Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3267/19.7T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
AGRAVAMENTO DA RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: RP202205043267/19.7T8AVR.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: Resultando provado que o Autor não tinha o mínimo conhecimento necessário para poder executar a tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro em segurança, designadamente, por ser a primeira vez que a ia executar, desconhecer o modo de funcionamento do sistema, não ter tido qualquer formação nem sequer sido informado de que existia uma eclusa com uma hélice com pás metálicas que se encontrava em funcionamento, mas não obstante essa evidência, desprezando o que o mais elementar bom sendo aconselharia, o seu superior hierárquico /chefe de equipa deu-lhe ordens “para subir a uma plataforma e aceder ao ciclofiltro, para o desentupir”, ocorrendo então o acidente quando introduziu a mão direita pela escotilha para verificar se existia aí material acumulado, tendo sido atingido pelas pás metálicas da hélice da eclusa em funcionamento, causando-lhe amputação de 3 dedos (D2, D3 e D4) da mão direita por F2, é forçoso concluir que o acidente resultou de falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, nos termos e com os efeitos previstos no art.º 18.º n.º1, da Lei 98/2009 [LAT].
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 3267/19.7T8AVR.P1
SECÇÃO SOCIAL


ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 No Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Aveiro - AA intentou a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra S..., S.A., e I..., S.A., a qual veio a ser distribuída ao J 1, pedindo a condenação das rés a pagarem-lhe:
- Indemnização por ITA de 09.08.2019 a 30.09.2019;
- Pensão anual e vitalícia agravada nos termos do art. 18º da Lei n.º 98/2009, obrigatoriamente remível, no valor de 2.537,48, devida desde 02.11.2019, acrescida de juros de mora;
- €30,00, de despesas com deslocações;
- Indemnização não inferior a €15.000,00, por danos não patrimoniais sofridos.
Alegou para tanto, no essencial:
No dia 08.08.2019, pelas 00h15, quando exercia as funções de “Controlador de Linha” por conta e sob a direcção da R. Empregadora, nas instalações desta, recebeu instruções/ordens do seu superior hierárquico para aceder ao silo para o desentupir com a mão e, seguidamente, fazer o mesmo aos filtros e às tubagens.
No seguimento dessas instruções/ordens, subiu até à plataforma, abriu a escotilha do silo e introduziu a sua mão direita nas paredes para verificar se existia material acumulado, tendo as pás metálicas da hélice da eclusa rodado, provocando o corte/amputação das primeiras e segundas falanges dos dedos anelar, médio e indicador da mão direita.
Era a primeira vez que executava essa tarefa, não tinha recebido formação para a desempenhar e não tinha sido informado que existia uma eclusa com uma hélice dotada de pás metálicas em funcionamento.
Não existiam protetores que impedissem o acesso e contacto com a hélice, nem qualquer dispositivo de segurança na escotilha que interrompesse o movimento da hélice antes do acesso e/ou abertura da mesma.
Nem existia sinalização de segurança, designadamente relativa ao perigo e risco de esmagamento e/ou sucção de membros na escotilha.
Pelo que houve por parte da R. Empregadora violação de regras de segurança no trabalho.
Em consequência do acidente, sofreu amputação de 3 dedos da mão direita, tendo estado em incapacidade temporária absoluta (ITA) para o trabalho de 09.08.2019 a 30.09.2019, seguida de incapacidade temporária parcial (ITP) de 50%, de 01.10.2019 a 01.11.2019 (data da alta). Ficando a partir de 02.11.2019 com incapacidade permanente parcial (IPP) de 15,1744%.
Além disso, sofreu danos não patrimoniais.
Tendo despendido em deslocações ao Tribunal, a quantia de €30,00.
A R. Empregadora tinha transferido para a R. Seguradora a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, com base na retribuição anual de €16.722,10.
A R. Seguradora contestou, defendendo que o acidente resultou da violação culposa das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da R. Empregadora, nos termos do art.º 18º n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, pelo que a sua responsabilidade é meramente subsidiária, pelo pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, nos termos do disposto no n.º 3 do art. 79º da citada lei.
Também a R. Empregadora contestou, impugnando a versão dos factos alegada pelo A. e pela R. Seguradora e defendendo que não existiu da sua parte culpa ou responsabilidade na produção do acidente.
Argumentando que o A. era e é um trabalhador experiente, e à data do acidente, estava em formação “on job” desde 01.04.2019, dada pelo Chefe de equipa.
O A. nunca tinha efectuado a operação de desobstrução do filtro e, por isso, o Chefe de equipa levou-o ao local e explicou-lhe detalhadamente como proceder para a executar em segurança, dizendo-lhe, nomeadamente, que teria que utilizar para o efeito a vareta de plástico que estava junto à escotilha.
O Chefe de equipa ausentou-se para ir buscar um foco de luz, tendo dito ao A. para esperar por ele, para que o pudesse orientar e supervisionar e explicar-lhe como deveria fazer. Ordem que o A. incumpriu, iniciando a operação de desentupimento sem a presença do Chefe de equipa e sem respeitar as instruções que tinha recebido deste para a execução da tarefa, designadamente sem usar a vareta aí existente, introduzindo inadvertidamente a mão direita através da escotilha para o interior do silo, para tentar o desentupimento.
Pelo que acidente não se deveu a qualquer incumprimento de regras de segurança por parte da empresa, mas antes a incumprimento pelo A. de regras de segurança e de ordens que recebeu de superior hierárquico.
Concluindo pela absolvição do pedido.
Respondeu o A., impugnando os factos alegados pela R. Empregadora na contestação.
Foi proferido despacho saneador, fixando-se os factos assentes, o objecto do litígio e os temas da prova.
Procedeu-se à audiência final.
I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
«Em face de todo o exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
I. Fixar em 15,1744% o grau de incapacidade permanente parcial para o trabalho de que o A. ficou afectado, em consequência do acidente em apreço, com efeitos desde 02/11/2019 (dia seguinte ao da alta);
II. Condenar a R. S..., S.A. a pagar ao A.:
a) O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €1.776,23 (mil setecentos e setenta e seis euros e vinte e três cêntimos), com efeitos desde 02/11/2019.
b) €2.212,82 (dois mil, duzentos e doze euros e oitenta e dois cêntimos), a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho a que o A. esteve sujeito, desde o acidente até à data da alta.
c) €30,00 (trinta euros), de despesas de transporte com deslocações ao tribunal.
d) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) até integral pagamento, contados desde o dia seguinte ao da alta, quanto às prestações referidas em II a) e b); e desde a data da notificação às RR. do montante reclamado pelo A. a título de despesas de transporte, no tocante à aludida na al. c).
III. No mais, absolver a R. S..., S.A. do pedido.
IV. Reconhecer à R. S..., S.A., direito de regresso sobre a R. I..., S.A., em relação às quantias aludidas supra em II a), b), c) e d).
V. Condenar a R. I..., S.A. a pagar ao A.:
a) O capital de remição correspondente ao diferencial de €761,25 (setecentos e sessenta e um euros e vinte e cinco cêntimos) entre o valor da pensão agravada e a normal, com efeitos a partir de 02/11/2019.
b) €948,34 (novecentos e quarenta e oito euros e trinta e quatro cêntimos), respeitantes à diferença entre o valor da indemnização por incapacidades temporárias agravada e a normal.
c) €10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais.
d) Juros de mora à taxa legal (actualmente de 4%) até integral pagamento, contados desde o dia seguinte ao da alta, quanto às prestações referidas em V a) e b); e desde a presente data, quanto à mencionada na al. c).
VI. No mais, absolver a R. I..., S.A. do pedido.
*
Custas por A. e RR., na proporção dos respectivos decaimentos - arts. 527º n.ºs 1 e 2 do Cód. de Processo Civil.
*
Fixa-se à acção o valor de €47.792,24 – art. 120º do Cód. de Processo de Trabalho.
*
Registe e notifique.
*
Após trânsito, proceda-se ao cálculo do capital de remição – art. 148º n.ºs 3 e 4, ex vi do art. 149º, ambos do Cód. de Processo do Trabalho.
(..)».
I.3 Inconformada com a sentença, a Ré empregadora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
………………………………………..
………………………………………..
………………………………………..
I.4 O recorrido sinistrado apresentou contra-alegações, mas sem as sintetizar em conclusões.
………………………………………..
………………………………………..
………………………………………..

I.5 O Digno Magistrado do Ministério Público junto desta Relação emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se pela alteração dos factos 7, 22 e 23, onde se refere a perda, corte/amputação de 3 dedos da mão direita, para passar a constar corte/amputação de 3 dedos, “D2, D3 e D4 por F2, com coto bem almofadado e com queixas subjectivas de sensação de dor e sensação de choque quando toca em superfícies de qualquer tipo ou consistência”, como descrito no Auto de Exame Médico.
Mais refere que estando o sinistrado a executar um trabalho que lhe foi ordenado directa e imediatamente pelo seu chefe de equipa e a obedecer a ordens deste afastada fica, em nossa opinião, a sua culpa na ocorrência do acidente. Esta ocorrência ou será puramente acidental ou a da responsabilidade da entidade empregadora.
Assumindo o chefe de equipa a orientação da operação de desentupimento enquanto superior hierárquico do sinistrado e representante da entidade empregadora, salvo melhor opinião, será esta responsável pela ocorrência do acidente. Não deveria ter ordenado ao sinistrado que desentupisse uma “hélice” ou sistema de aspiração estando este em pleno funcionamento, sem previamente o desligar.
No que concerne ao montante dos danos não patrimoniais, pronunciou-se no sentido de que a perda de três dedos da mão direita, seja na totalidade ou 2/3, para o efeito de avaliar a indemnização por danos morais não parece tão significativa, que justifique a alteração do montante daquela, que deve ser mantida.
I.6 Foram colhidos os vistos legais, remeteu-se o projecto de acórdãos aos excelentíssimos adjuntos e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I7. Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas nos recursos consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
i) Na decisão sobre a matéria de facto, ao considerar-se provado, nos factos 22 e 23, que o A. “perdeu três dedos”;
ii) Ao concluir pelo agravamento da responsabilidade da recorrente, por violação das regras de segurança;
iii) Na fixação do montante da indemnização por danos não patrimoniais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que passa a transcrever.
Provados estão os seguintes factos:
1. A R. I..., S.A. (R. Empregadora) dedica-se ao fabrico e comércio de placas rígidas de espuma de poliestireno extrudido, destinadas a isolamento térmico na construção civil, bem como componentes e outros produtos em indústrias complementares, com estabelecimento industrial na morada da sua sede.
2. O A. trabalha por conta e sob a direcção e fiscalização da R. Empregadora, desde o início do mês de Abril de 2010.
3. Em 08/08/2019, o A. tinha a categoria profissional de “Controlador de linha”, auferindo a remuneração anual de € 16.722,10 (remuneração mensal de 867,00€ + subsídio de alimentação no valor de 6,06€ por cada dia de trabalho efectivamente prestado + subsídio de turno, no valor mensal de 260,10€).
4. Em 08.08.2019, pelas 00h15, o A. exercia as funções de Controlador de linha, por conta e sob a direcção da R. Empregadora, nas instalações desta, situadas na Avenida ..., ..., ... Ovar.
5. Houve um corte/quebra de energia geral, que provocou a paragem das máquinas da linha de produção e, consequentemente, o entupimento/obstrução do ciclofiltro onde se encontra o sistema de aspiração/desentupimento do silo de 10 m3.
6. Com o regresso da energia eléctrica, o A. recebeu ordens do seu superior hierárquico/chefe de equipa, BB, para subir a uma plataforma e aceder ao ciclofiltro, para o desentupir.
7. Em cumprimento dessas ordens, o A. subiu a uma plataforma situada a pelo menos 10 metros do solo, para tentar desentupir o ciclofiltro, introduzindo a mão direita pela escotilha, para verificar se existia aí material acumulado, tendo sido atingido pelas pás metálicas da hélice da eclusa, em funcionamento, causando-lhe corte/amputação de 3 dedos (D2 a D4) da mão direita.
8. Era a primeira vez que o A. executava essa tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro.
9. O A. nunca tinha recebido qualquer formação e/ou informação sobre o modo como devia efectuar essa tarefa, os riscos que apresentava e os cuidados a ter para a realizar em segurança.
10. O A. desconhecia o modo de funcionamento do sistema de aspiração/despoeiramento dos silos.
11. O A. não foi informado de que existia uma eclusa, com uma hélice com pás metálicas, nem que a mesma se encontrava em funcionamento.
12. A R. Empregadora não deu ao A. orientações escritas sobre o modo de execução dessa tarefa.
13. Aquando do acidente o A. desconhecia a existência de qualquer vareta que devesse ser utilizada para efectuar a tarefa de desentupimento.
14. O A. tinha sido promovido em 01.04.2019 de “Operador de linha” a “Controlador de linha”, estando em fase de aprendizagem aquando do acidente, dada pelo Chefe de equipa, CC.
15. Aquando do acidente, não existia nenhum dispositivo ou mecanismo de segurança que interrompesse o movimento da hélice da eclusa, quando se abrisse a escotilha e antes do acesso à hélice, ou que impedisse esse acesso e o contacto com a hélice, quando em movimento.
16. Para abrir a escotilha, o A. teve que fazer bastante força, puxando uma barra de ferro existente no meio da escotilha.
17. Aquando do acidente, não estava colocada na máquina sinalização de segurança que alertasse para o perigo de esmagamento e/ou sucção de membros na escotilha e na boca de entrada e saída da válvula, mas apenas um símbolo de perigo, já bastante deteriorado.
18. Aquando do acidente, a R. Empregadora tinha contratado serviços externos na área da higiene, segurança e saúde no trabalho, prestados pela “M..., S.A.”.
19. Do descrito acidente resultou para o A. incapacidade temporária absoluta para o trabalho (ITA) desde 09.08.2019 até 30.09.2019; incapacidade temporária parcial para o trabalho (ITP) de 50%, desde 01.10.2019 até 01.11.2019 (data da consolidação médico-legal das lesões; e incapacidade permanente parcial para o trabalho (IPP) de 15,1744%, desde 02.11.2019.
20. Antes do acidente, o A. era saudável, robusto, alegre e não sofria de qualquer deformação física.
21. No momento do acidente e durante mais de 1 mês, o A. sofreu fortes dores na mão direita e incómodos, em resultado das lesões sofridas, intervenção cirúrgica, consultas, exames e tratamentos de fisioterapia a que foi submetido.
22. Como consequência directa e necessária das lesões sofridas com o acidente, em que perdeu 3 dedos da mão direita, o A. tem dificuldade em conduzir a sua viatura, em andar de bicicleta, em escrever e em realizar as normais tarefas do seu quotidiano, nomeadamente vestir-se, sentindo falta de força e de sensibilidade no local.
23. A perda dos 3 dedos da mão direita causa ao A. desconforto, incómodo, tristeza, complexos e vergonha, procurando esconder a mão direita em público.
24. Desde a data do acidente, o A. despendeu em deslocações obrigatórias a este tribunal, no âmbito do presente processo, a quantia de €30,00.
25. À data do acidente, a R. Empregadora tinha transferido para a R. “S..., S.A.” (R. Seguradora) a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ..., com base na totalidade da retribuição auferida pelo A..
26. Perante a recusa manifestada pela R. Seguradora em Setembro de 2019 de assumir a responsabilidade pelo sinistro, deixando de pagar ao A. indemnização por incapacidade temporária para o trabalho e despesas, a R. pagou ao A. as seguintes quantias: €600,00, em 12.09.2019; €870,00, em 30.09.2019; € 372,85, em 30.09.2019; e € 230,00, em 31.10.2019.
Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa (não se pronunciando o tribunal sobre as alegações de natureza jurídica ou conclusiva), de entre os alegados na petição inicial, contestações e resposta, nomeadamente:
- Que o Chefe de equipa, BB, antes de incumbir o A. de desentupir o filtro, levou-o ao local e explicou-lhe detalhadamente como proceder para executar tal tarefa em segurança;
- Que o Chefe de equipa, BB, foi buscar um foco de luz, para poder dar informação mais detalhada ao A. sobre o interior do silo, tendo dito ao A. para não iniciar a operação de limpeza do filtro e aguardar pelo seu regresso, pois iria acompanhá-lo e orientá-lo na execução dessa operação;
- Que foi explicada ao A. a obrigatoriedade de utilizar a vareta de plástico, local onde se encontrava e os riscos e perigos de a não utilizar, tendo-lhe sido dito para não usar a mão, para não se magoar;
- Que na ocasião do acidente, a escotilha do silo estava dotada de um sistema de segurança, constituído por uma rosca que ali se encontrava colocada e apertada, e que impedia a abertura inadvertida da mesma e o aceso ao interior do silo;
- Que na altura do acidente, era visível sinalização de perigo junto à escotilha, evidenciando que não se deveria introduzir a mão dentro do silo, pois existia perigo de ferimentos;
- Que aquando do acidente, existia uma vareta de plástico junto à escotilha do silo.
II. 2 Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente entidade empregadora vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente, como resulta das conclusões, quanto aos factos seguintes:
22. Como consequência directa e necessária das lesões sofridas com o acidente, em que perdeu 3 dedos da mão direita, o A. tem dificuldade em conduzir a sua viatura, em andar de bicicleta, em escrever e em realizar as normais tarefas do seu quotidiano, nomeadamente vestir-se, sentindo falta de força e de sensibilidade no local.
23. A perda dos 3 dedos da mão direita causa ao A. desconforto, incómodo, tristeza, complexos e vergonha, procurando esconder a mão direita em público.
O recorrido autor defende que a recorrente não cumpriu os ónus de impugnação, dado nas conclusões não constarem, como seria devido, a especificação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e os concretos meios probatórios que levam a decisão diversa da recorrida.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A propósito do que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
Atento os princípios enunciados, cabe começar por apreciar e decidir sobre a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Conforme se retira das conclusões d) a f), a recorrente indica os factos que impugna – 22 e 23 -, o meio de prova em que sustenta a impugnação – o exame pericial médico – e as respostas alternativas, em concreto, que deixe de constar que o sinistrado perdeu três dedos da mão direito, para passar a constar que “perdeu parte de 3 dedos da mão direita (perdeu a falange média e a falangeta)”. Verifica-se, pois, que as conclusões observam mais do que se entende como suficiente, já que das mesmas resultam até cumpridos os demais ónus de prova, ou seja, inclusive o juízo crítico para justificar a alteração pretendida.
Assim, não tem razão o recorrente, nada obstando à apreciação.
II.2.1 Passando à apreciação, deixamos já afirmado que a recorrente tem razão no erro que aponta à redacção que foi conferida aos factos 22 e 23.
Pretendendo-se nesses factos expressar as concretas sequelas que resultaram do acidente para o sinistrado, impunha-se que a redacção fosse rigorosa, nomeadamente, assegurando-se a necessária correspondência com o que consta no auto de exame médico pericial, onde se consignou que o Autor sofreu “amputação de D2, D3 e D4 por F2 com coto bem almofadado e com queixas subjetivas de dor e sensação de choque quando toca em superfícies de qualquer tipo ou consistência”.
Foram essas as lesões e sequelas que as partes aceitaram na tentativa de conciliação realizada na fase conciliatória, ou seja, que foram objecto de acordo reportado à descrição constante do auto de exame pericial, assim tendo sido consignado no respectivo auto em obediência ao disposto no art.º 112.º/1 do CPT. Como tal, decorrendo do art.º 131.º n.º1 al. c), do mesmo diploma legal, que no despacho saneador o juiz deve considerar assentes os factos sobre que tenha havido acordo na tentativa de conciliação, na fixação dos factos 22 e 23, a menção às lesões sofridas no acidente de trabalho e sequelas delas resultantes para o autor após a cura clínica deveriam preservar o conteúdo daquela descrição.
O mesmo sucede com o facto 7, não impugnado, mas como bem assinalou o Digno Procurador-Geral adjunto no seu parecer, dado que ao referir “causando-lhe corte/amputação de 3 dedos (D2 a D4) da mão direita”, não respeita integral e rigorosamente a descrição do auto do exame pericial médico
Mas se o recorrente tem razão ao discordar da redacção conferida pelo Tribunal a quo aos factos 22 e 23, já a resposta alternativa que propõe também não é a mais correcta, por também não respeitar essa descrição, antes consistindo numa interpretação do que foi consignado no auto de exame médico.
Não obstante, no âmbito dos poderes oficiosos deste Tribunal de recurso [art.º 662.º/1 do CPC], impõe-se proceder à alteração de todos esses factos – 7, 22 e 23 – de modo a acolherem a descrição constante do auto de exame pericial médico. Assim, os factos em causa passam a ter a redacção seguinte [alteração a negrito]:
7. Em cumprimento dessas ordens, o A. subiu a uma plataforma situada a pelo menos 10 metros do solo, para tentar desentupir o ciclofiltro, introduzindo a mão direita pela escotilha, para verificar se existia aí material acumulado, tendo sido atingido pelas pás metálicas da hélice da eclusa, em funcionamento, causando-lhe amputação de 3 dedos (D2, D3 e D4) da mão direita por F2.
22. Como consequência directa e necessária das lesões sofridas com o acidente, o A mantem como sequelas a amputação de 3 dedos (D2, D3 e D4) da mão direita por F2, com coto bem almofadado e com queixas subjetivas de dor e sensação de choque quando toca em superfícies de qualquer tipo ou consistência, tendo dificuldade em conduzir a sua viatura, em andar de bicicleta, em escrever e em realizar as normais tarefas do seu quotidiano, nomeadamente vestir-se, sentindo falta de força e de sensibilidade no local.
23. As lesões na mão direita sofridas com o acidente e sequelas delas resultantes, referidas nos facto 7 e 22, causam ao A. desconforto, incómodo, tristeza, complexos e vergonha, procurando esconder a mão direita em público.
II.2 Motivação de direito
A recorrente, numa primeira linha de argumentação, insurge-se contra a sentença por ter concluído pelo agravamento da sua responsabilidade na reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho, por violação das regras de segurança, nos termos do art.º 18.º, n.º1, da Lei 98/2009, de 4 de Setembro.
O tribunal a quo, após enunciar o quadro legal aplicável em criteriosa e aprofundada fundamentação, passando a aplicá-lo ao elenco factual provado, concluiu como segue:
-«[,,]
Regressando ao caso em julgamento, provou-se que o A. recebeu ordens do seu superior hierárquico para proceder ao desentupimento do ciclofiltro do silo de 10 m3, tendo em cumprimento do ordenado subido a uma plataforma e introduzido a mão direita pela escotilha, para aceder ao ciclofiltro e verificar se existia aí material acumulado a entupi-lo, tendo sido atingido pelas pás metálicas da hélice da eclusa, que se encontrava em funcionamento, tendo-lhe cortado e amputado 3 dedos da mão direita.
Mais se demonstrou que era a primeira vez que o A. executava essa tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro, para a qual nunca tinha recebido qualquer formação e/ou informação, escrita ou verbal, nomeadamente sobre o modo como a devia efectuar, os riscos que apresentava e os cuidados a ter para a realizar em segurança. E que desconhecia o modo de funcionamento do sistema de aspiração/despoeiramento dos silos, nunca tendo sido informado de que existia lá uma eclusa, com uma hélice com pás metálicas em funcionamento, ou que deveria usar uma vareta para efectuar a tarefa de desentupimento.
Tendo-se ainda provado que aquando do acidente, não existia nenhum dispositivo ou mecanismo de segurança que interrompesse o movimento da hélice da eclusa, quando se abrisse a escotilha e antes do acesso à hélice, ou que impedisse esse acesso e o contacto com a hélice, quando em movimento. E que não estava colocada na máquina sinalização de segurança que alertasse para o perigo de esmagamento e/ou sucção de membros na escotilha e na boca de entrada e saída da válvula, mas apenas um símbolo de perigo, já bastante deteriorado.
Podendo concluir-se, à luz das regras da experiência comum e da normalidade das coisas, que o A. não teria introduzido a mão pela escotilha para verificar se havia material acumulado, se soubesse que existia lá uma hélice em funcionamento - como saberia, se lhe tivesse sido previamente prestada informação e formação sobre a tarefa de que foi incumbido.
Como não teria certamente sido atingido pela hélice da eclusa, se na altura estivesse lá instalado um mecanismo de segurança que interrompesse o seu movimento, quando a escotilha de acesso fosse aberta - mecanismo esse que só foi lá instalado depois do acidente; ou se uma vez aberta a escotilha, existisse alguma barreira física que impedisse que as suas mãos entrassem em contacto com a hélice.
Salientando-se que a tarefa em causa, por razões de segurança, deveria ter sido executada com o motor da eclusa desligado, para que as pás da hélice não rodassem, como se pode ler no relatório da análise ao acidente elaborado pela própria R. Empregadora, a fls. 91 a 97 do apenso - o que não sucedeu no caso concreto.
Houve consequentemente inobservância por parte da R. Empregadora de regras sobre segurança e saúde no trabalho – mormente as previstas nas citadas disposições dos arts. 15º n.º 4 e 20º da Lei n.º 102/2009, de 10/09 e 3º, al. a), 4º n.º 1, 5º, 8º, 16º n.º 1 e 19º n.º 1 do DL n.º 50/2005, de 25/02 e, num plano mais genérico, dos arts. 281º n.ºs 1, 2 e 3 do Cód. do Trabalho e 15º n.º 2, als. a), c) e g) da citada Lei n.º 102/2009, de 10/09 –, causais em relação à produção do sinistro.
Não tendo a R. Empregadora, através dos seus representantes e responsáveis, agido com o cuidado exigível a uma empresa normalmente diligente e prudente, pois não podia deixar de saber que o A. não tinha conhecimentos nem formação para desempenhar a tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro em segurança; que não existia qualquer mecanismo ou dispositivo que desligasse o motor da eclusa e interrompesse o movimento das pás da hélice, quando a escotilha fosse aberta; e que não existia nenhuma barreira física que impedisse que as mãos do operador entrassem em contacto com a hélice.
Mostrando-se como tal reunidos em concreto os pressupostos necessários à verificação da responsabilidade agravada a que se refere o art. 18º n.º 1 al. b), por parte da R. Empregadora.
Devendo, por conseguinte, reconhecer-se à R. Seguradora direito de regresso sobre o R. Empregadora, em relação às quantias que ficar vinculada a pagar ao A..
[,,]».
Discorda a recorrente, alegando, no essencial, o seguinte:
- O autor/sinistrado era trabalhador da ré há mais de 9 anos e sabia que existe um sistema de aspiração de ar na unidade fabril que direciona os resíduos para o silo, que está dotado de um filtro;
- O autor sabia que as operações de limpeza, dos espaços e equipamento é feita com auxílio de mangueiras de ar comprimido;
- O equipamento está situado na parte exterior do edifício fabril, e no momento do acidente era noite e estava chuva e vento, o que naturalmente contribuiu para dificultar a troca de palavras entre o autor e a chefia, e também, a vontade do autor em resolver o assunto de modo rápido e sem usar de cautelas;
- Para abrir a escotilha o autor teve que faz fazer bastante força, ou seja, a abertura não ocorreria por acto ou inadvertido, e na porta da escotilha existia um sinal de perigo;
- O acidente ocorreu fruto do infortúnio, e das circunstâncias, e do facto de o autor não ter usado o procedimento habitual de limpeza das máquinas com tubo de ar comprimido. Deveu-se à inobservância pelo sinistrado das regras normais da experiência, e não ao facto de não ter recebido formação, ou informação mais detalhada sobre a conduta que deveria ter para tentar desentupir o filtro do silo, bem como a um conjunto de circunstâncias, nomeadamente atmosféricas (noite, chuva e vento), voluntarismo do autor, e insuficiência da ordem e do acompanhamento da situação por parte da chefia.
II.2.1 O artigo 18.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, com a epígrafe “Actuação culposa do empregador”, no seu n.º1, dispõe o seguinte:
-“Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
Na Lei n.º 100/97, correspondia-lhe precisamente o n.º1 do art.º18.º, cujo teor é o seguinte:
- “Quando o acidente tiver sido provocado pela entidade empregadora ou seu representante, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, as prestações fixar-se-ão segundo as regras seguintes:
(..).”
Como se vê, as inovações introduzidas pelo actual n.º1 do art.º 18.º da Lei n.º 98/2009, limitam-se à inclusão da “entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra”, na previsão da norma.
Por conseguinte, tem aqui inteira validade a jurisprudência, uniforme e pacífica, produzida a propósito da norma no âmbito da Lei 100/97, sustentando, como melhor se explica no Acórdão do STJ de 28-11-2012, o seguinte:
«(..) a violação por parte da entidade empregadora ou do seu representante das mencionadas regras passou a constituir um caso de culpa efectiva e não um caso de culpa meramente presumida, como sucedia no regime anterior.
E compreende-se que assim seja, uma vez que a culpa, na sua forma de mera culpa ou negligência, se traduz na omissão da diligência, dos deveres de cuidado que um bom pai de família teria observado, em face das circunstâncias do caso, a fim de evitar o facto antijurídico que provocou o dano (art. 487.º, n.º 2, do C.C)
Assim, para efeito de aplicação dos artigos 18.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 13 de Setembro, cabe aos beneficiários do direito à reparação por acidente de trabalho, bem como às seguradoras que pretendam ver desonerada a sua responsabilidade infortunística, o ónus de alegar e provar os factos que revelem que o acidente ocorreu por culpa do empregador ou que o mesmo resultou da inobservância por parte daquele de regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho.
Todavia, não basta que se verifique um comportamento culposo da entidade empregadora ou a inobservância das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por banda da mesma entidade, para responsabilizar esta, de forma agravada, pelas consequências do acidente, tornando-se, ainda, necessária a prova do nexo de causalidade entre essa conduta ou inobservância e a produção do acidente.
Na verdade, como é jurisprudência pacífica, o ónus de alegar e provar os factos que agravam a responsabilidade do empregador compete a quem dela tirar proveito, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil [Cfr. Processo n.º 181/07.2TUFIG.C1.S1, PINTO HESPANHOL; e, no mesmo sentido, ainda os Acórdãos do STJ seguintes: 21-06-2007, Proc.º 07S534, Bravo Serra; 19-12-2007, Proc.º 07S3381, Bravo Serra; 3-06-2009, Proc.º 1321/05.1TBRAGH, Bravo Serra; 01-07-2009, Proc.º 823/06.7TTAVR.C1.S1, Mário Pereira; 14-04-2010, Proc.º 35/05.7TBSRQ.L1.S1, Pinto Hespanhol; 11.11.2010, Proc.º 3411/06.4TTLSB.L1.S1, Sousa Grandão; e, 09-11-2010, Proc.º 838/06.5TTMTS.P1.S1, Mário Pereira; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jst].
A obrigação de segurança no trabalho é estabelecida por normas -internacionais e nacionais – que têm por objecto a prevenção do conjunto de riscos susceptíveis de originar ou potenciar possibilidade de ocorrência de acidentes de trabalho.
Como elucida Monteiro Fernandes: “Ao criar, organizar e dirigir a empresa, o empregador cria riscos: não apenas o risco económico do negócio, mas também riscos para a segurança das pessoas que vão estar integradas no processo produtivo. Esses riscos são de gravidade muito variável, mas existem sempre, mesmo nos ambientes de trabalho – como o escritório ou o estabelecimento comercial- onde é menos fácil imaginar acidentes ou doenças relacionados com o trabalho. Compreende-se, pois, que a lei atribua ao empregador a obrigação de organizar e por em prática as medidas adequadas à prevenção de riscos profissionais” [Direito do Trabalho, 14.ª edição, Almedina, 2009, p. 288].
A CRP, no art.º 59.º n.º1, al. c), consagra o direito de todos os trabalhadores “à prestação do trabalho em condições de higiene e segurança e saúde".
Por seu turno, o Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, em matéria de prevenção de acidentes de trabalho (e doenças profissionais) apenas enuncia os princípios gerais, remetendo a regulamentação da prevenção (e reparação) para legislação específica [art.ºs 281.º e 284.º).
O art.º 281.º do CT 2009, estabelece, como a própria epígrafe imediatamente elucida, “Princípios gerais em matéria de segurança e saúde no trabalho”, dele resultando, no que aqui agora releva, que o trabalhador tem direito a prestar trabalho em condições de segurança (n.º1), recaindo sobre o empregador o dever de assegurar aquelas condições em todos os aspectos relacionados com o trabalho, “aplicando as medidas necessárias tendo em conta princípios gerais de prevenção” [n.º2], para o efeito devendo “mobilizar os meios necessários, nomeadamente nos domínios da prevenção técnica, da formação (..)” [n.º3].
Para além disso, é relevante referir que no artigo que estabelece os deveres do empregador, encontram-se também enunciados deveres gerais relacionados com esta matéria, “que podem ser englobados sob a designação de deveres de cuidado”. Assim:
Artigo 127.º [Deveres do empregador]
1 - O empregador deve, nomeadamente:
[..]
c) Proporcionar boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral;
[..]
g) Prevenir riscos e doenças profissionais, tendo em conta a protecção da segurança e saúde do trabalhador, (..);
h) Adoptar, no que se refere a segurança e saúde no trabalho, as medidas que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;
i) Fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidente ou doença;
[..]
2 - Na organização da actividade, o empregador deve observar o princípio geral da adaptação do trabalho à pessoa, com vista nomeadamente a atenuar o trabalho monótono ou cadenciado em função do tipo de actividade, e as exigências em matéria de segurança e saúde, designadamente no que se refere a pausas durante o tempo de trabalho.
[..].
Como também sintetiza Monteiro Fernandes, no Código do Trabalho “Fundamentalmente, está consagrado, nas suas manifestações mais relevantes e características, o aludido dever de cuidado e prevenção, o qual traduz a responsabilidade do empregador pelas condições de segurança e de vida que são oferecidas no âmbito da organização que criou”, constando as suas manifestações das normas acima apontadas [Op. Cit, p. 291].
Importa assinalar que uma das características do quadro normativo sobre segurança e saúde no trabalho consiste na multiplicidade e dispersão de regulamentação, quer internacional - designadamente de direito europeu (Directivas CEE, do Conselho e Regulamentos CE) -, quer nacional, sendo que actualmente este resulta, no essencial, da transposição daqueles instrumentos normativos para o direito interno.
A Lei-Quadro de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho - Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro – [transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 89/391/CEE, do Conselho, de 12 de Junho, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança (e da saúde dos trabalhadores) no trabalho] -, conforme estabelece o seu artigo 1.º, “(..) regulamenta o regime jurídico da promoção e prevenção da segurança e da saúde no trabalho, de acordo com o previsto no artigo 284.º do Código do Trabalho, no que respeita à prevenção” [n.º1].
Nos termos do disposto no art.º 3.º n.º1, a referida Lei aplica-se ao sector cooperativo e social [al.a)]; ao trabalhador por conta de outrem e respectivo empregador, incluindo as pessoas colectivas de direito privado sem fins lucrativos [al. b)]; e, ao trabalhador independente [al.c)].
O legislador pretendeu evitar divergências interpretativas quanto à aplicação do diploma, definindo no art.º 4.º, os conceitos essenciais para a operatividade do diploma, inclusive dando a noção de “perigo” e “risco”.
No que aqui releva, o referido artigo estabelece o seguinte:
Para efeitos da presente lei, entende-se por:
a) «Trabalhador» a pessoa singular que, mediante retribuição, se obriga a prestar um serviço a um empregador e, bem assim, o tirocinante, o estagiário e o aprendiz que estejam na dependência económica do empregador em razão dos meios de trabalho e do resultado da sua actividade;
(..)
c) «Empregador» a pessoa singular ou colectiva com um ou mais trabalhadores ao seu serviço e responsável pela empresa ou estabelecimento ou, quando se trate de organismos sem fins lucrativos, que detenha competência para a contratação de trabalhadores;
g) «Perigo» a propriedade intrínseca de uma instalação, actividade, equipamento, um agente ou outro componente material do trabalho com potencial para provocar dano;
h) «Risco» a probabilidade de concretização do dano em função das condições de utilização, exposição ou interacção do componente material do trabalho que apresente perigo;
i) «Prevenção» o conjunto de políticas e programas públicos, bem como disposições ou medidas tomadas ou previstas no licenciamento e em todas as fases de actividade da empresa, do estabelecimento ou do serviço, que visem eliminar ou diminuir os riscos profissionais a que estão potencialmente expostos os trabalhadores.
Os princípios gerais e sistema da prevenção de riscos profissionais surgem regulados no artigo 5.º, começando por dispor no seu n.º1, que “O trabalhador tem direito à prestação de trabalho em condições que respeitem a sua segurança e a sua saúde, asseguradas pelo empregador ou, nas situações identificadas na lei, pela pessoa, individual ou colectiva, que detenha a gestão das instalações em que a actividade é desenvolvida”. Por seu turno, o n.º3, vem exigir, para além do mais, que a prevenção dos riscos profissionais “deve assentar numa correta e permanente avaliação de riscos”, visando, entre outras finalidades, [al.f)] “A educação, a formação e a informação para a promoção da melhoria da segurança e saúde no trabalho”.
Por seu turno, a definição das obrigações gerais do empregador, em matéria de segurança e saúde no trabalho, consta do artigo 15.º da referida lei.
O n.º1, começa por reafirmar o dever geral de prevenção do empregador, consagrado no art.º 281.º 2, do CT/09, de “assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho”.
O n.º2, reitera esse dever de zelo pelo exercício da atividade em condições de segurança e de saúde para o trabalhador, que deve ser observado ”de forma continuada e permanente”, concomitantemente devendo ser levados em conta os princípios gerais de prevenção enunciados nas alíneas a) a l), entre elas, as seguintes:
[a)] Evitar os riscos;
[b)] Planificar a prevenção como um sistema coerente que integre a evolução técnica, a organização do trabalho, as condições de trabalho, as relações sociais e a influência dos fatores ambientais;
[c)] Identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, estabelecimento ou serviço, na conceção ou construção de instalações, de locais e processos de trabalho, assim como na seleção de equipamentos, substâncias e produtos, com vista à eliminação dos mesmos ou, quando esta seja inviável, à redução dos seus efeitos.
e) Combate aos riscos na origem, por forma a eliminar ou reduzir a exposição e aumentar os níveis de proteção;
j) Priorização das medidas de proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual;
l) Elaboração e divulgação de instruções compreensíveis e adequadas à atividade desenvolvida pelo trabalhador.
Em suma, o n.º 2 traça um quadro geral de princípios base a serem observados pelo empregador nas diversas vertentes da organização do trabalho para prossecução da sua actividade produtiva, quer no respeitante à selecção de produtos, equipamentos e materiais, quer ao nível dos métodos e processos de trabalho, com vista ao cumprimento do seu dever de prevenção e promoção da segurança e saúde no trabalho.
Essas medidas “devem ser antecedidas e corresponder ao resultado das avaliações dos riscos associados às várias fases do processo produtivo, incluindo as atividades preparatórias, de manutenção e reparação, de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador” (n.º3).
Da conjugação do n.º1 - quando se inicia dizendo “[O] empregador deve assegurar” -, com a parte final deste n.º3 – “de modo a obter como resultado níveis eficazes de proteção da segurança e saúde do trabalhador”, retira-se que a lei impõe ao empregador uma obrigação de resultado.
Mas o legislador, sempre com o propósito de acentuar e deixar bem claro o amplo âmbito das obrigações que recaem sobre o empregador para assegurar ao trabalhador condições de segurança e de saúde em todos os aspetos do seu trabalho, vai mais longe, prosseguindo este mesmo artigo, no que aqui releva, estabelecendo ainda o seguinte: [4] Sempre que confiadas tarefas a um trabalhador, devem ser considerados os seus conhecimentos e as suas aptidões em matéria de segurança e de saúde no trabalho, cabendo ao empregador fornecer as informações e a formação necessárias ao desenvolvimento da atividade em condições de segurança e de saúde.
Com relevo para o caso, deve referir-se, ainda, que nos termos da remissão efectuada pela alínea b), do n.º2, do art.º 19.º, para a alínea j), do n.º1, do art.º 18.º, n.ºs 1 e2 al, c), sem prejuízo da formação adequada, em caso de mudança de posto de trabalho ou funções, e entidade empregadora deve facultar ao trabalhador informação actualizada sobre “Os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço”. Logo de seguida, dispõe o art.º 20.º /1, 1 –que “O trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho e o exercício de atividades de risco elevado”.
Mas como se sabe, para além destes princípios gerais, existe depois uma multiplicidade de legislação avulsa, regulando matérias de segurança e saúde no trabalho, nuns casos com um âmbito de aplicação geral, noutros atendendo à especificidade da actividade da empregadora, ou então dos trabalhos a realizar, ou ainda atendendo ao tipo de riscos para segurança e saúde no trabalho.
No caso, conforme mencionado na sentença recorrida, releva o Decreto-lei n.º 50/2005, de 28 de Fevereiro, diploma que dita as prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho, impondo ao empregador, desde logo, o dever de [art.º 3.º/a)] “Assegurar que os equipamentos de trabalho são adequados ou convenientemente adaptados ao trabalho a efectuar e garantem a segurança e a saúde dos trabalhadores durante a sua utilização”; e, no que respeita aos requisitos mínimos de segurança e regras de utilização dos equipamentos de trabalho, obrigando a que [art.º 4.º/ 1] “Os equipamentos de trabalho devem satisfazer os requisitos mínimos de segurança previstos nos artigos 10.º a 29.º”.
Ainda deste diploma, como também assinalado na fundamentação do Tribunal a quo, relevam os artigos seguintes:
- [5.º] “Sempre que a utilização de um equipamento de trabalho possa apresentar risco específico para a segurança ou a saúde dos trabalhadores, o empregador deve tomar as medidas necessárias para que a sua utilização seja reservada a operador especificamente habilitado para o efeito, considerando a correspondente actividade”.
- [8.º] “(n.º1) O empregador deve prestar aos trabalhadores [..] a informação adequada sobre os equipamentos de trabalho utilizados”; “(n.º2) A informação deve ser facilmente compreensível, escrita, se necessário, e conter, pelo menos, indicações sobre: a) Condições de utilização dos equipamentos; b) Situações anormais previsíveis; [..] “d) Riscos para os trabalhadores decorrentes de equipamentos de trabalho existentes no ambiente de trabalho [..].
- [16.º/1] “Os elementos móveis de um equipamento de trabalho que possam causar acidentes por contacto mecânico devem dispor de protectores que impeçam o acesso às zonas perigosas ou de dispositivos que interrompam o movimento”.
- [19.º/1] “As operações de manutenção devem poder efectuar-se com o equipamento de trabalho parado ou, não sendo possível, devem poder ser tomadas medidas de protecção adequadas à execução dessas operações ou estas devem poder ser efectuadas fora das áreas perigosas”.
- [22.º] “Os equipamentos de trabalho devem estar devidamente sinalizados com avisos ou outra sinalização indispensável para garantir a segurança dos trabalhadores”.
II.2.2 Revertendo ao caso, antecipamos já concordarmos com a fundamentação do Tribunal e, consequentemente, com a conclusão final a que conduziu, significando isso, como já se percebeu, que não reconhecemos razão à recorrente. Passamos a justificar esta asserção.
Em primeiro lugar, importa ter presente que a recorrente não logrou provar a versão apresentada na acção, a qual era sustentada na matéria não provada elencada na sentença, nomeadamente, nos factos seguintes:
- Que o Chefe de equipa, BB, antes de incumbir o A. de desentupir o filtro, levou-o ao local e explicou-lhe detalhadamente como proceder para executar tal tarefa em segurança;
- Que o Chefe de equipa, BB, foi buscar um foco de luz, para poder dar informação mais detalhada ao A. sobre o interior do silo, tendo dito ao A. para não iniciar a operação de limpeza do filtro e aguardar pelo seu regresso, pois iria acompanhá-lo e orientá-lo na execução dessa operação;
- Que foi explicada ao A. a obrigatoriedade de utilizar a vareta de plástico, local onde se encontrava e os riscos e perigos de a não utilizar, tendo-lhe sido dito para não usar a mão, para não se magoar;
- Que na ocasião do acidente, a escotilha do silo estava dotada de um sistema de segurança, constituído por uma rosca que ali se encontrava colocada e apertada, e que impedia a abertura inadvertida da mesma e o aceso ao interior do silo;
- Que na altura do acidente, era visível sinalização de perigo junto à escotilha, evidenciando que não se deveria introduzir a mão dentro do silo, pois existia perigo de ferimentos;
- Que aquando do acidente, existia uma vareta de plástico junto à escotilha do silo.
Procura agora contornar a falta de prova da versão que apresentou na acção, estribando-se numa esforçada construção, nos termos que acima enunciámos, inclusive fazendo apelo a factos que nem constam provados, para concluir que “O acidente ocorreu fruto do infortúnio, e das circunstâncias, e do facto de o autor não ter usado o procedimento habitual de limpeza das máquinas com tubo de ar comprimido. Deveu-se à inobservância pelo sinistrado das regras normais da experiência, e não ao facto de não ter recebido formação, ou informação mais detalhada sobre a conduta que deveria ter para tentar desentupir o filtro do silo, bem como a um conjunto de circunstâncias, nomeadamente atmosféricas (noite, chuva e vento), voluntarismo do autor, e insuficiência da ordem e do acompanhamento da situação por parte da chefia”.
Mas como se disse, sem razão. Sublinha-se, ainda, que não se encontra nas alegações qualquer argumento jurídico para defender a alteração da sentença com base nesta construção, de modo a evidenciar o alegado erro do Tribunal a quo ao concluir pela verificação dos pressupostos para enquadramento do caso na previsão do art.º 18.º 1, da LAT.
É certo que o autor tinha 9 anos de antiguidade na empresa, mas se porventura sabia que existia um sistema de aspiração de ar na unidade fabril dotado de um filtro, que direciona os resíduos para o silo, esse conhecimento era absolutamente irrelevante para a execução do desentupimento/desobstrução do ciclofiltro, pois como é evidente isso não significa que soubesse como funcionava o sistema nem como deveria ser executada essa tarefa e muito menos que esse conhecimento fosse suficiente para lhe conferira as competências necessárias para a executar salvaguardando a sua segurança.
Para além disso, contrariamente ao pressuposto em que assenta a argumentação, não está provado que o facto de ser noite, chover e fazer vento, criasse dificuldade de “troca de palavras entre o autor e a chefia”, em concorrência com uma alegada “vontade do autor em resolver o assunto de modo rápido e sem usar de cautelas”, cenário que a recorrente vem agora apresentar para defender que o acidente se deveu a “voluntarismo do autor, e insuficiência da ordem e do acompanhamento da situação por parte da chefia”. De resto, estas supostas circunstâncias nem sequer foram alegadas na acção.
Ademais, a recorrente parece esquecer o conjunto de factos provados e efectivamente relevantes, nomeadamente, os seguintes:
8. Era a primeira vez que o A. executava a tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro.
9. O A. nunca tinha recebido qualquer formação e/ou informação sobre o modo como devia efectuar essa tarefa, os riscos que apresentava e os cuidados a ter para a realizar em segurança.
10. O A. desconhecia o modo de funcionamento do sistema de aspiração/despoeiramento dos silos.
11. O A. não foi informado de que existia uma eclusa, com uma hélice com pás metálicas, nem que a mesma se encontrava em funcionamento.
12. A R. Empregadora não deu ao A. orientações escritas sobre o modo de execução dessa tarefa.
13. Aquando do acidente o A. desconhecia a existência de qualquer vareta que devesse ser utilizada para efectuar a tarefa de desentupimento.
14. O A. tinha sido promovido em 01.04.2019 de “Operador de linha” a “Controlador de linha”, estando em fase de aprendizagem aquando do acidente, dada pelo Chefe de equipa, CC.
Deste conjunto de factos resulta bem evidenciado que o Autor não tinha o mínimo conhecimento necessário para poder executar a tarefa em causa em segurança. Não obstante essa evidência, desprezando o que o mais elementar bom sendo aconselharia, o seu superior hierárquico /chefe de equipa, BB, deu-lhe ordens “para subir a uma plataforma e aceder ao ciclofiltro, para o desentupir” [facto 6], ocorrendo então o acidente quando introduziu a mão direita pela escotilha, para verificar se existia aí material acumulado, tendo sido atingido pelas pás metálicas da hélice da eclusa, em funcionamento, causando-lhe amputação de 3 dedos (D2, D3 e D4) da mão direita por F2..
Por conseguinte, apenas pode dizer-se que os argumentos em apreciação não têm qualquer lógica, sendo de todo descabidos.
Alega, ainda, que para abrir a escotilha o autor teve que faz fazer bastante força, ou seja, a abertura não ocorreria por acto inadvertido, e que na porta da escotilha existia um sinal de perigo. Porém, esquece agora não se ter provado a sua alegação, ou seja, “Que na altura do acidente, era visível sinalização de perigo junto à escotilha, evidenciando que não se deveria introduzir a mão dentro do silo, pois existia perigo de ferimentos”, bem assim que diversamente resultou provado que [17] Aquando do acidente, não estava colocada na máquina sinalização de segurança que alertasse para o perigo de esmagamento e/ou sucção de membros na escotilha e na boca de entrada e saída da válvula, mas apenas um símbolo de perigo, já bastante deteriorado.
Por conseguinte, com o devido respeito, resta repetir que esta esforçada construção não tem o mínimo sustento factual, faz tábua rasa dos factos essenciais provados, bem como do quadro legal a considerar, logo, sendo de todo descabida.
Na verdade, do quadro legal enunciado resulta inequivocamente que se impunha à recorrente empregadora, em primeira linha, dar a devida formação e informação ao trabalhador sinistrado para realizar a tarefa que lhe foi atribuída com noção dos riscos a que estava sujeito e como os devia minimizar, o que não foi observado.
Depois, desde que o trabalhador tivesse essa competência e informação adequada, cabia à empregadora planear a execução da tarefa em causa de modo a identificar e prevenir os riscos, para assegurar as medidas de segurança essenciais e adequadas à minimização do risco de acidente, desde logo, garantido que não era realizada com o sistema em funcionamento. Ora, também nada disso foi observado, muito pelo contrário, foi ordenado ao A. que realizasse uma tarefa que envolvia risco elevado para a sua segurança, sem estar preparado para tal, sem qualquer informação básica e elementar e, mais, manifestamente sem o mínimo de planeamento adequado e necessário para garantir que a executaria sem perigo de ocorrência de um acidente, tanto mais que o sistema foi mantido em funcionamento, quando não só era exigível por lei que fosse imobilizado, como até o mais elementar bom senso impunha esse cuidado.
Acresce, que a montante impunha-se, desde logo, que o sistema estivesse dotado de um dispositivo ou mecanismo de segurança que interrompesse o movimento da hélice da eclusa, quando se abrisse a escotilha e antes do acesso à hélice, ou que impedisse esse acesso e o contacto com a hélice, quando em movimento, o que também não se verificava (facto 15). Assim como era devido que o sistema dispusesse de adequada e bem visível sinalização para alertar dos perigos de esmagamento e/ou sucção de membros na escotilha e na boca de entrada e saída da válvula, o que igualmente não se verificava (facto 17).
Por conseguinte, como antecipadamente se deixou afirmado, bem decidiu o Tribunal a quo, ao concluir como segue:
Houve consequentemente inobservância por parte da R. Empregadora de regras sobre segurança e saúde no trabalho – mormente as previstas nas citadas disposições dos arts. 15º n.º 4 e 20º da Lei n.º 102/2009, de 10/09 e 3º, al. a), 4º n.º 1, 5º, 8º, 16º n.º 1 e 19º n.º 1 do DL n.º 50/2005, de 25/02 e, num plano mais genérico, dos arts. 281º n.ºs 1, 2 e 3 do Cód. do Trabalho e 15º n.º 2, als. a), c) e g) da citada Lei n.º 102/2009, de 10/09 –, causais em relação à produção do sinistro.
Não tendo a R. Empregadora, através dos seus representantes e responsáveis, agido com o cuidado exigível a uma empresa normalmente diligente e prudente, pois não podia deixar de saber que o A. não tinha conhecimentos nem formação para desempenhar a tarefa de desentupimento/desobstrução do ciclofiltro em segurança; que não existia qualquer mecanismo ou dispositivo que desligasse o motor da eclusa e interrompesse o movimento das pás da hélice, quando a escotilha fosse aberta; e que não existia nenhuma barreira física que impedisse que as mãos do operador entrassem em contacto com a hélice.
Mostrando-se como tal reunidos em concreto os pressupostos necessários à verificação da responsabilidade agravada a que se refere o art. 18º n.º 1 al. b), por parte da R. Empregadora».
Na verdade, do conjunto de factos provados apenas pode concluir-se que a ré descurou em absoluto todas as regras de segurança que se lhe impunha observar, desde logo, quanto às condições de instalação do sistema.
Improcede, pois, esta parte do recurso.
II.2.3 Para o caso de não ver atendida aquela primeira linha de argumentação, vem a recorrente insurgir-se contra a sentença na parte em que a condenou no pagamento ao Autor de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de €10.000,00.
Na fundamentação da sentença, sobre esse pedido o Tribunal a quo pronunciou-se como segue:
-«[..]
Quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais formulado pelo A., de acordo com o art. 2º, o direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho compreende apenas, em princípio, as prestações em espécie e em dinheiro previstas no art. 23º, onde não se inclui, nomeadamente, a indemnização por danos não patrimoniais. Sendo como tal menos abrangente que a reparação civil, que visa a reconstituição da situação pré-existente à ocorrência do acidente.
Na verdade, a reparação infortunística laboral situa-se no âmbito da responsabilidade pelo risco, pelo que não há em regra lugar à reparação de danos não patrimoniais, excepto no caso especial consagrado no art. 18º n.º 1, em que o acidente tenha sido dolosamente provocado pela entidade patronal, ou resultar de falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, situação em que se ressalva expressamente a possibilidade de responsabilização da entidade empregadora por danos morais.
É o que sucede no caso concreto, em que existiu inobservância por parte da R. Empregadora de regras sobre segurança no trabalho, cuja violação foi causal em relação ao sinistro e às consequências que dele resultaram para o A..
Estabelece o art. 483º n.º 1 do Cód. Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. E o art. 496º n.º 1 do mesmo código que “Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.
Torna-se assim necessária à procedência do pedido, a demonstração em concreto da ocorrência de um facto ilícito e culposo; a verificação de danos não patrimoniais com gravidade bastante para serem merecedores da tutela do direito; e o nexo de causalidade entre tais danos e o facto ilícito e culposo praticado.
No caso, já se concluiu pela existência de uma actuação ilícita e culposa da R. Empregadora, com nexo de causalidade em relação à produção do acidente e aos danos que para o A. dele resultaram.
Provou-se com relevo na matéria que antes do acidente, o A. era saudável, robusto, alegre e não sofria de qualquer deformação física, tendo em consequência do acidente sofrido fortes dores na mão direita e incómodos, durante mais de um mês, decorrentes das lesões, intervenção cirúrgica, consultas, exames e tratamentos de fisioterapia a que foi submetido.
E que como consequência directa e necessária das lesões sofridas com o acidente, em que perdeu 3 dedos da mão direita, o A. tem dificuldade em conduzir a sua viatura, em andar de bicicleta, em escrever e em realizar as normais tarefas do seu quotidiano, nomeadamente vestir-se, sentindo falta de força e de sensibilidade no local.
Tendo-se ainda demonstrado que a perda dos 3 dedos da mão direita causa ao A. desconforto, incómodo, tristeza, complexos e vergonha, procurando esconder a mão direita em público.
Tais danos de natureza não patrimonial revestem gravidade bastante para justificar a atribuição ao A. de uma compensação pecuniária, para cuja determinação se deverão considerar os danos sofridos, o grau de culpabilidade da R. Empregadora, a situação económica desta e do A. e as demais circunstâncias do caso, em consonância com as disposições conjugadas dos arts. 496º n.º 3 e 494º do Cód. Civil.
Entendendo-se no caso como ajustado fixar em €10.000,00 o montante da indemnização, ponderando a gravidade dos danos sofridos pelo A.; o assinalável grau de ilicitude e culpa no comportamento da R. Empregadora, que não lhe prestou qualquer formação em matéria de segurança e prevenção de acidentes de trabalho, relacionada com a tarefa que o incumbiu de executar, que implicava risco, potenciado pela não implementação de qualquer mecanismo de protecção que impedisse o contacto das mãos com as pás da hélice em movimento; o desconhecimento da actual situação económica do A.; e o facto da R.
Empregadora ser uma empresa já de assinalável dimensão, com um capital social de €2.500.000,00 (cfr. certidão permanente de fls. 78 e segs. dos autos) e cerca de 40 trabalhadores ao seu serviço (cfr. relatório do inquérito ao acidente elaborado pela ACT, a fls. 40 e segs.), fazendo presumir uma capacidade económica pelo menos razoável».
Discorda a recorrente, alegando que na apreciação do dano não patrimonial foi considerado que o sinistrado sofreu amputação total de três dedos, quando a amputação foi parcial, pois que ao nível da F2 – falange média (ou falanginha), pelo que ponderando esta correção aos factos que serviram de base à fixação do dano, tendo por base o critério da sentença, deve este ser fixado em valor não superior a €6.500,00.
Como se retira com clareza da transcrita fundamentação, a indemnização não foi fixada no montante de €10.000,00 apenas na consideração do sinistrado ter perdido três dedos da mão direita. Por outro lado, pese embora as alterações que se introduziram aos factos 7, 22 e 23 - para que traduzissem com rigor o resultado do exame pericial singular -, da fundamentação também se percebe que o Tribunal a quo não partiu do pressuposto de que o sinistrado perdeu os três dedos por completo. O que o Tribunal enfatiza, e bem, são os efeitos práticos para a vida diária da perda de capacidades da mão direita em virtude da amputação sofrida e, também, os efeitos de ordem psicológica decorrentes para o sinistrado desses factos condicionadores da sua vida para o futuro, quer em termos funcionais quer na vertente estética.
Na verdade, parafraseando a pertinente observação do Digno Magistrado do Ministério Público, a perda de três dedos da mão direita, seja na totalidade ou 2/3, para o efeito de avaliar a indemnização por danos morais não parece tão significativa, que justifique a alteração do montante da indemnização por danos não patrimoniais.
Assim, também nesta parte improcede o recurso.

III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
- Procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Improcedente a impugnação por erro de julgamento na aplicação do direito, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)

Porto, 4 de Maio de 2022
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira