Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1626/16.6T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
PROVA
Nº do Documento: RP201712041626/16.6T8AVR.P1
Data do Acordão: 12/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º664, FLS.205-219)
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito do regime revisto na Lei 54/2005 de 15 de novembro, na redação da Lei 34/2014 de 19 de junho, pretendendo o interessado obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, apenas pode fazer a prova de tais factos por documentos que comprovem que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum, antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas (art. 15º/2).
II - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ( art. 15º/3 ).
III - Neste caso são admitidos todos os meios de prova, com exceção da confissão, podendo, por isso, o tribunal socorrer-se da prova testemunhal, pericial, inspeção ao local, por presunções judiciais pautando a sua apreciação por um critério de menor exigibilidade.
IV - A prova por confissão não é admissível, como preceitua o art. 354º/b) CC, por recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis, como é o caso do domínio público.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Domínio Público Hídrico-1.626/16.6T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 3
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
Na presente ação que segue a forma de processo comum em que figuram como:
- AUTORES: B… e mulher C…, casados no regime da comunhão geral de bens, contribuintes nºs ……… e ………, respetivamente, residentes na Rua …, .., em Albergaria-a-Velha; e
- RÉU: ESTADO PORTUGUÊS, pedem os autores, que seja reconhecido e constituído o direito de propriedade privada dos autores sobre a parcela de terreno onde se encontra construído o prédio urbano, composto de moradia unifamiliar, com três pisos, garagem e logradouro, sito na Avenida …, nº .., na …, concelho da Murtosa, desta comarca, inscrito na matriz sob o artigo nº 2104 e descrito na competente conservatória sob o nº 1507, com inscrição de propriedade a favor dos autores, por tal prédio se encontrar na posse e fruição dos autores e seus antepossuidores antes de 31 de Dezembro de 1864, o que constitui título legítimo, nos termos do disposto no artigo 15º da Lei nº 54/2005, de 15/11.
Alegaram, em síntese, que são donos do imóvel em análise, o qual veio à sua posse por o terem comprado a D…, Ldª, por escritura pública de 17 de Junho de 1994, sendo que desde tempos imemoriais e sempre antes do ano de 1864, o terreno que constitui o prédio atrás identificado e outros que lhe eram contíguos, eram cultivados por particulares, mediante contratos de arrendamento ou outros acordos, desde antes de 31 de Dezembro de 1864.
Mais, alegaram que o prédio em questão está edificado parcialmente sobre uma parcela pertencente ao domínio público marítimo, constituído pela margem da denominada Ria de Aveiro.
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Citado, o réu não apresentou contestação.
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Por despacho de 6 de julho de 2016, foram os autores convidados a apresentarem documentos comprovativos da factualidade alegada nos arts. 20º, 21º, 22º, 23º e 26º da petição inicial, tendo os mesmos, na sequência da respetiva notificação, informado que não é possível obter tal prova e que pretendiam que fosse inquirida a testemunha por si arrolada relativamente à matéria em causa.
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O Ministério Público, notificado do teor do requerimento apresentado pelos autores, opôs-se à requerida inquirição, sustentando que o direito que os autores se arrogam apenas é passível de ser demonstrado por prova documental.
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Por despacho de 27/10/2016, foram as partes convidadas a apresentarem alegações finais, por se ter entendido que a factualidade em discussão apenas podia ser demonstrada com recurso a elementos documentais.
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Em resposta ao convite, os autores apresentaram a respetiva peça processual, na qual sustentam que a ação deve prosseguir os seus termos, com a produção das provas oferecidas e outras que se entendam necessárias, até final, sustentando a sua posição no trabalho publicado sobre a matéria da autoria d Senhor Juiz Desembargador --- Bargado.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“ Nestes termos, julgo a presente ação improcedente e, em consequência, não reconheço a propriedade dos autores sobre a parcela de terreno referenciada nos autos.
Custas pelos autores (sendo o valor da causa o indicado na petição inicial)”.
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Os Autores vieram interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentaram os apelantes formularam as seguintes conclusões:
1. A questão que se coloca é a de saber se o direito que os autores se arrogam (de posse e de propriedade sobre uma faixa de terreno do domínio público marítimo, por particulares, desde antes do ano de 1964) tem de ser provado e só pode ser provado documentalmente ou se a lei admite a produção de outros meios de prova, nomeadamente testemunhal, pericial, inspeção judicial, presunções.
2. Na primeira hipótese – nº 2 do artigo - quem pretender ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de correntes navegáveis ou flutuáveis, tem de fazer prova documental de que aquelas parcelas estavam no domínio privado em data anterior a 31 de Dezembro de 1864 – nº2 do artº 15º da Lei nº 34/2014.
3. Numa segunda hipótese – nº 3 do artigo - a de o interessado não dispor de documentos que lhe permitam fazer a prova da propriedade particular dos terrenos, antes 31 de Dezembro de 1864, o interessado fica “apenas” obrigado a provar que os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares, antes de 31 de Dezembro 1864, no que ao caso interessa.
4. A alteração efetuada, só se explica porque o legislador considerou a enorme dificuldade que será para qualquer particular fazer prova documental da aquisição do direito de propriedade sobre terrenos, antes da data de 1864, prevendo que a prova da posse em nome próprio por particulares, antes de 31 de Dezembro de 1864, faz presumir que os terrenos em causa são propriedade particular.
5. A lei deixou de fixar qualquer condição e qualquer limitação ao tipo de prova, pelo que deve admitir-se todo o tipo de provas admissíveis em direito: documental, testemunhal, pericial, inspeção judicial, presunções, com exceção da confissão, por os bens do domínio público serem, por natureza, indisponíveis.
6. Pelo exposto, entende-se que, como os autores alegaram dispor de documentos relativamente recentes, para prova da aquisição da propriedade sobre o terreno em causa, até ao ano de 1927, conforme documentos juntos, podiam fazer prova da posse em nome próprio do terreno antes daquela data, prova que poderia ser feita por depoimento da testemunha cuja inquirição requereram com a petição e inicial e que reafirmaram com as suas alegações.
7. É que, como se alega antes, aquele meio de prova não estava vedado aos autores, de acordo com a redação atual do preceito de direito substantivo que regula a matéria em causa.
8. Deste modo, o Mº Juiz a quo não deveria ter fixado a matéria de facto assente antes de ouvir a prova testemunhal apresentada pelos autores, de forma a produzir todas as provas levadas aos autos, antes de proferir decisão.
Termina por pedir a revogação e substituição por douto acórdão que ordene a prosseguimento da ação, com a produção das provas oferecidas e outras, que se entendam necessárias, até final.
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O Ministério Público em representação do Estado Português veio apresentar resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
a) Deverá considerar-se que o disposto no artº 15º nº 3º da Lei 54/2005 de 15.11 na versão atual, só pode ser provado por documento,
b) julgando - se improcedente o recurso interposto (que requer a inquirição da testemunha como meio de prova) por a prova testemunhal ser inadequada e insuficiente para dos factos, nomeadamente da posse privada ou fruição conjunta antes de 31.12.1864.
c) Termos em que se requer que se julgue que o tribunal a quo produziu toda a prova admitida, encontrando-se fixada a matéria de facto, confirmando-se a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em saber se o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, ao abrigo do regime previsto no art. 15º da Lei --- /2005, apenas é possível mediante prova documental.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1 – Encontra-se inscrita a favor dos autores, na Conservatória do Registo Predial de Murtosa, a aquisição de um prédio urbano composto de moradia unifamiliar, com três pisos, garagem e logradouro, sito na Avenida Engº …, nº .., na freguesia da …, concelho da Murtosa, desta comarca, na matriz sob o artigo nº 2104 e descrito na referida Conservatória sob o nº 1507 (art. 1º da petição inicial).
2 – Por escritura pública de 17 de Junho de 1994, os autores compraram a D…, Ldª, o referido imóvel (art. 3º da petição inicial).
3 – O prédio supra-identificado confronta, do seu lado nascente, com a estrada (art. 11º da petição inicial).
4 – Tal prédio está edificado parcialmente sobre uma parcela pertencente ao domínio público marítimo, constituído pela margem da denominada Ria de Aveiro (art. 13º da petição inicial).
5 – As áreas do domínio público hídrico ocupadas pelo referido prédio são as seguintes: para logradouro, 24,5 m2, e para a construção propriamente dita, a área de 55,00 m2 (art 14º da petição inicial).
6 – O prédio dos autores fazia parte de um prédio que foi dividido em seis parcelas, destinadas à construção urbana (moradias unifamiliares) (art. 15º da petição inicial).
7 – Aquela empresa – D…, Ldª – havia adquirido o prédio em questão por contrato de compra e venda celebrado com E… (art. 16º da petição inicial).
8 – Por sua vez esta E… havia adquirido o prédio por lho ter sido adjudicado na herança de seu marido, F… (art. 16º da petição inicial).
9 – No ano de 1937, G…, das …, comprou a H…, da mesma freguesia da …, um imóvel sito na …, nos termos e condições descritos na escritura pública junta como doc. nº 6. (art. 26º da petição inicial).
10 – Em 21 de Abril de 1937, I… outorgou, no Cartório Notarial de Murtosa, escritura de confissão de dívida com hipoteca (art. 27º da petição inicial).
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- Factos não provados
- O mencionado F… adquiriu o dito prédio por compra a J… e K… (art. 17º da petição inicial).
- O casal constituído por J… e K… haviam adquirido o prédio por compra de 1937, efetuada a I… (art. 18º da petição inicial).
- Desde tempos imemoriais e sempre antes do ano de 1864, o terreno que constitui o prédio atrás identificado e outros que lhe eram contíguos, eram terrenos cultivados com milho e ervas para o gado, essencialmente (art. 19º da petição inicial).
- Esses terrenos, onde se inclui o terreno do prédio dos autos, eram cultivados por particulares, diretamente ou por intermédio de terceiros, mediante contratos de arrendamento ou outros acordos, desde antes de 31 de Dezembro de 1864 (art. 20º da petição inicial).
- O Sr. L…, da …, cultivou vários terrenos naquele local, pagando renda aos respetivos proprietários (art. 21º da petição inicial).
- O Sr. I…, por alcunha “I1…” anterior proprietário de um terreno que confinava a norte com o terreno onde hoje está construída a casa dos autores, atualmente com cerca de oitenta anos de idade, recebeu aquele terreno por herança de um tio, há cerca de cinquenta anos (art. 22º da petição inicial).
- Aquele tio do Sr. I… “I1…”, por sua vez, havia recebido o prédio dos seus pais, antecessores que cultivavam o dito prédio há mais de trinta e de quarenta anos, à data da transmissão (art. 23º da petição inicial).
- Na zona das …, onde se situa atualmente o prédio dos autores, todos os terrenos eram propriedade particular e eram cultivados por particulares, com milho e ervas para os gados (art. 24º da petição inicial).
- Não havendo referência ou memória de que em tal local houvesse terrenos não estivessem no domínio ou na posse de privados (art. 25º da petição inicial).
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3. O direito
Na sentença recorrida entendeu-se que a matéria de facto em discussão estava subordinada ao regime da prova documental e uma vez que tal prova não foi produzida considerou-se estar em condições para, desde logo, em sede de saneador proferir decisão. Escreveu-se na sentença:
“O Tribunal já se pronunciou, por despacho transitado em julgado, relativamente à necessidade de produzir prova documental em relação à factualidade suprarreferida, pelo que estando essa problemática ultrapassada, cumpre, de harmonia com os elementos carreados para os autos, fixar a matéria assente e não assente e efetuar o respetivo enquadramento jurídico, a fim de apurar se merece acolhimento a pretensão que os autores vieram deduzir no presente litígio”.
Nas conclusões de recurso os apelantes insurgem-se contra a decisão recorrida por entenderem que face ao regime previsto na Lei 54/2005 de 15 de novembro, na redação da Lei 34/2014 de 19 de junho não está vedada a possibilidade de produzirem outros meios de prova, que não a mera prova documental, para obter o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos.
A questão que se coloca consiste em saber se o processo reúne os elementos de facto necessários para a sua decisão em sede de saneador por se entender que o reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, face ao regime previsto na Lei 54/2005 de 15 de novembro, está sujeito ao regime de prova documental.
Dispõe o art. 595º CPC que o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Enquadram-se na previsão da norma as situações em que não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo[2], nomeadamente quando:
- toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento;
- quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos – inconcludência do pedido - para apreciar a pretensão do Autor ou a exceção deduzida pelo Réu;
- quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental[3].
Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos, deve fazer prosseguir a ação, ponderando as diversas soluções plausíveis da questão de direito.
O conhecimento do mérito da causa, em sede de saneador, deve reservar-se para as situações em que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa e que não seja apenas aquela que o juiz da causa perfilha, devendo assim atender-se às diferentes soluções plausíveis de direito, facultando sempre a ampla discussão da matéria de facto controvertida
Como refere ABRANTES GERALDES, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça: “[a]pesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas“[4].
Parece-nos ser esta a questão que se coloca na presente ação.
Considerou o juiz do tribunal “a quo” que a matéria em litígio está sujeita ao regime de prova documental e porque os autores não juntarem os documentos necessários julgaram-se não provados, parte dos factos alegados, o que conduziu à improcedência da ação.
Adiantando soluções, cumpre-nos referir que não perfilhamos tal entendimento, por se considerar que o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos não está condicionado apenas à prova documental.
Os apelantes-autores fundam a sua pretensão no regime do art. 15º da Lei 54/2005 de 15 de novembro, o que afirmam na petição e renovam nas alegações apresentadas em 27 de outubro de 2016. Contrariamente ao afirmado na sentença recorrida os apelantes não fundam a sua pretensão apenas no art. 15º/2 da Lei 54/2005.
Cumpre considerar que ao longo do processo e até na peça de recurso os apelantes fazem referência à data de “1964”, o que se entende como um lapso de escrita atento o contexto em que a questão foi colocada e a demais matéria alegada, onde se reporta a época remota dos finais do séc. XIX, pelo que, se entende tal referência como sendo 1864.
Resta salientar antes de entrar na análise da concreta questão, que o despacho proferido no qual o juiz do tribunal “a quo” toma posição sobre a necessidade de apresentar prova documental para prova dos factos e convida os apelantes a apresentar as alegações, não constitui caso julgado em relação à questão que agora se aprecia, porque o tribunal de recurso, pode mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (art. 662º CPC).
No fundo, a questão que se coloca consiste em apurar o relevo probatório dos meios de prova produzidos para a concreta análise da questão em litígio.
Os autores visam com a presente ação o reconhecimento de propriedade privada sobre uma parcela de terreno que se situa na margem da ria de Aveiro, a qual se integra de acordo com o regime da Lei 54/2005 de 15 de novembro na área do domínio público hídrico (art. 2º, 3º/e) ).Tal parcela corresponde a 24,5 m2 do logradouro e 55 m2 da construção ali existente.
Esta matéria está subordinada ao regime da Lei 54/2005 de 15 de novembro, que veio definir a titularidade dos recursos hídricos, a qual foi objeto de alterações pela Lei 78/2013 de 21 de novembro, Lei 34/2014 de 19 de junho e por último, pela Lei 31/2016 de 23 de agosto.
Decorre do art. 2º/1 da citada lei, que o domínio público hídrico compreende o domínio público marítimo, o domínio público lacustre e fluvial e o domínio público das restantes águas.
Em conformidade com o nº2 do citado preceito, o domínio público hídrico pode pertencer ao Estado, às Regiões Autónomas e aos municípios e freguesias.
O domínio público marítimo compreende, entre outras áreas, face à previsão do art. 3º/e), as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés.
O domínio público marítimo pertence ao Estado, como determina o art. 4º da citada lei.
Por se encontrarem integrados no domínio público do Estado, os bens que o constituem estão submetidos a um regime especial de proteção em ordem a garantir que desempenhem o fim de utilidade pública a que se destinam, regime que os subtrai à disciplina jurídica dos bens do domínio privado tornando-os inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis.
Contudo, a lei não deixou de prever o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, nos termos do art. 15º e que se passa a transcrever:
“1 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento desde que intente a correspondente ação judicial até 1 de Janeiro de 2014, devendo provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868.
2 - Sem prejuízo do prazo fixado no número anterior, observar-se-ão as seguintes regras nas ações a instaurar nos termos desse número:
a) Presumem-se particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais, na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade dos mesmos nos termos do n.o 1, se prove que, antes daquelas datas, estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;
b) Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir-se-ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de Dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
3 - Não ficam sujeitos ao regime de prova estabelecido nos números anteriores os terrenos que, nos termos da lei, hajam sido objeto de um ato de desafetação nem aqueles que hajam sido mantidos na posse pública pelo período necessário à formação de usucapião.
Como se tem entendido na doutrina[5] e jurisprudência[6] o regime assim previsto visa reconhecer os direitos adquiridos sobre esses terrenos – parcelas de leitos e margens púbicos - por sujeitos privados, antes da entrada em vigor do Decreto de 31 de dezembro de 1864 e do Código Civil de 1867, diplomas que os declararam bens do domínio público e assim se mantiveram.
De igual forma se tem considerado que o regime previsto no art. 15º da Lei 54/2015 de 15 de novembro mantém no essencial a disciplina do art. 8º do DL 468/71 de 05 de novembro, que regia sobre tal matéria.
De acordo com o novo regime o reconhecimento da titularidade privada ficava subordinado à instauração de uma ação judicial, ainda que sujeita a um prazo limite, debatendo-se na doutrina a questão da constitucionalidade do preceito quanto ao prazo limite ali estabelecido, questão ultrapassada com a revogação da lei nessa parte.
No caso concreto, releva analisar cada uma das hipóteses previstas na norma de reconhecimento da propriedade privada, onde se destacam quatro situações:
- o interessado dispõe de documentos que lhe permitam provar que os terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade privada antes de 31 de dezembro de 1864 ou, tratando-se de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868 ( nº1 );
- o interessado no reconhecimento não dispõe dos documentos suscetíveis de comprovar a propriedade mas ainda assim encontra-se em condições de demonstrar que nas datas referidas no nº1 os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa;
- o interessado não se encontra em condições de apresentar documentos anteriores a 1864 ou 1868, porque estes se tornaram entretanto ilegíveis ou foram destruídos por incêndio ou facto semelhante ocorrido na conservatória ou registo competente mas consegue provar que, antes de 1 de dezembro de 1892, os terrenos eram objeto de propriedade ou posse privadas;
- o interessado consegue demonstrar que o terreno foi objeto de um ato de desafetação ou foi mantido na posse pública pelo período necessário à formação de usucapião[7].
Na primeira situação quem invoque um título legítimo para a aquisição da titularidade tem que apresentar prova documental.
Na segunda hipótese, não se exige a demonstração da propriedade, mas da simples prova da posse sobre os terrenos, beneficiando o particular de uma presunção juris tantum. Nestas circunstâncias são aceites todos os meios de prova admitidos em direito.
Como observa JOÃO MIRANDA, em comentário ao preceito:”[…] são aceites todos os meios de prova admitidos em direito ( prova documental, testemunhal, pericial, por inspeção judicial ou através de presunções ), salvo[…]prova obtida por confissão, visto que esta é inadmissível se, como preceitua o art. 354º/b) CC, recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis, como é o caso do domínio público”[8].
No mesmo sentido se pronunciou MANUEL BARGADO que considera, ainda, não ser “[…]exigível a demonstração da propriedade, bastando a simples prova da posse sobre os terrenos, o que amplia consideravelmente as possibilidades do interessado”[9].
Na terceira situação beneficia o interessado de uma presunção júris tantum, podendo fazer a prova da propriedade ou da posse por recurso a qualquer meio de prova.
Por fim, na quarta hipótese, ou se prova a desafetação ou tem o interessado que fazer a prova da propriedade ou posse nos moldes indicados na primeira ou segunda situação, reconstituindo todo o historial relativo à situação dos bens.
Este preceito veio a ser alterado pela Lei 78/2013 de 21 de novembro, passando a ter a seguinte redação:
“1 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis pode obter esse reconhecimento por via judicial, intentando a correspondente ação judicial junto dos tribunais comuns até 1 de julho de 2014, devendo, para o efeito, provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
2 - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
a) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
b) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
3 - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . »
Passou a prever-se expressamente a competência em razão da matéria dos tribunais comuns para conhecer da matéria e dilatou-se o prazo limite concedido para instauração da ação.
Seguiu-se nova alteração do preceito com a publicação da Lei 34/2014 de 19 de junho, passando a ter a seguinte redação:
“ 1 - Compete aos tribunais comuns decidir sobre a propriedade ou posse de parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, cabendo ao Ministério Público, quando esteja em causa a defesa de interesses coletivos públicos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais, contestar as respetivas ações, agindo em nome próprio.
2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868.
3 - Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa.
4 - Quando se mostre que os documentos anteriores a 1864 ou a 1868, conforme os casos, se tornaram ilegíveis ou foram destruídos, por incêndio ou facto de efeito equivalente ocorrido na conservatória ou registo competente, presumir -se -ão particulares, sem prejuízo dos direitos de terceiros, os terrenos em relação aos quais se prove que, antes de 1 de dezembro de 1892, eram objeto de propriedade ou posse privadas.
5 - O reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de águas navegáveis ou flutuáveis pode ser obtido sem sujeição ao regime de prova estabelecido nos números anteriores nos casos de terrenos que:
a) Hajam sido objeto de um ato de desafetação do domínio público hídrico, nos termos da lei;
b) Ocupem as margens dos cursos de água previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, não sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção -Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias;
c) Estejam integrados em zona urbana consolidada como tal definida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, fora da zona de risco de erosão ou de invasão do mar, e se encontrem ocupados por construção anterior a 1951, documentalmente comprovado.
Resulta da nova redação que se eliminou o prazo para a instauração da ação e no que concerne à forma como se pode obter o reconhecimento da titularidade, a legislador eliminou a presunção prevista no nº3 do preceito.
Contudo, continua a prever-se que o reconhecimento da titularidade pode ser alcançado mediante a alegação e prova da propriedade ( nº2 ) ou da posse ( nº3 ), sendo diferentes os meios de prova a usar para esse efeito. Tal como se previa na redação primitiva do preceito a prova do título legítimo de propriedade está sujeito a prova documental. Para a prova da posse a lei não prevê qualquer modalidade específica, podendo por isso a prova da titularidade fazer-se por qualquer meio de prova legalmente admitida, com exceção da confissão, pelos motivos já anteriormente indicados.
Para além destas situações mantém-se a presunção juris tantum que correspondia à anterior redação do art. 15º/3 – atual art. 15º/4 - e ainda, excecionou-se um conjunto de situações, contempladas no nº5 do preceito, que não estão sujeitas ao regime de prova dos nº2, 3, 4, ou seja, sem as condicionantes temporais e ainda, os meios de prova ali previstos.
Em conclusão, pode afirmar-se que fora dos casos previstos no nº5, o particular ou interessado pode exercer o seu direito invocando a propriedade da parcela ou a posse privada.
Neste sentido se pronunciou a Agência Portuguesa do Ambiente no Guia de Apoio sobre a Titularidade dos Recursos Hídricos – Setembro de 2014[10]: “Apenas os particulares que comprovaram ou vierem a comprovar o direito de propriedade ou posse privada sobre parcelas de leitos e margens das águas do mar e das águas navegáveis ou flutuáveis, quer ao abrigo dos diplomas antigos (Decreto-Lei n.º 468/71 e diplomas precedentes), quer da lei atual (Lei n.º 54/20052) são/serão, efetivamente, considerados proprietários dessas parcelas”.
O legislador continuou a distinguir os meios de prova a utilizar, consoante se invoca a propriedade ou a posse privada, sendo certo que recai sobre o interessado o ónus da prova dos pressupostos que a lei prevê para o reconhecimento da titularidade.
Portanto pretendendo obter o reconhecimento da propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, o interessado apenas pode fazer a prova de tais factos por documentos que comprovem que tais terrenos eram por título legítimo objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou antes de 22 de março de 1868, se se tratar de arribas alcantiladas ( art. 15º/2 ).
Na falta de documentos suscetíveis de comprovar a propriedade nos termos do número anterior, deve ser provado que, antes das datas ali referidas, os terrenos estavam na posse em nome próprio de particulares ou na fruição conjunta de indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ( art. 15º/3 ).
Neste caso são admitidos todos os meios de prova, com exceção da confissão, podendo, por isso, o tribunal socorrer-se da prova testemunhal, pericial, inspeção ao local, por presunções judiciais ( Ac. Rel. Guimarães de 30 de junho de 2016, Proc. 1564/14.7T8VCT.G1 ( www.dgsi.pt ) ) e usando um critério de menor exigibilidade ( como se observa no Ac. Rel. Lisboa 20 de outubro de 2016, Proc. 11950-15.0T8SNT.L1-8 (www.dgsi.pt)[11]). A prova por confissão não é admissível, como preceitua o art. 354º/b) CC, por recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis, como é o caso do domínio público.
A Lei 31/2016 de 23 de agosto que introduz novas alterações na Lei 54/2005 de 15 de novembro manteve o regime previsto no art. 15º.
Retomando a situação dos autos.
Os autores pretendem o reconhecimento da titularidade de certa parcela de terreno que está compreendida nas margens da ria de Aveiro e faz parte do domínio público hídrico.
Invocaram a propriedade do prédio onde tal parcela está integrada e indicaram como facto constitutivo do seu direito - a propriedade - a compra e venda, a posse e a usucapião e ainda, a presunção do registo (art. 1º a 9º da petição).
De igual forma alegaram factos no sentido de proceder à reconstituição de todo o historial relativo à situação das parcelas de terreno em causa, para provar que tais parcelas estavam integradas em prédios que já eram privados antes de 31 de dezembro de 1864 ( art. 10º a 27º ) tentando desta forma provar a posse privada. Em momento algum invocaram a propriedade de tais parcelas por título legítimo e próprio, desde data anterior a 1864.
A prova dos factos alegados não estava apenas depende de prova documental, podendo os autores-apelantes socorrer-se de outros meios de prova, desde que não seja a confissão.
A decisão recorrida apreciou do direito, sem permitir a produção de prova sobre matéria controvertida: a posse privada desde data anterior a 31 de dezembro de 1864. Os factos não estavam sujeitos apenas a prova documental e por isso, o processo não reunia desde já os elementos de facto necessários para a decisão do litígio em sede de saneador, devendo prosseguir os seus termos com produção de prova.
Em face do exposto, julgam-se procedentes as conclusões de recurso, revogando-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos com a produção de prova.
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Não se fixa a responsabilidade quanto a custas, por delas estar isento o Ministério Público ( art. 4º/1 a) Regulamento das Custas Processuais ).
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a sentença, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos com produção de prova.
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Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público.
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Porto, 04 de Dezembro de 2017
(processei e revi – art. 131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico.
[2] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum-Á luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013pag. 183.
[3] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil , vol. II, 3ª edição revista e atualizada, Coimbra, Almedina, 2000, pag. 138.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 402.
Cfr. JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Declarativa Comum –À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pag.183 a 186.
[4] Cfr. ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma do Processo Civil, ob. cit., pag. 138. Na jurisprudência, entre outros, seguindo esta orientação pode consultar-se o Ac. Rel. Coimbra 23.02.2010, Proc. 254/09.7TBTMR-A.C1 – endereço eletrónico: www.dgsi.pt.
[5] JOÃO MIRANDA “ A titularidade e a Administração do Domínio Público Hídrico Por Entidades Públicas” in RUI GUERRA DA FONSECA e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, coord. Direito Administrativo do Mar, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 169.
[6] Cfr. Ac. STJ 04 de junho de 2013, Proc. 6584/06.2TBVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. JOÃO MIRANDA “ A titularidade e a Administração do Domínio Público Hídrico Por Entidades Públicas” in RUI GUERRA DA FONSECA e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, coord. Direito Administrativo do Mar, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2016, pag. 173.
[8] Cfr. JOÃO MIRANDA “A titularidade e a Administração do Domínio Público Hídrico Por Entidades Públicas” in RUI GUERRA DA FONSECA e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, coord. Direito Administrativo do Mar, ob. cit., pag. 174.
[9] Cfr. MANUEL BARGADO “O Reconhecimento da Propriedade Privada Sobre Terrenos do Domínio Público Hídrico” in RUI GUERRA DA FONSECA e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, coord. Direito Administrativo do Mar, ob. cit., pag. 455.
[10] Acessível na Internet “Guia_RH_setembro2014”.
[11] Transcreve-se o excerto da fundamentação para ilustrar a forma como podem ser apreciados os vários meios de prova, fazendo funcionar as presunções judiciais:” No caso dos autos não há dúvida que estamos perante terrenos que se inserem na previsão dos artigos 3º alª e) e 11º da referida Lei 54/2005. “Assim sendo sempre teria a autora de provar, em primeiro lugar, que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868, uma vez que se tratam de arribas alcantiladas – cf. art. 15º nº 2, da Lei 54/2005, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 78/2013, de 21-11, e 34/2014, de 19-06.
Nos presentes autos temos provada, de forma direta, a propriedade privada desde 13-05-1876, data em que os referidos prédios foram alvo de partilhas amigáveis por banda de J... e J..., por óbito de F... e M..., pais daqueles.
Mas se as partilhas são feitas por óbito dos seus pais – que faleceram respetivamente em 1870 e 1873 – teremos necessariamente que afirmar que, pelo menos a essa data já eram os referidos terrenos objeto de propriedade privada.
Mas nem uma propriedade privada que remonte a 1873 nem a 1870 é suficiente para o ónus que se exige para a procedência da presente ação.
Mas sabemos mais: sabemos que M..., mãe de J... e J..., era natural das Azenhas do Mar e filha de M..., o qual já em 1833 pagava contribuições pelas suas vinhas e hortas no lugar de Azenhas do Mar. E mais ainda: que casou em 1835 e para ali foi residir com F....
Entendemos que tal é suficiente para fazer a prova que a Lei 54/2005 exige e que atenta a sua dificuldade terá de, necessariamente, ser objeto de um critério de menor exigibilidade, sob pena de a mesma se assemelhar a uma diabólica probatio, que torne quase impossível, na prática, a sua demonstração. Isto porque não existe documentação das Conservatórias de Registo Predial para todo o território nacional, datada de 1864 e 1868 – a este respeito ver “Guia de Apoio sobre a Titularidade dos Recursos Hídricos”, Setembro 2014, Agência Portuguesa do Ambiente, Governo de Portugal –, não obstante a lei exigir, para prova desta propriedade prova documental.
Mas, ainda assim, poder-se-á dizer que nada nos autos indica que essas vinhas, pelas quais eram pagos impostos já em 1833, eram do terreno que aqui e agora se discute.
Mas o facto é que existem nos documentos registais elementos que à data nos mostram que a propriedade que aqui se discute teria necessariamente uma vinha que era explorada em data anterior a 1868. Vejamos:
A descrição inicial do prédio sob o nº 4..., feita em 1878, fala já «vinha pegada», sendo do conhecimento comum que semeada uma videira a mesma sempre demora a dar fruto – a pegar – cerca de 5 a 6 anos. Ora, em Janeiro de 1870 ou Janeiro de 1873 quando morreram F... e M... os mesmos já deixaram vinhas – conforme consta da escritura amigável de partilhas efetuada pelos seus filhos – razão pela qual no limite, recuando 5 anos, já em 1865 ou 1868 as mesmas se encontravam na posse de particulares, no caso F... e M..., tudo levando a crer que os mesmos tivessem iniciado a sua exploração quando foram para lá viver em 1835, quando casaram, ou na pior das hipóteses quando a tivessem herdado de M..., que já em 1833 pagava impostos sobre as mesmas.
Por tudo o exposto somos do entendimento que logrou a autora fazer a prova que tais terrenos eram objeto de propriedade particular antes de 22 de Março de 1868, cumprindo assim o ónus que lhe impunha o nº 2 e 3 do artº 15º da Lei 54/2005”.