Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
667/14.2T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
TRANSPORTE MARÍTIMO
CONHECIMENTO DE EMBARQUE
FUNÇÕES
CLÁUSULA CAD
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Nº do Documento: RP20170605667/14.2T8MTS.P1
Data do Acordão: 06/05/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 652, FLS.57-74)
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode ser definido como aquele em que uma das partes, o armador, se obriga à deslocação de mercadorias por via marítima, bem como à sua entrega ao destinatário, e em que a outra parte, o carregador, se obriga ao pagamento do frete.
II - O conhecimento de embarque ou de carga («Bill of Lading») é o documento emitido pelo armador em execução de um contrato de transporte marítimo e por este último entregue ao carregador que assinala a recepção de mercadorias para fins de transporte e que representa essas mesmas mercadorias.
III - Destarte, são lhe assinaladas três funções essenciais: - prova do contrato de transporte celebrado entre o carregador e o transportador e as suas condições e termos; - recibo do recebimento das mercadorias a bordo por parte do transportador; - título representativo das mercadorias, conferindo ao seu portador um direito (real) de propriedade sobre as mercadorias e, ainda, um direito pessoal à sua entrega.
IV - Tendo o vendedor/exportador acordado com um banco (consignatário) da praça do comprador/importador enviar ao mesmo os documentos representativos das mercadorias transportadas (incluindo os originais do conhecimento de embarque), de forma que este garantisse que o comprador, em momento prévio ao levantamento das mercadorias, efectuava o pagamento do preço, incorre em incumprimento e responsabilidade pelos consequentes prejuízos causados ao vendedor/exportador, o banco que, estando na posse desses documentos representativos da mercadoria, os entrega ao comprador, que procedeu ao levantamento das mercadorias, sem efectuar ou garantir o pagamento do aludido preço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 667/14.2T8MTS.P1- Apelação
Origem: Matosinhos – Instância Local - Secção Cível – J3.
Relator: Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Sousa Lameira.
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
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Sumário: (elaborado pelo Relator)
I. O contrato de transporte marítimo de mercadorias pode ser definido como aquele em que uma das partes, o armador, se obriga à deslocação de mercadorias por via marítima, bem como à sua entrega ao destinatário, e em que a outra parte, o carregador, se obriga ao pagamento do frete.
II. O conhecimento de embarque ou de carga («Bill of Lading») é o documento emitido pelo armador em execução de um contrato de transporte marítimo e por este último entregue ao carregador que assinala a recepção de mercadorias para fins de transporte e que representa essas mesmas mercadorias.
III. Destarte, são lhe assinaladas três funções essenciais: - prova do contrato de transporte celebrado entre o carregador e o transportador e as suas condições e termos; - recibo do recebimento das mercadorias a bordo por parte do transportador; - título representativo das mercadorias, conferindo ao seu portador um direito (real) de propriedade sobre as mercadorias e, ainda, um direito pessoal à sua entrega.
IV. Tendo o vendedor/exportador acordado com um banco (consignatário) da praça do comprador/importador enviar ao mesmo os documentos representativos das mercadorias transportadas (incluindo os originais do conhecimento de embarque), de forma que este garantisse que o comprador, em momento prévio ao levantamento das mercadorias, efectuava o pagamento do preço, incorre em incumprimento e responsabilidade pelos consequentes prejuízos causados ao vendedor/exportador, o banco que, estando na posse desses documentos representativos da mercadoria, os entrega ao comprador, que procedeu ao levantamento das mercadorias, sem efectuar ou garantir o pagamento do aludido preço.
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO.
1. “ B…, S.A.”, com sede em …, Matosinhos, veio intentar a presente acção declarativa contra “ C…, Lda. ”, com sede em …, …, República de Cabo Verde, “ D…, Lda. ”, com sede na Rua …, …, “Banco E…”, com sede em …, Ilha de …, República de Cabo Verde e “F…, Lda.”, com sede em …, Ilha do …, Cabo Verde, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento à Autora da quantia de 3.537.119$00, acrescida de juros vincendos sobre 2.390.472$00 até integral e efectivo pagamento; e, subsidiariamente, a condenação da 1ª Ré a pagar à Autora a quantia de 2.390.472$00, com base no princípio do enriquecimento sem causa, acrescida de juros contados desde a citação.
Alega para o efeito que o seu objecto social consiste na produção e comercialização de bebidas em geral, enquanto a 1ª Ré se dedica ao comércio a retalho de produtos alimentares, nomeadamente, ao comércio de bebidas.
No exercício das respectivas actividades, a 1ª Ré encomendou à “B1…, S.A.”, com a anuência do 4º Réu - empresa intermediária da Autora no território de Cabo Verde -, nomeadamente, cerveja. Essa compra e venda consistiu em duas remessas acordadas e facturadas por 1.195.236$00 de cerveja denominada B2…. Na sequência do contrato, a Autora encarregou-se de fazer transportar as mercadorias encomendadas para Cabo Verde, para o que contratou a 2ª Ré - empresa transitária - que se encarregaria de todos os pormenores relacionados com o transporte da mercadoria para Cabo Verde. A obrigação da Autora, segundo a cláusula convencionada “Shippers Load Stowage and Count”, resumiu-se ao carregamento e selagem dos contentores. Todavia, do contrato de transporte celebrado com a 2ª Ré resultou para esta última a obrigação de validar os B/L (conhecimento de embarque) - validação essa que apenas poderia ser efectuada após o consignatário, aqui 3º Réu, dar pertence aos conhecimentos de embarque - para que a 1ª Ré pudesse levantar as mercadorias no cais. Outra das condições para que a 1ª Ré pudesse proceder a esse levantamento é a que resulta da cláusula “Freight Payable at Destination”, o pagamento do frete, pagamento esse que cabia ao consignatário.
Dever-se-ia processar tudo da seguinte forma: - os documentos relativos às mercadorias exportadas eram apresentados ao 3º Réu para se proceder então ao pagamento ou à sua garantia. Depois, já na posse dos documentos, a 1ª Ré entregaria ao agente transportador os originais “Bill of Landing” sem os quais a mercadoria não podia ser levantada.
A mercadoria foi transportada até ao Porto de … - local de carga - pela Autora e aí entregue à 2ª Ré, procedendo então esta ao seu envio para … por navio. A mercadoria chegou ao seu destino em …, tendo sido entregue à 1ª Ré. Contudo, a 2ª Ré fez a entrega sem exigir a entrega dos originais do B/L com atestação do pagamento ou sinalização do preço por meio do 3º Réu. Também a 1ª Ré levantou a mercadoria sem pagar ou dar qualquer garantia de pagamento. Acresce que o 3º Réu, tendo tido na sua posse os B/L (posse que lhe possibilitou o pagamento do frete), restituiu-os às 1ª e 2ª Rés sem ter assegurado o pagamento ou a garantia do preço. Finalmente, o 4º Réu ajudou e arquitectou toda esta dolosa actuação.
Apesar de instada para o efeito, a 1ª Ré sempre se recusou a fazer o pagamento da mercadoria que recebeu ou a negociá-lo.
Em face do exposto, conclui que os Réus estão solidariamente obrigados a pagar à Autora a quantia de 2.390.472$00, acrescida dos respectivos juros.
Caso assim não se entenda, defende que lhe assiste o direito de receber da 1ª Ré a quantia em causa, já que recebeu as mercadorias e não as pagou ou, subsidiariamente, com fundamento em enriquecimento sem causa.
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2. Válida e regularmente citadas todas as Rés apenas contestaram a 2ª Ré “D…, Lda” e a 4ª Ré “F…, Lda”.
A Ré “D…, Lda” defendeu-se por excepção, invocando a sua ilegitimidade passiva e, caso assim não se entenda, a prescrição do direito da Autora.
Alega desconhecer a 1ª Ré, bem como o negócio assente entre a 1ª e 3º Réus e a Autora, intermediado pelo 4º Réu. Apenas foi interveniente num contrato de prestação de serviços com a Autora, o qual tinha por objecto a reserva de espaço em navio para o transporte (pelo armador) de dois contentores com destino a Cabo Verde.
Nessa conformidade, interveio em todos os seus actos, em nome e por conta da Autora, como se seu agente ou mandatário se tratasse, não tendo celebrado com ela qualquer contrato de transporte, até porque não é transportadora; Efectivamente, o contrato de transporte dos contentores por navio foi celebrado entre a Autora e a “G…, Lda”. Foi a Autora, ou quem esta encarregou do transporte da mercadoria das suas instalações até ao Porto de …, que a entregou à prumada do navio para embarque, embarque esse efectuado pela empresa de estiva que estava a operar, à data, em …, e por funcionários do armador, proprietário do navio.
Acresce que, conforme consta do B/L, a mercadoria tinha como consignatário o 3º Réu. Só este ou quem este mandatasse para o efeito poderia proceder à libertação e entrega da mercadoria.
Por outro lado, aquando da chegada do navio ao porto de destino, não incumbe à 2ª Ré proceder à entrega das mercadorias, o que incumbe ao armador que apenas pode entregar a mercadoria ao consignatário e nas condições expressas no B/L, ou seja, contra a entrega do original do B/L devidamente atestado do pagamento ou garantido o mesmo pelo consignatário, também responsável pelo pagamento do frete.
Se a 1ª Ré levantou a mercadoria sem a pagar ou garantir o seu pagamento, a responsabilidade por tal facto apenas pode imputar-se à 1ª e ao 3º Réus.
Conclui que em causa nos autos está um puro direito de crédito da Autora sobre a 1ª e o 3º Réus, não se tendo a 2ª Ré vinculado, fosse a pagar o valor da mercadoria, fosse a garantir o seu pagamento, não se vislumbrando qualquer conluio ou conduta dolosa da sua parte.
A Ré “F…, Lda” também se defendeu por excepção, invocando a sua ilegitimidade passiva.
Defendeu-se ainda por impugnação, alegando que no âmbito da actividade exercida ao abrigo da relação comercial mantida com a Autora agenciou e angariou a 1ª Ré como cliente da Autora para o fornecimento de cerveja. Deste modo, a encomenda efectuada pela 1ª Ré à Autora não teve nem deixou de ter a anuência da contestante. Por outro lado, somente o 3º Réu, como consignatário da mercadoria, poderia validar o B/L, exarando o pertence a favor da 1ª Ré e entregando-lhe o original do B/L e das facturas, para que esta pudesse levantar a mercadoria. Se a entrega da mercadoria foi efectuada completamente livre e sem a entrega dos originais do B/L, a responsabilidade apenas pode ser assacada ao armador e ao 3º Réu que era quem tinha na sua posse os originais dos documentos. Quanto à alegada “actuação culposa” da contestante, nada é dito que a consubstancie.
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3. Notificada das contestações apresentadas, a Autora apresentou réplica, na qual pugnou pela improcedência das excepções invocadas e deduziu o incidente de intervenção principal de “G…”.
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4. Por despacho de fls. 152 e ss., foi admitida a intervenção principal provocada passiva da chamada, a qual, citada regularmente, não apresentou contestação.
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5. Por despacho de fls. 193 e ss. foi a Autora convidada a aperfeiçoar a petição inicial, convite que esta acatou, apresentando nova petição inicial a fls. 197 e ss., em termos que aqui se dão por reproduzidos.
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6. Foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade passiva, foi relegado para final o conhecimento da excepção de prescrição, considerando-se quanto ao mais a instância válida e regular.
Foram, ainda, seleccionados os factos assentes e organizada a base instrutória.
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7. Procedeu-se a julgamento, sendo que no final do mesmo a Autora desistiu do pedido relativamente às Rés “D…, Lda”, “F…, Lda” e “G…, Lda”, desistência já homologada por sentença transitada em julgado.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a causa, condenando a Ré “C…, Lda. “ a pagar à Autora a quantia de €11. 923, 64, acrescida de juros de mora à taxa de juro comercial sucessivamente em vigor, desde a data de vencimento de cada uma das facturas e sobre a quantia por cada uma delas titulada até efectivo e integral pagamento, absolvendo o Réu “ Banco E…” do pedido formulado.
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8. Inconformada com a sentença, dela veio interpor recurso a autora, no qual deduziu as seguintes
CONCLUSÕES
1º Vem o presente recurso interposto da aliás douta sentença proferida, em 14.07.2016, que absolveu o 3º Réu do pedido, salvo o devido respeito por melhor opinião, sem razão.
2º A ora recorrente, com o presente recurso tem em vista, não apenas contrariar a interpretação e a aplicação da lei aos factos já dados como provados, mas, também, a reapreciação da prova produzida, confessória, documental e testemunhal, com vista à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para e os efeitos do estatuído v.g. no artigo 662.º do CPC.
3º A autora instaurou acção com processo ordinário contra, além do “mais, a sociedade “C…, Lda” (1ª ré) e contra o “Banco E…” (3º réu).
4º Tal acção não foi contestada por nenhum destes dois réus, apesar de para tanto terem sido regular e pessoalmente citados.
5º A douta sentença recorrida não deu como provados os factos invocados nos pontos 2.4 e 2.7, confessados e essenciais à boa decisão do pleito.
6º Tais pontos estão relacionados com a seguinte matéria invocada nos art.º 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 30 da p. i.
7º Nos termos dos artºs 480º e 484ª do CPC (artºs 563 e 567 NCPC), não tendo os réus contestado e tendo sido (devendo) considerar-se regularmente citados, consideram-se confessados os factos articulados pela autora a eles imputados.
8º Impunha-se, sob pena de nulidade, que a sentença recorrida observasse, na sua elaboração, todas as disposições legais aplicáveis ao caso, nomeadamente a cominação fixada na lei para a falta de contestação do 3º réu – o que - parcialmente e como se viu – não aconteceu.
9º Por outro lado, a impugnação dos dois réus contestantes não pode aproveitar ao 3º réu “Banco E…”, pois que são eles mesmos que vêm defender precisamente o contrário.
10º Ou seja, que a responsabilidade derivada do não pagamento só pode ser assacada aos 1º e 3º Réus, cfr. artigos 71 a 78 da Contestação da ré “D…” e artigos 22º, 33º e 53º do réu “F…”.
11º As próprias testemunhas da contestante “D…” referiram que a responsabilidade pelo levantamento das mercadorias em causa sem o respetivo pagamento pertence ao 3º Réu:
• Cfr. depoimento da testemunha “H…”, tendo o mesmo sido prestado na sessão de julgamento do dia 16/06/2014 e registado digitalmente em suporte ótico através de meio informático, o qual se iniciou ao tempo de gravação 00:14:29 e terminado ao tempo de gravação 00:29:15, designadamente no ponto (00:18:02) onde a testemunha explica que tal facto de deveu ao facilitismo do E… e no ponto (00:24:31) onde refere que o verdadeiro responsável é o Banco;
• Cfr. depoimento da testemunha “I…”, tendo o mesmo sido prestado na sessão de julgamento do dia 16/06/2014 e registado digitalmente em suporte ótico através de meio informático, o qual se iniciou ao tempo de gravação 00:29:50 e terminado ao tempo de gravação 00:43:23, designadamente no ponto (00:37:48) onde a testemunha confirma que o Banco é o principal responsável pelo pagamento à B….
12ºNão existem, assim, dúvidas sobre a responsabilidade do 3º Réu.
13º Porém, se existissem, deveria aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799° do C6digo Civil), presumindo-se a culpa do 3º réu como consignatário.
14ºPresunção que não foi ilidida (nº 1 do artigo 344° do Código Civil), pois que o 3º Réu não demonstrou que procedimentos adotou, a adequação desses procedimentos e os atos que concretamente praticou para evitar a entrega da mercadoria sem o respetivo pagamento.
15º Note-se que, foi dado como provado o não pagamento da mercadoria, apesar de entregue ao 1º R., cfr. pontos 1.12, 1.13, 1.14 e 1.16 dos factos dados como provados, os consequentes danos para a Autora (ficou sem a mercadoria e sem o preço da mesma a que tinha direito) e ainda o nexo naturalístico de causalidade entre a entrega da mercadoria de forma irregular e o dano resultante do não pagamento do preço.
16º O que tudo preenche o pressuposto da causalidade adequada, tal como vem definida no artigo 563° do Código Civil e que, no caso presente, manifestamente ocorre.
17º Devendo, pois, concluir-se que o 3º Réu entregou o original do conhecimento de embarque sem assegurar o seu pagamento.
18º
19º Assim, ao abrigo dos poderes concedidos a esse Venerando Tribunal pelo artº 712º, nº 1, alínea a), do CPC, atual art.º 662 do NCPC, deverá ser aditada, como provada / confessada, a factualidade descrita nos PONTO 2.4. e PONTO 2.7 da douta sentença.
20º Termos em que, deve a prova produzida ser reapreciada, concluindo-se com as alterações ora indicadas.
21º Ora, no caso dos autos, tendo a A. enviado os conhecimentos de embarque para o Banco E…, a 1ª ré devia ter-se dirigido aí para pagar o respectivo preço e munir-se dos conhecimentos de embarque.
22º No entanto, o 3º Reu forneceu à 1ª Ré documentos que evidenciavam que a mercadoria tinha sido paga, quando tal factualidade não correspondia à verdade.
23º Ao tê-lo feito, o 3º R. não cumpriu o contrato pontualmente, como a lei lhe impunha e, por isso, é responsável pelo pagamento do respectivo preço e juros, como peticionado, nos termos dos arts. 798.º, 805.º e 806.º do CC., colocando a vendedora B1… "quanto possível, na situação em que esta se encontraria, se a obrigação tivesse sido cumprida (art. 563.º do Cód. Civil)".
24º Os factos dados já como provados e aqueles que se pretende ver provados são suficientes para fundamentar a responsabilidade dos 1º e 3º réus e os pedidos da autora.
25º Ao contrário do concluído pela douta decisão de 1ªinstância, não podem restam dúvidas quanto à ilicitude da atuação do 3º réu consubstanciada no não cumprimento do contratado.
26º A douta sentença recorrida, não dando como provada matéria confessada e essencial para uma boa decisão do pleito (ainda que, se considerado necessário, conjugada com os referidos depoimentos) é nula e como tal deve ser declarada (artº 668 CPC; artº 615 NCPC).
27º Assim não se entendendo, deve então ser ela revogada, por ter violado por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido, condenando-se também o 3º réu no pedido.
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9. Não foram oferecidas contra-alegações.
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10. Foram cumpridos os vistos legais.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [e doravante designado apenas por CPC].
Por conseguinte, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
a)- nulidade da sentença;
b)- se a factualidade julgada como provada pelo Tribunal recorrido deverá ser alterada em conformidade com o invocado pela apelante;
b)- se incorreu o Tribunal em erro de julgamento e em consequência deve o Réu “ Banco E… “ ser condenado nos termos peticionados pela apelante.
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III. FUNDAMENTAÇÃO.
III.I. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO.
O Tribunal de 1ª instância julgou provada a seguinte factualidade:
1.1. Através de escritura de 21.12.00, pelas sociedades “B1…, S.A.”, “J…, Lda”, “K…, Lda” e “L…, SGPS, Lda” foi declarado que “(…) foi elaborado um projecto de fusão das sociedades (…) por via da qual o património das sociedades fundidas será globalmente transmitido para a nova sociedade a constituir sob o novo tipo de sociedade anónima, com a consequente extinção das Sociedades Fundidas (…) vêm (…) proceder à fusão das sociedades fundidas (…)” e que “(…) os bens activos e passivos que integram o património das sociedades fundidas são transmitidos a favor da nova sociedade a constituir com a firma “B…, S.A.”.
1.2. A sociedade Autora foi registada na Conservatória do Registo Comercial pela AP. de 29.12.2000, sendo o seu objecto a produção e comercialização de bebidas em geral.
1.3. A 2ª Ré é uma empresa portuguesa de transitários.
1.4. O 3º Réu é um Banco que figura como entidade consignatária no B/L (Conhecimento de Embarque).
1.5. Na sequência do referido em 1.9. a Autora encarregou-se de transportar as mercadorias encomendadas até Cabo Verde.
1.6. A mercadoria referida em 1.10. foi entregue à 1ª Ré.
1.7. A 1ª Ré é uma empresa cabo-verdiana que se dedica ao comércio de bebidas.
1.8. Entre a Autora e a 4ª Ré foi celebrado um acordo que teve por objecto a angariação por esta de clientes interessados na aquisição de produtos fabricados por aquela.
1.9. Nos termos acordados a 4ª Ré angariava clientes dentro do território de Cabo Verde, recebendo da Autora uma comissão.
1.10. No exercício das respectivas actividades a 1ª Ré encomendou à Autora cerveja B2…, que a Autora forneceu em duas remessas, nos valores acordados de 1.195.236$00, cada uma e nas quantidades constantes das facturas sob o n.º ……… e ………, respectivamente, de 18.12.1997 e 19.12.1997.
1.11. A Autora procedeu ao carregamento e selagem dos contentores.
1.12. O 3º Réu, após o pagamento ou a garantia de pagamento pela 1ª Ré, teria de dar pertence aos B/L, entregando os respectivos originais à 1ª Ré para que esta pudesse levantar a mercadoria do cais.
1.13. Nos termos acordados entre a Autora e os 1º e 3º Réus, os documentos relativos às mercadorias exportadas eram enviados ao 3° Réu, perante quem a 1ª Ré teria de proceder ao pagamento ou à garantia desse pagamento.
1.14. Já na posse dos documentos, a 1ª Ré entregaria ao transportador os originais dos B/L sem os quais a mercadoria não podia ser levantada.
1.15. A mercadoria foi transportada até ao porto de … – local de carga – pela Autora e aí colocada no navio M…, no qual seguiu para Cabo Verde.
1.16. A Autora não recebeu da 1ª Ré o preço da mercadoria referida em 1.10.
1.17. O transporte da mercadoria por navio até Cabo Verde foi celebrado entre a Autora e a “ G…, Lda. ”.
1.18. A 2ª Ré foi contactada pela Autora apenas, e na qualidade de “Transitário – Agente de Navegação”, para em nome e por conta da Autora, proceder à reserva do espaço necessário ao contentor num navio, com destino a Cabo Verde e nas datas solicitadas pela Autora.
1.19. O contrato referido em 1.18. foi titulado pela “Ordem de Expedição/Declaração para Exportação” junta aos autos a fls. 70, na qual surge a 2ª Ré como “Transitária”.
1.20. Do art.º 24º das “Condições Gerais” apostas no verso do documento identificado em 1.20., sob o título “Prescrição”, consta: “O titular de quaisquer direitos que importem responsabilidade do transitário, apenas poderá exercê-los nos seis meses subsequentes à prestação do respectivo serviço”.
1.21. A 2ª Ré procedeu como referido em 1.19. em 19.12.1997, tendo facturado à Autora em data não apurada.
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Mais, ainda, no que importa ao presente recurso, julgou o Tribunal de 1ª instância como não provada a seguinte matéria:
2.4. Para que a 1ª Ré pudesse levantar a mercadoria cabia ao 3º Réu pagar o frete e só após é que a mercadoria podia ser levantada no cais. (ponto 9. da Base Instrutória).
2.7. O 3º Réu, tendo tido na sua posse os B/L, restitui-os à 1ª Ré sem se ter assegurado do pagamento ou da garantia de pagamento do preço. (ponto 14. da Base Instrutória).
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III.II. FUNDAMENTAÇÃO de DIREITO.
Antes de conhecer das questões colocadas no presente recurso importa definir o regime que lhe é aplicável.
Nas normas transitórias previstas na Lei n.º41/2013 de 26.06 que aprovou o novo Código de Processo Civil, prevê o art. 5º, n.º 1, que o novo Código é imediatamente aplicável às acções declarativas pendentes, após a sua entrada em vigor.
Este princípio mostra-se conforme com o princípio geral consignado no art. 12º do Cód. Civil e do qual decorre que na área do direito processual, a nova lei se aplica às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes.
Como refere Antunes Varela «a ideia complementar desta, de que a nova lei não regula os actos pretéritos (para não atingir os efeitos já produzidos por este), traduzir-se-á, no âmbito do direito processual, em que a validade e regularidade dos actos processuais anteriores continuarão a aferir-se pela lei antiga, na vigência da qual foram praticados.» [1]
Portanto, a nova lei aplica-se imediatamente aos actos que houverem de praticar-se a partir do momento em que ela entra em vigor, pelo que os actos praticados ao abrigo da lei antiga devem ser apreciados em conformidade com esta última lei. [2]
Como assim, os actos processuais praticados ao abrigo da lei processual antiga serão apreciados quanto aos seus termos e à sua regularidade, à luz da lei processual sobre cuja égide foram praticados, do mesmo passo que os actos processuais praticados ao abrigo da nova lei processual serão já apreciados à luz do regime que decorre desta última.
No que respeita ao recurso, ou seja no que se refere ao formalismo processual, condições de admissibilidade e seus fundamentos, resulta do n.º 1 do art. 7º das disposições transitórias da citada Lei n.º 41/2013 que «aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em ações instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008 aplica-se o regime de recursos do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, com as alterações agora introduzidas, com exceção do disposto no n.º 3 do artigo 671º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei.»
Em suma, nas acções declarativas anteriores a 1.01.2008 mas em que a sentença tenha sido proferida após 1.09.2013, como ora sucede, será aplicável ao recurso o regime que decorre do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, excepção feita ao disposto no n.º 3 do art. 671º do novo Código (dupla conforme). [3]
Feita esta referência prévia – que se impõe em face da data de propositura da presente acção e pela sucessão de regimes processuais aplicáveis -, cumpre apreciar das questões colocadas pelo recurso interposto.
Como assim se referiu a primeira questão que vem colocada no recurso é a da alegada nulidade da sentença.
Neste conspecto, sustenta a apelante (vide conclusões 8ª e 26ª) que a sentença recorrida, não dando como provada matéria confessada e essencial para a boa decisão da causa (ainda que, se considerado necessário, conjugada com os depoimentos das testemunhas H… e I…), é nula e como tal deverá ser declarada.
Vejamos.
Nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC a sentença é nula «quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão
A nulidade por falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do art. 607º, n.º 3 do CPC que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade da sentença prevista no art. 615º, n.º 1 al. b) do CPC.
A fundamentação errada, medíocre ou deficiente afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a sua nulidade.[4]
Por conseguinte, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão [5], coisa que, manifestamente, no caso dos autos não ocorre, pois que o tribunal recorrido, como o evidencia a sentença recorrida, aí discriminou os factos que julgou provados e os que julgou não provados, nomeadamente os que ora estão em causa.
Portanto, só se pode concluir que a sentença recorrida não enferma da nulidade que lhe vem assacada e constante da alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
Coisa diferente da nulidade da sentença, neste sentido, é o tribunal recorrido ter julgado como não provada determinada matéria de facto, por ter, na perspectiva da apelante, desconsiderado a sua confissão por falta de contestação dos 1º e 3º RR. e não impugnação pelos RR. contestantes ou, ainda, por ter efectuado uma indevida apreciação dos meios probatórios perante si produzidos, nomeadamente os depoimentos testemunhais invocados pela apelante (as testemunhas H… e I…).
Ora, esta outra questão suscitada pela apelante não releva em sede de nulidade da sentença, nos termos expostos, antes só releva em sede de impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido, apenas podendo ser conhecida e decidida nessa sede (ao abrigo dos poderes consignados pelo art. 662º do novo CPC e cumpridos os ónus a que alude o art. 640º do mesmo Código) por este tribunal ad quem.
Improcede, pois, a sobredita nulidade da sentença e as conclusões 8ª e 26ª.
*
Conhecida esta primeira questão, cumpre conhecer da segunda questão atinente à matéria factual constante dos pontos 2.4. e 2.7 do elenco dos factos não provados na sentença recorrida.
A matéria em causa é a seguinte:
2.4. Para que a 1ª Ré pudesse levantar a mercadoria cabia ao 3º Réu pagar o frete e só após é que a mercadoria poderia ser levantada no cais. (ponto 9 da base instrutória).
2.7. O 3º Réu, tendo tido na sua posse os B/L, restitui-os à 1ª Ré sem se ter assegurado do pagamento ou da garantia de pagamento do preço (ponto 14 da base instrutória).
Nesta sede, e em primeiro lugar, de modo essencial, sustenta a apelante nas suas conclusões do recurso que, por um lado, a aludida matéria factual não foi impugnada pelos 1º e 3º Réus (pois que não deduziram contestação) e, por outro, também não foi impugnada pelos réus contestantes, “D…, Lda. “ e F…, Lda. “, os quais, pelo contrário, a admitiram, nas suas peças processuais.
Como assim, segundo a apelante, à luz do preceituado nos arts. 480º e 484º do CPC 1961 (arts. 563º e 567º do novo CPC), a dita matéria factual deveria ter sido julgada provada por ter sido admitida por acordo, ao contrário do que foi decidido pelo tribunal recorrido.
Vejamos.
Como resulta dos autos e do despacho de selecção dos factos assentes e base instrutória lavrada a fls. 241-244 dos autos, a matéria ora em apreço foi feita ali constar sobre os arts. 9º e 14º da base instrutória.
Com efeito, à data de prolação do dito despacho, decorria do preceituado nos arts. 508º-A, n.º 1 al. e) e 511º do CPC 1961 (com a redacção decorrente dos DL n.º 180/96 de 25.09 e DL n.º 375-A/99 de 20.09), que, após a fase dos articulados, e nada obstando, competia ao juiz elaborar, além de despacho saneador, despacho contendo a selecção dos factos assentes e dos factos controvertidos que, à luz das várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostrassem relevantes.
Em todo o caso, e não obstante o mencionado comando, mais tarde, na fundamentação da sentença, segundo o preceituado no art. 659º, n.º 3 do CPC 1961 (na redacção introduzida pelo DL n.º 34/2008 de 26.02), sempre «o juiz tomará em consideração os factos provados admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal colectivo deu como provados…». O mesmo, aliás, resulta do n.º 3 do actual art. 607º do CPC quando ali se consigna que «o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito (…).» [sublinhados nossos]
O que significa, pois, que a circunstância de determinada matéria factual ter sido feita incluir na base instrutória (no pressuposto de que a mesma se mantém controvertida) – e ainda que não sujeita a reclamação ou sujeita a reclamação desatendida -, não obsta a que o juiz venha, na sentença final, a considerar a mesma factualidade como provada, designadamente por acordo das partes ou por efeitos de ausência de válida impugnação.
Com efeito, como referia Antunes Varela, ainda a propósito das pretéritas peças da especificação e questionário (a que viriam a suceder a selecção dos factos assentes e a base instrutória na sequência da reforma do processo civil introduzida pelo DL n.º 375-A/99), «parte-se da ideia de que a especificação e o questionário constituem simples projectos parcelares de julgamento e de selecção da matéria de facto e que a audiência final pode ajudar a corrigir o questionário.» [6] Aliás, fiel a este princípio, o Assento do STJ n.º 1/94, de 26.05.1994 [7] veio mesmo a estabelecer a doutrina segundo a qual «a especificação, tenha havido ou não havido reclamações (…), pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio.»
Segundo, pois, este entendimento, nada obsta a que a matéria em apreço possa, no aludido circunstancialismo – figurando na base instrutória – ter-se como provada por não impugnação/acordo na sentença a proferir a final, como ora sustenta a apelante, sendo mister, no entanto, como se verá, que a mesma não se mostre eficazmente impugnada por qualquer um dos réus contestantes.
Nesta matéria e no âmbito do processo ordinário, preceituava o art. 484º, n.º 1 do CPC 1961 que «se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa (…), consideram-se confessados os factos articulados pelo autor
Todavia, para a hipótese de serem demandados vários réus e uns optarem por deduzir contestação e outros não, resultava do preceituado no art. 485º, al. a) do mesmo Código que aquele efeito confessório não seria aplicável «quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar.» [sublinhado nosso]
Destarte, tendo sido demandados vários réus, optando uns por não oferecerem contestação (no caso dos autos, os 1º e 3º RR.) e optando outros por oferecer essa peça (no caso dos autos, os 2º e 4º RR.) -, segundo o citado art. 485º, al. a) do CPC 1961 [vigente à data do oferecimento dos articulados e correspondente ao actual 568º, al. a) do novo CPC], será de considerar, à partida, enquanto princípio geral, que a impugnação de factos efectuada pelos 2º e 4º RR. contestantes aproveita aos não contestantes, ou seja aos 1º e 3º RR.
Este princípio geral exige, no entanto, algum aprofundamento para efeitos da sua aplicação casuística, pois que importa ponderar qual a impugnação que o legislador tinha em vista para efeitos de afastamento daquele efeito confessório.
A propósito desta norma e da sua «ratio essendi» referia Antunes Varela, que «na base da solução adoptada encontra-se não só a intenção de afastar a solução chocante de os mesmos factos se terem, na mesma acção, como provados em relação a um dos réus e não provados em relação a outro, mas ainda o propósito de facilitar aos réus a possibilidade de delegarem, expressa ou tacitamente, em algum ou alguns deles, o ónus de contestar no interesse de todos.» [sublinhados nossos] [8]
Destarte, isto é, sendo essa a razão de ser do preceito, o benefício concedido aos réus revéis circunscreve-se à matéria factual efectivamente impugnada pelo réu ou réus contestantes, cuja impugnação lhes aproveitará; Pelo contrário, quanto à matéria de facto não impugnada por qualquer um dos réus contestantes, funcionará, de pleno, o efeito cominatório resultante da ausência de impugnação – a admissão da mesma por acordo -, em conformidade com o princípio consignado no art. 490º, n.º 2 do CPC 1961 (ou do actual 574º, n.º 2 do novo CPC).
Neste sentido, refere J. Lebre de Freitas, op. e loc. cit., que «o benefício concedido aos réus revéis circunscreve-se à matéria efectivamente impugnada pelo réu contestante. Por isso, os factos da petição inicial que não hajam sido impugnados são dados como assentes, em relação a todos os réus, pelo que a eficácia da norma excepcionante acaba por se limitar aos factos de interesse para o réu revel e para o réu contestante, dado não ser relevante, fora de uma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer.» [sublinhado nosso]
Dito de outra forma, nesta interpretação, apenas se consideram impugnados os factos que, possuindo interesse para o réu contestante, este último impugne nos termos do art. 490º, n.º 2 (hoje art. 574º, n.º 2 do novo CPC), aproveitando essa impugnação a todos os demais RR., incluindo os não contestantes.
Feitas estas considerações prévias, quanto à matéria feita constar do ponto 2.4 (art. 9º da base instrutória) foi ela alegada pela autora nos arts. 16º, 17º e 18º da sua petição inicial (originária e corrigida).
Ora, quanto a esta matéria, verifica-se que a mesma se mostra aceite pela Ré contestante “ D…, Lda. “ (vide art. 1º da sua contestação a fls. 47 dos autos), assim como se mostra aceite pela Ré contestante “ F…, Lda. “ (vide art. 1º da sua contestação a fls. 85 dos mesmos), sendo certo, ademais, para além dessa admissão, que nenhum outro facto se mostra alegado pelas RR. contestantes que possa ter-se como contraditório ou em oposição com o alegado pela autora nos citados arts. 16º, 17º e 18º da sua petição inicial (art. 490º, n.º 2 do CPC 1961).
Com efeito, embora os RR. contestantes afastem a sua responsabilidade pelo não pagamento do preço das mercadorias vendidas pela Autora à 1ª Ré e nos procedimentos que conduziram ao levantamento das mesmas pela mesma 1ª Ré no porto de destino sem que o pagamento do preço se mostrasse efectuado ou garantido, ambas não põem em causa, antes pelo contrário, a responsabilidade da 1ª Ré e do 3º R., a primeira enquanto compradora das mesmas e que procedeu ao seu levantamento sem efectuar/garantir o pagamento do preço devido e o segundo enquanto consignatário a quem estava cometida a entrega àquela 1ª Ré dos documentos indispensáveis para o levantamento apenas e só após o seu pagamento ou a garantia da realização do mesmo a favor da aqui Autora.
Por outro lado, e independentemente do antes exposto, certo é que colhendo a aludida lição de J. Lebre de Freitas e a interpretação (restritiva) que dela emerge quanto ao sentido do preceituado no art. 485º, al. a) do CPC 1961, sendo os factos em apreço apenas imputáveis à 1ª Ré e ao 3º Réu (não contestantes) e irrelevantes para a posição (processual ou substantiva) dos demais RR. contestantes no presente pleito, a sua eventual impugnação (que não existe, como se referiu) sempre não seria de considerar eficaz e relevante, pois que, sendo-lhes estranhos os factos em apreço, nenhum interesse possuíam os mesmos RR. contestantes em os contradizer.
Destarte, quanto à matéria constante do ponto 2.4. do elenco dos factos não provados da sentença recorrida ou do art. 9º da base instrutória, impõe-se, à luz do antes exposto, alterar a resposta negativa feita consignar quanto à respectiva factualidade, antes a considerando por demonstrada por acordo e face à ausência da respectiva impugnação por parte dos réus contestantes – a quem a mesma se mostra exclusivamente imputada - ao abrigo do preceituado nos arts. 490º, n.º 2 do CPC 1961.
Assim, em conclusão, com o devido respeito, deveria a mesma ter sido considerada provada na sentença em conformidade com o disposto no art. 607º, n.º 4 do novo CPC.
Ultrapassada esta primeira questão de facto, resta, ainda, a apreciação da matéria factual constante do ponto 2. 7 do elenco dos factos não provados da sentença recorrida.
A aludida alegação de facto consta do art. 30º da petição inicial (originária ou corrigida) e o seu teor é o seguinte: «Acresce referir que o 3º Réu tendo tido na sua posse os referidos B/L (posse que possibilitou o pagamento do frete) conforme acordado segundo a cláusula Freight Payable at Destination, restitui-os às 1ª e 2ª Rés sem ter assegurado como competia o pagamento ou a garantia do preço».
Por seu turno, a dita matéria passou para a base instrutória lavrada nos autos (art. 14º da BI) com o seguinte teor: «O 3º Réu tendo tido na sua posse os B/L restituí-os às 1ª e 2ª Rés sem se ter assegurado do pagamento ou garantia do preço» [sublinhado nosso]
Por outro lado, ainda, a ora apelante sustenta que o tribunal recorrido deveria ter julgado como provada – por ausência de contestação - a matéria constante do ponto 2.7, como seguinte teor: «O 3º Réu, tendo tido na sua posse os B/L, restitui-os à 1ª Ré sem se ter assegurado do pagamento ou da garantia de pagamento do preço.»
A nosso ver, e em face do que já antes se deixou exposto, a matéria de facto constante do ponto 2.7 do elenco dos factos não provados – com a transcrita redacção - teria, na verdade, que ter-se como provada, sendo que, aliás, essa matéria poderia ter-se como provada, desde logo, no despacho de selecção dos factos assentes por falta de impugnação dos ali visados 3º Réu e 1ª Ré e, logicamente, por maioria de razão, assim deveria ter sido também considerada na sentença proferida a final em conformidade com o preceituado no já citado art. 607º, n.º 4 do CPC.
Se não, vejamos.
A matéria factual em apreço (constante do descrito ponto 2.7) diz respeito apenas e só à conduta do 3º Réu, réu este que, recorde-se, como já antes se referiu, não deduziu contestação. Como assim, à luz dos princípios já expostos e que decorrem da interpretação do art. 485º, al. a) do CPC 1961, à partida, a dita factualidade, no que se refere ao réu não contestante (3º Réu), seria de ter como assente, salvo se a mesma fosse de considerar impugnada de forma relevante ou eficaz pelos demais RR. contestantes.
Recorde-se que, como já antes salientado, a eficácia da norma excepcionante prevista no art. 485º, al. a) do anterior CPC (ou do art. 568º, al. a) do novo CPC) limita-se aos factos de interesse para o réu não revel, dado não ser relevante, fora de uma relação formal de representação, a impugnação de factos que, por só respeitarem ao revel, o réu contestante não tem interesse em contradizer.
Dito de outra forma, quanto à alegação contida no art. 30º da petição inicial - onde se descrevem factos imputáveis ao 3º Réu (não contestante), à 1ª Ré (não contestante) – e à 2ª Ré (contestante), apenas os factos imputados a esta última e que a mesma impugnou são de ter como controvertidos, pois que, por um lado, essa sua impugnação é processualmente relevante – dizendo respeito a factos que afectam directamente os seus interesses (da 2ª Ré contestante) - e, por via disso, aproveita aos demais (não contestantes). Ao invés, logicamente, quanto aos factos contidos na alegação da autora e imputados aos RR. não contestantes (1ª Ré e 3º Réu), os mesmos deveriam, desde logo, ter-se como provados.
De facto, analisada a contestação da 2ª Ré, esta não põe em crise que os B/L (conhecimento de embarque) tenham estado na posse do 3º Réu (Banco) e que este os tenha entregue à 1ª Ré sem previamente se assegurar ou garantir do pagamento do preço da mercadoria; O que a 2ª Ré questiona e impugna, negando expressamente – e que, portanto, se mantinha controvertido – é que os ditos B/L lhe tenham sido entregues pelo 3º Réu, sustentando que os mesmos não foram, nem lhe poderiam ser entregues pelo Banco consignatário (3º Réu), pois que não lhe incumbia proceder ao levantamento da mercadoria no porto de destino.
Como assim, a nosso ver, o art. 14º da Base Instrutória deveria ter tido, pois, como referência apenas a matéria alegada pelo art. 30º da petição inicial na parte atinente ao alegado recebimento do B/L pela 2ª Ré (contestante), ou seja se o 3º réu teria restituído os referidos B/L à 2ª Ré, pois que apenas nesse segmento se manteria controvertida a versão alegada pela autora; No mais, isto é, que o 3º Réu, tendo tido na sua posse os referidos B/L, os teria restituído à 1ª Ré sem se ter assegurado do pagamento ou da garantia do preço, uma tal matéria de facto sempre seria de ter-se como assente por não impugnada pela 1ª Ré e pelo 3º Réu, a quem são directamente imputados e que deles não mereceu qualquer impugnação, atenta a sua ausência de contestação.
De facto, em tal hipótese, não estaria o tribunal a dar como provados os mesmos factos relativamente a uns dos RR. (os RR. não contestantes) e como não provados relativamente a outros RR. (a 2ª Ré contestante), mas antes a dar por assentes determinados factos - atinentes à conduta da 1ª Ré e do 3º Réu, que os não impugnaram - e a sujeitar a prova outros factos diversos – atinentes à conduta da 1ª Ré perante a 2ª Ré, sendo certo que, quanto a estes últimos, esta 2ª Ré os impugnou valida e expressamente.
O que, em conclusão, terá de importar, a nosso ver, a procedência da apelação no segmento atinente à impugnação da matéria de facto, passando, pois, a mesma a constar da factualidade provada sob o elenco dos factos provados e sob os n.ºs 1.22 e 1.23.
Por outro lado, e em consequência, inútil se mostra conhecer da (eventual) demonstração de tal factualidade à luz dos depoimentos das testemunhas invocadas pela apelante, pois que se trataria de actividade processual sem qualquer efeito útil, face à prova – por ausência de impugnação – de tal factualidade.
Sendo assim, procedem as conclusões 3ª a 7ª, 9ª, 10ª, 17ª, 19ª e 20ª da apelação.
Nestes termos, além dos factos já provados em 1ª instância serão considerados provados os seguintes factos:
1.22. Para que a 1ª Ré pudesse levantar a mercadoria cabia ao 3º Réu pagar o frete e só após este pagamento é que a mercadoria podia ser levantada no cais.
1.23. O 3º Réu, tendo tido na sua posse os B/L, restitui-os à 1ª Ré sem se ter assegurado do pagamento ou da garantia de pagamento do preço.
*
Delimitada, assim, a factualidade provada e a considerar para efeitos decisórios, cumpre conhecer do mérito da apelação e, em particular, se deve a sentença recorrida ser revogada na parte em que concluiu pela absolvição do 3º Réu do pedido formulado pela autora.
Vejamos.
Segundo a factualidade provada, sob angariação da 4ª Ré (“F…, Lda. “), a aqui Autora veio a vender, sob encomenda da 1ª Ré (“C…, Lda. “, com sede na … – … – Cabo Verde), cerveja B2…, em duas remessas, nos valores de 1.195, 236$00, cada uma, conforme consta das facturas a fls. 34 e 35, respectivamente de 19.12.1997 e 18.12.1997.
Por outro lado, resulta, ainda, da mesma factualidade, que efectuado o transporte da dita mercadoria para Cabo Verde, a aludida compradora “ C…, Lda. “, não obstante lhe ter sido entregue a aludida mercadoria, não procedeu ao pagamento do preço acordado – vide pontos de facto 1.10, 1.5, 1.6 e 1.16 da factualidade provada.
Como assim, em 1ª instância, foi a aludida compradora condenada a pagar o preço em falta e, ainda, os respectivos juros legais desde a data de vencimento das aludidas facturas e até integral pagamento.

Na presente apelação não está em causa este segmento decisório, pois que não foi ele impugnado pela parte com legitimidade para o efeito, ou seja a 1ª Ré (“C…, Lda.”) mostrando-se, pois, transitada em julgado (e definitiva) a sua condenação proferida pelo tribunal recorrido.
O mesmo se passa, ainda, com as demais partes originárias nos autos, pois que, por sentença homologatória já transitada em julgado, a autora desistiu dos pedidos formulados contra a 2ª Ré “D…, Lda. “, contra a 4ª Ré “ F…, Lda. “ e, ainda, contra a chamada “G…, Lda.“.
A questão coloca-se, pois, em relação ao 3º Réu – “Banco E…“, com sede na …, …, Cabo Verde.
Neste conspecto, como resulta da factualidade provada, tendo em vista o transporte das mercadorias para a cidade …, a Autora celebrou com a chamada “G…, Lda. “ um contrato de transporte marítimo das mercadorias em apreço desde o porto de … e até Cabo Verde, vindo, conforme o acordado, a Autora a proceder ao transporte das mercadorias até ao porto de …, a proceder ao carregamento da mercadoria no navio da transportadora “G…, Lda. “ (…) e à selagem dos contentores, e, por seu turno, a transportadora e efectuar o aludido transporte das mercadorias até Cabo Verde. – vide factos provados em 1.5, 1.17, 1.11 e 1.15.
Dito isto, resulta evidente que entre a Autora e a chamada “ G… “ foi celebrado um contrato de transporte de mercadorias por mar.
Com efeito, segundo o preceituado no art. 1º do DL n.º 352/86 de 21.10, «o contrato de transporte de mercadorias por mar é aquele em que uma das partes se obriga em relação à outra a transportar determinada mercadoria, de um porto para porto diverso, mediante uma retribuição pecuniária, denominada «frete».
Em suma, o contrato de transporte marítimo de mercadorias poderá ser definido como aquele em que uma das partes, o armador, se obriga à deslocação de mercadorias por via marítima, bem como à sua entrega ao destinatário, e em que a outra parte, o carregador, se obriga ao pagamento do frete. [9]
De facto, o contrato de transporte marítimo de mercadorias comunga do conceito geral do contrato de transporte enquanto contrato mediante o qual uma das partes (transportador) se obriga perante outrem (carregador/expedidor) a fazer deslocar fisicamente (por si ou recorrendo aos serviços de outrem) determinadas pessoas ou coisas de um lugar para outro. [10]
No que diz respeito à sua regulamentação, segundo o preceituado no art. 2º do citado DL n.º 352/86, «o contrato de transporte de mercadorias por mar é disciplinado pelos tratados e convenções internacionais vigentes em Portugal e, subsidiariamente, pelas disposições do presente diploma.»
De todo o modo, como refere Maria João R. Dias, o regime aplicável ao contrato de transporte marítimo, em Portugal, difere consoante se trate de transporte marítimo internacional ou interno.
A nível internacional será aplicável a Convenção Internacional para a Unidade de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos de Carga, assinada em Bruxelas a 25.08.1924, à qual Portugal aderiu por Carta de 5.12.1931, publicada no Diário do Governo, Iª série, n.º 128, de 2.06.1932, e usualmente designada por Convenção de Bruxelas.[11]
Por seu turno, a nível interno – isto é transportes entre portos nacionais -, o contrato de transporte será regido pelo citado DL n.º 352/86, com as alterações introduzida pelo DL n.º 323/2001 de 17.12.
O contrato de transporte marítimo, ao contrário do que sucede com o contrato de transporte em geral, é um contrato solene, sujeito a documento particular escrito (arts. 3º e 4º do DL n.º 352/86), documento este que se traduz no denominado «conhecimento de embarque», «bill of lading» (B/L), «Connaissment» ou «Konnossement» (arts. 1º al. b) e 3º, n.º 3 da Convenção de Bruxelas.
Como assim, seja ao nível do DL n.º 352/86, seja ao nível da aludida Convenção de Bruxelas, em sede de transporte marítimo de mercadorias o conhecimento de embarque reveste-se de capital importância, sendo definido como o documento emitido pelo armador em execução de um contrato de transporte marítimo e por este último entregue ao carregador que assinala a recepção de mercadorias para fins de transporte e que representa essas mesmas mercadorias.
De facto, seja à luz do preceituado no citado DL n.º 352/86 (art. 4º), seja à luz do preceituado na Convenção de Bruxelas (art. 3º, n.º 3) quando o transportador receber a mercadoria a bordo navio deve entregar ao carregador o dito conhecimento de embarque, que funcionará como prova do contrato de transporte (celebrado entre o carregador e o …
transportador), como recibo das mercadorias recebidas (entregues pelo a carregador ao transportador) e, ainda, como título representativo dessas mesmas mercadorias. [12]
A este propósito e no mesmo sentido refere J. Calvão da Silva, que a função do conhecimento de embarque ou de carga pode ser vista em três dimensões.
Em primeiro lugar, trata-se de um documento que serve de recibo de entrega ao transportador de uma certa e determinada mercadoria nele descrita.
Em segundo lugar, o conhecimento de embarque faz prova do contrato de transporte firmado entre o carregador e o transportador e as condições do mesmo.
Em terceiro lugar, o mesmo documento representa a mercadoria nele descrita, sendo negociável e transmissível de acordo com o regime geral dos títulos de crédito. [13]
A propósito desta função representativa das mercadorias descritas no conhecimento de embarque refere, ainda, Calvão da Silva que o mesmo se reveste de uma fisionomia bifronte: por um lado, uma fisionomia real, enquanto representa a mercadoria; por outro, se bem que em inferência daquela, fisionomia pessoal, enquanto investe o seu possuidor no direito à entrega da mercadoria nele representada.
Nesta matéria também Ferrer Correia, ao proceder à classificação dos títulos de crédito segundo critério do conteúdo do direito cartular em títulos de participação, títulos representativos de mercadorias e títulos que incorporam o direito a uma prestação em dinheiro, refere que «os títulos representativos de mercadorias investem o seu possuidor, não só num direito de crédito (direito à entrega das mercadorias), mas num direito real sobre estas (ex: guia de transporte, conhecimento de carga, conhecimento de depósito, etc.)» [14]
Destarte, por via desta sua função representativa e da citada fisionomia bifronte, «deter, entregar e transferir um conhecimento de carga equivale a deter, entregar e transferir a própria mercadoria nele descrita e por ele representada.
Noutros termos: o beneficiário dos direitos conferidos pelo conhecimento de carga é o detentor ou possuidor legítimo desse documento, determinado segundo as regras da negociação e transmissão dos títulos de crédito (art. 11º, n.º 2, do DL n.º 352/86).» [15]
Ou, ainda, de acordo com os mesmos princípios, como refere Francisco C. Rocha, op. cit., pág. 126, «a mercadoria entregue ao transportador só será entregue a quem se apresente como destinatário contra o respectivo documento de transporte de que este seja portador.»
Feitas, assim, estas considerações prévias a propósito do conhecimento de embarque e das suas funções – em particular, a sua função representativa das mercadorias e do direito de entrega das mesmas ao legítimo portador do conhecimento de embarque -, resulta do conhecimento de embarque a fls. 36-37 que o «Consignatário» da mercadoria em apreço era o 3º Réu “Banco E…“.
Por outro lado, ainda, resulta desse mesmo conhecimento de embarque que a mercadoria deveria ser entregue «na mesma boa ordem e condição no atrás referido porto (…) aos Consignatários ou seus Cessionários, pagando o comerciante o frete conforme nota na margem mais as despesas incorridas, de acordo com as disposições deste conhecimento de embarque.» [sublinhado nosso]

Por conseguinte, à luz do conhecimento de embarque em apreço as mercadorias deveriam ser entregues ao Consignatário, ora 3º Réu, único que estaria, pois, em condições, à partida, de proceder ao seu levantamento. Note-se, neste conspecto, que, segundo também se mostra consignado no mesmo conhecimento de embarque, «um original do conhecimento de embarque deve ser apresentado, devidamente endossado, em troca das mercadorias ou da ordem da entrega
Era suposto, no entanto, para cumprimento das condições estabelecidas no conhecimento de embarque e para o levantamento da mercadoria, que o 3º Réu detivesse em seu poder um original do conhecimento de embarque e o apresentasse perante o transportador ou, em alternativa, que procedesse ao endosso do conhecimento de embarque ao comerciante a quem as mercadorias se destinavam a final, ou seja o comprador “C…, Lda. “. – vide pontos 1.12. e 1.14. dos factos provados.
Ora, nesta sede, resulta da factualidade provada que, de facto, nos termos acordados entre a autora, a 1ª Ré e o 3º Réu, a autora enviava a este último os documentos relativos às mercadorias exportadas, de forma que o mesmo, munido desses documentos e dos originais do conhecimento de embarque, procedesse à sua entrega à 1ª Ré para que esta obtivesse a entrega/levantamento da mercadoria junto do transportador [que apenas a poderia entregar ao legítimo portador de um original do conhecimento de embarque] e desde que a 1ª Ré (compradora da mercadoria/importadora) procedesse ao pagamento do preço ou à garantia desse pagamento. – vide factos provados em 1.12, 1.13. e 1.14.
Trata-se, como refere a apelante, da usual cláusula CAD («Cash against documents»), aplicada com a particularidade – destinada a reforçar a garantia do efectivo pagamento do preço da mercadoria por parte do vendedor/exportador – de fazer intervir na operação comercial uma terceira instituição bancária a quem é entregue, como consignatário, a mercadoria (através do envio do documento representativo da mesma – original do conhecimento de embarque), com a função de obter o prévio pagamento do preço da mercadoria ou de um meio de garantir o efectivo pagamento do mesmo, como condição de entrega dos documentos representativos das mercadorias ao destinatário final e que lhe permitam, só depois de verificadas essas condições, obter a entrega das mercadorias. [16]
Ora, dito isto, no caso dos autos, resulta demonstrado que o 3º Réu incumpriu o antes acordado com a aqui autora, pois que acabou por restituir/entregar os originais do conhecimento de embarque (B/L) à 1ª Ré, sem previamente ter obtido o pagamento do preço das mercadorias da 1ª Ré ou um meio de o garantir, permitindo, pois, àquela obter junto do transportador a entrega das mesmas mercadorias, sem que tenha feito – até à data – o pagamento do dito preço à ora autora – vide factos provados sob os pontos 1.6, 1.12, 1.13, 1.14, 1.16 e 1.23 da factualidade provada.
Destarte, mostrando-se incumprido pelo 3º Réu o aludido acordo celebrado com a autora e acessório do ajuizado contrato de compra e venda, não tendo o mesmo evidenciado um qualquer facto que possa excluir a sua culpa nesse incumprimento (culpa que, aliás, se presume – art. 799º, n.º 1 do Cód. Civil), à luz do preceituado nos arts. 563º e 798º do Cód. Civil), tornou-se ele responsável pelo ressarcimento dos prejuízos causados à mesma, qual seja o não recebimento do preço das mercadorias e demais juros de mora a partir da data de vencimento das facturas emitidas pela autora e até integral e efectivo pagamento (arts. 805º, n.º 2 al. a) e 806º, n.º 1 do Cód. Civil).
Aqui chegados, importa, ainda, por último, fazer referência à questão da alegada responsabilidade solidária (passiva) da 1ª Ré e do 3º Réu.
Nesta matéria, preceitua o art. 512º, n.º 1 do Cód. Civil que «a obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera.»
Por outro lado, ainda, segundo o art. 513º do mesmo Código «a solidariedade de devedores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.»
Como refere A. Varela, são duas as notas típicas da solidariedade passiva destacadas na lei:
a) o dever de prestação integral, que recai sobre qualquer dos devedores;
b) o efeito extintivo recíproco da satisfação dada por qualquer deles ao direito do credor.[17]
De todo o modo, a obrigação solidária (tal como a obrigação conjunta) supõe a unicidade da relação obrigacional, com pluralidade de sujeitos do respectivo lado passivo.
De facto, se a relação obrigacional abranger apenas dois sujeitos (credor e devedor) fala-se em obrigação singular; Se a relação obrigacional abranger mais do que dois sujeitos, tendo assim uma pluralidade de devedores, fala-se de obrigação plural, obrigação esta que, por sua vez, pode ser conjunta ou solidária.
No caso dos autos, analisado o programa contratual, existe aquela unicidade da relação obrigacional com pluralidade de sujeitos do lado passivo, pois que, na economia da relação contratual firmada entre a autora, a 1ª ré e o 3º réu, a par com a obrigação principal de pagamento do preço das mercadorias (a cargo do respectivo comprador – a 1ª Ré), se surpreende uma outra obrigação acessória – em estreita ligação com esta obrigação principal -, qual seja a obrigação assumida pelo 3º réu Banco de garantir ou assegurar ao vendedor (a autora) o efectivo pagamento do preço enquanto condição prévia para o levantamento/entrega das aludidas mercadorias. Aliás, esta unicidade resulta, ainda, evidente se se considerar que o dano/prejuízo sofrido pela autora é só um, qual seja o não recebimento do preço que a 1ª Ré deveria ter pago e que o 3º réu deveria ter assegurado ou garantido para efeitos de levantamento das mercadorias.
Como assim, atenta a unicidade da relação obrigacional (ainda que uma assumindo caracter principal e outra acessória) e sendo certo que estamos perante obrigações comerciais (subjectiva e objectivamente comerciais - arts. 2º e 13º do Cód. Comercial), à luz do preceituado no art. 100º do mesmo Cód. Comercial, impõe-se, no domínio das relações externas (perante o credor), a aplicação do regime da solidariedade, respondendo, pois, cada um dos devedores pela obrigação em apreço, e sem prejuízo do direito de regresso entre ambos, a nível interno.
O que, em conclusão, conduz à procedência da apelação nos termos sobreditos.
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IV. DECISÃO.
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em conformidade, revogar a sentença recorrida condenando a Ré “C…, Lda. “ e o réu “ Banco E…“ a pagar, solidariamente, à Autora “B…, SA “ a quantia de €11.923, 64, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal aplicável às obrigações comerciais (art. 102º, 3º do Código Comercial), desde a data de vencimento das facturas a fls. 34-35 dos autos, e até integral e efectivo pagamento.
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Custas em 1ª instância pelos RR. “C…, Lda. “ e “ Banco E…“, pois que ficaram vencidos - art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Custas nesta instância pelo recorrido “ Banco E…“, que ficou vencido – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 5 de Junho de 2017
Jorge Seabra
Sousa Lameira
Oliveira Abreu
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[1] A. VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO da NORA, “ Manual de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 49.
[2] A. VARELA, op. cit., pág. 54.
[3] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil ”, 2ª edição, pág. 17.
[4] Vide, neste sentido, por todos, J. ALBERTO dos REIS, CPC anotado, V volume, pág. 140 e A. VARELA, op. cit.., pág. 669.
[5] A. VARELA, op. cit., pág. 670.
[6] A. VARELA, op. cit., pág. 428.
[7] Publicado in DR Iª série A de 4.10.1994 (hoje com a natureza de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência)
[8] A. VARELA, op. cit., pág. 348-349 e, no mesmo sentido, por todos, J. LEBRE de FREITAS, “ CPC anotado ”, II volume, 2001, pág. 274.
[9] Vide, neste sentido, por todos, MARIA JOÃO RODRIGUES DIAS, “ A função representativa do conhecimento de embarque ”, Temas de Direito dos Transportes, III volume, pág. 450.
[10] Sobre o conceito de contrato de transporte em geral, vide, por todos, HUGO RAMOS ALVES, “ Em Torno do Contrato de Transporte Marítimo de Mercadorias ”, Temas de Direito dos Transportes, III volume, pág. 335 ou, ainda, FRANCISCO COSTEIRA da ROCHA, “ O Contrato de Transporte de Mercadorias ”, pág. 25-28.
[11] Como refere MARIA JOÃO R. DIAS, op. cit., pág. 455, a Convenção de Bruxelas foi alterada pelo protocolo de Visby de 1968 e pelo Protocolo SDR de 1979, protocolos que, todavia, não se mostram aplicáveis pois que não foram ratificados por Portugal.
[12] Vide, neste sentido, por todos, MARIA JOÃO R. DIAS, op. cit., pág. 451.
[13] J. CALVÃO da SILVA, “ Crédito Documentário e Conhecimento de Embarque ”, in “ Estudos de Direito Comercial ” (Pareceres), pág. 53, NUNO MANUEL CASTELLO-BRANCO BASTOS, “ Da Disciplina do Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Mar ”, pág. 234, AC STJ de 20.1.1994, CJ/STJ, tomo I, pág. 49 e ss.ou AC STJ de 17.02.2005, relator CUSTÓDIO MONTES, in www.dgsi.pt.
[14] FERRER CORREIA, “ Lições de Direito Comercial ”, Reprint, pág. 418; Vide, no mesmo sentido, J. ENGRÁCIA ANTUNES, “ Títulos de Crédito – Uma Introdução ”, 2ª edição, revista e actualizada, pág. 139 ou, ainda, F. COSTEIRA ROCHA, op. cit., pág. 125.
[15] J. CALVÃO da SILVA, op. cit., pág. 55.
[16] Sobre a utilização da cláusula CAD, vide, por todos, AC STJ de 8.07.2003, relator ARAÚJO de BARROS, disponível in www.dgsi.pt.
[17] A. VARELA, “ Das Obrigações em Geral ”, I volume, 6ª edição, pág. 719 e L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações ”, I volume, 7ª edição, pág. 169.