primeiros réus a cumprirem o “pactum fiduciae” transmitindo a titularidade da fração para as demandantes; b) a condenação dos mesmos a distratarem a hipoteca que incide sobre a fração e ainda c) que seja declarado nulo o contrato de dação em cumprimento celebrado entre o primeiro réu e a segunda ré ou, em alternativa, d) Serem os primeiros réus condenados a pagar às demandantes o valor que quantifica na quantia mínima de 316.660,50€, sem prejuízo de eventual ampliação do pedido com a valorização da fração no decurso da ação e e) Mais serem os primeiros réus condenados a pagarem à autora a quantia de 222.092, 86€, acrescida de juros moratórios, contados desde a citação.

Fundamentando a pretensão, a autora alegou o que ora se sintetiza:
- É viúva do falecido D…, com quem foi casada em comunhão geral e desse casamento nasceram o 1.ª réu e G…. Em 1989, autora e marido pretendiam comprar uma fração autónoma sita no Porto, mas havia risco de reverterem sobre ambos dívidas da sociedade de que eram sócios, pelo que ponderaram que a fração ficaria em nome da filha. Com a concordância desta foi feito assim o negócio e a autora e o marido passaram a habitar a fração. Passados quatro anos, a filha pretendeu casar e o risco e reversão fiscal mantinha-se; por isso, ponderaram transmitir a fração ao filho, aqui 1.º réu, então divorciado. Com a concordância deste e da filha, esta procedeu à transmissão, declarando vender a fração ao irmão, o qual, tal como anteriormente a irmã, nunca a habitou.
- No entanto, a partir de 2008, o 1.º réu passou a intitular-se dono da fração e recusou-se transmitir a sua titularidade para a autora e para a herança (em 2000 faleceu o marido da autora e pai do 1.º réu) e contraiu, juntamente com a atual mulher, um mútuo junto da H…, com garantia bancária sobre a fração e, posteriormente, transferiu a sua propriedade para a sociedade, 2.ª ré, na qual preside ao Conselho de Administração.
Os réus – conjuntamente – contestaram a fls. 72 e ss., igualmente reconvindo. Referem que a autora e seu marido também foram acionistas da sociedade contestante e que, logo por ocasião da morte do pai do 1.ª contestante acordam na partilha e este réu foi cumprindo, com entregas de dinheiro, até 2008. Até 2008, a sociedade e o réu por interposta pessoa entregaram à autora e à irmã daquele as quantias de 837.980,64€ e de 167.595,68€, além do ordenado da empregada doméstica (64.000,00€) da autora e do uso, por esta, de um veículo propriedade da sociedade. Além disso, os primeiros réus avalizaram as operações bancárias da sociedade e pagaram o passivo da empresa. A conta do L… era pertença da sociedade e foi a autora quem pediu ao filho para dela ser titular; o réu e a sociedade pagaram dívidas que eram próprias da herança e autora sempre teve cartão de crédito e cheques da conta que pertencia à empresa. A autora sempre soube da necessidade da hipoteca da fração, em razão da situação económica da sociedade e, se é certo que foram os pais quem pagou a fração, o 1.º réu, por si e por intermédio da empresa, “já pagou a casa dez vezes”, casa que, conforme declaração da autora, nunca integraria o acervo hereditário. Em reconvenção, os contestantes pedem a condenação da autora “a pagar à ré F… e ao réu B… a quantia global de 921.980,64€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a citação e até integral pagamento”.

A autora replicou a fls. 171 e ss. Estranha que os réu invoquem um “acordo de partilha” e não reconvencionem, nem sequer cautelarmente, a restituição dos montantes entregues em cumprimento daquele, o que traduz uma contradição entre o pedido e a causa de pedir reconvencionais. No mais, diz desconhecer se é sua a assinatura aposta no documento junto com a contestação e, se foi, não foi aposta com a noção do que o documento continha, pois é de notar que a filha (irmã do 1.ª réu) não foi “convidada” a assinar documento semelhante, o qual, seja como for, é nulo por falta de forma e revela uma acordo de partilha leonino, ou seja, padece de fraude à lei. Impugna os demais documentos juntos e afirma que as entregas feitas a si e à sua filha não tinham como fonte o pretenso acordo de partilha. Conclui que a reconvenção deve ser julgada não provada e improcedente.

Os réus treplicaram, afirmando que a autora bem soube o que assinou e que o fim da sociedade nunca seria a concessão de benefícios: os pagamentos derivavam do acordo que agora é impugnado pela demandante, mas, a fls. 194/196 a autora peticionou o desentranhamento do articulado dos réus, porque a considera legalmente inadmissível.

A fls. 205 e ss. a autora apresentou articulado superveniente. Invocando ter tido conhecimento de uma penhora sobre a fração, a favor da Segurança social, amplia o pedido e peticiona que os réus também sejam condenados “a distratar a hipoteca legal a favor do Instituto da Segurança Social, IP – Centro de Aveiro.

A fls. 229/230, em sede de audiência preliminar o articulado superveniente foi liminarmente admitido. A fls. 235/236, na mesma sede e na continuação da audiência preliminar, foi dado conhecimento aos autos da insolvência do 1.º réu[1] e a audiência foi interrompida. Depois de nova audiência preliminar, os autos foram saneados. No pertinente despacho, ordenou-se o desentranhamento da tréplica e fixou-se o valor da causa; declarou-se, em parte, inepta a reconvenção, mas admitiu-se a mesma (somente) “quanto à importância de €837.980,64”. Fixou-se a matéria assente e elaborou-se base instrutória. Foi admitida a prova e juntos vários documentos. Teve lugar a audiência de julgamento que a ata de fls. 557/559 documenta e, conclusos os autos (fls. 560 e ss.) foi proferida sentença (que inclui a matéria de facto provada e a aplicação do Direito) na qual se decidiu “I) - julgar procedente a presente ação e em consequência: a) - declarar nulo o contrato de dação em cumprimento celebrado entre o 1.º réu e a 2.ª ré; b) - condenar os 1.os réus a transmitir a titularidade da identificada fração autónoma para a esfera jurídica das demandantes e bem assim a distratar as hipotecas que presentemente oneram essa fração; c) - condenar os 1.ºs réus a pagar às autoras a quantia de €222.092,86 (duzentos e vinte dois mil noventa e dois euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida de juros moratórios, à taxa legal, a contar da citação e até efetivo embolso.
II) - julgar improcedente o pedido reconvencional, em consequência do que se absolvem as autoras do mesmo”.

1.2 – Do recurso
Inconformados, os réus apelaram. Entendem que deve declarar-se “Nula a sentença, ou em alternativa, proferido acórdão que a revogue” e formulam as seguintes Conclusões:
1 - Os réus juntaram uma declaração da autora C… onde consta claramente a assinatura dela (não foi posta em causa a sua genuinidade nem do conteúdo nem da assinatura) onde claramente se refere a quantia que esta já recebeu do 1.º réu, seu filho.
2 - Por outro lado, tal documento foi confirmado pelas testemunhas da própria autora que fizeram prova cabal e plena do teor do documento e da assinatura pois conforme se poderá ler as testemunhas I… e J… confirmaram que o 1.º réu ia amiúde visitar a sua mãe levando consigo documentos que esta assinava por confiar no seu filho.
3 - É portanto evidente que o seu filho, antes de dar a assinar qualquer que fosse o documento lhe explicava o que estava assinar.
4 - Ou seja, o Exmo. Juiz decidiu que muito embora a sua mãe confiasse no réu, que este era visita amiúdes vezes lá de casa, o seu filho a enganou, o que salvo o devido respeito, é presunção retirada que nada corresponde à vida normal de uma família e da relação entre mãe e filho.
5 - E decide que “pese embora esta factualidade propendemos pois para dar como não provadas as referidas afirmações de facto”, mas realmente foram as próprias testemunhas da autora que, esclarecidamente e sem mais rodeios, vieram confirmar o teor do documento e que era usual o primeiro réu entregar documentos para a sua mãe assinar.
6 - Ora a normalidade da vida ensina-nos que alguém que pede a outro para assinar o documento em questão, no mínimo explica o seu conteúdo e a finalidade do mesmo e se a sua mãe assinou tal documento com um juízo de probabilidade quase certo que sabia o seu conteúdo e para o que serviria.
7 - Sendo assim, outra deveria ter sido a decisão no que tange a estes factos (da base instrutória 21 a 25) dando-os como provados porque – repita-se – confirmado pelas próprias testemunhas arroladas pela Autora.
8 - Ora, ao decidir precisamente por não provados estes factos e tendo em conta a factualidade dos autos, errou o Tribunal na decisão sobre a matéria de facto pelo que nos termos do artigo 662 n.º 2 esse Tribunal deve alterar a decisão proferida sobre essa matéria.
9 - No anterior Código Processo Civil, foi esta a orientação seguida pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.03.1983, em cujo sumário se lê: "Da conjugação dos artigos 653º, nº 2 e 3, e 712º, nº3, conclui-se que a fundamentação das respostas aos quesitos provados deve fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz. O que compreende não só os meios concretos de prova, mas também as razões ou motivos por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador. Não satisfaz esta exigência a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, sem referência concreta a cada um deles, de forma a garantir a identificação deles com a fonte de cada resposta".
10 - Por seu turno, o Prof. Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 653) ensina que: "A motivação das respostas positivas aos quesitos exige, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador, como se depreende do disposto no n.º 3 do artigo 712º, que admite o retorno do processo, da Relação ao tribunal de 1ª estância, e a repetição eventual de certas diligências instrutórias, a fim de se identificarem os meios concretos de prova decisivos para a convicção dos julgadores.
11 - No mínimo impor-se-á a renovação da produção de prova sobre esse documento em concreto que é nem mais nem menos a confissão da autora que recebeu o dinheiro do seu filho, mesmo através de declarações de parte que oficiosamente o Tribunal pode chamar a depor.
12 - Sendo assim o Tribunal violou o art. 607º n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil.
13 - Além disso, a sentença violou ainda o art. 608º do CPC, porquanto o Exmo. Juiz a quo não resolveu todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, já que a falta de análise critica sobre documentos juntos nos autos que o Ex.mo Senhor Juiz a quo não se pronunciou, e portanto não analisou criticamente todos os meios de prova.
14 - Agora, na sentença, é o momento oportuno para que o Ex.mo Juiz a quo se pronunciar sobre todos documentos que admitiu a junção, e não o fez.
15 - Quanto à decisão da alegada má fé da ré F…, o Exmo. Senhor Juiz a quo ao dar como provado tal atuação, violou claramente os artigos 405º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, porquanto
16 - O Ex.mo Juiz a quo refere que “os elementos que podem ser coligidos nos autos apontam inequivocamente no sentido de que a 2.ª ré, enquanto adquirente do ajuizado imóvel, tinha um efetivo conhecimento da natureza fiduciária da titularidade do réu transmitente, dado que este era o Presidente do Conselho de Administração, tendo sido ele a outorgar na escritura pública que titulou a dação em pagamento”.
17 - E por esse simples e singelo facto, resulta clara a má fé da ré requerente.
18 - No entanto, a 2ª ré é uma sociedade anónima e portanto, a Assembleia-geral é o órgão supremo das sociedades, que tem poderes inclusive para modificar os estatutos, verificados certos pressupostos. Sendo, como é um órgão deliberativo, competindo as funções executivas e de representação externa ao órgão da administração.
19 - Ora, sendo assim, não consta nos autos nenhuma ata de assembleia geral com a deliberação em causa, ou seja, a deliberar que se aceita a dação em pagamento de uma casa que era do administrador.
20 - Ora, uma das obrigações deste é prestar informação aos sócios; e ainda a obrigação de respeitar as deliberações das Assembleias-gerais. E,
21- Nada nos autos indiciam que os acionistas soubessem sequer a que titulo o primeiro réu possuía o imóvel.
22- Ora, ainda assim, e uma vez nomeados os administradores têm competência genérica para praticar todos os atos necessários ou convenientes à realização do objecto social, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores (arts. 64º; 259º; 405º CSC; vide também arts. 260º, e 409º CSC).
23 - Sendo a administração o único órgão com competência para representação externa da sociedade (art. 405º/2 CSC), esta fica vinculada pelos atos praticados pelos administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, não obstante as limitações constantes dos estatutos ou de deliberações dos sócios (art. 260/1 e 490/1 CSC).
24 - Resulta claro que a segunda ré não é nenhuma sociedade imobiliária, é uma empresa cujo objecto social é a indústria química e portanto este negócio não se encontra de todo no objecto social da segunda ré, sujeito portanto a deliberação dos acionistas.
25 - Sendo assim, a alegada má fé da sociedade, quando os acionistas (substrato pessoal da sociedade) nada sabiam, não pode colher, como se invoca.
26 - Quanto ao suposto empréstimo da conta titulada pelo primeiro réu juntamente com a
autora, desde 6 de Janeiro de 2000, sempre se dirá que a conta bancária aberta em nome de várias pessoas, conta coletiva, tende a ser classificada na Doutrina e na Jurisprudência como: Solidária, quando qualquer dos titulares pode movimentar sozinho, livremente a conta; Conjunta, quando só podem ser movimentada por todos os seus titulares, em simultâneo; Mista, que é a opção intermédia entre as contas anteriores, já que a movimentação da conta bancária, em princípio, só pode ser efetuada nas condições expressamente indicadas no contrato de constituição da conta (por exemplo: 1º titular sozinho ou 2º e 3º titulares em conjunto; quaisquer dois titulares em conjunto, em contas com mais de dois titulares, etc.).
27 - Da factualidade dos autos, facilmente se conclui, pois, que: In casu, a conta em apreço é conjunta, uma vez que não foi necessária a intervenção de todos os titulares para movimentar os fundos que lhes estiveram agregados.
28 - Tais fundos eram passíveis de serem movimentados por qualquer um dos titulares, isoladamente, pelo que é uma conta solidária;
29 - Sucede, pois que o primeiro réu teve e tem a faculdade de, isoladamente, movimentar os fundos da conta de que era contitular, desde 2000, o que sempre deverá considerar-se muito evidenciador de que o réu é proprietário da totalidade de tais fundos.
30 - A solidariedade de conta ou depósito bancários manifesta-se, essencialmente, na faculdade de cada um dos titulares da conta reclamar e receber do banco a totalidade do seu saldo, ou seja, tanto o primeiro réu como a autora podiam movimentar a conta a seu bel prazer.
31 - Nas relações entre titulares de contas ou depósitos bancários, aplica-se o disposto no artigo 516º do Cód. Civil: a medida da participação de cada um no crédito determina-se em função da "relação jurídica entre eles existente", podendo mesmo o benefício caber só a algum deles; na dúvida (que não aqui poderá entender-se existir), presume-se que "comparticipam em partes iguais...no crédito"; mas o certo é que, hipoteticamente, poderia até o crédito ser pertença de terceiro, representado pelos titulares da conta.
32 - Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), no seu Ac. de 27 de janeiro de 1998, Processo n.º 658, que, “no caso de conta bancária em regime de solidariedade ativa, a atribuição do respectivo crédito aos seus titulares em partes iguais, por força da presunção legalmente estabelecida, parte da ideia de o depósito ter sido feito com dinheiro, por igual, desses titulares (...) Essa presunção deve ter-se como ilidida no caso de se provar que o dinheiro do depósito provém da propriedade exclusiva de um dos titulares e de se não provar o motivo da abertura da conta em regime de solidariedade ativa” – realce adicionado -, o que não se provou!
33 - Recentemente, o STJ no seu Ac. de 15 de março de 2012, no âmbito do Processo n.º 492/07.TBTNV.C2.S1, alcançou as seguintes conclusões: - “O afastamento da presunção de igualdade de quota na conta comum implica saber qual a relação existente entre os contitulares das contas e que explica a contitularidade” (...) - “A prova de que, quem celebrou o contrato de depósito, pretendeu que uma sobrinha e o marido fossem titulares da conta bancária, podendo assim movimentá-la em conjunto, de acordo com as suas instruções, com base na relação familiar e de confiança, não demonstra qualquer participação da sobrinha e do marido na titularidade do dinheiro depositado; antes aponta para uma relação de mandato ou semelhante. E revela com segurança, tal como entendeu a Relação, que o dinheiro depositado sempre pertenceu a quem celebrou o contrato”.
34 - Os princípios da solidariedade ativa estatuídos nos artigos 512 a 516 do Código Civil, estabelecem, em síntese, a presunção (ilidível) de comparticipação em partes iguais no crédito - ou seja, presume-se, enquanto se não fizer prova em contrário, que cada um dos depositantes é titular de metade da conta (cf. Ac. STJ, 17.06.99, CJSTJ, II, p. 152).
35 - Assim também decidiu a Relação do Porto, por acórdão de 14 de Janeiro de 1998 (CJ, I, p. 183), segundo o qual, "não se confunde a titularidade das contas com a propriedade das quantias depositadas, pelo que a presunção estabelecida no artigo 516º do Código Civil é ilidível, podendo provar-se que tais quantias pertencem a um só, ou a alguns, dos titulares, ou que as quotas destes são diferentes, ou até que pertencem a um terceiro".
36 - Compulsados os autos, a autora para ver a sua pretensão vencer teria que alegar e provar essa factualidade e donde lhe adveio o dinheiro, depois de pelo menos 2000, e antes não poderemos esquecer que sendo o marido da autora, pai do réu, à sua morte este também é herdeiro de 1/3 desse dinheiro, na versão da própria autora que nenhuma partilha se fez!
37 - E assim, dúvidas não poderão restar de que as quantias depositadas nas contas bancárias sub judice pertencem, exclusivamente, ao primeiro réu que delas é proprietário e portanto outra deveria ter sido a decisão.
38 - Por último, os réus, ao serem condenados a restituir o montante de 222 mil Euros, 14 anos depois, a autora atua com claro abuso de direito, invocando conforme foi decidido que
39 - Na versão da autora foi efetuado empréstimo com preterição de formalidades adequadas ou seja, dado o montante em causa deveria ter sido efetuado mútuo por escritura notarial e portanto,
40 - Invocar tal circunstância, 14 anos depois, é atuar excedendo os limites impostos pela boa fé.

A recorrente respondeu (fls. 617). Começando por suscitar a questão (prévia) da representação em juízo do 1.º réu, entretanto declarado insolvente, defende a decisão recorrida e a sua manutenção.

No despacho de fls. 633 admitiu-se o recurso quanto ao 1.º réu, mas já não quanto às rés E… e F…, SA, por não terem pago a taxa de justiça devida. No mais, considerou-se que, atento o carácter limitado da declaração de insolvência, não há qualquer implicação da mesma na representação judiciária do recorrente. O processo correu Vistos e cumpre apreciar o mérito da apelação.

1.3 – Objeto do recurso
Atentas as conclusões do recorrente, são as seguintes as questões que importa conhecer:
1.3.1 – Se devem ser alteradas as respostas dadas aos pontos 21 a 25 da base instrutória, considerando-se as mesmas provadas (conclusões 1 a 8);
1.3.2 – Se a decisão sobre a matéria de facto não está fundamentada, implicando a renovação da prova (conclusões 9 a 12);
1.3.3 – Se a sentença violou o artigo 608 do CPC, pois não resolveu todas as questões, nomeadamente não analisou criticamente o documento junto aos autos pelo recorrente (conclusões 13 e 14);
1.3.4 – Se não ficou demonstrada a má fé da sociedade ré, quando interveio na dação em cumprimento (conclusões 15 a 25).
1.3.5 - Se, sendo a conta bancária também titulada pelo recorrente uma conta conjunta, não deveriam os 1.º réus terem sido condenados à restituição (conclusões 26 a 37).
1.3.6 - Se a autora atua em abuso de direito, ao exigir, catorze anos depois, a quantia que alega ter mutuado ao recorrente (conclusões 38 a 40).

2 - Fundamentação
2.1 - Fundamentação de facto
O tribunal da 1.ª instância deu como provada a matéria de facto que a seguir se transcreve (desde já porque a impugnação versa sobre factos considerados não provados) tendo fundamentado a sua decisão nos termos que igualmente se transcrevem (por estar em causa também nesta apelação).
1 - A Autora é viúva de D…, com quem foi casada no regime da comunhão geral de bens, em primeiras núpcias de ambos, falecido a 2000.01.01 – A).
2 - Desse casamento tiveram dois filhos, ainda vivos: O 1.º réu marido, nascido a 1958.06.11 e G…, nascida a 1955.02.27 – B).
3 - Os 1.º s réus são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos – C).
4 - Por escritura pública de 1989.07.28, que se mostra junta de fls. 34 a 37, constante de fls. 32 v a fls. 34 do Livro de Escrituras Diversas 73-D do então 7.º Cartório Notarial do Porto, D… declarou comprar a K…, Lda., e esta vender-lhe, a fração autónoma designada pela letra “Q”, correspondente a uma habitação no quarto andar, com o n.º …, com entrada pelo n.º … do prédio urbano sito na Rua …, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 89/19860926, inscrito na matriz sob o artigo 1.698-Q – D).
5 - Foi a autora e seu então marido quem pagou o preço de 9.000.000$00 à sociedade vendedora - E).
6 - A Autora e seu marido passaram a desde então habitar nessa fração, sendo que a referida filha deles nunca nela habitou – F).
7 – G… procedeu ao registo da fração referida a seu favor na competente Conservatória em 1993.04.26 - G).
8 – G… declarou vender a seu irmão, ora 1.º réu marido, e este declarou comprar-lhe a fração referida, por escritura pública de 1994.01.06, que se mostra junta de fls. 39 a 41 dos autos, constante de fls. 59 a fls. 60 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 484-A do então 3.º Cartório Notarial do Porto – H).
9 - A fração referida em 4.º foi registada a favor do 1.º réu marido em 1994.03.04 - I).
10 - Os 1.ºs réus contrairam junto da H… mútuo com garantia hipotecária sobre a fração, pelo montante de 225.000,00€ - J).
11 - O 1.º réu transferiu a propriedade do imóvel referido para a ré F…, S.A., através de uma alegada “dação em cumprimento”, facto que se mostra registado na competente Conservatória do Registo Predial, mediante a apresentação 5761 de 2010/02/12 - L).
12 - O 1.º réu é Presidente do Conselho de Administração da F…L, S.A. - M).
13 - A Autora era titular, desde 1996.07.05, da conta de depósitos à ordem com o n.º …………. do L…, agência de …, sendo que, a partir de 1997.07.10, seu marido passou a ser também cotitular dela - N).
14 - Em 2000.01.06 o 1.º réu passou a figurar como cotitular da conta referida em 13.º - O).
15 - No âmbito da ação executiva movida pelo M…, S.A. à ré F…, SA que, sob o n.º 1437/12.8TBVFR, corre seus termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, foi decretada penhora sobre o imóvel identificado em 4.º - P).
16 - Em 1989, a autora e o seu marido pretendiam comprar a fração identificada em 4.º, para aí instalarem a sua habitação - 1).
17 - Nessa altura havia o risco de reverterem sobre a autora e o seu marido dívidas fiscais da sociedade N…, Lda., de que ambos eram sócios e gerentes e para cujo pagamento o património social era insuficiente, por inexistente - 2).
18 - Por essa razão, ponderaram a autora e o seu marido que, se comprassem a dita fração, correriam o sério risco de ela vir a ser apreendida pela Fazenda Nacional em virtude da reversão, sobre eles, das dívidas fiscais da aludida sociedade, como responsáveis subsidiários delas - 3).
19 - Em consequência, e para obviar a esse provável resultado, mais ponderaram que a compra seria feita em nome da filha de ambos, ainda que com dinheiro deles, que entregariam à filha para que esta procedesse à respetiva compra - 4).
20 - Ficando esta obrigada a transmitir-lhes a respetiva titularidade quando tal lhe fosse solicitado por eles - 5).
21 - Colocada a questão à filha, a quem explicaram as razões para terem de atuar dessa forma, esta concordou em proceder da maneira descrita intervindo como compradora na escritura referida em 4.º - 6).
22 - Foi sempre a Autora e marido e, após o decesso deste, ela autora, quem pessoalmente pagou as despesas de manutenção da fração, assim como contribuição autárquica (hoje, IMI), despesas de condomínio e consumos de água, luz e gás, sendo os respetivos recibos emitidos em nome deles e, após o falecimento do marido, no da autora - 7).
23 - Volvidos cerca de quatro anos, a filha da autora projetava contrair novo casamento, situação que poderia suscitar obstáculo à transmissão da fração para a titularidade do casal da autora quando este o desejasse - mormente, pela necessidade da obtenção de autorização do novo cônjuge da filha para o efeito - 8).
24 - Por essa razão, e dado que se mantinha o risco da reversão das dívidas fiscais, a autora e seu marido ponderaram transmitir a referida fração para o 1.º réu marido - 9).
25 - O réu sabia que tinham sido seus pais a pagar o preço da fração e que sua irmã tinha a titularidade da mesma unicamente pelas razões referidas em 17 e 18 - 10).
26 - E bem assim que ela assumira o compromisso de a transmitir para a titularidade dos pais de ambos assim que estes lho solicitassem - 11).
27 - Colocada a questão ao réu, este concordou com o ajustado, assumindo e prontificando-se a transmitir para seus pais a titularidade da fração referida, quando tal lhe fosse solicitado por eles - 12).
28 - A autora requereu então à sua filha que transmitisse a propriedade da fração para o 1.º réu, ao que a filha, respeitando o compromisso assumido, acedeu, tendo, para o efeito outorgado a escritura referida em 8 - 13).
29 - Embora tenha nela sido declarado que ele pagara, e ela recebera, o preço de sete milhões de escudos nem o 1.º réu pagou esse preço à sua irmã, nem esta o recebeu - 14).
30 - O réu nunca habitou na fração referida em 4.º - 15).
31 - O valor da fração referida em 4.º é de montante concretamente não apurado - 16).
32 - Na data da escritura referida em 8, o valor da fração era de montante concretamente não apurado - 17).
33 - A conta referida em 13.º foi apenas provisionada com montantes da autora e seu falecido marido - 18).
34 - Em princípios de 2001, a autora emprestou ao 1.º réu as quantias que se encontravam depositadas na conta referida em 13 que, em numerário e em valor de ações, totalizavam 44.525.621$50 (hoje 222.092,86€) - 19).
35 - A autora, em finais de 2010, solicitou ao 1.º réu a restituição da mencionada importância, o que este se negou a fazer - 21).

Motivando a decisão de facto, referiu o tribunal: “(...) teve-se em consideração o conjunto dos depoimentos prestados, relevando especialmente os depoimentos de G…, I…, O… e J… que revelaram ter conhecimento dos concretos contornos do acordo firmado entre a autora e seu marido com os filhos a respeito da titularidade da fração, da motivação que esteve na base de tal acordo, da forma como a mesma foi utilizada ao longo do tempo e bem assim das demarches que foram encetadas pela demandante no sentido de procurar assegurar que lhe fosse (re)transmitida a propriedade desse imóvel. De igual modo os referidos depoimentos foram relevantes quanto à materialidade plasmada nos factos controvertidos 18, 19, 20 e 21, dando nota do modo como os quantitativos existentes na conta a que se alude na al. N) vieram a ser utilizados pelo réu e das sucessivas diligências que a autora desenvolveu com o propósito de obter do demandado a sua restituição. Quanto aos factos controvertidos 16 e 17, a resposta dada assentou na circunstância de as autoras não terem produzido qualquer prova que permitisse afirmar, de forma minimamente fundamentada, o efetivo valor de mercado do imóvel, seja na data do ato notarial a que se alude na al. H), seja na presente. De igual modo, com relação à facticidade constante dos factos controvertidos 21, 22, 23, 24 e 25, os réus, a quem competia o ónus probandi, não lograram produzir prova consistente no sentido de confirmar as concretas afirmações aí vertidas. Com efeito, para a demonstração de tal realidade, apresentaram o doc. junto a fls. 405, o qual foi expressamente impugnado pela autora (o que releva, pois, para os efeitos do disposto nos arts. 374 do CC e 546 do CPC) sendo certo que nenhuma outra prova foi produzida no sentido de permitir confirmar a realidade nele mencionada, sendo de ressaltar, a este respeito, que, conforme afiançaram as testemunhas I… e J…, logo após o óbito do marido da autora, o réu ia amiúde visitar a sua mãe levando consigo documentos que esta assinava sem, contudo, se inteirar do respetivo conteúdo, por confiar no seu filho. Daí que, na ausência de outros subsídios probatórios mais consistentes, e atentas as implicações neste domínio do princípio plasmado no 414 do CPC, propendemos pois para dar como não provadas as referidas afirmações de facto”.

2.2 – Reapreciação da prova, fundamentação da decisão de facto, nulidade da sentença e aplicação do direito.
1.3.1Se devem ser alteradas as respostas dadas aos pontos 21 a 25 da base instrutória, considerando-se as mesmas provadas.
Entende o recorrente que os pontos de facto controvertidos, oportunamente levados à base instrutória e antes referidos, deveriam ter tido a resposta de provados, em razão dos depoimentos das testemunhas (arroladas pela autora) que sobre os mesmos se pronunciaram e também por causa do documento (cópias) junto ao processo com a contestação/reconvenção, a fls. 88 e a fls. 405 (apelidado de Declaração/Acordo) e – como vem alegado – assinado pela autora e pelo 1.º réu.

Começamos por esclarecer que o ponto de facto 21 (“A autora, em finais de 2010, solicitou ao réu a restituição da importância mencionada em 19, o que este se negou a fazer”) foi dado como provado e levado ao ponto 35 da matéria de facto constante da sentença, daí resultado que só por lapso é agora impugnado, no sentido em que o é. Os demais pontos controvertidos (22 a 25) são do seguinte teor:
22 – Ficou acordado entre os herdeiros (de) D… que o primeiro corréu pagaria à autora a quantia de €800.000,00, ficando aquele com a fração identificada em D) e com a empresa “F…”, nada mais havendo a partilhar?
23 - ... e foi neste contexto que foi subscrito o documento que se mostra junto a fls. 88 dos autos?
24 – Na sequência do referido em 23, no período compreendido entre janeiro de 2000 até ao ano de 2008, o 1.º réu entregou à autora a quantia global de €837.980,64?
25 – D…, a autora e G…, de comum acordo, decidiram transmitir para o réu a titularidade da fração referida em D), já que este passou a garantir, através de avales e pagamentos do seu património (o) passivo da corré F….

Sobre a fundamentação da decisão de facto, e sem embargo de ao tema regressarmos, já anteriormente transcrevemos, no que tivemos por relevante, o despacho da 1.ª instância. O recorrente, ainda que, relevantemente, não abale os conteúdos testemunhais, entende que os mesmos foram mal interpretados, mormente no que se refere aos pontos se facto que se prendem com o documento de fls. 88 dos autos: No seu entendimento, e ao contrário do que considerou a decisão impugnada, o que as testemunhas disseram (para além do teor do documento) revela que a autora assinou de modo livre e consciente o aludido documento, não foi enganada pelo seu filho, que lho terá explicado. Quanto ao ponto 25 da matéria controvertida, o recorrente não se alicerça, propriamente, nos depoimentos das testemunhas (da autora, porquanto os réus nenhuma apresentaram na audiência a que faltou o ora recorrente e o seu mandatário) mas na documentação junta aos autos.

Considerando que o recorrente esclarece (não obstante o lapso supra referido) os pontos de facto que impugna, as respostas que em seu entender deviam ter sido dadas e fundamenta nos depoimentos testemunhais (que identifica), melhor dito, na alegadamente errada interpretação destes, e nos documentos para que remete a sua concreta impugnação, consideramos cumprido o ónus que recai sobre quem impugna a decisão da matéria de facto e, por ser assim, justifica-se a reapreciação da prova.

Relativamente aos depoimentos testemunhais, ouvida toda essa prova, anotámos o que ora deixamos sintetizado:
1 – G…. Filha da autora e irmã do 1.º réu. Ficheiro 20131016101826 – 523581 – 2175858. Identificou o local de residência da mãe, em fração que já esteve titulada por si. Os pais foram para a fração quando foi comprada, mas foi a testemunha que figurou na escritura (min. 2,40). Ficou em seu nome, porque os pais tinham um fábrica e havia dívidas. Os pais conversaram consigo, para que a casa ficasse em seu nome, mas também para estar disponível a passá-la para o nome deles, quando eles entendessem. Sempre foram só eles quem lá viveu; nunca a testemunha ou o seu irmão (5,40). A testemunha não pagou qualquer preço e também eram os pais quem pagava a água e a luz. Mais tarde, foi feita a escritura de venda ao irmão, porque a testemunha estava a pensar casar e o pai teve receio de a fração continuar no seu nome, ficando mais descansado que passasse para o nome do irmão. Quando transmitiu ao irmão, nada recebeu e foi o pai quem pagou a escritura (8,40). Na altura também falaram com o irmão sobre as condições da transmissão. A casa esteve cerca de 5 anos em nome da testemunha e passou para o irmão por instruções dos pais e nas mesmas condições, porque os pais mantinham a vontade de não terem a casa em nome deles (11,50). Não fez qualquer acordo de partilha com o seu irmão e a situação do andar, após o falecimento do pai, nem sequer foi falada. Conhece a conta bancária de que a mãe era titular e tinha-a como sendo dos seus pais. Soube posteriormente, através da mãe, que o irmão passou a fazer parte da conta e que, sem autorização dela, levantou o dinheiro. O irmão ter-se-á comprometido a restituir, mas depois deixou de falar com a mãe (16,40). O recheio da conta era só dos seus pais. A sociedade ré era “uma SA”, não sabe quem eram os sócios (19,00). Lembra-se que o pai esclareceu com o irmão a finalidade da compra da casa em seu nome e disse-lhe (à testemunha) que a casa passava para o nome do irmão nas mesmas condições, “pois a casa sempre foi a habitação dos pais” (22,00). O irmão aproveitou-se da debilidade da mãe “para lhe pôr as coisas à frente”, para ela assinar. A mãe disse-lhe que solicitou a devolução do dinheiro, mas o irmão tomou conta da empresa e deixou de prestar contas, não atendia o telefone à mãe. Uma vez em agosto, presenciou o pedido (de restituição) da mãe (25,00). A mãe diz que não se lembra de ter assinado qualquer coisa para o nome dele constar da conta, (que) só recebeu o extrato e viu que tinha lá só 400 Euros: disse-lhe que pediu a restituição dos valores e fez telefonemas (de casa dela) para o irmão e este nem atendia; dizia que o irmão prometia pagar, mas nada (30,00).
2 – I…. Empregada doméstica. Trabalhou para a autora durante 25 anos e até há um ano atrás. Trabalha atualmente em França e veio a Portugal só por causa deste julgamento, pois tinha uma relação muito próxima com a autora e o falecido marido. Ficheiro 2013016105505. Refere que o marido da autora dirigia outra empresa, antes da F…, que teve problemas. Tem ideia de um dia ter ido lá a casa um senhor do Banco e o réu, e depois veio a saber que era para penhorar, “ou coisa do género” (min. 5,00). A casa esteve em nome da G…; depois, o Sr. Engenheiro decidiu pô-la em nome do filho, na altura em que era dono (o Sr. Engenheiro) e pagava as despesas. Faleceu em 1 de janeiro de 2000 e os filhos nunca moraram na casa (8,00). Foi o próprio Engenheiro que lhe disse que a filha “tinha arranjado um namorico e ele não concordava”. A ida do senhor do banco, que referiu, foi depois, muito depois do falecimento do marido da autora (10,00). Sabe de problemas relativos a uma conta, pois foi com a D. C… ao Banco, foi na altura do Euro, e mais tarde soube que não tinha dinheiro na conta, porque foi retirado pelo filho. Acompanhou-a a pedir explicações ao filho e percebendo que a conta também estava em nome do filho (a autora) ficou surpreendida. Ficou sem dinheiro e “teve de empenhar coisas dela”, mas o filho dizia que tinha despesas e coisas por pagar e não lhe viu atitudes no sentido de devolver o dinheiro (12,30). A autora constatou pelos extratos que não tinha dinheiro e tinha dificuldades em contactar o filho, que, mais tarde, deixou mesmo de aparecer (17,30). O património era o andar, a conta e a empresa, e o filho passou a dirigir tudo (19,30). Ouviu dizer que a casa ficava em nome da filha, primeiro porque havia pouca confiança no filho e, segundo, porque havia problemas na empresa. Depois da morte do pai, o filho ia lá buscar a mãe, até que deixou de o fazer. A autora ficou surpreendida e doente, com a falta do dinheiro (26,00). Só quando o filho “começou a andar para trás com a mãe” é que ela (autora) começou a “constatar que nem sabia o que estava a assinar” (27,40).
3 – P…. Porteiro. Ficheiro 20131016112506. Refere que é porteiro do prédio onde reside a autora: foi para lá há 24 anos e já lá moravam a autora e seu falecido marido, e só eles viviam na casa (min. 2,00). O filho, a partir de certa altura, deixou de ir lá. Eram a autora e falecido marido quem pagava as despesas. O andar, na altura, valia uns 150 mil contos. A filha nunca lá residiu (4,40).
4 – O…. Bióloga. Filha da 1.ª testemunha, neta da autora e sobrinha do 1.º réu. Ficheiro 20131016113310. Referiu que frequentava a casa dos avós, e (era) só deles, que desde sempre lá residiram. Sabe que a casa esteve em nome da sua mãe por causa de problemas da empresa e para salvaguardar o bem, e que mais tarde passou para o nome do tio, por iniciativa dos avós, quando a sua mãe estava a pensar casar (min. 4,20). Os avós compraram a casa ainda em construção e fizeram modificações interiores (6,30). Teve conhecimento que a casa foi transmitida à F…, à revelia da avó, que só soube depois. Não estiveram em causa partilhas porque o avô dizia que enquanto um fosse vivo não haveria partilhas, para melhor garantia, no caso, da avó. A avó comentou que o tio apareceu lá em casa com um avalista, que seria para um seguro, mas era um avaliador do Banco, “e começaram a desconfiar” (9,50). Depois do avô falecer, o tio passou a gerir a F…. Sabe de uma conta bancária e que foi uma surpresa, quando a avó soube que o tio passou a ser titular, pois antes não era “e a avó ficou sem o dinheiro”. Ficou incrédula, mas era difícil falar com o filho, pois o convívio foi-se perdendo. Disse-lhe (a avó) que o tio invocou dificuldades da empresa. A conta tinha cerca de 40.000 contos e pensa que era do L…. Nessa altura, a avó passou por dificuldades, “penhorou e vendeu bens” (14,40). Também (o tio) lhe tirou o carro que, ainda que em nome da empresa, era usado pela avó e também um rendimento que recebia da empresa e também deixou de pagar a empregada e, depois, não havia diálogo entre mãe e filho (16,00). Antes do avô falecer, a avó já recebia da empresa e a empregada era remunerada pela empresa (17,50). Não ouviu falar de documento assinado com a transmissão da titularidade (da casa), mas a avó, com o falecimento do marido, ficou transtornada, “e o tio fez desaparecer oitenta por cento do conteúdo do cofre” (20,40).
5 – J…. Irmã da autora. Ficheiro 20131016115924. O que lembra foi de estar uns tempos em casa da irmã e ouvir conversas. Sabe que a irmã e o marido compraram a casa, que esteve em nome da filha e, “por causa de um namorico” passou para o nome do sobrinho da testemunha, mas a casa era da irmã e do cunhado. Eles confiavam mais na filha, e na altura tinham problemas com as finanças (min. 5,30). Soube de uma conta bancária por estar a viver em casa da irmã: o filho passou a gerir a empresa e ela deu acesso à conta. Iam jantar a casa do filho e ele levava uma pilha de papéis “e ela assinava sem ler” (9,30) e, às vezes, ela recebia cartas do Banco... e ficava a pensar, e um dia disse-lhe que recebeu uma carta a dizer que tinha “meia dúzia de euros” e que lhe disseram que o filho levantou o dinheiro todo (10,20). Depois de ter assinado os papéis, o filho começou a tratá-la de maneira diferente, e começaram a ir lá menos. Quando soube do banco, fez-lhe chamadas e ele não atendeu, embora ela o quisesse confrontar, porque ficou surpreendida com a retirada do dinheiro. Ela disse-lhe que o dinheiro era dela (12,00). A irmã disse-lhe que o gerente (do Banco) lhe disse que o filho levantou o dinheiro e que acrescentou que ele “andava em más companhias e muito na noite” (14,30).

Atentos estes depoimentos e ponderando os documentos juntos aos autos – em especial o junto a fls. 88 -, cumpre fazer uma análise crítica da prova. Assim:
1 – Parece-nos muito claro que os depoimentos que abordam ou se referem à assinatura de documentos – e, direta ou implicitamente, ao documento de fls. 88 -, têm um sentido que não corresponde ao defendido pelo apelante e nem o que foi dito, nem o contexto em que o foi, permitem a conclusão que o mesmo retira. Quando as testemunhas referem que a autora assinava os papéis sem ver, assinava montes de papéis que o filho lhe entregava, podem estar a dizer – como defende o recorrente – que a autora confiava, mas não estão a dizer, nem de tal se retira, que não tinha sido enganada, que não tenha assinado aquilo que, se lesse, não assinaria. À questão da assinatura voltaremos de seguida, mas o que importa dizer é que o apelante, ao contrário do tribunal recorrido, interpretou os depoimentos, encontrou-lhe um sentido que não corresponde à vontade dos declarantes; desde logo, o contexto das afirmações mostra-se enquadrado, pela próprias testemunhas, num quadro em que o 1.ª réu terá agido, no mínimo, contra a vontade da mãe. Neste ponto, por isso, falece a razão do impugnante.
2 – Mas importa olhar o documento de fls. 88 e perguntar se o mesmo (não obstante os testemunhos antes referidos) não terá, autonomamente, qualquer valor probatório, porquanto (e se) assinado pela demandante. Na resposta à contestação (fls. 173), e a propósito, fez escrever a autora o seguinte: “Embora a assinatura constante do doc. n.º 1 junto pelos réus pareça ser a da autora, em princípio esta ignora se é ou não é”... e, mais adiante, “se a assinatura constante desse documento for da autora, esta não a terá aposto com a noção do que ele continha: após a morte do seu marido, o 1.º réu apresentou-lhe frequentemente toda a sorte de documentos para ela subscrever (...) sem qualquer explicação sobre o respetivo conteúdo” e (fls. 174) “o papel em análise apenas pode ter sido apresentado à autora para ela o subscrever (...) sem que o texto lhe tenha sido lido ou sido dada a possibilidade de o ler, pois que ele de forma alguma contém a expressão da vontade dela autora e, tivesse-lhe sido transmitido o teor do seu conteúdo, jamais o teria assinado”. E, por isso, a autora refere: “Para além da nulidade por falta de forma, suscita-se, cautelarmente, a subscrição do documento pela autora reconvinda sem conhecimento do seu conteúdo, nos termos do art. 546.º do Cód. Proc. Civil” e termina acrescentando o que – como se verá – nos parece relevante (fls. 175): “Por outro lado ainda, a “condição” de pagamento à autora constante do papel em análise, de forma alguma foi ou teria sido “cumprida””.
2.a – Não está em causa, nesta sede, a invalidade do documento, enquanto titulação de uma eventual partilha, mas, ainda assim, a invocação cautelar, pela reconvinda, do disposto no artigo 546, n.º 1 do CPC (que corresponde, com redação semelhante ao atual artigo 446, n.º 1 do novo CPC) não nos parece ter préstimo para a resolução da questão. Efetivamente, só podendo estar em causa a “subtração de documento particular assinado em branco”[2] (quando o documento é “subtraído ao signatário, e só depois preenchido” – José Lebre de Freitas/ A. Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 453) a autora/reconvinda não concretiza essa alegação, remetendo para aquele preceito como se os factos (não ditos) pudessem conclusivamente preencher a sua estatuição.
2.b – Já está em causa, isso sim – ao menos nesta primeira abordagem -, a previsão do artigo 374 do Código Civil (CC) que, no seu n.º 1, esclarece: “A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe terem sido atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras”. No fundo, se a parte “a reconhece expressamente, ou se declara que não sabe que a assinatura lhe pertence, ou se é verdadeira, não obstante ser-lhe atribuída pelo apresentante do documento, está provada a autoria” (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, pág. 856[3]). Em suma, atento o modo como (não) impugnou a sua assinatura, a demandante é autora do documento de fls. 88.
2.c – No entanto (e esta é a abordagem que de imediato se impõe), os documentos revelam factos e, por outro lado, a aceitação da autoria da autora não significa que haja sido cumprido o “acordo”, nem altera o ónus de prova desse cumprimento que, no caso, aos réus pertencia. Dito de outro modo: não há prova (nem o recorrente a especifica) que demonstre a verdade do quesitado em 25 ou em 24, pois, quanto a este, os documentos não o revelam, desde logo por não ser confundível a pessoa do 1.ª réu (herdeiro) com a pessoa jurídica sociedade (bem da herança) e, por outro lado, tendo sido levado à base instrutória o conteúdo relevante do documento – segundo a versão dos réus – é manifesto que a simples autoria do documento (de fls. 88) não demonstra a correspondência do seu conteúdo com os factos perguntados: os pontos controvertidos 22 e – consequentemente – 23 nunca poderiam assentar na mera autoria do documento, porquanto, na sequência do alegado pelos reconvintes, o que se pergunta é se os herdeiros intervieram numa partilha. Se no documento falta, pelo menos e segundo o que se tem por certo, uma herdeira, a resposta, fundada embora na autoria do documento, sempre teria de ser negativa.
3 – Pelo que se deixa dito, não obstante reconheçamos a autoria da autora no documento de fls. 88, nem sequer esse facto (autoria do documento) deve acrescentar-se aos factos provados, uma vez que se revela inócuo para os factos controvertidos aqui impugnados, atento o sentido e conteúdo destes.

Por tudo, mantemos integralmente a matéria de facto fixada na 1.ª instância.

1.3.2Se a decisão sobre a matéria de facto não está fundamentada, implicando a renovação da prova e 1.3.3Se a sentença violou o artigo 608 do CPC, pois não resolveu todas as questões, nomeadamente não analisou criticamente o documento junto aos autos pelo recorrente.
Porque dependentes ou, pelo menos, relacionadas na abordagem jurídica que suscitam, apreciamos as duas questões antes enunciadas.

Entende o recorrente (ainda no domínio do documento junto a fls. 88 e atinente às consequências e relevância deste) que o tribunal não fundamentou a decisão sobre a matéria de facto e violou o disposto no artigo 608 do CPC porque, num caso e no outro, não analisou criticamente o documento aqui em causa. Mais concretamente, refere: “No mínimo impor-se-á a renovação da prova sobre esse documento em concreto que é nem mais nem menos a confissão da autora que recebeu o dinheiro do seu filho, mesmo através de declarações de parte que oficiosamente o Tribunal pode chamar a depor. Sendo assim o Tribunal violou o art. 607º n.º 3 e 4 do CPC. Além disso, a sentença violou o art. 608º do CPC, porquanto não resolveu todas as questões que as partes submeteram à sua apreciação, já que a falta de análise critica sobre documentos juntos nos autos que o Ex.mo Senhor Juiz a quo não se pronunciou, e portanto não analisou criticamente todos os meios de prova”.

Em primeiro lugar, e salvo o respeito devido por diversa opinião, a fundamentação da decisão de facto não padece do vício que lhe é apontado, porquanto, podendo sempre ser mais extensa ou concretizadora, ela revela – como decorre da transcrição que oportunamente fizemos – a razão porque se decidiu daquela maneira, concretamente ao darem-se como não provados os factos (não o documento) que o apelante veio impugnar. Acresce que, como já se disse, os documentos não são factos e até na nossa reapreciação da prova – mesmo reconhecendo, quanto ao documento aqui em causa, a autoria da autora – se deixou vincado que do documento de fls. 88 não resulta a demonstração dos factos que se impugnaram.

Em segundo lugar, não vemos que sentido e alcance poderia ter a pretensão de renovação da prova, quando o apelante parte do pressuposto que o documento de fls. 88 é uma confissão da autora no sentido de haver recebido dinheiro do seu filho, o apelante. Ora, é claro que assim não é. Independentemente da (in)validade da alegada partilha, o que a declarante autora diz é “aceito que o meu filho B… me entregue a quantia global de 800.000 Euros (Oitocentos Mil Euros) a título de pagamento por conta da herança do seu Pai, meu marido”. Cuidamos que ninguém possa ler na declaração “aceito que me entregue” a confissão de um recebimento. A prova pretendida renovar seria, além do mais, contrária ao documento. Acrescenta o recorrente que essa prova podia ser feita por declarações de parte, chamada pelo tribunal a depor. Importa dizer que o recorrente não esteve presente no julgamento e o seu depoimento de parte foi prescindido. Mas, independentemente desse acontecimento processual, ambas as partes se pronunciaram sobre o documento de fls. 88, nos seus articulados e, repetimos, reconhecida embora a autoria do mesmo, nem daí resulta a alteração da matéria de facto. No caso, a repetição de prova que se sugere traduziria um ato inútil: afinal, mesmo que tudo (todo o conteúdo do documento) fosse confessado, no final da repetição, ainda assim nunca estaríamos perante uma partilha onde, desde logo, tenham estado todos os herdeiros.

Em terceiro lugar, parece-nos deslocada a invocação da nulidade (falta de pronúncia) prevista no artigo 608 do CPC, ao imputar-se à decisão a falta de análise crítica do documento. A pronúncia do tribunal versará sobre pretensões (em sentindo amplo, de quem demanda e de quem contradiz), apreciando as questões que elas suscitam. Não concordamos que a eventual precariedade de análise de um documento (mesmo que existisse) possa constituir uma nulidade da sentença.

1.3.4Se não ficou demonstrada a má fé da sociedade ré, quando interveio na dação em cumprimento.
A má fé da sociedade F… foi fundamento, na decisão da 1.ª instância, para, não obstante a mesma ser terceiro na relação fiduciante/fiduciário, ser declarado nula a dação em pagamento. Vem o recorrente, porém, defender que essa má fé não ficou demonstrada, alicerçando-se essencialmente na estrutura societária e no objeto da sociedade.

A propósito, a decisão recorrida deixou dito o que ora sintetizamos: “(...) em consonância com o programa contratual, o réu ficou sujeito ao dever de transferir o imóvel. Trata-se, na verdade, de uma verdadeira obrigação de contratar, sendo necessário um ato jurídico translativo - um novo negócio jurídico - para que o bem (re)integre a esfera dos fiduciantes. Facto é que, apesar de se encontrar constituído no aludido dever de transmissão, o demandado não cumpriu o pactum fiduciae, posto que no interim transferiu a propriedade para a F…, através de uma alegada dação em cumprimento (...) A ausência de uma posição dotada de sequela, impede o fiduciante de recorrer à ação de reivindicação (art. 1311 do CC), sendo certo outrossim que a posição em que fica investido o fiduciário, revestindo embora características peculiares moldadas pela dimensão interna da relação fiduciária, é, ainda assim, uma posição de proprietário, pelo que a alienação do bem fiduciário, contrariamente ao entendimento sufragado pelas demandantes, não será imediatamente enquadrável no regime de venda de coisa alheia. Daí que, conforme vem sendo defendido na doutrina e jurisprudência, uma vez alienado, pelo fiduciário infiel, o bem fiduciado, o fiduciante não pode, por via de regra, opor ao terceiro adquirente o pacto fiduciário. No entanto, a doutrina, por apelo às cláusulas gerais que habilitam a reação contra comportamentos contrários a vetores centrais do sistema, vem considerando que se houver conluio do adquirente com o fiduciário infiel ou simples má fé traduzida no conhecimento da situação fiduciária, a invalidade do ato será oponível ao adquirente (...) no caso, os elementos apontam inequivocamente no sentido de que a 2.ª ré, enquanto adquirente do imóvel, tinha um efetivo conhecimento da natureza fiduciária da titularidade do réu transmitente, dado que este era o Presidente do Conselho de Administração, tendo sido ele a outorgar, em sua representação, na escritura pública que titulou a dação em pagamento. Porque assim, resultando clara a má fé da adquirente, ter-se-á de considerar que o negócio translativo é inválido por afrontar a regra do art. 281 do CC”.
Como se adiantou, o recorrente objeta à conclusão da 1.ª instância e defende que não pode ter-se como certa a má fé da sociedade, essencialmente, em razão do seu objeto social desta (que não é o negócio imobiliário) e, em razão dele, da necessidade de intervenção da assembleia geral de acionistas. E como não interveio, conclui, nunca poderá dizer-se que a sociedade agiu de má fé.

Salvo o devido respeito, está a confundir-se a eventual responsabilidade da administração perante os acionistas, com a má fé, que sempre terá de encontrar-se na representação do ente coletivo, isto é, para se saber se a intervenção da sociedade no negócio de dação em pagamento foi contrária à boa fé, importa saber se quem interveio em nome da sociedade conhecia a obrigação de não alienar o bem, não se os acionistas (que se desconhece quantos são e que capital, além do dos intervenientes no negócio, representam) autorizaram a dação. É que o negócio efetivou-se e é o negócio efetivado que está em causa. Ora, o que resulta dos autos é que o 1.ª réu, mas igualmente a ré, sua mulher (que conjuntamente, por terem poderes para tanto, passaram procuração nos autos em nome da sociedade – fls.84), ambos administradores e o primeiro presidente do Conselho de Administração, intervieram no negócio de dação em pagamento em representação deles e da sociedade. O 1.º réu, com autorização da mulher, deu o imóvel para pagamento. Interveio também Q… (solteira, maior) por certo familiar da ré (E…), que, todos, “outorgaram como únicos administradores”. Não há qualquer dúvida que o recorrente interveio na qualidade (pressuposta) de dono do imóvel e de representante (Presidente do Conselho de Administração) da sociedade que o recebeu em pagamento.

Perante a realidade acabada de descrever, tendo a sociedade estado representada pelas indicadas pessoas, tendo estado presente o Presidente do Conselho de Administração que, no ato, atuou também como dono do imóvel, como pode dizer-se que a sociedade não conhecia a proibição de transmissão do bem e, por consequência, o prejuízo da fiduciante?

Certo que, ancorada a relevância da má fé na proibição do abuso de direito, parecerá que o beneficiário só será protegido “contra aquisições danosas ou excessivamente prejudiciais”, ficando de fora as “situações em que o terceiro adquirente, embora conhecendo ou devendo conhecer a especial natureza dos bens, não tenha qualquer intenção de prejudicar” ou quando a contraprestação não se revela “excessivamente reduzida”, mas não deve esquecer-se que “é o Direito que, ao não proteger a posição do beneficiário, não limitando o direito de aquisição de terceiros, acaba por obstruir o comércio jurídico” (A. Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, Almedina, 2014, pág. 115).

Pelo que já se disse anteriormente, consideramos paradigmático o caso presente: a intervenção do recorrente em “ambos os lados” do negócio tem que ter relevo jurídico e não pode ignorar-se. Dela se retira, claramente, em nosso entender, o comportamento abusivo de ambos (recorrente e sociedade/ré) e a inerente violação da boa fé pela sociedade. Entendemos, por isso, que também aqui o recurso não merece provimento.

1.3.5 - Se, sendo a conta bancária também titulada pelo recorrente uma conta conjunta, não deveriam os 1.ªs réus terem sido condenados à restituição.
O recorrente alicerça a sua pretensão recursória, nesta parte, na natureza conjunta da conta e acrescenta, em defesa do seu entendimento, o que vem se refletido num acórdão do STJ, dizendo: “Entendeu o STJ, no seu Ac. de 27 de janeiro de 1998, Processo n.º 658, que, “no caso de conta bancária em regime de solidariedade ativa, a atribuição do respectivo crédito aos seus titulares em partes iguais, por força da presunção legalmente estabelecida, parte da ideia de o depósito ter sido feito com dinheiro, por igual, desses titulares (...) Essa presunção deve ter-se como ilidida no caso de se provar que o dinheiro do depósito provém da propriedade exclusiva de um dos titulares e de se não provar o motivo da abertura da conta em regime de solidariedade ativa” – realce adicionado -, o que não se provou!”.

Como o recorrente vinca e sublinha a presunção de igualdade de crédito dos titulares da conta cede perante a prova de que o dinheiro provém da propriedade exclusiva de um dos titulares e a não prova do motivo da abertura da conta. Conclui, no entanto, tal não se provou, mas não é assim. Não se provou a razão de o 1.º réu ter passado a fazer parte da conta, é certo; provou-se que todo o dinheiro depositado o foi pela autora e seu falecido marido (relativamente a quem não ocorreu partilha). Dito de outro modo, ilidida a presunção, falece o argumento que sustentava o recurso.

1.3.6 - Se a autora atua em abuso de direito, ao exigir, catorze anos depois, a quantia que alega ter mutuado ao recorrente.
De tudo quanto de foi dizendo, parece-nos claro que o recorrente não pode beneficiar dos efeitos resultantes de um eventual abuso de direito da autora. O recorrente, conforme refere na parte final das alegações, considera que “ao serem condenados a restituir o montante de 222 mil Euros, 14 anos depois, a autora atua com claro abuso de direito” (pois) na “versão da autora foi efetuado empréstimo com preterição de formalidades adequadas ou seja, dado o montante em causa deveria ter sido efetuado mútuo por escritura notarial e, portanto, invocar tal circunstância, 14 anos depois, é atuar excedendo os limites da boa fé”.

No entendimento do apelante, pedir judicialmente a devolução de uma quantia mutuada sem obediência ao formalismo legal e catorze anos depois do mútuo excede os limites da boa fé. Ora, com todo o respeito, não vemos minimamente o porquê da boa fé ser contrária à exigência de pagamento de uma dívida. Não entendemos, aliás, se o recorrente defende que a dívida é inexigível, porque pedi-la excede manifestamente a boa fé. Será ocioso tecer comentários moralistas, que não é essa a finalidade da aplicação do Direito, mas sempre se diga que é inerente à boa fé, porque ao próprio Direito, dar a cada qual o que lhe é devido, princípio enformador da Justiça e igualmente da paz social.

Temos por claro que não ocorre qualquer abuso de direito. O recurso improcede e as custas são devidas pelo apelante (sem prejuízo do apoio judiciário concedido – fls. 613).

3 – Decisão:
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo apelante.

Porto, 29.09.2014
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
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[1] A fls. 237 e ss. encontra-se a certidão da decisão que decretou a insolvência, confirmada na Relação e com recurso que o STJ não apreciou.
[2] Nos termos dos preceitos citados, a ilisão da autenticidade ou força probatória de documento abrange (por tudo, mas apenas) a arguição (1) da falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico; (2) a falsidade do documento; (3) a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler, sem a intervenção notarial e, por fim, (4) a subtração de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário.
[3] Refere-se, no mesmo local, que “o regime processual aplicável à impugnação da genuinidade de documento particular consta dos artigos 544.º e ss. do CPC”. Parece-nos claro o erro (o Comentário acaba de chegar ao mercado) pois é feita referencia ao preceito do CPC revogado. Talvez infeliz lapso de revisão, porquanto, de modo correto e logo de seguida, também se refere que “o meio de prova adequado ao estabelecimento da autoria é a prova pericial (artigo 482.ºdo CPC)” indicando-se, por isso, o normativo vigente.