Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0340047
Nº Convencional: JTRP00036155
Relator: AGOSTINHO FREITAS
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP200306040340047
Data do Acordão: 06/04/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: T J PAÇOS FERREIRA 1J
Processo no Tribunal Recorrido: 417/00
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Área Temática: .
Legislação Nacional: CP95 ART152 N2.
Sumário: Se as várias agressões físicas descritas na acusação e consideradas provadas na sentença não estão localizadas no tempo, não se pode concluir pela reiteração exigida pelo crime de maus tratos a cônjuge previsto e punido pelo artigo 152 n.2 do Código Penal de 1995.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No .... Juízo do Tribunal Judicial da comarca de P....., no processo n.º ..../..., foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, o arguido Joaquim ....., acusado pelo Ministério Público da autoria material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.º 152°, n.o 2, do Código Penal, e civilmente demandado pela ofendida Maria Fernanda ....., pela quantia de 4.987,97 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em razão da conduta do arguido.
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Realizado o julgamento, com documentação dos actos de audiência, por sentença de 06-10-2002, o tribunal veio a decidir, no que ao recurso interessa, o seguinte:
- Julgar a acusação procedente por provada e, em consequência, condenar o arguido Joaquim ..... pela prática de um crime de maus tratos a cônjuge, do art. 152º do Código Penal, na pena de 15 meses de prisão, suspendendo a sua execução pelo período de dois anos.
- Julgar o pedido de indemnização civil procedente por provado e, em consequência, condenar o arguido a pagar à ofendida a quantia de 4.987,97 €.
[…]
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, extraindo da correspondente motivação a seguinte conclusão (transcrição):
A) A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA VALOROU FACTOS QUE NÃO PODIA FAZER, MAXIME, OS REFERIDOS NOS PONTOS, 3-4-5-8-9-11 E 12, JÁ QUE NÃO SÃO INTEGRADORES DO CONCEITO DE REITERAÇÃO PARA PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DE CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE.

B) NÃO FORAM ALEGADOS FACTOS MATERIAIS SIMPLES E CONCRETOS DEVIDAMENTE ENQUADRADOS NAS CIRCUNSTÂNCIAS DE TEMPO, MODO E LUGAR, QUE UMA VEZ PROVADOS, PUDESSEM INTEGRAR O CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE.

C) OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS NA DOUTA SENTENÇA E CONSTANTES DA DOUTA ACUSAÇÃO PUBLICA, COM EXCEPÇÃO DO PONTO 6, NÃO PODIAM SER IMPUGNADOS ESPECIFICADAMENTE PELO ARGUIDO E DAÍ A SUA IRRELEVÂNCIA JURÍDICA.

D) OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS, DADO SEREM MERAMENTE CONCLUSIVOS E OU DESENQUADRADOS DAS CIRCUNSTÂNCIAS DE TEMPO, MODO E LUGAR EM QUE TERÃO OCORRIDO, SÃO INSUSCEPTÍVEIS DE SEREM SUBSUMIDOS AO CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE.

E) MESMO QUE ASSIM SE NÃO ENTENDA SEMPRE OS FACTOS OFENSIVOS REFERIDOS NA DOUTA SENTENÇA TERÃO DE HAVER-SE POR PERDOADOS PELO CÔNJUGE INOCENTE, JÁ QUE NÃO FORAM IMPEDITIVOS DA VIDA EM COMUM.

F) O ÚNICO FACTO CONCRETO PROVADO FOI A AGRESSÃO VERIFICADA EM JULHO DE 2.000, SENDO QUE ESTA NÃO É OBJECTIVAMENTE GRAVE, NEM FOI PRATICADA SEM MOTIVO OU PRETEXTO, JÁ QUE HOUVE RAZÃO PARA TAL A QUAL ESTAVA RELACIONADA COM A PARTILHA EM VIDA DOS BENS DO CASAL, À QUAL O ARGUIDO SE OPÔS E DAÍ A REACÇÃO DA OFENDIDA.

G) SÓ FACTOS CONCRETOS E DETERMINADOS E REITERADOS E OCORRIDOS A PARTIR DE JULHO DE 2.000, DATA DA SEPARAÇÃO DO CASAL, SERIAM PASSÍVEIS DE QUALIFICAÇÃO, UMA VEZ ALEGADOS E PROVADOS, DE INTEGRAR O CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE E NUNCA OS VERIFICADOS ANTERIORMENTE, MAXIME, HÁ MAIS DE DOIS ANOS, NEM SEQUER CONCRETAMENTE ALEGADOS E PROVADOS, COMO, IN CASU, SE PRETENDE.

H) O ARGUIDO SÓ DEVERÁ SER ASSIM CONDENADO PELA PRÁTICA DO CRIME DE OFENSAS CORPORAIS SIMPLES PREVISTO E PUNIDO PELO ARTIGO 143º DO C. PENAL, CRIME PARA O QUAL SE DEVERA CONVOLAR A CONDENAÇÃO.

I) O PERDÃO ENTRE OS CÔNJUGES, MESMO IMPLÍCITO, TEM RELEVÂNCIA CIVIL E CRIMINAL.

J) A LEI PENAL, MAXIME, PARA PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DO ARTIGO 152, NÃO PODE DAR RELEVÂNCIA A FACTOS OFENSIVOS QUE PARA O LEGISLADOR CIVIL DEIXARAM DE O SER FACE AO PERDÃO PELO CÔNJUGE INOCENTE, O QUE IRIA CONTRA A LÓGICA DO SISTEMA NO SEU CONJUNTO.

L) A MATÉRIA CONSTANTE DOS FACTOS PROVADOS COM EXCEPÇÃO DO PONTO 6, DADO SER MERAMENTE CONCLUSIVA E OU INSUSCEPTÍVEL DE PROVA, PORQUE NÃO ENQUADRADA NAS CIRCUNSTÂNCIAS DE TEMPO, MODO E LUGAR, EM QUE SE VERIFICOU, O QUE IMPEDIU O ARGUIDO DE A IMPUGNAR ESPECIFICADAMENTE, NÃO PODE SER VALORADA COMO INTEGRADORA DO CONCEITO DE REITERAÇÃO PARA EFEITO DO PREENCHIMENTO DO TIPO LEGAL DE CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE.

M) EM CONSEQUÊNCIA A CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL NÃO PODE DEIXAR DE SER INADEQUADA, POR EXAGERADA, FACE AO ILÍCITO PRATICADO, MAXIME, CRIME DE OFENSAS CORPORAIS SIMPLES.

N) MAL ANDOU POIS A MERIT.A SR.A DR.A JUIZ A QUO AO CONDENAR O ARGUIDO COMO AUTOR MATERIAL DE UM CRIME DE MAUS TRATOS A CÔNJUGE.

O) VIOLOU A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, POR ERRO DE SUBSUNÇÃO O DISPOSTO NOS ARTIGOS, 410º N.OS 2 E 3 DO C. P. P.; 152.º DO C.PENAL; 1780 E 1786 DO C. CIVIL.

P) VIDE NO SENTIDO DO EXPOSTO, POR TODOS O DOUTO ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE ÉVORA DE 23 DE NOVEMBRO DE 1999, IN COLECTÂNEA DE JURISP. ANO 24-1999-TOMO 5-PAG. 284 E 285 E ACÓRDÃO DA REL. DO PORTO DE 3 DE NOVEMBRO DE 1999, IN COLECT. DE JURISP. ANO 24-1999-TOMO 5-PAG. 223 A 226.
TERMOS EM QUE REVOGANDO-SE
A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA E SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE CONDENANDO O ARGUIDO COMO AUTOR MATERIAL DE UM CRIME DE OFENSAS CORPORAIS SIMPLES PREVISTO E PUNIDO PELO ARTIGO 143.º DO C.PENAL, BEM COMO CONDENANDO O DEMANDADO CÍVEL NO PAGAMENTO DE UMA INDEMNIZAÇÃO NÃO SUPERIOR A 250 EUROS, SERÁ FEITA JUSTIÇA
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Admitido o recurso, a Ofendida/Demandante Maria Fernanda ..... apresentou resposta, rematando-a com a seguinte conclusão (transcrição):
1.ª O que importa para a decisão destes autos são factos provados em julgamento e a aplicação do Direito a esses factos, como fez bem, o Tribunal recorrido, pois perante aquilo que foi provado em Audiência de julgamento a decisão do Tribunal não podia ser outra.
2.ª Os actos praticados pelo arguido contra a pessoa da sua esposa e ofendida são os de artigo 152.º do Código Penal, e não os do artigo 143.º do mesmo Código.
3.ª Nunca houve perdão por parte da ofendida para existir perdão a ofendida tinha que ser livre para perdoar ou não, a ofendida viveu sempre num mundo de medo e terror criado pelo arguido que perdeu a qualidade de ser humano para ser um pau mandado do arguido, pois quem perde pelo medo toda a dignidade humana faz tudo o que quer o mandante.
4.ª Há continuidade pois a violência praticada pelo arguido sobre a ofendida era permanente até ao último acto que provocou a separação de facto entre o arguido e a ofendida.
5.ª Não há de exclusão da ilicitude, pois o tratamento psiquiátrico do Réu foi posterior aos factos, nem tão pouco causa de justificação, pois uma eventual questão de partilha não justifica violência conjugal.
6.ª O valor atribuído a título de indemnização civil é perfeitamente justo e equilibrado e para mais o arguido e a ofendida tem duas casas de habitação.
Pedido
Termos em que negando-se provimento ao recurso se fará inteira Justiça.
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O Ex.mo Magistrada do M.º P.º também apresentou resposta que rematou com a seguinte conclusão (transcrição):
1- Os factos imputados ao arguido e pelos quais veio a ser condenado, estavam claramente concretizados na acusação e situados no tempo;

2- O arguido Joaquim ....., durante os vários anos que manteve a comunidade conjugal com a ofendida Maria Fernanda ....., de forma reiterada, tratou-a de forma cruel, ofendendo física e psiquicamente;

3- Tal revela que o arguido de forma voluntária adoptou um comportamento de total desrespeito da dignidade pessoal do seu cônjuge;

4- Esta conduta é claramente violadora do tipo legal de crime previsto no art.º 152.º do Código Penal, por que foi condenado o arguido;

5- A M.ma Juiz “a quo” efectuou um correcto enquadramento jurídico dos factos dados como provados e a medida concretamente aplicada foi ajustada ao comportamento do arguido;

6- Não houve, pois, violação de qualquer normativo legal;

7- Deve, assim, ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a douta decisão recorrida.
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto aderindo à posição sustentada pelo Ministério Público na 1.ª instância, emitiu o seu douto parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não houve resposta.
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Colhidos os vistos legais e realizada a audiência de julgamento, cumpre decidir.
A fundamentação fáctica da sentença recorrida é a que se transcreve.
1. Factos provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:

1. O arguido casou-se com a ofendida Maria Fernanda ..... no dia 9 de Julho de 1961, na freguesia de ....., nesta comarca.

2. A casa de morada de família estava situada, após breves temporadas em outros locais, em lugar de ....., freguesia de ....., nesta comarca.

3. Desde o início da vida em comum que o relacionamento entre arguido e ofendida se revelou conflituoso, gerando-se entre ambos discussões frequentes.
Na sequência dessas discussões e frequentemente, o arguido agredia corporalmente a ofendida, com as mãos, assim como utilizando cabos de vassoura, que vibrava no corpo da depoente, louça, que projectava na direcção desta à vista dos filhos menores do casal, e até objectos cortantes, como uma foice, com a qual chegou a cortar a ofendida num dedo, pelo menos numa ocasião.

4. Agindo assim, o arguido causava grande humilhação na ofendida, para além das dores e lesões decorrentes de tais agressões.
Destas agressões resultaram ferimentos para a ofendida Maria Fernanda, a qual os curava por si própria, sem recurso a estabelecimento hospitalar.
O arguido contava, para a consumação da violência descrita, com a sua superior força física e a resignação da ofendida, assim enxovalhando e diminuindo sistematicamente a ofendida.

5. Por muitas vezes o arguido se dirigiu à ofendida com as seguintes expressões: “puta”; “filha da puta” e “vaca”.

6. Mais recentemente, em data não concretamente apurada, mas situada no princípio do mês de Julho de 2000, à tarde, no momento em que a queixosa regressava a casa, o arguido, sem qualquer motivo ou pretexto, ergueu no ar uma enxada, que não foi possível apreender e examinar, e vibrou-a na direcção da ofendida, acabando por atingir, com o cabo da dita enxada, numa outra enxada que a queixosa transportava ao seu ombro, assim lhe causando dores.

7. Da descrita agressão resultou para a queixosa um traumatismo na região superior do ombro esquerdo.
Ainda como consequência da agressão referida em 6, bem como de todo o ambiente familiar que a envolvia e no qual viveu desde a data do casamento, resultou para a queixosa um síndroma depressivo reactivo, que se prolongou até ao dia 5 de Março de 2001, altura da consolidação da referida lesão, que lhe demandou, pelo menos, 238 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.
A ofendida sentiu-se vexada.

8. Ao longo de todo o tempo de vida em comum e por diversas vezes, o arguido, de forma séria e com a intenção de amedrontar a sua esposa, dizia-lhe com frequência que a havia de matar, apontando-lhe objectos como uma foice, reforçando assim o temor que tais acções causavam na ofendida.

9. Em data não concretamente apurada, o arguido disse à ofendida, quando esta conversava com uma nora: "...e a ti, sua filha da puta, hei-de cortar-te a cabeça e espetá-la, num pau". Ainda em outra ocasião o arguido, dirigindo-se à ofendida, disse-lhe: “minha puta, só com uma faca no bucho”.

10. Por causa da prática reiterada, por parte do arguido, de factos do mesmo género dos descritos, a ofendida Maria Fernanda abandonou o seu lar e actualmente encontra-se a viver em uma casa que é bem comum do casal, junto de um dos seus filhos, assim se separando de facto do seu marido; separação que sucedeu poucos dias após os a ocorrência dos factos dados como provados em 6.

11. 0 arguido sempre agiu voluntária e conscientemente.
Ao proferir as expressões acima referidas, fazia-o com foros de seriedade, levando a ofendida a recear pela sua integridade física, perturbando assim a liberdade pessoal daquela. Ao agredir a ofendida da forma supra descrita, o arguido fazia-o com o propósito concretizado de atingir a ofendida na respectiva integridade física, de modo a produzir-lhe dores e lesões do tipo das verificadas.
Aliás, por via dessas condutas, a ofendida Maria Fernanda sofreu, de forma acentuada, física e psicologicamente e encontra-se ainda psiquicamente debilitada.
O arguido agiu deliberadamente, com intenção de maltratar e de infligir maus tratos na sua mulher, tendo-a agredido, insultado, ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções.
Sabia que não podia tratar a sua esposa de forma cruel.
Sempre soube o arguido que tais condutas eram proibidas por lei.

12. A Ofendida sofreu dores, angústia, revolta e medo devido ao relacionamento existente entre esta e o Arguido.

13. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.

14. O arguido está reformado, auferindo a reforma mensal de cerca de 300 EUR. Como despesas mensais fixas, para além das relativas a alimentação e vestuário, em montante não concretamente apurado, tem a de 45 EUR, para pagamento de água e luz e 75 EUR, de despesas de saúde. O arguido encontra-se debilitado fisicamente, em razão de doença e está a submeter-se a tratamento psiquiátrico no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital do Vale do Sousa, o qual começou pouco tempo após a separação do casal. Arguido e ofendida são proprietários de duas casas de habitação.

2. Factos não provados
Com interesse para a decisão não se provou que:
a) As discussões referidas em 3 eram provocadas pelo arguido, que recorria a todo e qualquer pretexto, nomeadamente, a pretensas imperfeições na execução das diversas tarefas domésticas, que cabiam em exclusivo à ofendida;
b) Na sequências das discussões o arguido agredia invariavelmente a ofendida;
c) Para acentuar o rebaixamento da ofendida, o arguido pontuava as agressões com expressões como "puta", “filha da puta'' e "vaca";
d) Os factos dados como provados em 6 ocorreram no passado dia 10 de Julho de 2000, cerca das 16 horas e 10 minutos;
e) O arguido vibrou a enxada, nos termos dados como provados em 6, com força;
f) Para lá do que se deu como provado em 8, o arguido ameaçou a ofendida com uma navalha;
g) No dia 10 de Junho de 1981, três dias após o nascimento da filha mais nova do casal, sem motivo que o justificasse, o arguido virou-se para a ofendida, brandindo um objecto de características não precisamente determinadas, mas que aparentava ser um revólver, e disse-lhe: "Minha puta! Onde é que elas foram com a menina? Eu mato-te!", referindo-se a uma filha mais velha do casal que havia transportado a bébé recém-nascida ao Centro de Saúde de P..... . Tal actuação muito amedrontou e chocou a ofendida.
h) Na véspera do dia do Corpo de Deus no ano de 2000, quando a ofendida se dirigia a casa depois de sachar o terreno de uma vizinha, o arguido começou, de forma dissimulada, a atirar-lhe pedras, sem a atingir; sendo que, quando a depoente se aproximou daquele para o repreender, o arguido dirigiu-lhe a seguinte expressão: “Minha puta, só com uma faca no bucho";
i) A ofendida encontra-se ainda, em razão da conduta do arguido, fisicamente muito abalada;
j) O arguido agiu por malvadez e egoísmo;
k) A agressão referida em 6 foi muito forte e inesperada;
l) A ofendida é respeitada e muito bem conceituada no seu meio social;
m) A ofendida sentiu pânico e choque face à elevada perigosidade do meio utilizado como objecto da agressão;
n) O arguido não praticou os factos constantes da acusação;
o) A ofendida não está no seu perfeito juízo, não tendo assim total consciência do valor e alcance dos seus actos.

3. Convicção do Tribunal
A convicção do Tribunal formou-se a partir do conjunto dos seguintes elementos de prova:
- no teor do documento de fls. 62, no que interessa ao dado como provado em 1;
- no CRC junto aos autos a fls. 82, no que interessa à ausência de antecedentes criminais do arguido;
- nas declarações do arguido mesmo quanto à sua situação profissional, familiar, económica, em termos que mereceram inteira credibilidade. Ainda nas suas declarações quanto ao facto de estar a submeter-se a tratamento psiquiátrico e na percepção do tribunal quanto ao seu estado de saúde;
- no depoimento do arguido e nas declarações da ofendida, nessa parte coincidentes, quanto ao dado como provado em 2 e 3, parágrafo 1º;
- na percepção do tribunal aquando da tomada de declarações à ofendida e bem assim nas declarações da testemunha A......, médico que presta assistência clínica à ofendida e que depôs de forma perfeitamente isenta e credível, no que respeita à matéria dada como não provada em o). Na mesma percepção do tribunal, no que interessa ao dado como não provado em i);
- Ainda no depoimento da mencionada testemunha A......, que, seguindo a ofendida como médico, demonstrou conhecimento directo dos factos e no teor dos autos de exame médico constantes a fls. 16; 45; 54 e 57 do processo, no que interessa à matéria dada como provada em 7 e 12, mais se fazendo uso das regras da normalidade ou da experiência comum no que atine às consequências da agressão.
- No que interessa aos demais factos dados como provados, em 3 a 12 da matéria assente e ao dado como não provado em n), o tribunal fundou-se na conjugação ou articulação dos depoimentos da ofendida mesma, em termos credíveis e convincentes, pela sua impressividade, certeza, localização temporal e espacial, (sendo certo que confirmadas as suas declarações pela prova testemunhal produzida) e das testemunhas J.....; Eurico .....; Sandra .....; Maria O..... e Olga ....., as quais, sendo filhos do casal formado pelo arguido e ofendida (os três primeiros) e noras (as duas últimas), demonstraram conhecimento directo dos factos e depuseram de forma isenta e credível, coordenada aliás com as declarações da ofendida. Em nada abalou a sua isenção ou credibilidade a alusão a conflitos com o progenitor em razão de questões de partilhas, posto que os factos por elas trazidos a juízo e relativos às agressões, ameaças e injúrias de que a ofendida foi vítima e praticadas pelo arguido foram-no de forma clara e fundada, assentes na percepção directa, as mais das vezes. Acresce que o depoimento dos filhos do casal arrolados pela defesa, Maria do Carmo; Maria Odete e António ........, mais pelo que não disseram ou não quiseram dizer e pela tentativa de desculpabilização do progenitor paterno e do achamento de outras razões para a saída da ofendida da casa de morada de família, não deixou de confirmar a existência de agressões, insultos e ameaças do arguido à ofendida. E se é certo que, quanto à agressão dada como assente em 6, nenhuma das testemunhas ouvidas a presenciou, apenas a ofendida se lhe referiu, adiante-se, em termos perfeitamente credíveis, não é menos certo que a sua existência e verificação, na ocasião dada como assente, é confirmada pelas regras da experiência comum, em termos de se impor uma presunção judicial ou natural da sua ocorrência. Assim é que, para lá das declarações da ofendida mesma, os dados objectivos consistentes na situação de doença subsequente e aguda (na avaliação do médico, Dr. A......) sustentam a demonstração da verificação daquela agressão. O próprio arguido, pintando-a embora de tons menos carregados e aduzindo uma provocação ou tentativa de agressão pela ofendida, não deixou de admitir tê-la atingido na enxada que transportava ao ombro com “um pauzito”.
- As mesmas regras da normalidade e experiência comum permitem concluir pela manutenção da situação dada como assente, de agressões frequentes, insultos e ameaças até à data em que veio a verificar-se a separação do casal. Assim é que a doença de que ficou a padecer a ofendida: depressão reactiva tem a sua causa na situação familiar exposta e não se compreende um quadro agudo ou crítico, um estado depressivo muito grave, como o classificou o médico já referido, que assistiu a ofendida logo após a agressão dada como provada em 6, após um interregno ou melhoria da situação conjugal; sendo certo que as testemunhas já referidas J.....; Eurico ......; Sandra .....; Maria O...... e Olga ..... situaram aqueles episódios de agressão, ameaça e injúria até à data da separação.
- No que respeita aos demais factos dados como não provados, a convicção do tribunal fundou-se na completa ausência de prova, testemunhal ou outra, no que interessa aos constantes das alíneas a) a c); e); f) e j) a m) e na exiguidade da prova, no que interessa aos referidos nas alíneas g) e h), posto que apenas a ofendida se lhes referiu; sendo certo que, nessa parte, nenhum outro depoimento testemunhal ou dado da experiência comum os confirmou.
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Os poderes de cognição deste tribunal "ad quem" abrangem a matéria de facto e de direito (cf. art.º 428.º, n.os 1 e 2, do CPP), uma vez que, como resulta da acta de fls. 157, não houve declaração unânime nos termos do art.º 364.º, n.os 1 e 2, do CPP, a prescindir da documentação da prova, que foi feita por gravação magnetofónica.
Apesar de não ter havido renúncia ao recurso em matéria de facto, verifica-se que o presente recurso, pelo teor das conclusões que delimitam o seu objecto (art.os 412.º, n.º 1, e 403.º, n.º 1, do CPP), se restringe a matéria de direito, pois o recorrente não impugna a matéria de facto mas tão-somente o seu enquadramento jurídico-penal.
Na verdade, as questões trazidas à discussão deste tribunal, em síntese, traduzem-se em saber:
1 – se houve erro de subsunção dos factos dados como provados, maxime nos pontos 3, 4, 5, 8, 9, 11 e 12, reportados à vida em comum do casal desde 9 de Julho de 1961 (data do casamento) até princípio de Julho de 2000 (em que ocorreu a mais recente agressão física), desenquadrados das concretas circunstâncias de tempo, lugar e modo, não podendo ser valorados para integrarem o conceito de reiteração inerente ao crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art.º 152.º , n.º 2, do Código Penal e se, face à única agressão concretizada no ponto 6, se deve operar a convolação dos factos para o crime de ofensa à integridade física simples do art.º 143.º do mesmo Código Penal e,

2 – se, operada tal convolação, a condenação no pedido de indemnização civil, por inadequada e exagerada, não deve ser superior a 250 €.

A limitação do recurso a matéria de direito, não dispensa este tribunal de conhecer “ex officio” dos vícios do art.º 410.º n.os 2 e 3 do CPP (cf. n.º 2 do art.º 428.º do CPP [E jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 7/95, de 19/10, in DR I Série A, de 28-12-95, e pelo Ac. do STJ n.º 1/94, de 2/12, in DR, I Série A, de 11-2-94]).
Da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se detecta qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP e também não há qualquer nulidade de que cumpra conhecer.
Não obstante o que o recorrente alega na alínea O) da conclusão da motivação do recurso, o que verdadeiramente aí se refere não é qualquer dos vícios prevenidos nos n.os 2 e 3 do art.º 410.º, n.os 2 e 3, do CPP (aliás, nenhum vício foi especificado com referência a estes normativos), mas tão somente um erro de subsunção dos factos, ou seja, um error in judicando, por o tribunal "a quo" ter subsumido os factos provados na previsão do tipo legal de crime do art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal, entendendo o recorrente que tais factos deviam ter sido subsumidos ao tipo legal de crime do art.º 143.º, n.º 1 do Código Penal, pretendendo tal convolação, com reflexo no pedido de indemnização civil, questões que constituem o objecto do presente recurso.
Assim, tem-se como definitiva a matéria de facto fixada na 1.ª instância, passando-se à apreciação das referidas questões trazidas à discussão neste tribunal.
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1.ª Questão:
Do erro de subsunção jurídico-penal dos factos.
Entende o recorrente que “a douta sentença recorrida valorou factos que não podia fazer, maxime, os referidos nos pontos 3-4-5-8-9-11 e 12, já que não são integradores do conceito de reiteração para preenchimento do tipo legal de crime de maus tratos a cônjuge, e que não foram alegados factos materiais simples e concretos devidamente enquadrados nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, que uma vez provados, pudessem integrar o crime de maus tratos a cônjuge”.
Para o recorrente “os factos dados como provados na douta sentença e constantes da douta acusação pública, com excepção do ponto 6, não podiam ser impugnados especificadamente pelo arguido e daí a sua irrelevância jurídica, dado serem meramente conclusivos e ou desenquadrados das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que terão ocorrido, e, por isso, insusceptíveis de serem subsumidos ao crime de maus tratos a cônjuge”.
“Mas, mesmo que assim se não entenda sempre os factos ofensivos referidos na douta sentença terão de haver-se por perdoados pelo cônjuge inocente, já que não foram impeditivos da vida em comum, e o único facto concreto provado foi a agressão verificada em Julho de 2.000.”
Argumenta ainda o recorrente que “só factos concretos e determinados e reiterados e ocorridos a partir de Julho de 2.000, data da separação do casal, seriam passíveis de qualificação, uma vez alegados e provados, de integrar o crime de maus tratos a cônjuge e nunca os verificados anteriormente, maxime, há mais de dois anos, nem sequer concretamente alegados e provados, como, in casu, se pretende”.
Daí, o arguido-recorrente “só dever ser condenado pela prática do crime de ofensas corporais simples previsto e punido pelo artigo 143º do C. Penal, crime para o qual se deverá convolar a condenação.”
Vejamos se lhe assiste razão.
A discordância do recorrente quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos provados resulta, essencialmente, de os factos dados como provados, maxime sob os n.os 3, 4, 5, 8, 9, 11 e 12, se reportarem à vida em comum do casal desde 9 de Julho de 1961 (data do casamento, referida no n.º 1) até princípio de Julho de 2000 (altura em que ocorreu a agressão física referida no n.º 6) – e não se encontrarem devidamente enquadrados nas circunstâncias de tempo, lugar e modo, de forma a poder dar-se como verificada uma reiteração de conduta localizada no tempo que o recorrente considera necessária para o preenchimento do tipo legal de crime dos maus tratos a cônjuge p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal.
Na verdade, os factos da sentença apontados pelo recorrente abrangem um período de tempo (cerca de 39 anos) que é anterior à própria existência do tipo legal de crime em causa (de maus tratos a cônjuge) que foi introduzido, pela primeira vez, na versão originária do Código Penal de 1982, através do n.º 3 do art.º 153.º, que tinha por epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» e sofreu alterações com a revisão do Código Penal em 1995, passando a integrar o art.º 152.º, sob a epígrafe «maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge» o qual foi alterado pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, e ainda pela Lei n.º 7/00, de 27 de Maio, passando a ter a epígrafe «maus tratos e infracções de segurança», sendo de salientar que antes desta última alteração (com a Lei n.º 7/00), o procedimento criminal pelo crime de maus tratos a cônjuge (n.º 2 do art.º 152.º do CP) dependia de queixa, embora na redacção dada pela Lei n.º 65/98, o Ministério Público pudesse dar início ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse e não houvesse oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação.
Há que reconhecer que os factos susceptíveis de integrar o crime de maus tratos a cônjuge no caso vertente não podem reportar-se aos 39 anos de vida em comum dos cônjuges como transparece dos factos dados como assentes nos n.os 1, 3 e 9.
Os factos descritos a terem ocorrido nos últimos seis meses anteriores à entrada em vigor da Lei n.º 7/00, de 27/05 (última alteração do artigo 152.º do C. Penal de 1995), e integrando o referido tipo de crime, que era de natureza semi-pública, só relevariam para a configuração de tal ilícito, se em relação a eles tivesse sido desencadeado procedimento criminal e não estivessem, porventura, já abrangidos por amnistia ou prescrição.
Tem sido controvertida a questão de saber se o referido crime de maus tratos exige ou não, para a sua configuração, a prática de condutas repetidas, plúrimas e variadas de agressão de um dos cônjuges pelo outro.
Ao analisar o artigo 153º, n.º 3 do Código Penal na sua versão original (1982) [O Artigo 153.º (Maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges) do Código Penal na versão de 1982, dizia o seguinte:
1. O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo:
a) Lhe infligir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem ou;
b) O empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo.
2. Da mesma forma será punido quem tiver como seu subordinado, por relação de trabalho, mulher grávida, pessoa fraca de saúde ou menor, se se verificarem os restantes pressupostos do nº 1.
3. Da mesma forma será ainda punido quem infligir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo] já a Prof.ª .Teresa Beleza fazia notar que “... os vários verbos utilizados implicam uma ideia de reiteração, de continuidade, ligada, justamente, à relação existente entre as pessoas.” [Cf. Maus Tratos Conjugais: o art.º 153.º, n.º 3, do Código Penal. A.A.F.D.L. 1989, pág. 21].
Comentando o art.º 152.º do Código Penal revisto em 1995, o Prof. Taipa de Carvalho, também faz notar que “ o tipo legal de crime em análise, pressupõe segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará a reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, T.º I, § 9, pág. 334].
De igual modo os Conselheiros Leal Henriques e Simas Santos em anotação ao referido artigo (152.º C. Penal de 1995), observam que “... não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade na conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo” [Cf. Código Penal Anotado, 3.ª edição, 2.º Vol., pág. 301].

Na jurisprudência já se tem considerado que, mesmo com a redacção de 1982, a referida conduta criminal se poderia verificar com uma única conduta agressiva, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse qualificar como tal (cfr. Ac. da RL de 29-04-1987, in Col. de Jur. Ano XII, tomo 2, pág. 183 e os Acs. do S.T.J. de 17-10-96, e de 14-12-97, in Col. de Jur., Acs. do S.T.J., Ano IV, tomo 3.º, pág. 170 e Ano V, tomo 3.º, pág. 235, respectivamente).
Mas também se tem decidido que para a verificação do crime de maus tratos não basta uma acção isolada, mas também não se exige habitualidade (cf. Ac. do S.T.J. de 97-01-08, proc.º n.º 934/96, citado por Leal-Henriques e Simas Santos), que as ofensas corporais entre cônjuges só constituirão o crime de maus tratos se houver conduta plúrima e repetitiva; não a havendo, constituirão apenas o crime de ofensas corporais (cf. Ac. da R.P. de 22-03-95 in Col. Jur. Ano XX, tomo 2.º, pág. 227) e que a punição se dirige tão somente aos comportamentos que, de forma reiterada, lesam a dignidade pessoal do cônjuge, e não a ofensas corporais isoladas ainda que de duração prolongada (Ac. da R.P. de 03-11-99, in Col. Jur. Ano XXIV, tomo 5.º, pág. 224).
No caso vertente, analisada a factualidade dada como provada e não provada, designadamente os factos vertidos nos n.os 3, 4, 5, 8, 9, 11 e 12 dos factos provados, entendemos que estes não se encontram circunstanciados no tempo dos 39 anos de vida em comum dos cônjuges de forma a considerar-se, sem margem para dúvida, que a agressão ocorrida em Julho de 2000, referida no n.º 6 dos factos provados, se enquadra numa reiteração de actos, num certo continuar de sucessivas acções, isto é, num determinado espaço de tempo que leve a qualificá-la de acto não isolado subsumível à previsão do art.º 152.º, n.º 2 do Código Penal, nem que tal agressão tenha assumido gravidade intrínseca de molde a considerá-la, de per si, como susceptível de integrar a previsão penal específica pela qual o recorrente foi condenado.
Decorre do exposto que a factualidade apurada, dada a sua imprecisão e incerteza, mormente, quanto à sua localização temporal – visto que nem se chega a mencionar o ano da ocorrência dos factos que antecederam a agressão física cometida em Julho de 2000, como resulta do n.o 3: “desde o início da vida em comum...”, do n.º 8: “ao longo de todo o tempo de vida em comum e por diversas vezes...” e do n.º 9: “em data não concretamente apurada...” – não devia ter sido subsumida ao tipo incriminador do art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal, e deve ser convolada para o tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, cujos factos constitutivos se encontram devidamente circunstanciados.
Procede, assim, a pretensão do arguido/recorrente, e não há obstáculo legal à sua punição pela prática do referido crime, uma vez que se trata de um ilícito que configura um minus em relação ao crime de maus tratos a cônjuge, e a alteração da qualificação dos factos não pode surpreender o recorrente nem afecta as suas garantias de defesa.
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Cumpre, agora, determinar, a escolha e medida da pena.
O crime de ofensa à integridade física simples é punível com a pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Considerando a gravidade do ilícito e das suas consequências, bem como as exigências de prevenção, afigura-se que a simples pena de multa não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que nos termos do artigo 70.º do Código Penal se optará, pela pena prisão, sem prejuízo de ser decretada a sua suspensão, estando, aliás, vedada qualquer “reformatio in pejus” ( art.º 409.º do CPP).
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal).
O tribunal atenderá igualmente a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
As exigências de prevenção geral que, na actualidade, se fazem sentir no domínio da agressão física, particularmente entre marido e mulher, são prementes.
O grau de ilicitude é acentuado pelo modo de execução e pelas consequências causadas.
O dolo é intenso na modalidade de dolo directo (artigo 14º do Código Penal).
O arguido encontra-se na situação de reformado, padece de doença que o debilita fisicamente e já não vive com a sua mulher.
A seu favor milita a circunstância de não ter antecedentes criminais.
Tudo devidamente ponderado, tem-se como adequada e proporcional em função do seu grau de culpa e das exigências de prevenção geral e especial, a pena de 8 (oito) meses de prisão, pena esta que, nos termos do art.º 50.º do Código Penal, desde já, se decreta suspensa na sua execução, pelo período de dois anos, atendendo às actuais condições de vida do arguido, ao facto de ser primário, e à fundada convicção de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
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2.ª Questão:
Da indemnização civil.
Além da convolação dos factos apurados, e em consequência dela, pede o recorrente que a indemnização civil arbitrada em 4.987, 97 €, por exagerada, seja fixada em montante não superior a 250 €.
Reconhecendo-se embora, alguma pertinência quanto à redução do pedido indemnizatório, em virtude da convolação para um crime de menor gravidade, nem por isso, se pode abstrair das consequências resultantes da prática da ofensa à integridade física simples à demandante, nomeadamente do traumatismo na região superior do ombro esquerdo, que, no circunstancialismo concretamente apurado, causou à ofendida um síndroma depressivo reactivo, que se prolongou até ao dia 5 de Março de 2001, altura da consolidação da referida lesão, que lhe demandou, pelo menos, 238 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho (cf. n.os 6 e 7 dos factos provados e exame de sanidade de fls. 57, que serviu de fundamento à decisão de facto, o qual refere expressamente o nexo de causalidade entre traumatismo e dano, neste caso psíquico).
A agressão cometida pelo arguido/demandado, foi, inquestionavelmente, causa adequada de sofrimento físico e psíquico durante longo período, embora sem afectar a capacidade de trabalho da ofendida.
Os danos não patrimoniais sofridos, pela sua gravidade, justificam uma compensação, com recurso à equidade e tendo em atenção o preceituado nos art.os 494.º e 496.º n.os 1 e 3, do Código Civil.
É evidente que quando se recorre a critérios de equidade, como é o caso, há sempre uma certa margem de discricionaridade e subjectividade.
No entanto, não poderá esquecer-se que a indemnização reveste, no caso de danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” [Cf. A. Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 7.ª ed., p. 602].

No caso em apreço, abstrair-se-á dos danos inerentes aos factos não valorados para efeitos do crime tipificado no art.º 152.º, n.º 2, do Código Penal, por não terem sido localizados temporalmente, considerando-se apenas os danos inerentes aos factos integradores do crime de ofensa à integridade física simples da demandante, e atendendo ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e da lesada e às demais circunstâncias do caso.
O recorrente pretende que se arbitre à demandante uma indemnização não superior a 250 €, mas, tal montante, face ao período de doença sofrido (238 dias), não passaria de um valor meramente simbólico e miserabilista.
Assim, em termos de equidade, julgamos mais ajustada a indemnização de 2.500 € (dois mil e quinhentos euros) a pagar pelo demandado à demandante Maria Fernanda ..... .
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso e, consequentemente, revogando parcialmente a sentença recorrida, decide-se:
a) absolver o arguido Joaquim ..... da prática do crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, e, por convolação, condená-lo, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, suspensão na sua execução pelo período de dois anos;
b) condenar o arguido/demando a pagar à demandante Maria Fernanda ....., a título de danos não patrimoniais, a indemnização de 2.500 € (dois mil e quinhentos euros).
c) no que concerne a custas e honorários, mantém-se o decidido na sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, com a taxa de justiça normal reduzida a metade.
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Porto, 4 de Junho de 2003

Agostinho Tavares de Freitas
José João Teixeira Coelho Vieira
Maria da Conceição Simão Gomes
José Casimiro da Fonseca Guimarães