Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3824/13.5TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO
PESSOA COLECTIVA
Nº do Documento: RP201406303824/13.5TBSTS.P1
Data do Acordão: 06/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O procedimento especial de diferimento da desocupação de locado, previsto no artigo 15.º- N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção resultante da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, não se aplica aos casos em que o senhorio celebra um contrato de arrendamento para habitação com uma sociedade comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Tribunal da Relação do Porto – 5.ª secção.
Recurso de Apelação.
Processo n.º 3824/13.5TBSTS do Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso – 2.º Juízo Cível.
*
Juiz relator – Alberto Augusto Vicente Ruço.
1.º Juiz-adjunto……Joaquim Manuel de Almeida Correia Pinto.
2.º Juiz-adjunto…….Ana Paula Pereira de Amorim.
*
Sumário:
O procedimento especial de diferimento da desocupação de locado, previsto no artigo 15.º- N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção resultante da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, não se aplica aos casos em que o senhorio celebra um contrato de arrendamento para habitação com uma sociedade comercial.
*
Recorrente…………………..B…, Lda., com sede em Rua …, n.º …, …, ..º andar, apartamento …, ….-… Trofa.
Recorrida…………………….C…, residente na …, n.º …, ..º esquerdo, ….-… ….
*
I. Relatório.
a) O presente recurso insere-se num procedimento especial de diferimento da desocupação de locado previsto no artigo 15.º- N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção resultante da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto.
A recorrente requereu o diferimento da desocupação do prédio que havia arrendado para habitação, mas o tribunal julgou o pedido improcedente com fundamento no facto da arrendatária e recorrente ser uma sociedade, pelo que este procedimento não lhe é aplicável.
b) É desta decisão que a sociedade B… recorre, tendo, no final das alegações, formulado as seguintes conclusões:
«1. A interpretação subjacente à aplicação, pela decisão recorrida, da norma do n.º 1 do artigo 15.º-N, da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto, ao declarar que tal norma não se aplica pessoas colectivas, viola o disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil, porquanto tal interpretação, que distingue na previsão da norma entre pessoas físicas e pessoas fictas, não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa, pelo que tal decisão deve ser revogada.
2. O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (…)
3. A Recorrente é uma sociedade comercial unipessoal; o locado é habitado pelo seu único sócio e gerente e respectivo agregado familiar
4. Só as pessoas físicas, que não as pessoas fictas, podem ter habitação.
5. A realização do fim para o qual o contrato foi celebrado, supunha necessariamente que o mesmo o se destinava a que no locado vivessem pessoas físicas que do locado fizessem a sua habitação, pessoas essas que são as pessoas envolvidas no despejo do locado, na acepção usada pelo n.º 2 do artigo 15.º-N da Lei n.º 31/2012
6. A decisão recorrida violou, pois, o disposto no artigo 15.º-N, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 31/2012, devendo ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com vista à produção das provas oferecidas, conhecendo-se a final do pedido formulado.
7. O diferimento da desocupação visa responder, até onde o sacrifício do locador se entendeu proporcional, às razões sociais imperiosas de todas essas pessoas envolvidas, assegurando-se também por essa forma, embora de forma transitória, o direito à habitação como forma de promover a própria dignidade da pessoa humana.
8. A possibilidade de todas as pessoas disporem de uma habitação condigna constitui um objectivo constitucional que prolonga e reforça o princípio da dignidade da pessoa humana.
9. A interpretação de acordo com a qual, num arrendamento para habitação celebrado por uma sociedade comercial unipessoal, com vista à habitação do único sócio e gerente de tal sociedade e seu agregado familiar, esse sócio e as pessoas desse agregado não podem beneficiar do diferimento da desocupação ao abrigo do disposto no artigo 15.º-N, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 31/2012, constitui interpretação materialmente inconstitucional de tais normas, por violação do disposto nos artigos 9.º, alínea d) e artigo 65.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesas, inconstitucionalidade que expressamente se invoca.
10. Deve também por isso a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com vista à produção das provas oferecidas, conhecendo-se a final do pedido formulado. JUSTIÇA».
c) A recorrida não contra-alegou.
II. Objecto do recurso.
A questão que se coloca no recurso consiste em saber se uma sociedade unipessoal, titular, como inquilina, de um arrendamento para habitação, pode requerer e obter o deferimento da desocupação do local arrendado para habitação, nos termos previstos no n.º 1, do artigo 15.º-N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção resultante da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto
III. Fundamentação.
a) Matéria de facto provada.
1. No dia 25 de Março de 2013 foi celebrado um acordo entre C… e «B…, Lda.», que as partes denominaram de «contrato de arrendamento para habitação em período limitado (5 anos)».
2. Na cláusula primeira do aludido acordo, consta «O primeiro outorgante na qualidade de senhorio e proprietário, dá de arrendamento ao segundo, que entre si estabelecem o presente contrato de arrendamento para habitação de duração limitada, que tem por objecto a fracção autónoma designada pela letra «AG» de que o primeiro outorgante é legitimo dono e possuidor. Correspondente ao apartamento tipo T3 na Rua …, n.º …, …, ..º andar, ap. … - …, concelho de Trofa (...)».
3. Na cláusula segunda do aludido acordo, consta «O prazo de duração do arrendamento é de 5 (cinco) anos, com início a 01 de Abril de 2013 e com termo em 31 de Março de 2018».
4. Na cláusula terceira do aludido acordo, consta «A renda anual é de €4.200,00 (quatro mil e duzentos euros), a pagar mensalmente em duodécimos (...)».
5. Na cláusula quinta do aludido acordo, consta «O local arrendado destina-se exclusivamente a habitação do segundo outorgante (...)».
6. A requerente não pagou, pelo menos, as rendas de Junho a Setembro de 2013.
b) Apreciação da questão objecto do recurso.
1 - Recapitulando, a questão que se coloca consiste em saber se uma sociedade titular de um contrato de arrendamento para habitação, como inquilina, pode obter o deferimento da desocupação do local, nos termos previstos no n.º 1, do artigo 15.º-N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
A resposta é negativa pelas seguintes razões:
Primeiro – O finalidade do incidente, como resulta da letra do referido artigo 15.º-N, consiste em proteger o arrendatário que se encontra em situação digna de tutela e que sendo despejado ficaria sem poder dispor imediatamente de outra habitação.
Como resulta do disposto no n.º 2 [1] do referido artigo 15.º - N, tais situações assumem maior relevância social nos casos em que viviam no local arrendado várias pessoas; quando o arrendatário é idoso ou se encontra em condições de saúde precárias.
Ora, bem se vê que esta norma está pensada apenas para as pessoas físicas, de carne e osso, não para sociedades ou outro tipo de pessoa colectiva.
Por conseguinte, falece a argumentação da recorrente quando diz que a interpretação da norma realizada pelo tribunal recorrido viola o disposto no artigo 9.º, n.º 2 do Código Civil, porquanto tal interpretação, que distingue na previsão da norma entre pessoas físicas e pessoas fictas, não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa.
Com efeito, essa distinção é feita na norma, verificando-se que se refere apenas a pessoas singulares.
Por conseguinte, se esta norma está talhada e pressupõe como destinatários apenas as pessoas singulares, então é certo que não se aplica às pessoas colectivas.
Segundo – As pessoas colectivas não residem ou habitam em prédios.
Com efeito, embora a lei não defina o conceito de «habitação» entende-se, como diz Pinto Furtado, que «Habitar, residir, morar significa pois, na acepção mais genuína um modo de vida – a vida íntima ou familiar (não comunitária) que decorre dentro de casa. Numa expressão sinónima, a vida doméstica» [2].
Esta ideia também resulta com clareza do texto do artigo 1093.º do Código Civil, disposição onde se indicam quem são as pessoas que podem residir no local arrendado além do arrendatário.
Por conseguinte, respeitando o incidente do diferimento da desocupação de imóveis, como respeita, a imóveis arrendados para habitação, como as pessoas colectivas não habitam, por natureza, em imóveis, as disposições do artigo 15.º-N, Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, não lhe são aplicáveis.
Terceiro – A liberdade contratual, reconhecida pela lei no artigo 405.º do Código Civil, permite, sem dúvida, que uma pessoa colectiva arrende um imóvel para habitação, por exemplo, com o fim de instalar nele um seu empregado ou gerente, desde que essa finalidade fique a constar do contrato (não sendo esse o caso dos presentes autos, como se pode ver pelo teor do contrato), pois, de outra forma, o contrato terá por objecto um fim fisicamente impossível, dado que, como se disse, as pessoas colectivas não podem por natureza habitar em imóveis, o que seria, em princípio, salvo alegação e prova de outros factos, causa de nulidade do contrato – n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil.
Porém, se a pessoa colectiva contratasse para instalar no locado um seu empregado ou gerente, o titular do contrato sempre seria a pessoa colectiva e apenas esta, nunca o empregado ou o gerente.
Com efeito, seria a pessoa colectiva que surgiria, e só ela, como parte contratual; seria ela, e apenas ela, que assumiria a obrigação de pagar as rendas e seria esta, e apenas esta, que o senhorio teria de demandar para obter a entrega do local arrendado ou o pagamento das rendas em dívida, se fosse esse o caso.
Por conseguinte, num caso destes, como o senhorio nunca poderia demandar o empregado ou o gerente, pois não eram partes contratuais, nem poderia exigir do empregado ou do gerente o que quer que fosse, então o sinalagma contratual também não poderá exigir ao senhorio que fique sujeito às obrigações resultantes do deferimento da desocupação de imóvel previsto no mencionado artigo 15.º-N, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro.
E se alguém tinha um compromisso no sentido de assegurar habitação ao empregado ou ao gerente não era o senhorio, mas a pessoa colectiva.
2 – Face à conclusão a que se chegou, cumpre confirmar a decisão recorrida.
IV. Decisão.
Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes.
*
Porto, 30 de Junho de 2014.
Alberto Ruço.
Correia Pinto.
Ana Paula Amorim.
_________________
[1] É esta a redacção: «2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %».
[2] Manual de Arrendamento Urbano, vol. I, 4.ª Edição actualizada. Almedina, 2007, pág. 284.