Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1252/21.8T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
EXERCÍCIO DO DIREITO DE PREFERÊNCIA
COMUNICAÇÃO PARA PREFERÊNCIA
TRESPASSE
Nº do Documento: RP202302271252/21.8T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O exercício do direito de preferência, face ao disposto no art. 416º CC, determina que o obrigado à preferência, quando pretenda realizar o contrato à mesma submetido, deve transmitir ao titular do correspondente direito: o seu projeto negocial e as exatas cláusulas contratuais apresentadas a terceiro ou dele recebidas, assim como a identidade deste, todos os elementos que se mostrem significativos para a formação da vontade de exercer ou não a preferência.
II - O preferente tem o ónus de se expressar com clareza sobre o sentido da sua vontade. Associado a tal aspeto está a necessidade de definir com clareza a situação jurídica objeto de exercício do direito potestativo. As dúvidas sobre o sentido da declaração funcionarão contra o titular do direito, levando a concluir que o direito não foi exercido.
III - Responder aceitar, mas subordinando a celebração do contrato à verificação de um conjunto de condições, corresponde a rejeição e não expressa a vontade de exercer a preferência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Preferência-Senhorio-1252/21.8T8PVZ.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Na presente ação declarativa que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTOR: AA, residente na Rua ..., 2º, Póvoa de Varzim; e
- RÉU: A..., Lda, com sede na Rua ..., r/c, Póvoa de Varzim,
veio o autor formular o seguinte pedido:
a) ser declarado celebrado o contrato de trespasse do estabelecimento comercial da ré, já identificado nos autos, a favor do autor; e consequentemente,
b) ser a ré condenada na entrega ao autor do estabelecimento comercial objeto do trespasse, com todos os bens e direitos que o integram; e ainda,
c) ser o autor notificado para proceder à consignação em depósito da quantia de 25.000,00€, através de depósito autónomo, correspondente ao preço do trepasse, no prazo que for fixado pelo tribunal, a contar do trânsito em julgado da decisão que vier a julgar procedente a presente ação.
Alegou para o efeito e em síntese, que o autor é usufrutuário da fração autónoma designada pela letra “A”, destinada ao comércio, sita no rés-do-chão do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ....
Por contrato celebrado em 07 de Setembro de 1977, o autor deu de arrendamento à ré, que assim o tomou, o rés-do-chão do prédio em referência, à data ainda não constituído sob o regime da propriedade horizontal – e que atualmente corresponde à referida fração “A” do aludido prédio.
O arrendamento destinou-se ao exercício da atividade comercial da ré que, compreende o comércio de peças e acessórios para veículos automóveis e motorizados e que ainda se mantém em vigor.
Por carta datada de 01 de Julho de 2021, a ré comunicou ao autor que pretendia trespassar o seu estabelecimento comercial, instalado na fração autónoma objeto do contrato de arrendamento, a BB, pelo preço de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), a ser pago no ato da celebração do contrato de trespasse, que previa realizar no prazo máximo de um mês, notificando o autor para, querendo, exercer o seu direito de preferência relativamente a tal negócio, no prazo de oito dias, sob pena de caducidade.
Nessa sequência, respondeu o autor à ré, por carta registada com aviso de receção, datada de 07 de Julho de 2021, comunicando que pretendia exercer o seu direito de preferência no referido trespasse, nas condições constantes da missiva recebida, solicitando que a ré o informasse da data, hora e local para a celebração do respetivo contrato de trespasse.
Por carta datada de 13 de Julho de 2021, a ré comunicou ao autor que já não pretendia trespassar o estabelecimento comercial em causa.
Considera que nos termos do nº 4 do artigo 1112º do Código Civil o senhorio goza do direito de preferência no trespasse de estabelecimento comercial por venda ou dação em cumprimento. A notificação para preferência efetuada pela ré envolve uma verdadeira proposta contratual que, uma vez aceite, como o foi pelo autor, torna-se vinculativa para a ré.
Conclui que a ré não pode dar o dito por não dito, alegando que já não pretende vender, ou, no caso dos autos, trespassar o estabelecimento comercial, na medida em que a sua proposta se tornou irrevogável por aplicação do art. 230º/1 CC, encontrando-se a ré numa posição de incumprimento, sendo lícito ao autor, exigir que, por decisão judicial, seja reconhecido como celebrado o contrato de trespasse sobre o estabelecimento comercial, bem como, seja a ré condenada na entrega ao autor do estabelecimento comercial objeto de trespasse, com os bens e demais direitos que o integram.
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Citada a Ré contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção suscitou a ilegitimidade ativa do Autor porquanto a qualidade de usufrutuário não lhe confere direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial.
Suscitou, ainda, a ineptidão da petição, com fundamento na impossibilidade do pedido.
Ao autor não lhe assiste o direito de preferência, por ser um mero usufrutuário da fração, situação que era desconhecida da ré, comunicando a ré a preferência no pressuposto de ser o proprietário.
Mais refere que perante a resposta do autor à carta enviada pela ré, verifica-se que na comunicação para o exercício da preferência a ré não refere a listagem do material existente no estabelecimento comercial e a existência ou inexistência de trabalhadores afetos, conforme refere o autor na carta envida à ré e datada de 07/07/2021, condição que o autor referiu que seria imprescindível para a concretização do trespasse, ou seja, a inexistissem de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial.
Não sendo a comunicação efetuada de forma conveniente responde o faltoso pelos danos que resultem da impossibilidade de fiscalização pelo preferente do negócio de trespasse, nos termos dos arts. 798.º e ss. CC, in casu, não ocorreu trespasse e o autor não teve qualquer prejuízo, logo está vedado o direito de peticionar os pedidos formulados na petição.
Invocou, ainda, o abuso de direito, porque o autor na carta enviada à ré, refere que na comunicação enviada da intenção de celebrar contrato de trespasse, não é indicado a listagem do material existente no estabelecimento comercial e a existência ou inexistência de trabalhadores afetos, condição seria essencial para a concretização do negócio.
Há uma contraproposta efetuada pelo autor, mas a comunicação a que a arrendatária está vinculada de comunicação de cedência do estabelecimento comercial, essa comunicação não inaugura um diálogo negocial com possibilidade de troca de propostas e contrapropostas, mas contém os termos concretos e inegociáveis de um negócio relativamente ao qual o preferente apenas pode aceitar ou recusar, não sendo, assim, um convite a contratar; “o notificado não é, no bom rigor das coisas, chamado a preferir: é sim chamado a contratar, se quiser” (Antunes Varela, RLJ, n.º3777, p.363).
Considera que ainda que o usufrutuário tivesse o direito a preferir, não tinha o direito de impor condicionantes para a efetiva concretização do negócio, tinha que indicar se aceitava ou não aceitava as condições do negócio comunicadas, ficar dependente a concretização do negócio com a inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial, está a renunciar ao direito de preferência e vir intentar a presente ação está a "venire contra factum proprium".
Mais invoca a caducidade do direito porque nos termos do disposto no artigo 1410º do C. C, o autor teria que depositar o preço nos 15 dias seguintes à propositura da ação. Nos autos, não consta qualquer depósito autónomo do depósito do preço.
Por impugnação, alega que o autor respondeu à carta que lhe foi dirigida, mas não aceita que comunicou que “pretendia exercer o seu direito de preferência”, pois, o que consta na missiva é que pretendia exercer o direito de preferência caso o trespasse não implicasse a existência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial.
A ré na convicção que o autor seria o proprietário da fração de que é arrendatária, por carta datada de 01/07/2021, comunica aquela nos termos do artigo 416 n.º 2, 424 n.º 1 e 1059º n.º 2 todos do C. Civil a sua intenção de traspassar o estabelecimento comercial, indica-lhe o nome do potencial trespassário, preço, condições do negócio, data da realização do contrato e estipula ainda o prazo de na eventualidade de preferir ao negócio comunicar tal intenção sob pena de caducidade do seu direito.
O autor, responde à carta da ré, carta datada de 07/07/22021, não referindo que não é o proprietário da fração, e efetua uma contraproposta, solicitando a listagem do imobilizado existente no estabelecimento comercial e indicando que pretende preferir na eventualidade da inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial, bem como, a realização do trespasse livre de ónus, encargos, dividas ou responsabilidades contratuais.
Posteriormente, por carta datada de 13/07/2021, a ré comunica ao autor que no momento já não pretende trespassar o estabelecimento comercial.
Quando existe o direito legal de preferência, o que não acontece no caso em apreço, o primeiro momento do direito legal de preferência, ocorre quando o obrigado à preferência decide realizar o negócio, pois o dever de comunicação para preferência resulta da vontade séria do obrigado à preferência a contratar (cf. artigos 416.º e 417.º, do Código Civil).
A comunicação supõe a sua resolução de vontade expressa num projeto concreto (não assentando numa possibilidade em formação e ainda em forma de hipótese), constituído de todos os elementos estruturais e que deverá ser transmitido ao preferente para que possa emitir num prazo curto a sua decisão de preferir ou não.
A comunicação não inaugura um diálogo negocial com possibilidade de troca de propostas e contrapropostas, mas contém os termos concretos e inegociáveis de um negócio relativamente ao qual o preferente apenas pode aceitar ou recusar, não sendo, assim, um convite a contratar. “o notificado não é, no bom rigor das coisas, chamado a preferir: é sim chamado a contratar, se quiser” (Antunes Varela, RLJ, n.º3777, p.363).
Ainda que o autor tivesse o direito a preferir, situação que só por mera hipótese de direito se admite, estava-lhe vedado formular uma contraproposta, como o fez alegando que “o exercício do direito de preferência fica condicionado à inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial em causa bem como à realização do trespasse livre de quaisquer
Termina por pedir a condenação do autor como litigante de má-fé, em multa e indemnização de valor não inferior a 1.500,00 €.
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A convite do tribunal veio o Autor pronunciar-se sobre a matéria das exceções, no sentido de serem julgadas improcedentes.
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Realizou-se audiência prévia e concluída a tentativa de acordo, proferiu-se em ata despacho que julgou improcedentes as exceções e apreciou do mérito da causa, proferindo sentença, com a decisão que se transcreve:
“Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e em consequência declaro o trespasse do estabelecimento comercial da Ré a favor do Autor e consequentemente a sua entrega, com todos os bens e direitos que o integram, condicionada ao pagamento do preço de 25.000,00 €, no prazo de 30 dias, contados do transito em julgado da presente decisão.
Absolvo o Autor do pedido de condenação como litigante de má fé.
Condeno a Réu no pagamento das custas da ação.
Notifique e Registe”.
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A Ré A..., Lda veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
1º O Recorrido intentou a presente ação declarativa contra a Recorrente, pedindo que seja declarado celebrado o contrato de trespasse do estabelecimento comercial da recorrente a favor do recorrido e consequentemente seja a recorrente condenada na entrega ao recorrido o referido estabelecimento comercial, com todos os bens e direitos que o integram e a sua notificação para proceder à consignação em depósito da quantia de 25.000,00 €, através de depósito autónomo, correspondente ao preço do trespasse.
2º O recorrido alegou que na qualidade de usufrutuário da fração autónoma designada pela letra “A”, sita na Rua ..., Póvoa de Varzim, deu a mesma de arrendamento á recorrente, e notificado para o exercício do direito de preferência no trespasse, que respondeu exercendo tal direito, pelo que não podia a recorrente desistir do negócio.
3º O Tribunal “a quo” proferiu o despacho saneador sentença em que declarou o trespasse do estabelecimento comercial da recorrente a favor do recorrido e consequentemente a sua entrega, com todos os bens e direitos que o integram condicionada ao pagamento do preço de 25.000,00 €, no prazo de 30 dias, contados do trânsito em julgado da presente decisão.
4º O recorrido não tem legitimidade para propor a presente ação, o atuação do recorrido é em manifesto abuso por pretender exercer o direito de preferência no trespasse quando não comunicou à recorrente se pretendia exercer o direito de preferência aquando da transferência da propriedade da fração, e ainda está caducado o exercício do direito de preferência do recorrido nos termos do previsto no artigo 1410º do C. Civil e o recorrido renunciou ao exercício do direito de preferência ao impor condicionalismo para a concretização do trespasse.
5º Quando estamos perante um trepasse de estabelecimento comercial o interessado no trespasse terá de informar o senhorio por escrito, da transmissão da posição de arrendatário.
6º O senhorio tem o direito de preferência, mas se o proprietário não for titular do direito de arrendamento, ou seja, se não for o senhorio, não tem direito de preferência (por exemplo, no caso de arrendamento celebrado por usufrutuário, como é o caso dos presentes autos).
7º O usufrutuário da fração, não tem direito de preferência no caso de existir trespasse do estabelecimento comercial, tendo em conta as características do direito de usufruto consignadas, sobretudo, nos arts. 1439º e 1446º do CC, no caso sub judice não tinha o recorrido legitimidade substantiva para enviar a carta mencionado no ponto 5 dos factos provados do despacho saneador sentença desacompanhado do proprietário de raiz.
8º In casu, estando registado o usufruto a favor de AA e mulher CC, casados no regime da comunhão geral de bens, pela Ap n.º ... de 31/08/2018, a presente ação teria que ser intentada por ambos e não apenas pelo recorrido, pelo que o tribunal “a quo” deveria oficiosamente ordenar o recorrido requerer a intervenção principal provocada de cônjuge-CC, nos termos dos arts. 316º e ss, do CPC e do proprietário da raiz da fração objeto dos autos.
9º Em 31/08/2015, através da AP n.º 26546 de 31/08/2015, o recorrido transmite a propriedade da fração de que era proprietário, e onde a recorrente era arrendatária, para DD, reservando para si o usufruto.
10º A recorrente desconhecia que a propriedade da fração havia sido transferida, porquanto não lhe foi comunicado de tal facto.
11º No caso sub judice, não tendo o recorrido comunicado a transferência da titularidade do proprietário da fração, tendo o recorrente comunicado a ele a intenção do trespasse do estabelecimento, sem ter comunicado ao proprietário de raiz, por desconhecer que havia havido mudanças na titularidade da propriedade do locado e enviando o usufrutuário carta, sem nessa comunicação especificar a sua qualidade em relação à titularidade sobre a fração, criando a confiança na recorrente que era o proprietário da fração, tendo a transferência de titularidade ocorrido em 31/08/2015, estando a recorrente há mais de 7 anos na ignorância de tal facto, vir o recorrido intentar a presente ação, atua em manifesto abuso de direito.
12º O incumprimento definitivo só ocorre se, em consequência da mora, houver perda de interesse por parte do credor na realização da prestação ou se, tendo interpelado admonitoriamente o devedor para, num prazo razoável, cumprir, este não o fizer: é o que resulta do artigo 808º, nº 1, do Código Civil (João Baptista Machado, Obra Dispersa, Vol. I, páginas 163 a 167).
13º O recorrido após o recebimento da carta enviada pela recorrente e data de 13/07/2021 a comunicar que já não pretendia trespassar o estabelecimento comercial, nada mais fez senão interpor a presente ação, ou seja, não foi a recorrente interpelada para, num prazo razoável, cumprir, com a cominação de, não o fazendo, se considerar a obrigação como definitivamente incumprida, não há qualquer interpelação admonitória para esta o trespassante cumprir, dentro de um prazo razoável, previamente fixado.
14º O que se constata é uma situação de mora, por parte da Recorrente, e não de incumprimento definitivo.
15º Caso se considerasse que estávamos perante um incumprimento definitivo dispõe o artigo 830º n.º 5 do C. Civil "no caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a exceção de não cumprimento, a ação improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal."
16º In Casu, no pedido o recorrido requer o depósito dos €25 000,00 seja fixado pelo Tribunal prazo para proceder ao depósito a contar do trânsito em julgado da decisão que vier a julgar procedente a ação.
17º Nos termos do previsto no artigo 1410.º 1 do CC, o A. deve depositar o preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da ação e, no caso da notificação judicial avulsa, "feita a declaração, se nos 20 dias seguintes não for celebrado o contrato, deve o preferente requerer, nos 10 dias subsequentes, que se designe dia e hora para a parte contrária receber o preço por termo no processo...."
18º Assim, face ao disposto no artigo 830º n.º 5 e 1410º do C. Civil, deveria o recorrido requerer ao Tribunal que lhe concedesse prazo para efetuar o depósito nos 15 dias seguintes à propositura da ação e não após o trânsito em julgado da decisão, não o tendo feito caducou o direito do prosseguimento dos autos, por inexistência de consignação em depósito do preço do trespasse.
19º Neste sentido é o Acórdão do STJ de 21/02/2006, nos autos do Processo n.º 05B3984 do relator Custódio Montes, disponível em www.dgsi.pt.
20º O recorrido após receber a carta da recorrente, datada de 1 de Julho de 2021, a comunicar que pretendia trespassar o seu estabelecimento comercial, pelo preço de 25.000,00 €, para aquele querendo, exercer o seu direito de preferência relativamente a tal negócio, no prazo de oito dias o recorrido responde que pretendia exercer o seu direito de preferência no referido trespasse, nas condições constantes da missiva recebida, solicitando que a recorrente informasse da data, hora e local para a celebração do respetivo contrato de trespasse, condicionado à inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus, encargos, dividas e responsabilidades contratuais.
21º Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 416º do CC, aplicável no caso por remissão dos artigos 424º n.º 1, 1059º n.º 2, o obrigado a comunicar o direito à preferência, querendo vender a coisa que é objeto do pacto, deve comunicar ao titular do direito o projeto da venda e as cláusulas do respetivo contrato, o que aconteceu no presente caso.
22º A notificação, não se traduz numa proposta de contrato dirigida ao preferente, mas apenas e tão só a informação da existência de um projeto de contrato que tem com um terceiro dando, desse modo, a oportunidade de preferir no projetado negócio.
23º A carta enviada pela recorrente ao recorrido, datada de 01/07/2021, não é uma proposta de contrato dirigida ao preferente, mas apenas uma informação que lhe foi dirigida de um projeto de contrato que tem com um terceiro.
24º Nos termos do artigo 236º do CC outro significado não se possa encontrar em tal missiva enviada pela recorrente e datada de 01/07/2021 que não um convite a preferir, um convite a contratar, ficando o preferente com a possibilidade de aceitar a proposta.
25º E, ainda que aceite a proposta, a recorrente podia desistir do negócio, este também é o entendimento do Acórdão do STJ, datado de 8 de Janeiro de 2009 e relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Rocha, que defende o seguinte: “Ademais se a preferência é legal e não contratual, resultando por isso da lei e não de acordo anterior – pacto de preferência – é perfeitamente admissível e aceitável que quem está obrigado a dar preferência, aceitando vender o terreno a terceiro, tenha razões ponderosas para não querer vender o terreno ao preferente. Em tal caso, ele comunica o projeto de negócio ao preferente, dando cumprimento ao disposto no artigo 416º do CC e, depois, se este declarar querer preferir desiste do negócio, já que não lhe interessa vender a quem tem a qualidade de preferente legal”, disponível em www.dgsi.pt.
26º No caso concreto, não se aplica os artigos 228º a 230º CC, a fase de pré negociação não inviabiliza a desistência de qualquer dos contraentes pelo que até à fase decisória qualquer um deles pode desistir do negócio, porque as partes não chegaram à parte decisória por ter havido desistência da recorrente, assim não pode existir execução específica porque não houve qualquer declaração negocial em falta que possa ser preenchida, nos termos do artigo 830º do CC, neste sentido também é o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, nos autos do Processo n.º 1244/09.5TBTNV.C1 de 05-04-2011, do relator Jacinto Meca, disponível em www.dgsi.pt.
27º A recorrente na convicção que o recorrido era o proprietário da fração da qual é arrendatária, por carta datada de 01/07/2021, comunica-lhe nos termos do artigo 416 n.º 2, 424 n.º 1 e 1059º n.º 2 todos do C. Civil a sua intenção de trespassar o estabelecimento comercial, indicando - lhe o nome do potencial trespassário, preço, condições do negócio, data da realização do contrato e estipula ainda o prazo de na eventualidade de preferir ao negócio comunicar tal intenção sob pena de caducidade do seu direito.
28º O recorrido, responde à carta, omitindo que não era o proprietário da fração, e efetua uma contraproposta, solicitando a listagem do imobilizado existente no estabelecimento comercial e indicando que pretende preferir na eventualidade da inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial, bem como, a realização do trespasse livre de ónus, encargos, dividas ou responsabilidades contratuais.
29º Quando existe o direito legal de preferência, (o que não acontece no caso em apreço), e o obrigado à preferência decidir realizar o negócio, tem o dever de comunicação para preferência (cf. artigos 416.º e 417.º, do Código Civil).
30º A comunicação não inaugura um diálogo negocial com possibilidade de troca de propostas e contrapropostas, mas contém os termos concretos e inegociáveis de um negócio relativamente ao qual o preferente apenas pode aceitar ou recusar, não sendo, assim, um convite a contratar; “o notificado não é, no bom rigor das coisas, chamado a preferir: é sim chamado a contratar, se quiser” (Antunes Varela, RLJ, n.º3777, p.363).
31º No caso sub judice, estava vedado ao recorrido apresentar contraposta alegando que estava interessado no trespasse, solicitando a listagem do imobilizado existente no estabelecimento comercial e impondo condições de que pretende preferir na eventualidade da inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial, bem como, a realização do trespasse livre de ónus, encargos, dividas ou responsabilidades contratuais.
32º O recorrido ao impor condições está a renunciar ao exercício do direito de preferência, conforme é o Acórdão do STJ de 09/03/2021, nos autos do Processo n.º 3218/19.9T8LSB.L1.S1, sendo relator o Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, disponível em www.dgsi.pt..
Termina por pedir que seja reapreciada a matéria de facto e de direito, com a consequente revogação do despacho proferido, substituindo-se por acórdão que absolva a recorrente do pedido formulado na petição e caso assim, não se entenda, se ordene ao tribunal “a quo” o prosseguimento dos autos, convidando-se o autor/recorrido a suprir a falta de legitimidade ativa de apenas ele configurar como demandante e requerer a intervenção principal provocada do proprietário da raiz da fração e da sua mulher, titular juntamente consigo do usufruto sobre o locado, para intervirem querendo nos autos e prosseguir a ação os ulteriores termos processuais.
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O Autor veio apresentar resposta ao recurso, onde conclui no sentido de não merecer censura a sentença proferida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- legitimidade substantiva do autor e processual;
- da atuação com abuso de direito pelo facto do autor ter omitido a sua qualidade de usufrutuário da fração;
- da verificação de incumprimento definitivo e da necessidade de interpelação admonitória;
- da caducidade da ação, por falta de depósito do preço;
- da inexistência de proposta contratual e recusa da proposta pelo titular do direito à preferência.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1. O Autor é usufrutuário da fração autónoma designada pela letra “A”, destinada ao comércio, sita no rés-do-chão do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ....
2. Por contrato celebrado em 7 de Setembro de 1977, o Autor deu de arrendamento à Ré, que assim o tomou, o rés-do-chão do referido prédio identificado - à data ainda não constituído sob o regime da propriedade horizontal – e que atualmente corresponde à referida fração “A”.
3. O arrendamento destinou-se ao exercício da atividade comercial da Ré que, compreende o comércio de peças e acessórios para veículos automóveis e motorizados e que ainda se mantém em vigor.
4. Por carta datada de 1 de Julho de 2021, a Ré comunicou ao Autor que pretendia trespassar o seu estabelecimento comercial, instalado na referida fração autónoma, a BB, pelo preço de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), a ser pago no ato da celebração do contrato de trespasse, que previa realizar no prazo máximo de um mês, notificando o Autor para, querendo, exercer o seu direito de preferência relativamente a tal negócio, no prazo de oito dias, sob pena de caducidade, nos termos que melhor constam o documento junto a fls. 11 verso, cujo teor se reproduz:
“A..., Lda
Rua ...
... Póvoa de Varzim

Exmo Senhor
AA
Rua ...
... Póvoa de Varzim

Carta registada c/. aviso de recepção

Assunto: exercício do direito cie preferência.

Póvoa de Varzim, 01 de Julho de 2021

Exmo Senhor,
Os n/ cumprimentos,
Vimos, por este moio comunicar na qualidades de arrendatários da loja sita na Rua ..., na Póvoa do Varzim, de que V. Exa è proprietário, que pretendemos trespassar o estabelecimento comercial, a BB, contribuinte n.º ..., que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de peças e acessórios de veículos automóveis, o trespasse será pelo preço de €25.000,00 (vante e cinco mil euros) a ser pago no acto da celebração do contrato de trespasse, que se prevê que se realize no prazo máximo de 1 mês.
Nos termos do artigo 416º n.º 2, artigo 424º n.º 1 e artigo 1059º n.º 2 todos do C. Civil, V. Exa tem o direito de preferir, no período de 8 dias após a comunicação sob pena de caducidade do seu direito.
Assim, caso V. Exa nada diga nesse período presume-se que não pretende preferir no negócio.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me, renovando os melhores cumprimentos,

A gerência
EE”
5. O Autor respondeu à Ré, por carta registada com aviso de receção, datada de 7 de Julho de 2021, comunicando que pretendia exercer o seu direito de preferência no referido trespasse, nas condições constantes da missiva recebida, solicitando que a Ré o informasse da data, hora e local para a celebração do respetivo contrato de trespasse, condicionado à inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus, encargos, dividas e responsabilidades contratuais, nos termos que melhor constam do documento junto a fls. 13, cujo teor se reproduz:
“AA
Rua .... Iº
... Póvoa de Varzim

Exmos. Senhores
A..., Lda.
Rua ...
... Póvoa de Varzim
Registada c/ A.R.
Póvoa de Varzim, 07 de Julho de 2021
Assunto: Exercício do direito de preferência - Trespasse

Na sequência da v/ carta de 1 de Julho de 2021, por mim recebida no dia 5 de Julho de 2021, venho, pela presente, comunicar a V.Exas. que pretendo exercer o direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial dessa empresa, nos termos constantes da v/ referida comunicação.
Para tal efeito solicito que me informem por escrito da data. hora e local para a celebração do respectivo contrato de trespasse, acompanhado da respectiva minuta, bem como da listagem do imobilizado existente no estabelecimento cm causa.
Mais informo que o exercício do direito de preferência fica condicionado à inexistência de trabalhadores afectos ao estabelecimento comercial cm causa bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus. encargos, dividas ou responsabilidades contratuais.

Com os melhores cumprimentos,
AA”
6. Por carta datada de 13 de Julho de 2021, a Ré comunicou ao Autor que já não pretendia trespassar o estabelecimento comercial em causa, nos termos que melhor constam do documento junto a fls. 15, cujo teor se reproduz:
“Exmo Senhor
AA
Rua ..., ...
... Póvoa de Varzim

Carta registada c/. aviso de recepção

Assunto: resposta à s/ carta de 07/07/2021.

Póvoa de Varzim, 13 de Julho de 2021

Exmo Senhor,
Os n/ cumprimentos,

Vimos, por este meio responder à s/ carta datada de 07/07/2021 e em relação ao seu conteúdo somos a informar que neste momento já não pretendemos trespassar o estabelecimento comercial.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me, renovando os melhores cumprimentos,

A gerência
EE”
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B) Os factos não provados:
Encontram-se provados todos os factos com interesse à boa decisão da causa.
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3. O direito
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 4, a apelante faz uma súmula da posição que defende nos autos e sobre as questões que suscita na apelação, as quais serão analisadas de seguida.
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- Legitimidade substantiva e processual do autor -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 6 a 8, considera a apelante que o senhorio tem o direito de preferência, mas se o proprietário não for titular do direito de arrendamento, ou seja, se não for o senhorio, não tem direito de preferência, como ocorre nos presentes autos.
O usufrutuário da fração, não tem direito de preferência no caso de existir trespasse do estabelecimento comercial, tendo em conta as características do direito de usufruto consignadas, sobretudo, nos arts. 1439º e 1446º do CC, no caso sub judice não tinha o recorrido legitimidade substantiva para enviar a carta mencionado no ponto 5 dos factos provados do despacho saneador sentença desacompanhado do proprietário de raiz.
A questão da legitimidade substantiva do autor foi já suscitada nos autos e apreciada a exceção em sede de saneador, julgou-se improcedente, com os fundamentos que se transcrevem:
“Dispõe o artigo 30º, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Conceito de legitimidade”, que o Autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, exprimindo-se este pela utilidade que lhe advenha da procedência da ação.
O referido preceito adotou no seu nº 3º um critério para caracterizar a legitimidade das partes e a distinguir das causas da improcedência da ação, qual seja considerar legítimos autor e réu quando são sujeitos da relação jurídica controvertida, ou, por outras palavras, do direito que se pretende exercer e da obrigação, cujo, cumprimento se pede. Ora, estipula o artigo 1112º, nº 4, do Código Civil, que o senhorio tem direito de preferência no trespasse por venda ou dação em cumprimento, salvo convenção em contrário. No caso dos autos, o contrato de arrendamento, junto a fls. 8, foi celebrado em 7.09.1997, entre Autor e Ré e não exclui o direito de preferência. Tanto quanto resulta da certidão de registo predial, junta a fls. 6, à data do contrato o Autor era o proprietário da fração a qual doou com reserva de usufruto para si. Ora, nos termos dos artigos 1446º e 1449º, do Código Civil, o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa abrangendo o usufruto, as coisas acrescidas e todos os direitos inerentes à coisa usufruída.
Tal vale por dizer que, no caso, o Autor continuou a ser o senhorio do prédio incumbindo-lhe, inclusive, nos termos do artigo 1474º, do mesmo diploma, proceder ao pagamento dos impostos devidos e quaisquer outros encargos anuais que incidam sobre o rendimento da fração.
Ora, o citado artigo 1112º, nº 4, do Código Civil, prevê um direito legal de preferência, do senhorio, por reciprocidade com o direito de preferência que o arrendatário tem no caso de venda do prédio. Conforme lapidarmente refere o Conselheiro Aragão Seia, em “Arrendamento Urbano”, 7ª Edição Revista e Atualizada, Pag. 699, “se o senhorio for um usufrutuário é nele que recai o direito de preferência”.
Em face do exposto, improcede a exceção invocada”.
Entendemos que a decisão não merece censura, porque tal como se mostra estruturada a petição apenas o autor tem interesse direto em demandar e por ser o titular do direito à preferência e quem tem a faculdade de se pronunciar sobre a proposta apresentada pelo obrigado à preferência, nos termos do art. 416º/2 CC.
O art. 30º, n.ºs. 1 e 2 do C.P.C. prevê que o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, exprimindo-se tal interesse pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
No art. 30º/3 CPC determina-se que na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
A legitimidade constitui um pressuposto processual que se exprime através da titularidade do interesse em litígio, sendo parte legítima como réu quem tiver interesse direto em contradizer. Não basta “um interesse indireto, reflexo ou derivado”[2].
Conforme resulta da lei, nada se dispondo em contrário, consideram-se titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.
Para efeitos da legitimidade interessa apenas saber quem são os sujeitos da relação controvertida, pois saber se a relação existe, ou não, pertence ao mérito da ação.
Por outro lado, com a alteração introduzida no art. 26º/3 CPC com a reforma de 1995 (DL 329-A/95 de 12 de dezembro) e que permaneceu no Novo CPC (redação da Lei 41/2013 de 26 de junho), acolheu-se a tese subjetiva, defendida desde longa data pelo jurista Barbosa de Magalhães e posteriormente por Palma Carlos segundo a qual têm legitimidade para a ação os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.
Na tese objetiva defendia-se que para apuramento da legitimidade deve abstrair-se da efetiva existência do direito ou interesse material, cumprindo ao juiz averiguar se estão na causa os sujeitos da relação controvertida. Na tese subjetiva para aferir da legitimidade deve abstrair-se da efetiva titularidade.
Nesta corrente que obteve consagração legal, ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a causa de pedir[3].
Face à previsão da lei para efeitos de aferir da legitimidade interessa apenas a relação jurídica controvertida com a configuração subjetiva que o autor (unilateralmente) lhe dá.
A falta do pressuposto processual fica circunscrita, usando as palavras do Professor ANTUNES VARELA:”[…]aos casos(raros) de divergência entre as pessoas identificadas pelo autor como adversários da sua pretensão e as pessoas efetivamente ingressadas em juízo, e os casos (não menos raros) em que da própria petição transpareça a conclusão de que o autor chama a juízo pessoas, que não são os sujeitos da relação controvertida”[4].
Neste quadro legal TEIXEIRA DE SOUSA defende a supressão do” pressuposto da legitimidade processual, porque inútil e redundante em face da apreciação de mérito, a não ser nos casos de legitimidade indireta (substituição processual) ou de tutela de interesses coletivos ou difusos”[5].
Retomando o caso concreto, à luz do que se deixou exposto, somos levados a concluir que o autor AA, senhorio e usufrutuário do prédio arrendado, tem legitimidade para a ação, por ter interesse direto na procedência da ação, tal como se mostra configurada na petição e o facto de ser usufrutuário não justifica que se faça acompanhar do proprietário da raiz, porque o proprietário da raiz não está investido na posição de senhorio no contrato de arrendamento celebrado.
O artigo 1112º, nº 4, do Código Civil prevê que o senhorio tem direito de preferência no trespasse por venda ou dação em cumprimento, salvo convenção em contrário.
Na doutrina têm-se entendido que o motivo que levou a atribuir ao senhorio a preferência nestas circunstâncias prende-se com a necessidade de “obter o resgate do imóvel” e o “combate às fraudes e injustiças a que o trespasse do estabelecimento pode dar lugar” e ainda, por ser a solução que melhor contrabalança “a atribuição ao arrendatário de um direito de preferência na venda ou dação em cumprimento do locado”[6].
As finalidades do regime justificam ainda que não só o senhorio proprietário goze do direito de preferência como do mesmo possa beneficiar o senhorio usufrutuário, pois não há motivo para fazer uma interpretação restritiva, pois por esta via, seja proprietário ou usufrutuário, como refere JANUÁRIO GOMES “pode obter a libertação do local”[7].
No caso concreto o senhorio é usufrutuário, sendo o titular do direito de preferência. É sobre o próprio – senhorio/usufrutuário - que recai o dever de declarar se aceita a preferência e exercer a tutela desse direito (art. 416º/2 CC). Acresce que o regime específico do usufruto não impõe a intervenção do proprietário da raiz para validar a atuação do usufrutuário, nem a apelante o refere.
Conclui-se que o autor tem legitimidade para a ação desacompanhado do proprietário da raiz.
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Numa segunda ordem de argumentos, que apenas em sede de recurso são suscitados, defende a apelante, sob o ponto 8 das conclusões de recurso, que estando registado o usufruto a favor de AA e mulher CC, casados no regime da comunhão geral de bens, pela Ap n.º ... de 31/08/2018, a presente ação teria que ser intentada por ambos e não apenas pelo recorrido, pelo que o tribunal “a quo” deveria oficiosamente ordenar o recorrido requerer a intervenção principal provocada de cônjuge-CC, nos termos dos arts. 316º e ss, do CPC e do proprietário da raiz da fração objeto dos autos.
Coloca, assim, a questão da falta de legitimidade processual do autor por não se encontrar acompanhado do cônjuge na presente ação.
A legitimidade processual por constituir matéria de conhecimento, permite que o tribunal de recurso aprecie a exceção em sede de recurso da sentença.
Nos termos do art. 34º/1 CPC devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou oneração de bens que só por ambos possam er alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família.
A presente ação não se enquadra na previsão do preceito e por isso, não se exige a presença do cônjuge para garantir a legitimidade para a ação.
Desde logo, apenas o autor figura como senhorio no contrato. Não está em causa a alienação de um estabelecimento comercial (art. 1682º- A CC), situação que carece do consentimento do outro cônjuge. O direito que pretende exercer – aquisição do estabelecimento por trespasse, no exercício do direito de preferência – representa um ato de administração ordinária, que pode ser exercido sem o consentimento do outro cônjuge. Não está em causa a perda de direitos que apenas por ambos possam ser exercidos, porque a aquisição do estabelecimento não belisca o direito de usufruto.
Conclui-se, que o autor tem legitimidade para a ação, apesar de não estar acompanhado pelo seu cônjuge.
Improcedem, as conclusões de recurso sob os pontos 6 a 8.
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- Da caducidade da ação, por falta de depósito do preço -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 15 a 19, insurge-se a apelante contra o segmento da decisão proferida em sede de despacho saneador que apreciou da caducidade da ação, por falta de prévio depósito do preço, nos termos do art. 1410º CC.
Em sede de despacho saneador apreciando a exceção suscitada na contestação, julgou-se a mesma improcedente, com os fundamentos que se transcrevem:
Da Caducidade do Direito de Ação
Invoca a Ré a caducidade do direito de ação por falta de depósito do preço no prazo de 15 dias após propositura da ação, nos termos do artigo 1410º, nº 1, do Código Civil.
Pronunciou-se o Autor pugnando pela improcedência da ação porquanto a ação não configura uma ação de preferência, mas uma ação de execução específica da promessa de contratar.
Cumpre apreciar e decidir.
Sem delongas afigura-se-nos assistir razão ao Autor porquanto a presente ação face ao pedido formulado e à causa de pedir constitui uma ação de execução específica da promessa de celebração de um contrato de trespasse e não uma ação de preferência.
Improcede, assim, a exceção invocada”.
Perante os fundamentos apresentados, que acompanhamos, pouco mais cumpre referir, porque não estamos na presença de uma ação de preferência na qual tem aplicação o regime do art. 1410º/1 CC. Acresce que nos termos do art. 830º/5 CC o depósito do preço deve ser realizado no prazo fixado pelo tribunal, regime distinto do previsto no art. 1410º/1 CC.
Desta forma, a omissão de prévio depósito do preço, comprovado com a entrada da petição em juízo, não constitui fundamento de caducidade da ação.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 15 a 19.
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- Do direito à aquisição da propriedade do estabelecimento, por trespasse, através do exercício do direito potestativo de preferência, previsto no art. 1112º/4 CC -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 20 a 32, insurge-se a apelante contra o segmento da sentença que julgou procedente a pretensão do apelado e reconheceu e declarou o trespasse do estabelecimento comercial da Ré a favor do Autor e consequentemente a sua entrega, com todos os bens e direitos que o integram, condicionada ao pagamento do preço num prazo que se fixou.
A apelante assenta os seus argumentos em duas ordens de razões: considera que não foi apresentada uma proposta contratual, mas uma simples informação sobre um projeto de contrato que tem com um terceiro, podendo desistir do negócio e por outro lado, considera que a entender-se existir uma proposta contratual, não pode o apelado invocar um direito, porque renunciou ao seu exercício, na medida em que estabeleceu condições.
Na sentença, em reapreciação, considerou-se que da conjugação das duas declarações escritas é permitido extrair a outorga de um contrato-promessa de compra e venda cujo incumprimento é suscetível de execução específica promovida como foi pelo preferente, não sendo por isso, válida a desistência do negócio.
A questão suscitada prende-se com a natureza da comunicação que é feita pelo obrigado à preferência ao titular do direito de preferência e declaração por este emitida em resposta a tal comunicação, no âmbito do art. 416º CC, para a qual a doutrina e jurisprudência não têm oferecido uma resposta unânime.
Nos termos do art. 416º CC quem estiver legal ou contratualmente obrigado a dar preferência na compra e venda de algum bem é obrigado a comunicar ao titular desse direito os elementos essenciais do contrato projetado, concedendo-lhe um prazo para declarar se aceita ou não a preferência.
Atento o disposto no art. 224º, nº 1 CC, a declaração negocial (qualquer declaração negocial) que seja dirigida a um destinatário certo torna-se eficaz quando chega ao seu poder ou é dele conhecida. E, nos casos em que tal declaração traduza uma proposta contratual sujeita a um prazo determinado, obriga o declarante enquanto não findar o prazo por ele fixado, nos termos do art. 228º, nº 1, al. a). Ademais, salvo se alguma declaração em contrário for inserida em tal proposta, a mesma é irrevogável depois de ser recebida pelo destinatário, como o determina o art. 230º, nº 1 CC.
Segundo uma posição a comunicação prevista no art. 416º/1 do CC corresponde a mera informação, sem efeito vinculativo, de que o remetente pretende proceder à venda do bem sobre que incide o direito de preferência. Não constitui uma verdadeira proposta contratual, que pode como tal ser objeto de desistência ou alteração.
Neste sentido se pronunciou o Ac. STJ de 08 de janeiro de 2009, Proc. 08B2772, acessível em www.dgsi.pt , onde se afirma: “[…] o obrigado à preferência não fica sem possibilidade de desistir do projetado negócio, porquanto a notificação que efetuou não corresponde a uma proposta contratual, nem a declaração de pretender preferir corresponde a uma aceitação dessa proposta. O direito de preferência, antes apenas virtual, só se radica efetivamente na esfera jurídica do seu titular (preferente) quando se concretiza a alienação da coisa que constitui o objeto do dito direito de preferência, e não antes, nomeadamente naquela fase preambular em que meramente se oferece a preferência e a mesma é, ou não, aceite. Deste modo, o pedido da autora não pode proceder”.
Seguindo diferente posição, a qual tem obtido uma adesão maioritária na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, considera-se que a comunicação para preferência comporta um projeto de contrato - “uma proposta de contrato“[8] - quando se encontra devidamente caracterizada, com um clausulado que contenha os elementos essenciais que relevam para a formação da vontade de preferir ou não preferir e designadamente com identificação do terceiro interessado.
Caso a celebração do contrato dependa de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, mas constem de documento assinado, deve entender-se que se concluiu um contrato-promessa ( art. 410º CC), com as respetivas consequências, entre as quais a possibilidade de obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso.
Como se observa no Ac. STJ 09 de abril de 2019, Proc. 3094/17.6T8FNC.L1.S1 (acessível em www.dgsi.pt) :”tem sido a de reconhecer eficácia real ao direito legal de preferência e de aceitar que, no caso de incumprimento, fica o devedor vinculado à realização do negócio e o preferente investido no direito potestativo de exigir que, por decisão judicial, seja constituído o seu direito de propriedade sobre a coisa, não podendo o obrigado desistir do negócio projetado. Tem sido salientado que «a notificação para preferir ficaria despojada de qualquer sentido útil se o obrigado pudesse desistir livremente do negócio, perante resposta positiva do preferente; na verdade, todo o mecanismo legal relativo ao direito de preferência visa, por um lado, possibilitar o exercício desse direito e, por outro, evitar situações de conflito a dirimir por via judicial (as frequentes ações de preferência), por omissão da notificação”.
Seguindo a mesma posição podem citar-se, entre outros, o Ac. STJ 27 de novembro de 2018, Proc. 14589/17.1T8PRT.S1, Ac. STJ 09 de março de 2021, Proc. 3218/19.9T8LSB.L1.S1, Ac. STJ 14 de outubro de 2021, Proc. 45/20.4T8VRL.G1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt .
Entendemos ser esta a posição que melhor satisfaz a interpretação da lei perante a natureza do instituto em presença e por isso, não se acolhe a posição da apelante expressa nos pontos 20 a 26 das conclusões de recurso, a respeito da natureza da comunicação que dirigiu ao apelado, quando refere que se tratava de uma mera informação.
No caso presente, ponderando os factos provados, é de considerar que a ré-apelante apresentou uma concreta proposta contratual.
Com efeito, apurou-se:
4. Por carta datada de 1 de Julho de 2021, a Ré comunicou ao Autor que pretendia trespassar o seu estabelecimento comercial, instalado na referida fração autónoma, a BB, pelo preço de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), a ser pago no ato da celebração do contrato de trespasse, que previa realizar no prazo máximo de um mês, notificando o Autor para, querendo, exercer o seu direito de preferência relativamente a tal negócio, no prazo de oito dias, sob pena de caducidade, nos termos que melhor constam o documento junto a fls. 11 verso, cujo teor se reproduz:
“A..., Lda
Rua ...
... Póvoa de Varzim
Exmo Senhor
AA
Rua ...
... Póvoa de Varzim

Carta registada c/. aviso de recepção

Assunto: exercício do direito cie preferência.

Póvoa de Varzim, 01 de Julho de 2021

Exmo Senhor,
Os n/ cumprimentos,
Vimos, por este moio comunicar na qualidades de arrendatários da loja sita na Rua ..., na Póvoa do Varzim, de que V. Exa è proprietário, que pretendemos trespassar o estabelecimento comercial, a BB, contribuinte n.º ..., que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de peças e acessórios de veículos automóveis, o trespasse será pelo preço de €25.000,00 (vante e cinco mil euros) a ser pago no acto da celebração do contrato de trespasse, que se prevê que se realize no prazo máximo de 1 mês.
Nos termos do artigo 416º n.º 2, artigo 424º n.º 1 e artigo 1059º n.º 2 todos do C. Civil, V. Exa tem o direito de preferir, no período de 8 dias após a comunicação sob pena de caducidade do seu direito.
Assim, caso V. Exa nada diga nesse período presume-se que não pretende preferir no negócio.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me, renovando os melhores cumprimentos,

A gerência
EE”

Subjacente a este procedimento estava um contrato de arrendamento, gozando o senhorio da preferência legal de preferir na venda do estabelecimento comercial, através de trespasse ( art. 1112/4 CC).
Estando a ré interessada em vender, por trespasse o estabelecimento comercial e tendo um interessado que identificou na proposta para a sua aquisição, remeteu ao autor, senhorio, a comunicação que continha todos os elementos da projetada venda – identificação do interessado, preço, prazo para a celebração do contrato. Fixou um prazo para o destinatário se pronunciar. Fez expressa menção que o assunto a tratar respeitava ao exercício do direito de preferência e às normas que regem a comunicação para preferência – art. 416º CC.
A apelante agiu, assim, com o propósito de transmitir uma proposta do contrato que pretendia celebrar. Os termos em que foi redigida a missiva não permitem considerar que se trata de uma mera auscultação de interesses, tendo em vista um futuro e hipotético negócio. A comunicação surge porque estava legalmente obrigado a efetuar, como deixou expresso no texto do documento, em virtude do senhorio gozar do direito legal de preferir na projetada venda, por trespasse, do estabelecimento comercial.
Aliás, outro sentido não se pode extrair, por aplicação do regime dos arts. 236º e 238º do CC que regulam a interpretação das declarações negociais, resultando inequivocamente do teor da declaração uma verdadeira proposta para contratar emitida pela Ré-apelante.
Contudo, perante a resposta apresentada pelo apelado, somos levados a considerar que não se pode concluir pela formalização e consolidação de um acordo de vontades e por isso, se entende, tal como defende a apelante nos pontos 27 a 32 das conclusões de recurso (renovando em parte os argumentos da contestação), que o apelado renunciou ao exercício do direito, não podendo invocar a celebração de um contrato-promessa e exigir a execução especifica do mesmo.
Resulta provado:
5. O Autor respondeu à Ré, por carta registada com aviso de receção, datada de 7 de Julho de 2021, comunicando que pretendia exercer o seu direito de preferência no referido trespasse, nas condições constantes da missiva recebida, solicitando que a Ré o informasse da data, hora e local para a celebração do respetivo contrato de trespasse, condicionado à inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus, encargos, dividas e responsabilidades contratuais, nos termos que melhor constam do documento junto a fls. 13, cujo teor se reproduz:
“AA
Rua .... 1º
... Póvoa de Varzim
Exmos. Senhores
A..., Lda.
Rua ...
... Póvoa de Varzim
Registada c/ A.R.
Póvoa de Varzim, 07 de Julho de 2021
Assunto: Exercício do direito de preferência - Trespasse

Na sequência da v/ carta de 1 de Julho de 2021, por mim recebida no dia 5 de Julho de 2021, venho, pela presente, comunicar a V.Exas. que pretendo exercer o direito de preferência no trespasse do estabelecimento comercial dessa empresa, nos termos constantes da v/ referida comunicação.
Para tal efeito solicito que me informem por escrito da data, hora e local para a celebração do respectivo contrato de trespasse, acompanhado da respectiva minuta, bem como da listagem do imobilizado existente no estabelecimento cm causa.
Mais informo que o exercício do direito de preferência fica condicionado à inexistência de trabalhadores afectos ao estabelecimento comercial cm causa bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus. encargos, dividas ou responsabilidades contratuais.

Com os melhores cumprimentos,
AA”

Apenas a aceitação da proposta pelo preferente vincula o obrigado à preferência à celebração do contrato nos termos do projeto e clausulado transmitido.
No caso, não ocorreu tal aceitação, porque apesar do titular do direito à preferência declarar expressamente que quer preferir e aceitar o traspasse, estabelece também um conjunto de condições, o que equivale a rejeição da proposta.
O exercício do direito de preferência, face ao disposto no art. 416º CC, determina que o obrigado à preferência, quando pretenda realizar o contrato à mesma submetido, deve transmitir ao titular do correspondente direito: o seu projeto negocial e as exatas cláusulas contratuais apresentadas a terceiro ou delas recebidas, assim como a identidade deste, todos os elementos que se mostrem significativos para a formação da vontade de exercer ou não a preferência[9].
Quanto ao seu conteúdo tal comunicação deve conter todos os elementos essenciais do contrato a celebrar, de modo a permitir ao preferente o conhecimento cabal dos respetivos termos, a fim de poder tomar uma posição esclarecida[10].
O titular do direito à preferência, uma vez recebida a comunicação, tem um prazo, em regra 8 dias, sob pena de caducidade do direito, para a declaração de preferência.
Esta declaração traduz-se num “negócio jurídico unilateral, pois visa a produção de um efeito jurídico, é recetícia, e, consequentemente, só adquire eficácia quando chega ao poder ou conhecimento do sujeito passivo (art. 224º/1) e se tal facto ocorrer dentro do prazo definido para o exercício do direito”[11].
A declaração deve expressar a vontade de celebrar o negócio projetado.
Como observa ANTÓNIO AGOSTINHO GUEDES: “[…]o preferente tem direito a preferir em paridade de condições e não a impor ao sujeito o contrato que melhor corresponderia aos seus interesses ou às suas motivações subjetivas”[12].
Daí que se considere que “se da declaração se inferir uma não decisão, uma intenção de modificar os termos do negócio projetado ou uma tentativa de prolongar o prazo para o exercício do direito, a declaração será ineficaz e não impedirá a caducidade do direito de preferência pelo decurso do prazo”[13].
Cumpre, por isso, ter presente a regra do art. 236º/1 CC segundo a qual “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não poder razoavelmente contar com ele”.
A lei faz recair sobre o declarante o ónus de se exprimir de forma compreensível para outrem, correndo contra o declarante o risco pela forma indevida como se expressou.
O preferente tem o ónus de se expressar com clareza sobre o sentido da sua vontade. Associado a tal aspeto está a necessidade de definir com clareza a situação jurídica objeto de exercício do direito potestativo[14]. As dúvidas sobre o sentido da declaração funcionarão contra o titular do direito, levando a concluir que o direito não foi exercido.
Como observa MENEZES CORDEIRO: “[a] “aceitação” da comunicação para preferência, com alterações, modificações ou reticências, envolve, de pleno direito, a renúncia, por parte do preferente ao seu direito. Qualquer outra solução já implicaria um acordo fora do direito de preferência em causa. Além disso, vale a primeira parte do art. 233º “[15].
Nos termos do art. 233º CC “a aceitação com aditamentos, limitações ou outras modificações importa a rejeição da proposta[…]”.
A declaração expressa pelo apelado-autor e titular do direito à preferência vai no sentido de aceitar o negócio, mas desde que se verifiquem certas condições: inexistência de trabalhadores afetos ao estabelecimento comercial, bem como à realização do trespasse livre de quaisquer ónus, encargos, dividas e responsabilidades contratuais.
Desta forma, a declaração apresentada pelo titular do direito à preferência, no prazo concedido para esse efeito, por não se mostrar formulada de forma clara, inequívoca e objetiva, no sentido de expressar a vontade de preferir a concreta proposta que foi apresentada, não pode ser interpretada como manifestação de vontade de preferir no negócio comunicado pelo obrigado à preferência e como tal apenas pode ser interpretada como recusa.
Acresce que o apelado-autor instaurou a presente ação em setembro de 2021 omitindo desde logo no texto da petição as condições que fixou na declaração de aceitação, sem apresentar uma justificação para tal procedimento. Na petição alegou tão só: “comunicando que pretendia exercer o seu direito de preferência no referido trespasse, nas condições constantes da missiva recebida, solicitando que a ré o informasse da data, hora e local para a celebração do respetivo contrato de trespasse”.
Não alegou que as condições estavam preenchidas, ou que desistiu das mesmas com conhecimento e acordo do obrigado à preferência.
A instauração da ação não supre tais omissões, porque é com a declaração de aceitação, que o negócio ou proposta contratual fica perfeito, nos termos do art. 416º/2 CC.
Dos elementos objetivos careados para os autos e consignados nos factos provados, apenas se pode concluir que o titular da preferência não aceitou a proposta do obrigado à preferência. É este o momento relevante para aferir se existe ou não acordo de vontades, com a consequente celebração do contrato definitivo ou respetivo contrato-promessa, pois só com a aceitação se torna perfeito o contrato.
A apreciação posterior da conduta do obrigado à preferência vai depender sempre deste encontro de vontades: proposta e aceitação.
Não ocorrendo aceitação por parte do titular do direito à preferência, pode o obrigado à preferência nada fazer (sem prejuízo da responsabilidade perante terceiro, com quem previamente contratou) ou celebrar o contrato com terceiro. Não pode o titular do direito à preferência exigir a celebração de um contrato, que rejeitou.
Poder-se-ia admitir que a resposta consubstancia uma nova proposta, que foi rejeitada pela ré. Porém, estaríamos a entrar no campo das hipóteses, sem sustentação nos factos que as partes alegaram e que sustentam os fundamentos da ação, com base no exercício do direito de preferência do senhorio (art. 1112º/4 CC).
Neste contexto, uma vez que não se apuraram outras circunstâncias a respeito do motivo pelo qual a apelante remeteu ao apelado uma carta a dar conhecimento que não pretende celebrar o contrato de trespasse, para além daquelas que resultam dos factos provados, não se pode extrair de tal ato qualquer consequência, quando o titular do direito à preferência rejeitou a proposta do obrigado à preferência.
Conclui-se que não ocorrendo aceitação da proposta, não pode o titular do direito à preferência invocar a celebração de um contrato-promessa e exigir a sua execução específica.
Procedem, nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 27 a 32.
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- Da atuação com abuso de direito pelo facto do autor ter omitido a sua qualidade de usufrutuário da fração e da verificação de incumprimento definitivo e da necessidade de interpelação admonitória -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 9 a 14, invoca a apelante o abuso de direito e a inexistência de incumprimento definitivo e a necessidade de interpelação admonitória para por termo à mora.
As questões suscitadas mostram-se prejudicadas pela decisão da anterior questão e como tal não serão analisadas (art.608º/2 CPC).
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas:
- na ação pelo apelado-autor;
- na apelação, pela apelante e apelado, na proporção do decaimento que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar a sentença e nessa conformidade, julgar improcedente a ação e absolver a ré do pedido.
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Custas a cargo:
- na ação pelo apelado-autor;
- na apelação, pela apelante e apelado, na proporção do decaimento que se fixa em ¼ e ¾, respetivamente.
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Porto, 27 de fevereiro de 2023
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, pag.135
[3] Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS ISABEL ALEXANDRE, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pag. 71-72
[4] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, ob. cit., pag. 148
[5] JOSÉ LEBRE DE FREITAS ∙ ISABEL ALEXANDRE, Vol. I, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pag. 73
[6] Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, LUÍS MENEZES LEITÃO, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, COORD., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles- Direito ao Arrendamento Urbano, “Cessão da Posição do Arrendatário e Direito de Preferência do Senhorio”, Vol. III, Almedina, Coimbra, dezembro de 2002, pag. 511-512 – as considerações tecidas no âmbito da interpretação do art. 116º do RAU têm plena aplicação à face do regime do art. 1112º/4 CC.
[7] Cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, LUÍS MENEZES LEITÃO, JANUÁRIO DA COSTA GOMES, COORD., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles- Direito ao Arrendamento Urbano, “Cessão da Posição do Arrendatário e Direito de Preferência do Senhorio”. ob. cit., pag. 512
[8] Expressão utilizada por PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, revista e atualizada, reimpressão, Coimbra Editora, grupo Wolters Kluwer, Coimbra, fevereiro de 2011, pag. 391
[9] Cfr. MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, ob. cit., pag. 407; JOSÉ BRANDÃO PROENÇA (Coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pag. 97
[10] Cfr ANA PRATA (Coord.), Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2017, pag. 526
[11] JOSÉ BRANDÃO PROENÇA (Coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, vol. II, ob. cit., pag. 99
[12] JOSÉ BRANDÃO PROENÇA (Coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, vol. II, ob. cit., pag. 98
[13] JOSÉ BRANDÃO PROENÇA (Coord.), Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, vol. II, ob. cit., pag. 99; Cfr. AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, Teses, Publicações Universidade Católica, Porto, 2006, pag. 523 a 526
[14] Cfr. AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, ob. cit., pag. 522
[15] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Português- Direito das Obrigações, vol. II, Tomo II, Almedina, Coimbra, 2010, pag. 501